Augustus – Rio de Janeiro – Vol. 07 – N. 14 – Jan./Jun. – 2002 – Semestral ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA – RESENHA * VOESE, Ingo. Argumentação Jurídica. Curitiba: Juruá, 2001, 125 páginas. Maria Geralda de Miranda** RESUMO: A teoria da argumentação de acordo com Ingo Voese. O autor associa linguagem e sociedade e acredita que algumas reflexões acerca da teoria da linguagem nos permitirão uma melhor compreensão sobre a lógica jurídica. ABSTRACT: According to Ingo Voese the argumentation theory. The author associate language and society and he believes that some reflections about language theory will allow us more understanding respecting juridical logic. Voese discute e aprofunda questões, no campo da argumentação jurídica, já levantadas por Perelman, Atienza, Bulgarelli, Ferraz JR., Koch, Coracini, dentre outros, como as seguintes: O que significa argumentar juridicamente? Até que ponto se diferencia a argumentação jurídica da argumentação ética, ou da argumentação política, ou da argumentação na vida ordinária ou na ciência? Qual o critério de correção dos argumentos jurídicos? Existe no Direito uma só resposta correta para cada caso? O lingüista identifica na afirmação de Atienza: “A prática do Direito consiste fundamentalmente em argumentar e a qualidade que melhor define um bom jurista talvez seja a capacidade para criar e manejar com habilidade argumentos” um reducionismo da expressão “bom jurista” aos limites da dimensão técnica da argumentação porque, segundo Voese, Atienza esquece de enfatizar que a argumentação jurídica só constrói uma característica própria porque pode se valer de determinadas características da linguagem. –––––––––– 1. LINGUAGEM E DETERMINAÇÕES SOCIAIS Para o autor, a linguagem é reflexo das determinações sociais. E que em razão de haver uma heterogeneidade social, existem também heterogeneidades cultural, referencial e lingüística. Ele acredita que algumas reflexões acerca de questões teóricas sobre a linguagem permitirão que se façam avanços na compreensão do que é específico da lógica jurídica. Para tanto ele usa o exemplo do anzol para explicar as relações que a linguagem estabelece com a realidade. A invenção do anzol ♦ Em um determinado momento histórico alguém cria um novo instrumento de pesca. ♦ Quando isso acontece as condições para criação do novo instrumento já estão dadas. Deve existir uma certa tecnologia referente à produção e ao beneficiamento do metal * O autor é Doutor em Lingüística e estudou no decorrer de seu curso de Pós-doutoramento as relações entre linguagem e sociedade. Atualmente leciona Argumentação Jurídica nos Cursos de graduação e pós-graduação na Universidade Tuiuti do Paraná. ** Doutoranda e Mestre em Letras pela UFF. Professora da UNESA e do Centro Universitário Augusto Motta. 86 Augustus – Rio de Janeiro – Vol. 07 – N. 14 – Jan./Jun. – 2002 – Semestral e a comunidade deve ter escolhido, como forma de sobrevivência, a pesca. ♦ Sobre essa atividade deve haver um conhecimento acumulado. A essas condições mínimas, a esse saber necessário à criação do novo aparelho podemos dar o nome de cultura, que por ser ponto de partida, torna-se marco de referência. ♦ O objeto produzido vai ser avaliado pela comunidade em razão do que significa para as suas necessidades: o objeto passa a ter um significado e passa a ser nomeado anzol. ♦ A nomeação permite que se possa falar do produto do trabalho humano sem que haja a necessidade de sua presença. ♦ O objeto nesse processo de socialização, quando tem seu sentido estabelecido de acordo com os interesses do grupo escapa dos controles do indivíduo que o criou. O sentido é, pois, um acordo social. ♦ O objeto anzol significa instrumento de pesca e também instrumento de sobrevivência ou melhoria dos instrumentos que possibilitam a sobrevivência do grupo. Em grupos sociais que não dependem a pesca, o anzol mantém um sentido genérico de instrumento de pesca. Instrumento de lazer, para pescadores esportistas, instrumento de tortura, para os que defendem a natureza. Isso quer dizer que a cada diferença cultural, ou sistema de referência, variam, em maior ou menor escala, os sentidos do instrumento anzol. Apesar das diferenças de sentido, os diferentes segmentos sociais usam a mesma palavra e podem manter entre si interações verbais porque há uma parte do sentido (instrumento de pesca) que é comum a todos. O sentido genérico possibilita, apesar das diferenças, uma interação, que embora frágil, permite uma certa aproximação dos interlocutores. A heterogeneidade social A noção de sociedade parece sugerir uma realidade monolítica, mas o que devemos acolher é a idéia de heterogeneidade. A realidade social é fragmentada e multifacetada. Entre os múltiplos segmentos sociais existem disputas pela ocupação de determinados espaços. O conflito