EspEcialistas dEbatEm o dEsafio no EnfrEntamEnto da droga

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Publicação destinada exclusivamente a médicos associados da ABP
PSIQUIATRIA HOJE
Ano 2 . Nº3 . Mai/Jun de 2010
w w w. a b p b r a s i l . o r g . b r
crack
Especialistas
debatem o desafio
no enfrentamento
da droga
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debates
PSIQUIATRIA HOJE
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hoje
Editorial
Opinião
Debates
O
Rogério Wolf Aguiar
Editor
avanço do uso do crack tem preocupado cada vez mais os profissionais
de saúde no Brasil. Droga relativamente barata, seu uso tem se difundido rapidamente. O trágico é que é uma droga muito destrutiva, ocasionando danos graves em seus usuários. Tem destruído a vida de muitas
pessoas, principalmente jovens, e abalado fortemente os familiares. O
tratamento da dependência tem se mostrado difícil. Com a perda do domínio sobre
sua vontade, o dependente frequentemente tem adotado comportamentos de risco,
com roubo, falsificações e violência. De acordo com um Juiz de Menores, há uma
novidade: a dificuldade de conseguir famílias adotivas para os menores de mães
dependentes da droga, que perderam a capacidade de criá-los. Ao contrário do que
era habitual anteriormente, as adoções nestes casos implicam em localizar vários
irmãos numa família adotiva. A alternativa é separá-los para que o processo de
adoção se torne mais viável, já que é mais difícil conseguir que uma mesma família
possa adotar mais de um simultaneamente. Isso provoca a separação dos irmãos
pequenos ainda, que resistem, pois já vêm vulneráveis da situação que vivenciaram
com os pais. O aumento rápido do número de dependentes da droga vem multiplicando este fenômeno, que se soma às demais consequências funestas físicas,
mentais, comportamentais, sociais e financeiras. O sistema de saúde foi pego desarmado para enfrentar de maneira eficiente esta demanda. Qualquer sistema tem
tido dificuldade. Neste momento, algumas medidas iniciais começam a aparecer. É
necessário assumir, entretanto, que neste caso as medidas devem ser mais rápidas.
Não há tempo para esperar. A ameaça já é grande. Neste contexto, o PHOJE Debates
oferece esta edição como uma contribuição à discussão sobre este tema. Especialistas foram convidados para expor alguns dos seus trabalhos nesta área. Desde
já agradecemos sua disponibilidade e presteza. A ABP tem participado em vários
níveis do enfrentamento desta questão. Seu presidente e outros diretores têm se
pronunciado. O seu Departamento de Dependências Químicas tem sido ativo e está
sendo convidado a continuar o debate nas edições seguintes. Nossa expectativa é
a de contribuirmos para que nossa sociedade encontre meios eficientes de minorar
os problemas graves decorrentes da disseminação desta droga.
debate
hoje | 3
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Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da revista
índice
Ano 2 . Nº3 . Mai/Jun de 2010
Capa: Desenho em poeira | Renato Dalecio Jr.
Artigo [O Crack em São Paulo]
Marcelo Ribeiro
O histórico do consumo da droga na
principal capital do país. pág.08
Artigo [A abordagem do crack]
Marcelo Santos Cruz
O avanço do consumo como
oportunidade para que a prática
psiquiátrica entre em ação. pág.14
Artigo [Reducionismo]
Flavio Pechansky
Desafio na prevenção e tratamento do
uso de crack no Brasil. pág.20
Opinião
Marco Antonio Bessa
Crack: no meio do caminho tem muitas
pedras. pág.25
Capa [especial]
Crack
Especialistas debatem o desafio no
enfrentamento da droga. Confira:
Artigo [Abordagem e Tratamento]
Felix Kessler
Análise da literatura científica no
tratamento de usuários de cocaína. pág.32
Opinião
Esdras Cabus Moreira
O crack, o psiquiatra e a sociedade. pág.39
Artigo [Crack e Prevenção]
Preparamos para capa da Debates de maio e junho um desenho feito sobre uma
poeira branca que simula o tema da edição: o crack. Na imagem, o usuário faz uso
da substância em um caximbo, como é geralmente consumida pelos dependentes.
Feito pela “droga”, ele se consome em seu próprio vício.
Felix Kessler
e Bárbara Holmer
Especialista mexicano fala sobre a
prevenção do consumo da droga. pág.46
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Artigo
O crack em São Paulo
O crack em
São Paulo:
histórico e perspectivas
V
inte anos após sua chegada, o consumo de crack continua a aumentar em São Paulo (Oliveira & Nappo, 2008). A primeira apreensão desse derivado da cocaína na cidade de São Paulo aconteceu em 1990, registrada nos arquivos da Divisão de Investigações
sobre Entorpecentes (DISE) (Uchôa, 1996). Sete anos depois,
o volume de apreensões de crack aumentou 166 vezes, e de pasta básica,
5,2 vezes, ambas para a região sudeste (Procópio, 1999). A cidade de São
Paulo foi a mais atingida. Algumas evidências apontam para o surgimento
da substância em bairros da Zona Leste da cidade (São Mateus, Cidade Tiradentes e Itaim Paulista), para em seguida alcançar a região da Estação da
Luz (conhecida como “Cracolândia”), no centro (Uchôa, 1996). A partir daí,
espalhou-se para vários pontos da cidade e do Estado (Duailibi et al, 2008).
