Sandra Arruda Grostein Medicamento e psicanálise > Key words: Psychotherapeutic drugs, Lacan’s Psychoanalysis, joy, symptom A relação entre a prática psicanalítica e a prescrição de medicamentos está muito presente na clínica atual. Cada vez mais a mídia apresenta os medicamentos psicotrópicos como solução aos males que afligem a humanidade, principalmente as “doenças do desejo”. Não se trata de estabelecer regras que possam orientar um psicanalista quanto ao destino do medicamento na direção do tratamento. Trata-se, no entanto, de buscar além do caso a caso uma melhor compreensão da função do medicamento no tratamento analítico. pulsional > revista de psicanálise > ano XVIII, n. 183, setembro/2005 This article is concerned with the relation of the psychoanalysis and the drugs in the present clinic. Besides the present concepts, three other clinic cases are going to be presented, which, in some way, contemplate a sub-division based on the three registries proposed by Jacques Lacan, drugs and the imaginary, the symbolic and the real. The guise of the conclusion that medications and psychoanalysis go in the same direction if the supposition of the knowledge assigned to the medications leaves open the possibility of going beyond the “assymptomatic nomination”, which identifies them to a number of signs produced. artigos > p. 37-40 Como o próprio título diz, este artigo trata da relação da psicanálise e o medicamento na clínica atual. Além dos conceitos presentes, são apresentados três casos clínicos que de alguma maneira contemplam uma subdivisão baseada nos três registros propostos por Jacques Lacan, medicamento e o imaginário, o simbólico e o real. À guisa de conclusão, medicamento e psicanálise caminham juntos se a suposição de saber atribuído ao medicamento deixa em aberto a possibilidade de se ultrapassar a “nomeação assintomática” que as identificações a um conjunto de sinais produz. > Palavras-chave: Psicofármacos, psicanálise lacaniana, gozo, sintoma >37 pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XVIII, n. 183, setembro/2005 Podemos dizer que o psicofármaco produziu uma verdadeira revolução terapêutica ao “estabelecer idéias de eficácia, transformar as instituições de tratamento, substituir a tradição e seus S(1)” (Viganò, 2002, p. 62-9). Podemos dizer que o medicamento é um dos mais importantes significantes mestres da atualidade. “Para tudo há um remédio”, apregoa a mídia diariamente, fazendo deste o objeto da “demanda neurótica, das exigências psicóticas e de usos perversos” (ibid.). >38 Medicamento e simbólico “A primeira maneira como o medicamento se articula ao simbólico é quando ele é objeto da demanda. Demanda de obtê-lo ou demanda de ser privado dele” (Laurent, 2002, p. 24-35). “Tomar remédio pelo resto da vida”. E uma dona de casa de cinqüenta e poucos anos busca a análise depois do diagnóstico feito de síndrome do pânico. Antes se assustava muito com “aquilo” e procurava compreender o que se passava com ela pela leitura de matérias jornalísticas que explicavam exatamente o que ela sentia. Em sua primeira entrevista com o analista conta que seu psiquiatra havia diagnosticado que, além do pânico, ela sofria de uma depressão crônica e, portanto, teria que tomar remédio, tal qual um diabético, pelo resto da vida. Seu pedido é o de ajudá-la a conviver com a doença. A primeira vez que sentiu “aquilo” foi a caminho da praia, na rodovia dos Imigrantes. Seu coração disparou, sentiu-se muito mal, como se fosse morrer, começou a suar e a tremer, foi tomada por um verdadeiro pânico, diz ela. Na segunda vez já esboça uma demanda onde supõe que para ser escutada é necessário deixar um pouco de lado a síndrome. Conta então, como se sente desprestigiada frente ao pai, ao marido e aos irmãos (dois homens mais novos). Explica e justifica este desprestígio pelo fato de pertencer a uma família de origem libanesa. “O imigrante vive com os valores de seu país de origem, lá as mulheres não são grande coisa”. Vai buscar valor pela via fálica, em primeiro lugar os filhos, e, quando estes já estão crescidos, é que aparece pela primeira vez a crise. A paciente tenta então, por meio do trabalho recuperar o que perdeu com a doença. Acredita que será melhor “vista pelo marido se tiver o seu próprio dinheiro”. Ganhar dinheiro passa a ser uma outra demanda na análise, e paulatinamente vai se desenvolvendo num trabalho sustentado numa franquia adquirida pelo marido. Começa a se sentir mais autoconfiante e chega até o momento de restituir ao marido o “empréstimo” feito. Atribui à análise seu sucesso e como “gratidão” suspende a medicação por acreditar que era esta a demanda de seu analista. Foi tomada subitamente de uma fortíssima crise de angústia, e a interpretação da série, análise, ausência de medicação e morte, não foi capaz de impedir a interrupção do tratamento, ela diz: “Desculpe-me, sou covarde, tenho mesmo que tomar remédio pelo resto da minha vida”. A posteriori percebe-se que o pedido se sustenta numa “demanda imaginária de um objeto simbólico negativizado” (ibid.). Medicamento e imaginário “Se não fizer bem, mal também não faz”. frente ao feminino, entendido como “princesinha do papai”. A segunda opção quanto ao medicamento neste caso foi retirá-lo paulatinamente com o trabalho em conjunto com o psiquiatra, pois ele produzia efeitos de significação fálica “restaurando o ser fálico” (Laurent, 