origina-se do fato de haver valorizações diferenciadas destes espaços sociais. A heterogeneidade cultural São as diferenças de desejos individuais e de interesses de grupo que levam a que haja uma produção diferenciada, ou seja, a cada segmento social e a cada indivíduo correspondem diferenciadas atividades e diferentes produtos. Adotando a noção de que o produto do trabalho humano constitui o que se entende por cultura, constata-se que a heterogeneidade social conduz á heterogeneidade cultural. A heterogeneidade referencial A cultura pode ser entendida como produto do trabalho humano socializado através da linguagem. É um conjunto de formas simbólicas que se estruturam como um sistema. Considerando que a atividade humana sempre tem como ponto de partida aquilo que os outros já realizaram, pode se afirmar que esse conjunto de forma simbólica que se chama de cultura, é um marco de referência. Se retornarmos à discussão inicial, chegaremos à conclusão de que à heterogeneidade social, corresponde uma heterogeneidade cultural e referencial e isso remete à idéia de heterogeneidade lingüística, pois se é o sistema de referência que orienta todo o trabalho que realizam os indivíduos (movidos por desejos e interesses) ele também se impõe como condutor da interpretação da realidade dos fatos, da linguagem, isto é, da produção de sentidos. Não há interpretação que não parta de concepções e de valores que pertencem a determinado conjunto de formas simbólicas de um determinado segmento social.O que significa dizer que as diferenças entre os múltiplos grupos da sociedade geram diferentes formas de interpretar e diferentes sentidos, ou seja, aí se produzem também diferentes concepções da realidade e da sociedade. O sistema de referência é, pois, aberto e transformável historicamente. A heterogeneidade lingüística O sentido tem um componente genérico que todos os usuários de uma palavra adotam obriga87 Augustus – Rio de Janeiro – Vol. 07 – N. 14 – Jan./Jun. – 2002 – Semestral toriamente para poderem se comunicar. Como os diferentes sistemas de referência produzem diferenças de interpretação, o sentido da palavra comporta um segundo componente: a singularidade que remete à noção de heterogeneidade social e dificulta a interação e o convívio. Da mesma forma como acontece no exemplo do anzol, essa diversidade de sentidos pode ser observada com os conceitos abstratos produzidos pelos homens. Ex: o conceito de justiça. A heterogeneidade individual O indivíduo quando constrói o seu sistema de referência entra em contato com a heterogeneidade social o que significa que ele também se apropria das diferenças de sentido geradas pelos múltiplos marcos de referência. A adoção da concepção de que o sistema de referência do homem se constrói do exterior para o interior poderia parecer que se estaria tentando minimizar a importância do livre arbítrio ou a participação das pessoas na construção dos parâmetros éticos e morais. Pelo contrário, as apropriações incluem a heterogeneidade social, pois ao mesmo tempo em que se busca preservar o instituído – que diz respeito aos valores considerados positivos – também se cultiva exatamente o que lhes antepõe. Promiscuidade, violência, ausência de honestidade, falta de solidariedade, o não cumprimento da lei etc. Tendo em vista que a heterogeneidade de sistemas de referência produz uma multiplicidade de sentidos ou excedentes de singularidades que estão na origem de grande parte dos conflitos sociais, compreende-se que a disputa também perpassa a linguagem. Não ocorre a disputa apenas através da linguagem, mas também pela posse daquela linguagem que está ligada ao exercício do poder. E não só pela linguagem se luta, mas também pelos mecanismos e procedimentos institucionais que controlam e determinam o acesso à linguagem do segmento social hegemônico e ás possibilidades de usá-la. Através da linguagem, os indivíduos e os grupos procuram fixar sentidos gerados por seus sistemas de referência e fazem com que se imponham como orientadores de condutas e procedi88 mentos. Conseguir a adesão dos outros significa aumentar o alcance dos efeitos de uma representação da realidade e consolidar o exercício de um poder. Por isso pode se afirmar que argumentar – um processo lingüístico que tem por objetivo conseguir a adesão de outrem – também diz respeito à disputa de espaços e de lugares, vale dizer, de poderes, para determinar os sentidos convenientes, corretos ou não, melhores ou piores etc. E se a heterogeneidade social conduz a que circulem na sociedade múltiplos sentidos singulares – linguagens – ela também explica por que é preciso atuar sobre a diversidade com o objetivo de possibilitar o exercício lógico. A Paráfrase e a Definição servem de controle de sentido para que se estabeleça esse exercício 2. A LÓGICA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Se