Levantamentos epidemiológicos não detectavam a presença do crack antes
de 1989 – tomando os meninos em situação de rua como exemplo, não
havia relato de consumo até o referido ano. Em 1993, no entanto, o uso
em vida atingiu 36% e, em 1997, 46% (Noto et al, 1998). Os serviços ambulatoriais especializados começaram a sentir o impacto do crescimento do
consumo a partir do início dos anos 90, quando, em alguns, a proporção de
usuários de crack pulou de 17% (1990) para 64% (1994), entre os dependentes de cocaína que buscavam tratamento (Dunn et al, 1996), atingindo
níveis superiores a 70%.
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hoje
Marcelo Ribeiro
Doutor em Ciência pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP
Pesquisador e Coordenador de Ensino da Unidade de Pesquisa em Álcool e
Drogas (UNIAD) – Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
Inicialmente, o consumo da substância atingiu
uma faixa de usuários atraídos pelo preço reduzido em relação à cocaína, outros em busca de
efeitos mais intensos para a mesma e, por fim,
uma parte dos adeptos do uso injetável de cocaína abandonou essa via de administração com receio da contaminação pelo HIV, escolhendo o crack como alternativa (Dunn & Laranjeira, 1999). A
primeira investigação sobre o consumo de crack
no Brasil foi um estudo etnográfico realizado no
município de São Paulo, com 25 usuários vivendo na comunidade (Nappo et al, 1994). Os autores relataram que o aparecimento da substância
e a popularização do consumo tiveram início a
partir de 1989. Perfil dos pesquisados: homens,
menores de 30 anos, desempregados, com baixa
escolaridade e poder aquisitivo, provenientes de
famílias desestruturadas. Estudos com usuários
de diversos serviços da capital paulista retrataram
um perfil semelhante (Dunn & Laranjeira, 1999;
Ferri, 1999). A mortalidade atingia uma porção
considerável desses usuários, sendo os homicídios
a causa mais frequente (Ribeiro et al, 2006).
No início dos anos 2000, instituições ligadas à
infância e a imprensa anunciaram uma provável
redução do consumo em São Paulo, bem como da
procura por atendimento na rede pública municipal (Dimenstein, 2000). Parecia que o problema
do crack se reduziria, como se notava em países
que investem em pesquisa e políticas públicas,
como os Estados Unidos e a Inglaterra. O oposto
aconteceu. Os dois levantamentos domiciliares
(2001 e 2005) realizados pelo Centro de Brasileiro
de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) mostraram que o consumo de crack quase
dobrou (CEBRID, 2006). Os motivos dos usuários
para o consumo também se alteraram: em meados dos anos noventa, “a busca por sensação de
prazer” era a justificativa da maioria. No final da
mesma década, porém, o consumo era estimulado
pela compulsão, dependência ou como uma forma
de lidar com problemas familiares e frustrações –
o pensamento do usuário se reduzia ao consumo
do crack, em detrimento do sono, comida, afeto
e senso de responsabilidade (Nappo et al, 2001).
Além disso, atingia usuários de todas as classes
sociais, que consideravam os serviços de atendimento públicos insuficientes e inadequados para
suas necessidades (Nappo et al, 2001) – dado coletado há mais de dez anos
Políticas públicas específicas para a substância e
seus usuários nunca existiram, apesar de a demanda por tratamento ser a que mais aumentou
entre as drogas ilícitas nos últimos anos. Desse
modo, enquanto os agentes de saúde esperavam
pelo desaparecimento espontâneo e milagroso
desse grupo, novas facetas desse modo de consumo foram se mostrando: a associação entre o uso
de crack e a infecção pelo HIV (Malta et al, 2008)
e a violência contra e entre os usuários são apenas
duas delas (Carvalho & Seibel, 2009). Os usuários
de crack têm diferenças marcantes em relação aos
de cocaína inalada, sendo mais comum entre os
primeiros o consumo de outras drogas, bem como
o envolvimento em contravenções (Guindalini et
al, 2006). Quanto ao tempo de uso, ao contrário
do que se supunha anteriormente, há um grupo
de usuários que utiliza a o crack há mais dez anos
de forma ininterrupta, apontando para uma provável adaptação do usuário à cultura do uso (Dias
et al, 2008; Abeid-Ribeiro, 2010).
