Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Farmácia Boletim Atrás da Estante Um projeto do CEMED Centro de Estudos de Medicamentos da UFMG Volume 8, nº1 Editorial Até que ponto os medicamentos, como parte integrante da política industrial, devem estar sujeitos a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as flutuações do mercado? O Boletim Atrás da Estante, em seu 8º Volume, prossegue motivado a informar e a levar uma visão crítica e diferenciada sobre tais questões, uma vez que o medicamento enquanto um produto que ultrapassa as dimensões bioquímicas, está inserido em uma realidade sociocultural, epidemiológica e econômica. Artigos recentes destacam a existência de uma crise de criatividade no setor farmacêutico, relacionada com a diminuição constante do número de moléculas efetivamente inovadoras, as chamadas Novas Entidades Moleculares (NEM). Carente de inovações, e mediante a um número inédito de patentes de medicamentos que irão expirar nos próximos anos, a indústria, em uma busca de adaptação mercadológica, observa o crescimento da concorrência dos genéricos, da produção de medicamentos chamados de me-too e do uso offlabel de seus produtos . Em O Príncipe, Maquiavel funda o pensamento político moderno e vê a virtude política representada pela astúcia e pela capacidade de adaptação às circunstâncias. A expressão maquiavélica, criada no séc. XVI e conservada até hoje, representa o medo que se tem de alguma política quando lhes tiramos as máscaras da moral, da razão e da ética. Então, vale perguntar: até que ponto os medicamentos metoo e o uso off-label se utilizam de tais máscaras e são realmente benéficos para a população? Baseados na modificação estrutural de fármacos conhecidos, os medicamentos me-too são considerados por alguns críticos 31/10/2011 Quando a propaganda é embalada como reportagem como uma “falsa inovação”. Enquanto análogos estruturais, são vistos como uma estratégia inteligente para mascarar a escassez de NEM. Consequentemente, criamos um mercado saturado de novas drogas, com pouca pesquisa clínica para sua formulação, e muitas vezes sem uma vantagem terapêutica significativa em relação às já existentes. Quanto ao uso off-label dos medicamentos, ou seja, medicamentos empregados para usos e finalidades distintas daquelas indicadas em sua bula, existem divergentes opiniões. Médicos fundamentam suas prescrições alegando que seu uso é comum no tratamento de doenças órfãs e de populações específicas que recebem pouco investimento para testes de aprovação de medicamentos. Já os opositores da prática argumentam que esse tipo de prescrição permite que as empresas optem por registrar seus produtos pela indicação que apresente maior facilidade durante os estudos clínicos, sabendo de antemão que o público alvo incluirá outras finalidades. Marcia Angell, pesquisadora do Departamento de Medicina Social da Harvard Medical School, em seu famoso livro - A verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos - nos traça alguns caminhos para a reformulação das práticas farmacêuticas, como a proibição de laboratórios controlarem os ensaios clínicos de seus próprios medicamentos, e a obrigatoriedade de equilíbrio de investimento entre a formulação de me-too e a busca por moléculas inovadoras. Caminhos estes que podem nos levar a diminuir o elo entre a dinâmica medicamentosa e a visão do fármaco restrita ao produto encapsulado. (Vivian Thaíse da Silveira Anício) “[...] todo ser humano é carente de remédio. Principalmente, de remédio novo, com embalagem nova, propriedades novas e novíssima eficácia, ou seja, que se não curar este mal, conhecido, irá curar outro, de que somos portadores sem sabê-lo. Em que ficamos: o remédio gera a doença, ou a doença repele o remédio, que é absorvido por artes do nosso fascínio pela droga, materialização do sonho da saúde perfeita, que a publicidade nos impinge?” (“O Homem e o remédio: qual o problema?”, Carlos Drummond de Andrade) Em setembro deste ano chegou às bancas uma matéria que parecia conter uma solução para o problema de muitos casos de excesso de peso no Brasil, parecia até milagre. Similar a matérias publicadas anteriormente pela mesma revista como sobre a pílula que