a argumentação jurídica visa à sustentação de uma tese (e que se apóia em determinada versão), ela é um processo posterior à produção dos sentidos, ou seja, a argumentação sucede á interpretação (entendida como atividade produtora de sentidos). A argumentação depende da interpretação porque o sistema de referência que é acionado nesta orienta aquela, fornecendo inclusive elementos para a produção das provas. Embora haja no Direito um conjunto de normas cuja função é orientar as interpretações, ainda sim o polêmico e o contraditório se manifestam precisamente porque a pressão da heterogeneidade é mais forte do que o controle. O Direito não trabalha com verdades irrefutáveis, mas com teses. FATO JURÍDICO Acusação Defesa Versão A Versão B Tese A1 Tese B1 Produção da sentença Efeitos de justiça Uma característica que identifica a argumentação jurídica é a presunção de que para cada tese é possível a construir uma antítese. O que vai determinar que as escolhas dos recursos argumentativos visem a superar ou a minimizar as fragi- Augustus – Rio de Janeiro – Vol. 07 – N. 14 – Jan./Jun. – 2002 – Semestral lidades dos sentidos da linguagem e a reforçar os procedimentos de sustentação da tese. Em outras palavras, isso quer dizer: 1. que o sentido da palavra justiça é construído a cada interação jurídica, o que não quer dizer que a palavra não tenha nenhum sentido; 2. que é preciso construir um conceito genérico de justiça, que, embora seja bastante vago e indefinido nos seus contornos, possa servir de acordo ou ponto de inicio das argumentações tanto da acusação como da defesa. Controle da heterogeneidade a) O ethos do discurso jurídico, explicitado na forma de normas orientadoras (ou hermenêutica Jurídica) é o controle institucional do Direito, que marca quem pode falar o que, como e em que circunstâncias, ou seja, o discurso assume formas e conteúdos específicos da prática jurídica. b) O segundo tipo de controle serve para que o Direito possa armar modelos lógicos para o seu raciocínio: paráfrase, definição. 2.1 – A especificidade da lógica jurídica A argumentação jurídica, embora não vise à verdade, também precisa valer-se de determinados modelos de raciocínio: uma vez postos em prática os dois tipos de controles da heterogeneidade lingüística, criam-se as condições mínimas necessárias para que se possa submeter à atividade argumentativa do Direito a uma lógica específica. Assim, consentida a idéia de que há um sistema lógico, pode-se considerar que ele se constrói tendo como suportes dois tipos de referências: 1. as de ordem prescritiva que se compõem dos modais deônticos, é obrigatório – é permitido – é proibido, que dão lugar a um conjunto de normas que pode ou não estar materializado na forma de lei; 2. as de ordem descritiva que dizem respeito às normas que fixam as conseqüências que podem gerar a infração das prescrições. Essa característica de submeter a argumentação jurídica a modelos lógicos, assumindo o prestígio do rigor lógico, leva à observância obrigatória de três condições: A coerência, a coesão e a congruência. Coerência: diz respeito à verossimilhança (relação de compatibilidade entre um ponto de referência que pode ser um texto – a lei – um dito ou uma concepção da realidade). Coesão: é a “amarra” lógica das partes de um texto. Ela depende da coerência. Em um texto em que se contradiz a referência, implode-se a coesão. Congruência: depende da coesão e da coerência. Diz respeito à condução e ao direcionamento do processo argumentativo, deve partir de um determinado espaço significativo e caminhar com segurança e clareza em direção a um outro. A coesão e a congruência – diferentemente da coerência – são conseqüências do segundo tipo de controle da heterogeneidade: as paráfrases e as definições devem impedir que haja contradições entre os sentidos que sustentam e que dão rumo ao raciocínio. Por isso somente após serem controlados e delimitados os sentidos da linguagem, pode a argumentação jurídica dedicar-se à construção de sua lógica que, em geral, adota a forma de um silogismo, porque ele se faz orientação para que se preencha as condições básicas da argumentação: 1. Estabelece uma referência orientadora do raciocínio; 2. Garante a coesão interna; 3. Fixa uma orientação segura para o raciocínio linear e congruente; 4. Vale-se de operações lógicas eficientes como os pares ora...logo ou se...então. 