Recentemente, um estudo qualitativo com usuários de crack (n=62) da cidade de São Paulo procurou atualizar o perfil desses usuários (Oliveira
& Nappo, 2008). O perfil, masculino, jovem, com
escolaridade e poder aquisitivo baixos, foi semelhante ao encontrado nos anos anteriores. Quase
todos experimentaram uma grande quantidade de
outras substâncias ao longo da vida – 14 foram
citadas –, mas o crack permaneceu como a droga de escolha, ficando as demais como maneiras
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Artigo
O crack em São Paulo
de lidar com os efeitos indesejados do consumo.
Há um grande envolvimento desses usuários em
atividades ilícitas, fomentado a princípio pela necessidade premente e constante da substância. O
estudo também identificou um grupo minoritário
de usuários que utilizavam o crack controladamente, ou seja, um consumo não-diário, conciliado as atividade cotidianas – família, emprego,...
– e desprovido de atividades ilícitas, como furtos,
roubos ou tráfico. Os usuários com essas características foram mais expostos a intervenções
terapêuticas e possuíam anteriormente padrões
compulsivos de uso e migraram para esse modo
ao longo dos anos, motivados pelo receio das
consequências negativas presentes e potenciais.
Outro estudo acompanha há doze anos usuários
de crack da cidade de São Paulo (n=131), que
estiveram internados numa enfermaria de desintoxicação durante os anos iniciais da chegada da
substância à cidade (1992 – 1994) (Ribeiro et al,
2007; Dias et al, 2008). Ao longo desse período,
alguns achados relevantes foram encontrados e
comparados com estudos semelhantes. Nos cinco
primeiros anos, as taxas de mau prognóstico, tais
como mortalidade (18%), prisão (12%) e desaparecimento (4%), atingiram mais de um terço
dos usuários. Além disso, 10% estavam infectados pelo HIV, metade já havia cometido algum
delito e um quinto fora detido ou condenado à
prisão em vida (Ribeiro et al, 2007). Essa tendência a desfechos de alta gravidade foi maior
nos primeiros anos – 92% das mortes aconteceram nos cinco primeiros anos. Por outro lado,
o estudo observou uma tendência à abstinência
entre os usuários, constituindo a condição mais
comum entre os sobreviventes ao final de doze
anos (Dias et al, 2008). Nesse mesmo período,
a imensa maioria, incluindo os usuários, estava
empregada de alguma forma, sendo os abstinentes aqueles que estavam melhor e formalmente
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hoje
empregados. A busca por apoio ao longo dessa
década foi precária: poucos se trataram de modo
constante, sendo a procura por internações para
desintoxicação nas fases agudas de consumo o
mais observado – ou seja, quem melhorou ou sobreviveu, salvo nos momentos de grande desorganização, caminhou por si próprio e com os apoios
informais que conseguiu.
O consumo de crack em São Paulo – e atualmente em boa parte dos Estados brasileiros – é uma
realidade grave e perene que necessita de soluções específicas e com durabilidade semelhante.
O perfil de seus consumidores, jovem, desempregado, com baixa escolaridade, baixo poder aquisitivo, proveniente de famílias desestruturadas,
com antecedentes de uso de múltiplas drogas e
comportamento sexual de risco (Duailibi et al,
2008; Oliveira & Nappo; 2008), dificulta adesão
dos mesmos ao tratamento, com necessidade de
abordagens mais intensivas e diversificadas. Outras dificuldades encontradas pelo usuário de cocaína e crack para a busca e adesão ao tratamento
é o não reconhecimento do consumo como um
problema, passando pelo status ilegal e a criminalidade relacionada a estas drogas, pela estigmatização e preconceitos, pela falta de acesso
ou não aceitação dos tipos de serviços existentes
(Duailibi et al, 2008).
Dependência química é uma doença cerebral crônica e recidivante, na qual o uso continuado de
substâncias psicoativas provoca mudanças na
estrutura e no funcionamento desse órgão (Kalivas & Volkow, 2005). Por outro lado, as múltiplas necessidades psicossociais dos usuários de
crack comprometem suas vidas com igual intensidade. Desse modo, há necessidade de modelos
de atenção capazes de reduzir o custo social das
drogas e que considerem sua natureza biológica
e psicossocial. Todos os modos de atendimen-
Marcelo Ribeiro
to que privilegiaram um em detrimento do outro
mostraram-se ineficazes (Miller & Hester, 2003).
É preciso diversificar as opções de atendimento,
por meio da criação de equipamentos intermediários ao ambulatório e à internação, tais como moradias-assistidas e hospitais-dia (e noite). Além
disso, é preciso integrar melhor a rede existente,
incluindo um melhor entrosamento entre a rede
pública e os grupos de auto-ajuda e as comunidades terapêuticas que souberam se modernizar e
se adaptar às normas mínimas da Anvisa. Ações
aparentemente simples, baratas e comprovadamente eficazes que poderão alterar positivamente
o panorama de saúde pública relacionado a essa
substância nos próximos anos.
