O Difícil Caminho da Filosofia ou Profissão Filósofo: do ato herético ao ato erótico1 Monica Aiub São Vicente, 04 de agosto de 2002. Durante o curso de Graduação em Filosofia, aprendi que dizer-me filósofa seria um ato herético, somente os grandes mestres, criadores de sistemas academicamente reconhecidos, com livros e livros publicados e aceitos pelas comunidades acadêmicas é que teriam direito ao uso de tal nome. Sentia-me constrangida quando alguém perguntava: “Você é filósofa?” E eu respondia: “Não”, ao que imediatamente se seguia: “Mas você não fez uma faculdade de Filosofia?”, e eu me colocava a explicar como poderia eu ter feito uma faculdade de Filosofia, ser professora de Filosofia e não ser uma filósofa. E de fato não era, na medida em que também vivia num mundo cristalizado, com certezas prontas, com medidas exatas e meu questionamento crítico era tão crítico quanto o de uma consciência alienada às idéias prontas, só que idéias prontas de grandes mestres, que talvez se revirassem no túmulo por terem suas idéias repetidas como lições atemporais, muitas vezes destituídas de contexto e de sentido. Outros padeceriam em vida, outros ainda, lisonjeados com a imaturidade das citações, ririam da situação. Aos poucos fui sentindo necessidade de atualizar todas essas idéias, e conforme vivia cada momento, as questões surgiam de maneira mais consistente e apropriada, por serem questões de fato, por surgirem de vivências, de contextos próprios, por serem autênticas e não mero palavrório. Com a prática pedagógica, aos poucos fui descobrindo que algumas crianças são mais filósofos do que muitos daqueles que freqüentaram os cursos de Filosofia, e que em seu questionamento sério e real, são capazes de maior profundidade, de grandes ensinamentos. Então a filosofia não era aquele saber consagrado e conceituado, restrito às academias, mas era uma saber da vida e para a vida... muitas descobertas, muitas vivências, muitos sons, cheiros, sabores, sentidos, idéias, pensamentos profundos e circundantes, belezas raras, que só acessamos se estivermos abertos a elas, se não nos deixarmos enterrar no comum, na rotina de ser e pensar como são e pensam os certos, os normais - e você leitor, é certo? É normal? Ou compartilha um pouco dessa insanidade, dessa loucura salutar que nos permite enxergar o mundo com outros olhos? Mas afinal, por que abrimos mão de nossa tão linda capacidade de pensar para aderir pensamentos alheios, que talvez sejam lindos, talvez nem tanto, mas que muito provavelmente não consigam responder plenamente nossas questões? Por que desistimos de nos admirar com o mundo, de pesquisá-lo e nos contentamos com as respostas prontas? Talvez pela segurança e comodidade do lugar comum... 1 Artigo publicado no site www.filosofiaclinica.com.br em agosto de 2002. Mas isso não é filosofia, é senso comum. Repetir um palavrório acrítico, atemporal, nada significa. Saber que Sócrates ensinava que o sujeito ético é aquele que tem consciência do que faz, que age com conhecimento, de nada adianta se não agimos com conhecimento, com consciência do que fazemos, nem temos preocupação alguma com isso. Saber que Aristóteles propunha o equilíbrio do ser, a mediania como medida da virtude, não possui serventia se não temos idéia do que é o equilíbrio, ou se não o vivenciamos. Então descobri que ser filósofo era colocar meus pensamentos e ações no mesmo caminho. Primeiro precisava conhecer minha realidade, buscar as possibilidades nela existentes, depois os meios para viabilizá-las e, por fim, agir no sentido que considerasse o mais acertado. Mas qual a garantia do acerto? Não há! Pois então qual a vantagem de tanta pesquisa, tanto trabalho. Não seria melhor viver ao sabor do vento? Deixando-me carregar por um destino, pelos seres mitológicos, pelas ondas do mar? E ainda assim seria eu responsável por aquilo que sou, por aquilo que fizesse da minha vida! Mas como é difícil pensar! Às vezes dói, principalmente quando percebemos que o caminho trilhado foi construído por nossas próprias ações. Ações, ações em relações. O filósofo caminha pela rua e herético chama-se, denomina-se filósofo... em seu caminho decide partir cristais e libertar vidas. Para libertá-las é preciso martelar, com muita força, os cristais que as aprisionam e ao fazê-lo temos a sensação de destruir o que está posto, macular o sagrado, ser herege em meio aos deuses mitológicos. Aos poucos tomamos gosto por essa atividade, nos tornamos destruidores do estabelecido. Em meio aos cacos e estilhaços que restam em nossa existência, buscamos sabedoria para direcionar nossas idéias e ações. Sabedoria... Onde está a sabedoria? Estaria ela nos livros? Nas herméticas discussões acadêmicas, acessíveis apenas aos eleitos? Estaria ela no gesto acolhedor de um amigo? Ou talvez no compreender que todo conhecimento do mundo é pouco para construir um sábio? Não sei! Não sei! Novamente o ato herético daquele que se proclama filósofo: como não saber? Perguntas, perguntas, perguntas sem respostas... Pode estar em qualquer lugar, em qualquer ação, no ato erótico da busca, do amor à beleza constituinte desta sabedoria que se encontra em nosso cotidiano, em cada momento vivido, em cada palavra e seus múltiplos significados, em cada gesto ou olhar, em ser e apenas ser, sem necessidade de proclamar. Pesquisando na atividade clínica esses muitos modos de ser, compartilhando a vida das pessoas que freqüentam o consultório e compreendendo-as como são, percebo-me saindo do ato herético de proclamar-me filósofa e compreendo-me no ato erótico de exercer a atividade filosófica num constante construir compartilhado, num ininterrupto movimento de existir e tentar compreender o significado e a beleza da existência, mesmo nos momentos de dor e sofrimento, mesmo durante grandes choques e crises; sem perder de vista o horizonte circunstancial onde a vida acontece. Trata-se de um caminho onde ao mesmo tempo posso acompanhar o movimento do universo circundante de cada pessoa que comigo compartilha a vida, de mim mesma e contribuir para as configurações desse todo, que ao mesmo tempo nos constitui e é por nós constituído. Compreender a dinâmica desse processo - e, devido a ela, as inúmeras possibilidades de ser, a beleza da diversidade que a singularidade da existência nos revela e, ao mesmo tempo, tentar vislumbrar o elo universal que perpassa toda a humanidade, em suas questões e ações, em seu pensar, ser e existir - constitui um ato erótico aos que o realizam, e herético aos que ainda não compreenderam sua dimensão.