ÉTICA, MORAL, CUIDADO E DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS Aloísio Krohling1 Resumo Como primeiro passo procurou-se uma conceituação fiel às raízes etimológicas dos termos moral ( êthos) e ética( éthos), e também foram pesquisados os termos correlatos, como cuidado( cura), virtude( aretê), Justiça( dike) e phronesis ( prudência ou sabedoria prática), felicidade ( eudaimonia), e práxis( reflexão com ação). O segundo passo foi pesquisar e relacionar esses dados com as raízes ontológicas da ética em Martin Heidegger, chegando-se à confirmação da grande coincidência entre raízes etimológicas e o significado eticofilosófico da ética como morada do ser humano. À fundamentação etimológica correspondeu a metodologia e fundamentação fenomenológica. Ética no seu sentido original aristotélico significa a morada do ser e o caráter da pessoa humana, que é uma marca indelével que vai se afirmando na história de cada ser humano, tornando-se o princípio fonte dos direitos humanos fundamentais. Palavras-chave: Ética, moral, cuidado, fenomenologia, direitos humanos fundamentais. INTRODUÇÃO O Núcleo Temático de pesquisa intitulado: “ Direitos Humanos, Educação, Ética e Diversidade”, desenvolveu, em 2009, vários projetos de pesquisa, integrando graduação e mestrado, tendo os seus pesquisadores a preocupação em relacionar os direitos humanos fundamentais com a realidade brasileira, mas ao mesmo tempo é consenso dos participantes do Grupo de Pesquisa, a necessidade de fundamentação conceitual e teórica. O desafio da busca de 1 Pós-Doutor em Filosofia Política. Doutor em Filosofia (Instituto Santo Anselmo, Roma, Itália). Mestre em Teologia e Filosofia pela Universidade Gregoriana dos Jesuítas em Roma, Itália. .Mestre em Sociologia Política (Escola de Sociologia e Política de São Paulo). Graduado em Filosofia pela Faculdade Anchieta dos Jesuítas em São Paulo. Graduação em Ciências Sociais pela Loyola University, Chicago, USA., Professor de Filosofia do Direito do Mestrado em Direitos e Garantias Constitucionais da Faculdade de Direito de Vitória (FDV),atuando como coordenador do Núcleo Temático “Direitos Humanos, Educação, Ética e diversidade”. Este texto foi publicado no livro Pesquisa em Direitos Humanos. Org. Elda Coelho de Azevedo Bussinger. Vitória: Boiteux, 2009. novas metodologias e novos referenciais teóricos, fora e além do positivismo jurídico, foi perseguido por vários membros do núcleo de pesquisa. O estudo de temas relacionados com ética fizeram parte de várias pesquisas, sendo a conceituação de ética e moral, umas das mais recorrentes. É objetivo deste relato mostrar o resultado dos debates internos no grupo e da pesquisa filológica dos principais conceitos, como ética, moral e cuidado e esclarecer a sua conceituação ancorada nos fundamentos éticofilosóficos da fenomenologia. Parte-se da hipótese que o significado éticofilosófico da ética está relacionado ao sentido original dos termos nas suas raízes etimológicas. A metodologia e quadro teórico foram iluminados pela fenomenologia de Martin Heidegger. A confusão semântica destes termos é muito comum e colocamos a necessidade metodológica de buscar as raízes etimológicas gregas e latinas das palavras-chave, sendo uma questão intrigante o porque desta falta de fundamentação conceitual na tradução de certas palavras no decorrer da história. A única saída é a pesquisa das suas raízes filológicas e a busca dos fundamentos éticofilosóficos, que se tornou a proposta imperativa deste trabalho. ÉTICA E MORAL: Conceituação O conceito de ética e moral, ao longo da história do pensamento filosófico, vem sendo usado quase como sinônimos, quando na verdade tem um significado etimológico diverso e são inteiramente diferentes a partir da filologia. Tornou-se modismo discursar sobre ética em todos os campos do saber e em todas as profissões e até nas empresas e na política. As famosas éticas empresariais que enfatizam a qualidade total e a responsabilidade social, são mais peças de marketing comercial do que carta de princípios éticos. A maioria dos autores de livros sobre ética afirmam equivocadamente, seguindo na esteira da primeira edição do dicionário de Caldas Aulete , que a moral é a ciência da ética e a deontologia seria apenas a ciência dos deveres. Seria melhor intitular a deontologia profissional como o conjunto codificado das deveres impostos aos profissionais de uma determinada área, no exercício de sua profissão, tendo em vista a relação entre profissão e sociedade. Daí terem surgido os termos deontologia médica e deontologia jurídica. O primeiro Código de Deontologia foi elaborado na área médica, em meados do século passado. Para deixar bem claro a diferença preferimos o termo Código de Moral Profissional para todos os códigos de deveres e regulação das profissões, onde se poderia destacar os