Referências Bibliográficas
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Dimenstein G. A pedagogia do crack. Folha de
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Artigo
O crack em São Paulo
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Nappo SA, Galduróz JC, Raymundo M, Carlini EA. Changes in
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Procópio A. O Brasil no mundo das drogas. Petrópolis: Editora
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Uchôa MA. Crack: o caminho das pedras. São Paulo: Editora
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hoje
Marcelo Ribeiro
Artigo
A abordagem do crack
A abordagem do
problema com o
crack:
uma oportunidade
para afirmar a
liderança da Psiquiatria
como saber
D
esde o século XVIII, com a estruturação da medicina moderna
pelo desenvolvimento dos estudos anátomo-patológicos (Foucault, 1994), que a Psiquiatria persegue o objetivo de se afirmar
como saber científico, assegurando seu lugar entre as demais
especialidades médicas. A complexidade dos fenômenos que envolvem o adoecer psíquico indica que o reconhecimento pode vir de uma outra direção. Atualmente, os graves problemas enfrentados pelas pessoas que
usam crack e a necessidade de desenvolver estratégias que viabilizem prevenir, tratar e reabilitá-las constituem um desafio para as políticas de saúde.
Estes desafios são também uma oportunidade para que o saber psiquiátrico e
suas práticas contribuam para soluções mais satisfatórias, em certo sentido,
servindo como exemplo para outras especialidades que enfrentam problemas
com semelhante complexidade. No entanto, este papel de liderança não deve
ser buscado pela enfática repetição da relevância da biologia na dependência
desta e de outras drogas, mas sim pela possibilidade que têm os psiquiatras
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hoje
Marcelo Santos Cruz
Doutor em Psiquiatria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Coordenador do Programa de Estudos em Assistência ao Uso Indevido de
Drogas do Instituto de Psiquiatria da UFRJ
de propor estratégias que contemplem a complexidade do problema em todas as suas dimensões.
A gravidade dos problemas com o crack, suas frequentes repercussões clínicas, psiquiátricas e sociais impõem a necessidade de atenção para cada
uma das áreas envolvidas. A rapidez do desenvolvimento de dependência e de compulsividade
distinguem o crack de outras formas de uso de
drogas. Os problemas associados ao uso do crack
são ainda mais graves em parcelas vulneráveis da
sociedade, como é o caso das pessoas que vivem
na rua, principalmente, as crianças e os adolescentes, provocando o agravamento dos problemas
sociais, a exposição a situações de risco e à violência (Duailibi, Ribeiro, Laranjeira, 2008).
A compreensão sobre a natureza dos fenômenos
relacionados ao uso de drogas é articulada às
propostas para sua abordagem tanto no âmbito
do indivíduo quanto no que se refere ao coletivo. A história da evolução dos conceitos sobre
dependência mostra que foi um enorme avanço a
formulação da dependência como doença, modificando a compreensão moral que prevalecia anteriormente (Edwards, 1994). No entanto, desde a
segunda metade do século passado, o aporte de
outras áreas do conhecimento, como a dimensão
psicológica e o envolvimento de determinantes
socioculturais produziram novos avanços incorporados pela Organização Mundial de Saúde e pelas
classificações psiquiátricas. Nas últimas décadas,
as pesquisas neurobiológicas, em grande parte realizadas com modelos animais, aumentaram enormemente o conhecimento sobre os mecanismos
cerebrais envolvidos. Circuitos cerebrais e neurotransmissores são associados de forma inequívoca a comportamentos de auto-administração
e correlações com fenômenos clínicos têm sido
propostos (Kalivas, Volkow, 2005; Koob, 2006).
Os estudos são promissores na direção do desenvolvimento de exames clínicos e de abordagens
farmacológicas, mas ainda há pouco sucesso no
uso de medicamentos que diminuam a vontade
de usar drogas. Além disso, além das limitações
da abordagem farmacológica da dependência de
drogas, a relevância dos aspectos estritamente
biológicos também sugere cautela. No congresso da APA, em Atlanta, em 2005, Píer Vicenzo
Piazza (Laboratoire de Physiopathologie du Comportement, Bordeaux, França) alertava para que
se evite uma compreensão biológica reducionista.
Este pesquisador de grande produção no campo
dos modelos animais de dependência mostrava
como, mesmo entre animais, a exposição do cérebro à droga nem sempre leva à dependência. Ao
contrário, parte dos animais não é passível de ser
treinada para a auto-administração de cocaína.