2.2 – A indução na estrutura do silogismo A construção da tese é a primeira etapa da estruturação do silogismo jurídico. A tese vai se postar a favor ou contra uma outra tese e deverá submeter a sua atividade interpretativa a esses objetivos fixados pelo ritual jurídico. O que deverá sustentar a tese é um conjunto de interpretações que deve conduzir à produção de uma versão verossímil porque ela é condição fundamental para o sucesso da argumentação, que é em resumo uma versão submetida a um julga89 Augustus – Rio de Janeiro – Vol. 07 – N. 14 – Jan./Jun. – 2002 – Semestral mento. A produção da tese comporta dois momentos distintos, mas inseparáveis. a) A produção do sentido de atos e fatos. A versão de um ato pode ter ou não concordância das partes que se enfrentam no debate. Quando houver, pode-se falar em verdade fática. Essa concordância em torno de uma versão não impede que as argumentações apresentem elementos diferenciados. O contexto do ato será usado para a produção da versão do fato de acordo com os interesses de cada parte. Isso significa que na construção da versão que lhe interessa, o argumentador recorrerá às provas e aos indícios que julgar importantes na construção da verossimilhança e convenientes à sustentação da tese, além de pensar na referência – por exemplo, a lei – à luz da qual atuará no enquadramento da versão. b) A produção de um julgamento é a avaliação da versão do fato produzida pela interpretação, tomando como referência que pode ser a lei vigente, ou a jurisprudência formada ou os valores sociais instituídos. Esse julgamento se estende ao autor envolvido no fato, baseado na presunção de que a qualidade do ato revela a qualidade de seu autor, isto é, uma versão que implica em condenação do ato, condena o autor ou o contrário, quando o ato não é condenável, o autor é absolvido. A seleção de indícios e provas é o momento da argumentação jurídica em que o objetivo é colher os elementos contextualizadores do ato e que se incluem como elementos que participam da produção da versão do fato. As provas mais comuns são as versões de atos e fatos precedentes e subseqüentes, ou seja, os depoimentos das partes e das testemunhas, além do laudo pericial. Elas só interessam, contudo, quando se submetem aos objetivos ou da defesa ou da acusação e contribuem para a construção da verossimilhança. É preciso, aqui, diferenciar os efeitos que podem produzir as provas e os indícios: enquanto aquelas têm por objetivo construir uma imagem de certeza, estes têm a finalidade de sugerir, le90 vantar hipóteses ou conduzir a suspeitas, o que, quando bem trabalhado, pode ter – quase ao nível das provas – um forte efeito na construção da verossimilhança. As provas e os indícios são um tipo de argumento, mas não o único. No caso de o apoio nas provas e nos indícios ser frágil ou inexistente a argumentação jurídica deverá recorrer a determinadas e apropriadas técnicas. As estratégias que envolvem processos de contextualização, verbalização e disposição dos argumentos produzem efeitos surpreendentes e que influenciam as reações do auditório precisamente porque a argumentação não deve ser considerada apenas um exercício lógico, mas também um processo de interação. O enquadramento na referência prescritiva corresponde a uma proposta de julgamento da versão produzida, ou seja, a sustentação da tese jurídica precisa, obrigatoriamente, levar em consideração os modais deônticos e as normas que eles geram, e que são encontradas, em geral, sob a forma da lei. Os motivos pelos quais a lei pode ser interpretada diferentemente e em conseqüência ser também objeto polêmico e espaço de argumentação são vários, dentre os quais: A lei é um acordo verbalizado, produto do trabalho dos homens de alguns (mas não de todos) segmentos sociais, cuja atividade é conduzida sob as pressões históricas e sociais, ou seja, sob as pressões dos conflitos sociais. E – porque é linguagem – a lei necessariamente reflete essa realidade e, como conseqüência, assume um caráter o mais genérico possível: apresenta, pois, vazios e incompletudes de sentidos que as diferentes interpretações e argumentações deverão tomar como objeto de trabalho. 2.3 – A dedução na execução do silogismo Se a estruturação do silogismo jurídico sempre inicia pela tese que resulta dos interesses que se opõem no julgamento de um fato, a argumentação obedecerá, de maneira geral, a um processo dedutivo, mesmo que se possa aventar que, que pela ausência do caráter de irrefutabilidade da PM, a dedução não seja semelhante à da que se verifica Augustus – Rio de Janeiro – Vol. 07 – N. 14 – Jan./Jun. – 2002 – Semestral na lógica das ciências matemáticas ou naturais: A precariedade do apoio que oferece a PM não impede que o silogismo oriente e estabeleça uma linha de raciocínio. A eficiência do silogismo depende, em primeiro plano, do que diz a PM: o seu caráter genérico garantirá enquanto referência, a coerência, desde que se possa promover a inserção do singular da pm no geral da PM. A PM só faz referência importante quando se submete aos limites que a sociedade estabelece com base nos deônticos é permitido, é proibido, é obrigatório, isto é, a PM deve respeitar o instituído socialmente, conste ele ou não no texto da lei. 91