fazia a dieta (Xenical®, out/98) ou sobre a maior esperança para emagrecer (Rimonabant, dez/05), a matéria sobre o Victoza® chamou a atenção de profissionais de saúde, da ANVISA e da equipe do CEMED. A liraglutida, produto “biológico” contido no Victoza®, é uma substância de alta complexidade que tem seu uso autorizado no Brasil apenas para o tratamento de diabetes tipo II. Sendo um medicamento novo e, embora pesquisas apresentem níveis aceitáveis de eficácia e segurança, mesmo que quando utilizado corretamente, pode apresentar efeitos adversos imprevisíveis e desconhecidos, segundo alerta a nota da ANVISA sobre a referida reportagem. Deste modo, a super valorização dos efeitos do medica- mento para seu uso off label, a ausência de referência aos riscos e o mau uso dos dados coletados pelos estudos científicos citados ao longo da matéria, além da repercussão observada na sociedade serviram como um alerta para o risco do uso indiscriminado que poderia ser gerado. Risco este que aparentemente se concretizou cerca de duas semanas após divulgação do medicamento, haja vista a falta do mesmo em todo o país. Apesar de matérias como esta não serem enquadradas na legislação que rege a propaganda do mercado farmacêutico, sendo consideradas como divulgação de informação (jornalismo), isto pode ser contestado. Se assim como a jornalista e radialista Cidinha Campos, considerarmos que “jornalismo é publicar alguma coisa que alguém não quer. O resto é publicidade.”, fica claro o fundo publicitário da matéria sobre o Victoza®, como também sobre o Xenical® e tantos outros medicamentos que são divulgados separadamente de seus riscos e avaliação de segurança e logo viram “febre”, tendo seu consumo aumentado. A matéria sobre o Victoza® e sua repercussão nos alerta não somente sobre a importância do conhecimento e uso de fontes seguras de informação sobre o medicamento, como também demonstra claramente como esta lacuna tem sido preenchida de maneira perigosa em nossa sociedade. Fica a pergunta: a quem cabe produzir e divulgar informações sobre os medicamentos? (Raissa Carolina Fonseca Cândido) Boletim Atrás da Estante O que vem da natureza não faz mal? Até que ponto o uso de plantas medicinais e fitoterápicos é seguro? Atualmente, observa-se um uso crescente de medicamentos fitoterápicos, estimulado por fatores como baixo custo, eficácia e pela tendência do consumidor em utilizar produtos de origem natural1. Muitos desses medicamentos são misturas complexas cujo perfil tóxico não é totalmente conhecido. Um estudo nacional2 publicado em 2010 analisou o perfil das notificações de reações adversas a plantas medicinais e fitoterápicos de 1999 a 2009. De vinte mil notificações, 165 se referiam a eventos adversos a fitoterápicos, número relevante pelo seu significado. O que está sendo analisado é a segurança do medicamento e sabese que ainda há uma dificuldade na identificação de reações adversas relacionadas a plantas medicinais e fitoterápicos. Em setembro desse ano a ANVISA proibiu a fabricação, venda e uso de nove fitoterápicos que apresentavam irregularidades. Tais fatos demonstram que tão importante quanto o desenvolvimento do conhecimento científico sobre o uso de produtos naturais com potencial terapêutico é o fortalecimento de programas de farmacovigilância, atento aos fitoterápicos e plantas medicinais, e ampla divulgação e sensibilização entre profissionais de saúde para que seja possível um uso verdadeiramente racional de tais alternativas terapêuticas. (William Pereira Alves) Medicamento, principal causa de intoxicação no Brasil "“Amar se aprende amando” (Carlos Drummond de Andrade)* São cada vez mais frequentes, nos atendimentos dos setores de emergência, casos de intoxicações exógenas ou envenenamentos. Anualmente, a intoxicação por medicamentos responde a aproximadamente 28% dos casos registrados pelo SINITOX/CICT/ FIOCRUZ/MS, e em média 35% destes casos se referem a crianças menores de cinco anos. Neste panorama, destaca-se o uso irracional de medicamentos, tentativa de suicídio e homicídio, automedicação e erro de prescrição médica. Segundo o SINITOX, os principais medicamentos que intoxicam em nosso país são os benzodiazepínicos, antigripais, antidepressivos