E uma parte dos animais treinados, quando afastados da droga, não volta a utilizá-la. Em outra
mesa-redonda, estudo sobre a importância do ambiente de crescimento de filhotes mostrava que o
grupo “bem cuidado” era mais difícil de ser treinado para auto-administração de cocaína do que
o grupo menos “bem cuidado”. O grupo de Piazza
também realiza estudos neste campo mostrando a
importância do circuito hipotálamo-hipofisário ao
articular meio ambiente, estresse e dependência
de drogas (Piazza, Le Moal, 1998).
No que se refere ao crack, os resultados de pesquisas sobre o uso de medicações no tratamento
da dependência mostram que não há fármacos
que, de forma consistente, diminuam a vontade
de usar a droga. A prescrição de medicações pode
ser indicada para o tratamento das intoxicações,
sintomas da abstinência e principalmente para o
tratamento das comorbidades, mas não para diminuir a avidez (ou craving) pela droga (Castells,
Casas, Pérez-Mañá et cols, 2010; Soares, Lima
Farrell ET cols, 2010).
Estas evidências, ao invés de indicarem uma menor relevância do conhecimento biológico, sugerem a necessidade de propostas que incluam as
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hoje | 15
Artigo
A abordagem do crack
diversas dimensões do problema tanto na compreensão de sua origem como na sua abordagem.
A importância de fatores culturais e sociais é determinante para as ações de prevenção. O valor
social das diversas substâncias em rituais de sociabilidade, a compreensão dos riscos envolvidos,
o contexto familiar, as oportunidades de formas
de prazer não associadas às drogas são componentes essenciais que têm que ser considerados.
As abordagens terapêuticas e preventivas necessariamente têm que incorporar ações do campo
sociológico e psicológico.
Pelos motivos descritos, o tratamento da dependência do crack reside, em sua maior parte em
abordagens psicoterápicas e psicossociais. Além
disso, a hospitalização, quando necessária, não
é suficiente no tratamento destes quadros. A
discussão atual sobre a necessidade de locais de
internação é bem-vinda, mas, quando indicada, a
internação constitui apenas uma etapa do tratamento. E tanto para o tratamento e re-inserção
social quanto para as atividades de prevenção é
indispensável realizar atividades que aumentem a
vinculação daqueles que usam a droga aos serviços e aos profissionais de saúde.
Atividades de Redução de Danos são utilizadas em
inúmeras metrópoles de países como os Estados
Unidos, Grã-Bretanha, Austrália, Canadá e outros
que oferecem serviços para usuários de crack que
não querem ou ainda não conseguem parar de
usar a droga. Esta estratégia pragmática e tolerante evita o viés moralizante, estigmatizante, e
contempla a diversidade das pessoas que usam a
droga, procurando favorecer a vinculação de indivíduos para que posteriormente consigam pedir
ajuda. É importante compreender que Redução de
Danos não descarta a abstinência como meta, se
esta direção for definida por profissionais e paciente, mas se opõe apenas à abstinência com o
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hoje
uma exigência. Curiosamente, as Estratégias de
Redução de Danos são defendidas no exterior por
grupos de estudiosos com o mesmo mote utilizado por pessoas que as questionam no Brasil:
“Política para as drogas deve ser baseada em evidências científicas e não em ideologia” (Wood,
Werb, Kazatchkine et cols, 2010).
Como usuários de crack se distribuem por um continuum de diferentes momentos de motivação e
gravidade, são necessários serviços e ações que contemplem esta diversidade. Múltiplos serviços que os
usuários podem acessar sem agendamento prévio,
redes de usuários e linhas telefônicas 24h podem ser
usados para aumentar o seu acesso ao tratamento
(National Treatment Agency for Substance Misuse,
2002). Uma vez que uma parte dos pacientes chega
encaminhada pela Justiça, é importante ampliar e
aperfeiçoar a discussão sobre os problemas com drogas com os profissionais do judiciário.
A multiplicidade de serviços articulados em rede
constitui uma das maiores inovações da assistência à saúde desenvolvidas nas últimas décadas
no Brasil. A constituição de uma rede de serviços
com ênfase em dispositivos extra-hospitalares
pode atender pessoas com níveis diferentes de
envolvimento com as drogas e se articular as
redes de saúde em geral, educação, assistência
social, justiça e demais serviços comunitários.