princípios éticofilosóficos como fundamentos de toda a práxis humana nos seus enunciados iniciais. A confusão conceitual entre ética e moral é impressionante, até em compêndios e manuais didáticos sobre a temática mostra a falta de estudos sérios dos clássicos, como Aristóteles, a quem vamos recorrer para explicar a origem filológica dos termos tão frequentemente confundidos como sinônimos. Concordamos com Adolfo Sanchez quando define moral como um sistema de condutas, costumes, regras e valores, que regulamentam as relações mútuas entre os indivíduos ou entre estes e a comunidade, de tal maneira que estas normas, dotadas de um caráter histórico, cultural e social, são aceitas como válidas e tradicionais2. Um recurso aos dicionários com lastro em filologia, como, Houaiss, nos ensina que Êthos é o conjunto dos costumes e hábitos solidificados culturalmente no âmbito do comportamento e da socialização (valores, idéias ou crenças), característicos de uma determinada comunidade ou coletividade, época ou região geográfica. O autor não diferencia êthos do outro termo aristotélico 2 SÁNCHEZ VÁSQUEZ, Adolfo. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 12ª ed., 1969, pp. 12 – 14) éthos. Em grego clássico existe uma diferença entre ÊTHOS( com E grande, o épsilon em grego ) e éthos com é de tamanho pequeno. Para o filósofo grego Aristóteles ÊTHOS é costume, hábito ou o conjunto de valores culturais socializados de geração em geração através da tradição cultural, em geral traduzidos no latim por mos (costumes) ou mores( costumes, ou moralis( o adjetivo moral, ou moralitas (moralidade). Cícero (De Fato, II, 1) traduziu a palavra grega éthicós por moralis. A origem ou o estudo dos costumes seria etiologia ou etnografia. Eticidade e moralidade se equivalem como exercício da liberdade e vontade humanas. A ética seria a filosofia da moral, que seria a raiz ou o princípio originário e a diretriz da moralidade. ÉTHOS (com é pequeno) significa a morada, o abrigo permanente dos animais, ou dos seres humanos, que necessita fisicamente de um topos (lugar). Se é morada ou casa, que em grego significa oikos, não é algo pronto, mas aberto, a ser sempre construído e reconstruído. Torna-se o éthos um modo de ser, o caráter da pessoa, uma marca ou sigilo firmado pela Razão (logos) que distingue o homem dos animais e em busca do viver bem, morar bem, sendo o princípío originário de manter-se vivo e sempre cuidando do seu corpo e da natureza que é parte do próprio homem. Éthos ou ética na sua tradução literal tem relação com princípios fundadores das práxis humana como preservação da vida e do cosmos circundante. Daí a relação de éthos e óikos (casa) e tópos (lugar) e no latim arcaico com a palavra coera, depois cura ( cuidado), que significa preocupação, amizade e amor. ÉTICA E CUIIDADO Leonardo Boff afirma que a idéia de cuidado é á força originante da praxis humana ou o modo de-ser-no-mundo e a forma como o homem se relaciona com os outros e esta relação vai além da razão (logos), sendo mais sentimento (pathos), constituindo-se como um a priori ontológico que estaria na origem da existência humana3. Como a ética, também o cuidado está na raiz e na constituição do ser humano, sendo uma dimensão fontal, originária, ontológica do ser humano, o que Martin Heidegger desenvolverá na sua análise fenomenológica da seguinte maneira4: Enquanto totalidade originária de sua estrutura,o cuidado( a cura) a se acha, do ponto de vista existencial a priori, “antes” de toda atitude e situação da pre-sença, o que sempre significa dizer que ela se acha em toda atitude e situação de fato. Em consequência, esse fenómeno não exprime, de modo algum, um primado da atitude “prática” frente à teórica. A determinação meramente contemplativa de algo simplesmente dado não tem menos o caráter do cuidaddo do que uma “ação política” ou a satisfação do entretenimento. “Teoria” e “prática” são possibilidades ontológicas de um ente cujo ser deve determinar-se com cuidado. De acordo com M.Heidegger, no texto citado, o saber cuidar ou o cuidado é um fenômeno ontológicoexistencial fundamental, não no sentido platônico, mas com o siginficado aristotélico. A idéia de presença e de homem são báscias para compreensão do significado da palava cuidado,traduzido do latim cura, e que seria uma atitude de respeito à dignidade do ser humano em relação ao cosmos, ao seu corpo e aos outros homens. Leonardo Boff5 escrevendo sobre o cuidado como modo de ser essencial ao homem, cita M.Heidegger6: Entretanto, o cuidado é ainda algo mais que um ato e uma atitude entre outras. Disse-o, o filósofo que melhor viu a importância essencial do cuidado. Martin Heidegger( 1889-1976)e se famoso Ser e Tempo disse: Do ponto de vista existencial, o cuidado se acha a 3 BOFF, L. Saber Cuidar-Ética do humano-compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999, p.99101) 4 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback,.Petrópolis: 2.