e os anti-inflamatórios. O alto índice de intoxicações medicamentosas está relacionado a diversos fatores, sendo a grande variedade de fármacos com um perfil de segurança e eficácia duvidosa um dos principais. Nesse cenário, a forma como um paciente utiliza os fármacos e a avaliação criteriosa do profissional ao prescrever Você sabia? (Luana Faria da Cruz) EQUIPE: O rádio e a propaganda de medicamentos: uma história em comum. A primeira transmissão nacional de rádio aconteceu em 1922, e nove anos após, em 1931, já existiam 21 emissoras. Com a regulamentação do setor, acontecida em 1932, foram introduzidas as propagandas e os programas de variedades, cujos anunciantes, na sua maioria, eram os laboratórios farmacêuticos. No início da era do rádio, os spots, como eram chamados os anúncios de rádio, eram lidos ao vivo, enquanto os jingles, mais sonoros e bem elaborados, eram muitas vezes cantados pelos próprios cantores e cantoras do rádio. A Rádio Nacional surgiu em 1936 e seus principais anunciantes foram os laboratórios que produziram o Colírio Moura Brasil®, o Mitigal®, o Elixir de Inhame® e o Urudona®, mas foram os produtos do Sidney Ross – entre eles o Sonrisal® – os mais anunciados naquela nova mídia. Realização: um medicamento é uma estratégia importante na redução dessas taxas. Conhecer as causas de intoxicação tais como dose, tipo de fármaco, nível individual de tolerância, tempo e frequência de exposição, é importante na prevenção, enquanto o conhecimento toxicológico é fundamental nos casos de maior urgência. - Luana Faria da Cruz1 - Raissa Carolina Fonseca Cândido2 - Vivian Thaíse da Silveira Anício1 - William Pereira Alves2 - Farmacêutica Alba Valéria S. Melo Moraes - Professora Cristiane Menezes - Doutoranda Daniela Rezende Garcia Junqueira - Professor Edson Perini ¹ Alunas do 3º período de Farmácia/UFMG ² Alunos do 4º período de Farmácia/UFMG Apoio: Os textos assinados são endossados por toda a equipe. Maiores informações e o material que serviu de fonte para o boletim estão disponíveis sob solicitação através do email: [email protected] “Quando a propaganda é embalada como reportagem” Referências: 1 - “O Homem e o remédio: qual o problema?”, Carlos Drummond de Andrade. Jornal do Brasil, 1980. Acessado em 25/10/11. Disponível em: http://farmacovigilanciainfoco.com/2010/09/16/o-homem-e-o-medicamento-por-carlosdrummond-de-andrade-2/ 2 - “Menos sete, menos dez, menos doze quilos!”. Revista Veja. 7 de setembro de 2011. 3 - Informe SNVS/Anvisa/Nuvig/GFARM nº 07, de 06 de setembro de 2011. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/ 4 - “Effects of liraglutide in the treatment of obesity: a randomised, double-blind, placebo-controlled study “. The Lancet. Novembro de 2009. Acessado em 25/10/11. Disponível em: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/ S0140673609613751 “O que vem da natureza não faz mal?” Referências: 1- Farmacovigilância e reações adversas às plantas medicinais e fitoterápicos: uma realidade. Patrícia Fernandes da Silveira. Revista Brasileira de Farmacognosia. Acesso em outubro de 2011: http://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S0102-695X2008000400021 2- Farmacovigilância: um passo em direção ao uso racional de plantas medicinais e fitoterápicos. Evelin E. Balbino. . Revista Brasileira de Farmacognosia. Acesso em outubro de 2011: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102695X2010000600027&script=sci_arttext “Medicamento, principal causa de intoxicação no Brasil” Referências: 1 - Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológias, Brasil, 2011. SINITOX,Centro de Informação Científica e Tecnológica, Fundação Oswaldo Cruz. Acessado em outubro/2011: http://www.fiocruz.br/sinitox/medicamentos.htm 2 - More Kids Accidentally Poisoned With Pharmaceutical Products In USA. Acessado em outubro/2011: http://www.medicalnewstoday.com/articles/234588.php “O rádio e a propaganda de medicamentos: uma história em comum.” BUENO, Eduardo; TAITELBAUM, Paula. Vendendo Saúde: história da propaganda de medicamentos no Brasil. Brasília: Agência Nacional de Vigilância Sanitária, 2008. 159 p. * Homenagem da equipe do “Atrás da Estante“ ao “Dia D” – 31 de outubro Dia Drummond.