A implementação da rede de CAPS envolve a
construção de uma prática de atenção que abarca alguns milhares de profissionais de saúde em
todo o Brasil. A experiência de atuar em serviços
multiprofissionais é outro desafio para psiquiatras
formados com um modelo que privilegia o conhecimento biológico. Pouco a pouco, os jovens psiquiatras descobrem os benefícios de compartilhar
a abordagem dos pacientes e a complementaridade dos saberes com enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, agen-
Marcelo Santos Cruz
tes de saúde. As dificuldades iniciais provocadas
pelas diferenças de formação são suplantadas
pelas vantagens da multidisciplinaridade. O conhecimento médico que provê a formulação do
diagnóstico psicopatológico, a indicação adequada da medicação, ou a internação, entre outros
recursos, se complementa com as psicoterapias,
o gerenciamento dos casos, as atividades em oficinas terapêuticas, oficinas de geração de renda,
re-inserção social e outras. Ações que precedem o
uso dos fármacos, como a motivação para o tratamento, e aquelas dirigidas para melhorar a adesão ao tratamento são imprescindíveis e sem elas
o saber biológico é impotente. A forte inserção
comunitária da rede de atenção em construção
com o apoio das Estratégias de Saúde da Família
e demais serviços da Atenção Básica propicia o
encontro de soluções com alcance de reabilitação
e desenvolvimento de ações de prevenção coerentes com a realidade local, ao invés de estratégias
propostas de cima para baixo. A capacitação dos
profissionais da rede básica para a abordagem de
problemas com as drogas, incluindo as técnicas
de Identificação Precoce e Intervenção Breve,
tem grande alcance em termos de saúde pública.
A abordagem dos transtornos mentais impõe
diariamente desafios que são ultrapassados pela
prática dos profissionais de saúde mental que desenvolvem estratégias para lidar com eles. Os psiquiatras sabem que, paralelamente ao bom diagnóstico psicopatológico e à adequada indicação
psicofarmacológica, a qualidade da interação com
o paciente e sua família, a atenção às suas particularidades e situações sociais são parte essencial
dos melhores resultados. Sendo uma especialidade cuja prática impõe frequentemente estes desafios e seu enfrentamento com múltiplos recursos,
a psiquiatria tem contribuído e pode contribuir
muito mais para a abordagem de problemas complexos que envolvem outras especialidades. Nos-
sos colegas que trabalham em hospitais gerais
têm o merecido respeito pela relevância do seu
trabalho. No entanto, o que muitos psiquiatras
não compreendem é que a capacidade desenvolvida pela experiência clínica (ou pelo habitus, como
diria Bourdieu, (1989)) ou pela integração da
pesquisa quantitativa e qualitativa (que progressivamente procure ampliar o entendimento de fenômenos complexos) tem muito maior potencial
de inovação e contribuição para a abordagem dos
problemas médicos das demais especialidades do
que o esforço pouco ambicioso de se tornar uma
especialidade biológica como as demais. Mas, a
magnitude e a gravidade dos problemas com o
crack nos obrigam a construir coletivamente estratégias multidisciplinares que podem constituir
novos paradigmas para outras áreas da saúde.
Referências Bibliográficas:
Bourdieu P. La Noblesse d’État. Paris: Ed. Minuit;
1989.
Castells X, Casas M, Pérez-Mañá C, Roncero C,
Vidal X, Capellà D. Efficacy of psychostimulant
drugs for cocaine dependence. Cochrane Database
Syst Rev. Feb 17;2:CD007380, 2010.
Duailibi LB, Ribeiro M, Laranjeira R. Profile of cocaine and crack users in Brazil. Cad Saude Publica.
24 Suppl 4:s545-57, 2008.
Edwards, G. A natureza da dependência das drogas. Edwards G, Malcolm Lader. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
Foucault, M. O nascimento da clínica. 4ª edição.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994.
debate
hoje | 17
Artigo
A abordagem do crack
Kalivas PW, Volkow ND.The neural basis of addiction: a pathology of motivation and choice. Am J Psychiatry. 62(8):1403-13,
2005.
Koob, GF. The neurobiology of addiction: a neuroadaptational
view relevant for diagnosis. Addiction. 101 Suppl 1:23-30, 2006.
National Treatment Agency for Substance Misuse. Research
into practice 1b. August 2002. Acessado em junho de 2010 em
http://nta.shared.hosting.zen.co.uk/publications/documents/
nta_commissioning_crack_cocaine_treatment_2002_rip1b.pdf
Piazza PV, Le Moal M.The role of stress in drug self-administration. Trends Pharmacol Sci.19(2):67-74,1998.
Soares B, Lima Reisser AA, Farrell M, Silva de Lima M. WITHDRAWN: Dopamine agonists for cocaine dependence. Cochrane Database Syst Rev. Feb 17;2:CD003352. Review, 2010.
Wood E, Werb D, Kazatchkine M et cols. Vienna Declaration: a
call for evidence-based drug policies. The Lancet, 376(9738),
310-312, 2010.
18 | debate
hoje
Marcelo Santos Cruz
Artigo
Reducionismo
O risco do
reducionismo
A
sclépio, o deus da Medicina, teve como filhas Higia e Panacea.