ª Edição, Editora Vozes, 1988, p. 258 5 BOFF, L. Saber Cuidar - Ética do humano - compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999. p.33-34. 6 HEIDEGGER, M. Ser e tempo, parte I. Petrópolis: Editora Vozes, 1989. p. 243-300. Todo o sexto capítulo, dedicado à cura-cuidado parágrafos 39-44. priori, antes de toda atitude e situação do ser humano, o que sempre significa dizer que ele se acha em toda atitude e situação de fato. Quer dizer, o cuidado se encontra na raiz do ser humano, antes que ele faça qualquer coisa. E, se fizer, ela sempre vem acompanhada de cuidado e imbuída de cuidado. Significa reconhecer o cuidado como um modo-de-se-ser essencial, sempre presente e irredutível à outra realidade anterior. É uma dimensão fontal, originária, ontológica, impossível de ser totalmente desvirtuada. Para o grande filósofo da fenomenologia do cuidado, o existencialista de Freiburg, ter cuidado é um fenômeno ontológico, existencial, básico, entrando na substância e na constituição do ser humano. O cuidado não é independente da nossa existência, mas faz parte integral e sem ele deixamos de ser humanos. A constituição ontológica do homem em Heidegger se relaciona com a ética do cuidado, que é o solo onde se desenvolve a cosmicidade, corporeidade e historicidade do ser humano. Daí colocarmos neste trabalho o fundamento éticofilosófico da dignidade da pessoa humana como princípio originário dos direitos humanos fundamentais. O próprio Heidegger, grande conhecedor do pensamento grego, na trilha de Aristóteles, também distingue êthos e éthos. Êthos, com o sentido de costumes e hábitos, é um conjunto de valores e normas tradicionais produzindo várias morais pelos povos através da suas expressões e manifestações culturais. O ÊTHOS assim se historiciza em formas concretas, realizando os seus fins concretos para a formação do caráter das pessoas. Existe uma relação entre ÉTHOS E ÊTHOS, mas o núcleo originário ou a raiz primeira ou o princípio fundante é a ética que deveria iluminar as regras morais. ÉTICA EM ARISTÓTELES Para Aristóteles, o centro do éthos (moradia) é construção do caráter pela educação e a busca da felicidade que vai se afirmando com o crescimento da liberdade, da autonomia e a auto-realização da personalidade em sua dimensão pessoal e social, através de mediações, tais como hábitos e estatutos normativos, que são os meios concretos chamados de valores morais. Éthos é o princípio fonte e a moral seria a cristalização no dia a dia de hábitos, virtudes, regras morais que seria historicizados conforme cada cultura local ou regional. Como não existe meia gravidez, assim também não existe meia ética e muito menos meio-caráter....Ou é ou não é... No campo da ética, Aristóteles escreveu os seguintes livros: Ética a Eudemo, Ética a Nicômaco e a Magna Moral e um pequeno tratado sobre as virtudes e os vícios. Virtude em grego Aretê tem uma relação com a outra palavra grega dike( Justiça) e phronesis ( prudência ou sabedoria prática), sendo o sábio, o phronimos . Para Aristóteles, o sábio é o phronimos, que usando a reta razão( orthos logos), busca o justo meio (mesotes), isto é a virtude como prática da ética com fortaleza (andréia) como mediania, tornando-se um homem justo e bom numa cidade ( pólis) organizada pelos cidadãos, através da prática com reflexão (práxis) e da técnica( poiesis) , usando os instrumentos adequados e não apelando aos mitos e a teoria caótica onde a natureza e os animais eram mais fortes do que o homem (anthropos). O fim individual de cada homem é buscar felicidade ( eudaimonia) e o fim social é concretizar o Bem Comum da coletividade. A práxis busca o agir consciente; a poiesis tem a característica da autonomia..A filosofia antropológica de Aristóteles relaciona à finalidade a ser captada pela phronesis a práxis reflexiva segundo a referência da eudaimonia. A teoria ética de Aristóteles é teleológica( estudo dos fins) e eudaimonista( busca a felicidade), com ênfase no viver, sentir e raciocinar em conjunto na akademia (escola)e na polis( cidade). CONCLUSÃO Encerrando esta conceituação podemos concluir que ética no seu sentido original aristotélico significa a morada do ser e o caráter da pessoa humana, que é uma marca indelével que vai se afirmando na história de cada ser humano. REFERÊNCIAS: ARISTÓTELES. Ética a Nicômano. São Paulo: Mont Claret, 2000. BOFF, L. Saber Cuidar-Ética do humano-compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999. CHANTRAINE, P.Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Paris, Klincksieck. 1983. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback, 2.ª Pe6trópolis: Editora Vozes, 1988. SÁNCHEZ VÁSQUEZ, A.Ética. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 12ª ed.,1969.