2002, p. 24-35). Se nos primeiros tempos o medicamento para a paciente era entendido como aquilo que se não fizer bem, mal também não faz, no decorrer do tratamento analítico ele passou a ser considerado como um obstáculo. Medicamento e real “Os homens sabem”. J., um executivo bem-sucedido de uma multinacional cujo trabalho exige que viva em diferentes países, em análise associa sua depressão ao país em que está vivendo e à sua relação com a produção. Sua primeira crise durou cerca de um ano, estava terminando o colegial e teria que optar por uma carreira. Encontra naquela época um refúgio na leitura das biografias de grandes autores da literatura mundial, acredita com isso “ter um ganho de saber colocando-o no patamar dos homens, pois os homens são cultos, eles sabem”. Um acontecimento inesperado no casamento, onde ele se vê questionado em seu lugar de homem, produz no paciente o segundo grande episódio depressivo desta vez mo- artigos O efeito real do medicamento é um efeito fora do sentido. Pelo medicamento o sujeito recorta seu organismo de um outro modo. O medicamento transborda, em principio, a indicação terapêutica que lhe confere um diagnóstico. Produto do saber, é uma máquina, um instrumento de exploração do corpo. (Ibid.) pulsional > revista de psicanálise > ano XVIII, n. 183, setembro/2005 M., uma jovem de 28 anos, busca análise pois não consegue fazer escolhas, seja na carreira, seja nos amores. Sofre de uma terrível TPM e devido aos sintomas faz uso de medicação ansiolítica e antidepressiva, prescritas pelo ginecologista, para serem tomadas em dosagem mínima antes do início do período pré-menstrual. Foi necessário uma escuta analítica para localizar a função do medicamento neste período de extrema agressividade e nervosismo para então incluir o efeito de sugestão presente neste caso. Quando a angústia chegava a um grau insuportável, a explicação estava na menstruação. A primeira opção foi quase burocrática: encaminhar a paciente a um psiquiatra para que esta pudesse ser medicada corretamente. O resultado de início foi satisfatório pois se mantinha no mesmo semblante. Se o sentido era o de que a TPM é um estado de tensão que a natureza por si só resolve, quando ocorre a menstruação, o trabalho de análise abre uma possibilidade para o sem sentido que o medicamento acarreta, tendo como conseqüência o aparecimento da complicadíssima relação desta paciente com o pai. Única filha e mais jovem de uma prole de três filhos, muito identificada ao lugar de “princesinha do papai”, com o qual a paciente não sabia o que fazer. Por um lado o rejeita com crises de rebeldia e agressividade e por outro se orgulha do diferencial que ela percebe ter quando comparada aos irmãos na relação com o pai. O medicamento funciona como um falo imaginário, pois é ele que a afasta do mal-estar >39 artigos pulsional > revista de psicanálise > ano XVIII, n. 183, setembro/2005 >40 rando nos Estados Unidos, recebe então associado ao diagnóstico um tratamento medicamentoso que vai acompanhá-lo por alguns anos. Quando procura a análise, está novamente deprimido e sua demanda é a de “voltar a ser o homem de antes”, e isto poderia acontecer se fosse encontrado o medicamento certo, na dose certa, cientificamente comprovado; isto é, que produzisse o mesmo efeito daquele tratamento dos Estados Unidos. Desta vez uma crise na empresa o coloca frente à questão de sua autoridade como “chefe”. Nas sessões de análise, o paciente invariavelmente se queixava de não ter conseguido encontrar aquela sensação obtida em seu primeiro contato com os antidepressivos anos antes; o que confirmava o diagnóstico, o medicamento como tratamento e seus resultados. Submete-se a todo tipo de experimentação no corpo, terapia ortomolecular, prática esportiva sistemática, cirurgia corretiv etc. todas estas práticas são tentativas de auxiliar os novos medicamentos a reproduzir um resultado já conhecido de bem-estar. Conhecer um “gozo anteriormente desconhecido” (Laurent, 2002, p. 24-35.), por meio de um medicamento, fez com que o paciente estabelecesse um grau inquestionável de eficácia no tratamento. Somente quando encontradas droga e doses adequadas é que foi possível dar início a uma análise, constituindo-se assim o que J.A. Miller propõe quando diz que “o medicamento permite trabalhar com sujeitos decididos” (ibid.). O lugar de suposição de saber atribuído ao medicamento só pode ser substituído pelo saber da psicanálise quando um fracasso em uma negociação produziu mais uma vez um efeito depreciativo que desta vez não fora possível atribuir o mal-estar aos sintomas da depressão. Conclusão A psicanálise pode e deve aproveitar o que a ciência apresenta com os novos medicamentos, mais poderosos em seus efeitos terapêuticos e com menos efeitos colaterais. Porém, quando a droga ocupa o lugar de ”um significante absoluto que impede o gozar no discurso” (Viganò, 2002, p. 62-9) o trabalho do analista orientado por sua ética é o de possibilitar a transferência na linguagem, pois é a partir dela que cada sujeito poderá ultrapassar a “nomeação assintomática” (ibid.) que as identificações a um conjunto de sinais produz. Referências LAURENT, Eric. Como engolir a pílula? Revista Clique, n. 1, p. 24-35, abr/2002. VIGANÒ, Carlo. O fármaco e a droga. Revista Clique, n. 1, p. 62-9, abr/2002. Artigo recebido em janeiro de 2005 Aprovado para publicação em junho de 2005