Panacea era, na mitologia grega, a deusa de todas as curas, e seu
nome significa “todos os remédios”, desta forma, sendo capaz
de curar todas as enfermidades. Atualmente, esta palavra é utilizada – até em caráter pejorativo – para expressar o fenômeno
excessivo de tentar curar todos os males com um remédio só. Procuro, com
esta expressão, caracterizar o problema que acredito ainda ser um desafio
nos aspectos relacionados à prevenção e tratamento do uso de crack no
Brasil. Como terapeuta de drogas e professor, acredito que uma “reflexão pública” talvez leve o leitor a considerar este conceito – o que, na prática, vem
dificultando o desenvolvimento de uma estrutura adequada para prevenção
e tratamento do uso crack no Brasil. Por quê? Provavelmente porque nós,
médicos, fomos mal ensinados a fazê-lo. E, principalmente, porque somos
ensinados na escola médica a “encontrar um único remédio para males de
origens múltiplas” – o conceito original de Panaceia.
O forte e atual debate existente sobre programas para usuários de crack
ilustra o conceito que quero desenvolver nesta contribuição. É claro que
podemos debater o quanto um conceito único de tratamento poderia potencialmente diminuir riscos em usuários de crack, eventualmente levando-os, em um modelo ideal, a algum equilibro funcional que lhes permitisse
trabalhar e amar. Mas, na prática, a utilização isolada de um modelo único
ilustra o quanto nossa estrutura de saúde não estaria, neste momento, ainda
preparada para atender a todas as nuances inerentes à dependência de uma
substância como o crack, que caracteristicamente afeta de forma intensa
o cérebro e as relações sociais do indivíduo – mais e mais rapidamente do
que a maioria das outras substâncias de abuso. E ilustra também o quanto
20 | debate
hoje
Flavio Pechansky
Diretor de Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas do Hospital de Clínicas de
Porto Alegre e Professor do Departamento de Psiquiatria da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul
nós médicos não fomos educados a trabalhar com
o conceito real de prevenção. O que desejo salientar é que o fato de ser utilizado um conceito
menos amplo para o cuidado do usuário de crack
é ilustrativo do quanto os esquemas preventivos
relacionados à evitação do início do uso foram de
pouca utilidade.
O currículo médico privilegia o ensino ou de doenças raras no nosso meio ou de doenças cuja
terapêutica já seja solidamente estabelecida. Na
faculdade de medicina onde estudei e atualmente
leciono, o peso do ensino frequentemente não é
baseado em estimativas de prevalência ou mesmo em previsão de curabilidade ou recuperação
de doenças. Por exemplo, o currículo médico da
UFRGS apenas tem aulas esporádicas sobre alcoolismo – doença das mais prevalentes na população brasileira. Prefere-se lecionar entidades
nosológicas que são mais interessantes ou que
mais fazem parte de livros-texto frequentemente publicados fora do país e baseados em prevalências e classificações diagnósticas que não
são obrigatoriamente as nossas. Por isso, estas
não podem ser completamente adaptadas a nuances de nossa cultura. Desta forma, o médico
– e, consequentemente, o psiquiatra - é formado
com uma capacidade de estabelecer um diagnóstico sofisticado de doenças às vezes pouco prevalentes, mas aprende com muita dificuldade a
diagnosticar doenças cuja anamnese é relativamente simples, mas talvez não tão “charmosa”.
Mais ainda, o estigma relacionado ao usuário de
substâncias é presente nas escolas médicas e
determina a forma como os alunos de medicina
irão se relacionar com dependentes químicos posteriormente. Portanto, como ensinar a prevenir
abuso e dependência de crack, se não temos estimativas apropriadas sobre a prevalência de seu
uso, ou mesmo de quantos pacientes precisariam
de atendimento nas diversas e longas etapas de
recuperação destes dependentes? Ou mesmo se
não ensinamos nossos alunos a considerar a dependência de drogas como doença similar à hipertensão? É provável que em breve alguns dados
de prevalência nacional possam já estar disponíveis; porém, a tradução destes dados para a
prática não é imediata, e provavelmente ainda
os currículos de ensino médico e psiquiátrico
continuarão a não privilegiar o treinamento de
profissionais para apropriadamente diagnosticar
o problema. Na outra ponta desta questão está o
fato de que tratar dependentes de substância não
é “fashion”, uma vez que este tipo de paciente
desgasta as equipes de saúde, que também não
contam com um arsenal terapêutico apropriado
(não há um fármaco específico para tratamento de dependência de cocaína ou crack) e ainda
não encontram, na estrutura de saúde, todas as
condições apropriadas para o atendimento destes
pacientes. Além do investimento em CAPS AD e
no correto acolhimento do usuário de crack, uma
série de outros componentes necessários para
sua adequada recuperação continua precisando
ser desenvolvida e, consequentemente, avaliada,
uma vez que o CAPS AD seria idealmente utilizado
em uma das diferentes fases que são necessárias
para a adequada recuperação de um dependente – mas não todas as fases. Neste sentido, é
claro que é muito mais gratificante tratar de doenças com alta taxa de recuperação ou adaptação
social, como por exemplo déficit de atenção e
hiperatividade, que têm protocolos de avaliação
fartamente testados, uma terapêutica bastante
robusta e com altos níveis de evidência. Infelizmente, não temos esta estrutura para tratar dependentes de drogas, e a meu ver é exatamente
aqui que este conceito de panaceia vai contra
a necessidade do paciente, motivado principalmente pela falta de evidências de resultado em
diferentes formatos terapêuticos. Vejamos, em
contraponto, o que sabemos sobre o tratamento do espectro distimia/depressão. Aprendemos,
por exemplo, que pacientes deprimidos poderão
debate
hoje | 21
Artigo
Reducionismo
se valer de uma gama de opções – desde grupos
de auto-ajuda com contatos mínimos com equipes de saúde e apoio do tipo terapia ocupacional
até os casos graves que, resistindo a antidepressivos de última geração, necessitarão de medidas
muito intensivas como a internação e a eletroconvulsoterapia de manutenção. E convivemos
bem com a gama de opções que é oferecida a
estes pacientes, sendo nossa responsabilidade
aprender a identificar a melhor relação entre a
necessidade clínica do paciente e a terapêutica
disponível. Não há um tratamento único, mas sim
diversos tratamentos e modalidades que poderão
ser inclusive utilizados para o mesmo paciente
em diferentes etapas de evolução e recuperação
de sua doença. Por exemplo, é provável que dependentes de crack na fase aguda de intoxicação
não apresentem condições clínicas e mentais
para serem submetidos a programas que se baseiem exclusivamente em técnicas ambulatoriais
e de reforço de grupo, uma vez que têm limitações físicas e mentais para absorver completamente um programa desta natureza, e provavelmente precisem estar mais protegidos nas fases
iniciais. Na área específica de usuários de crack,
espera-se que em breve possamos ter um modelo
mais integrado de tratamento, e que sirva para o
atendimento de uma fração maior do universo de
pacientes que atualmente são atendidos.
O uso de crack é evidenciado em São Paulo desde
1988 e o primeiro artigo científico que consegui
identificar na literatura brasileira foi publicado
em 1994 por Nappo e cols., com o instigante título de “Uso de crack em São Paulo: fenômeno
emergente?”. Nele, Solange Nappo, Antonio Carlos Galduroz e Ana Regina Noto já identificavam
os elementos que hoje vemos expostos na mídia
nacional: a degradação física, a quebra e a interrupção das redes de relacionamento social com
consequente marginalização, além de fenômenos
22 | debate
hoje
psicóticos e forte isolamento social. Outros estudos se seguiram demonstrando o fenômeno em
iguais ou maiores proporções. A sociedade brasileira, porém, apenas começou a reagir ao crack a
partir do momento em que este rompeu a barreira
da tragédia individual e familiar e começou a afetar o tecido social como um todo, degradando-o
às custas de um incremento na violência urbana e
na criminalidade, produzindo “gerações perdidas”
particularmente nas zonas de forte concentração
de baixa renda e pouca expectativa educacional.
De forma geral, as epidemias de uso de drogas
ocorrem no hemisfério sul anos depois do que
se passa no hemisfério norte, e isso pode ser
facilmente aferido pelos relatos sobre o uso aumentado de cocaína e ecstasy nas comunidades
de usuários de drogas americanas e europeias e
o posterior aparecimento destas drogas sob um
formato mais epidêmico no Brasil, mesmo respeitando-se características regionais. Uma vez que
ainda não dispomos de uma rede de estudos-sentinela que nos permitam rapidamente identificar
a entrada de novas drogas no mercado, estamos
ainda sujeitos a uma compreensão única – e talvez simples demais – do fenômeno. Assim como
já tivemos períodos em que todos os dependentes
de drogas tinham que ser psicanalisados, ou deveriam tomar moduladores de humor, ou todo o
paciente com sintomas depressivos deveria fazer
teste de supressão da dexametasona, aprendemos
com esforço e com erros que há nichos apropriados para cada forma de abordagem, e este conceito não é nada novo, tendo sido exaustivamente
desenvolvido pelo grupo do Treatment Research
Institute, liderado por A.T. McLellan desde 1985.
Gostaria de encerrar enfatizando que, embasados
nos conhecimentos atuais já disponíveis no campo das adições, podemos ampliar os modelos de
tratamento existentes no Brasil para que possam
ter maior qualidade e efetividade, mesmo com pacientes com diferentes níveis de motivação. Da
Flavio Pechansky
mesma forma, podemos nos dedicar com maior interesse nos aspectos preventivos que possam desviar o rumo de um indivíduo
que iria utilizar o crack. Até esse momento, talvez tenhamos
pecado em utilizar um modelo reducionista, que nos impediu de
abrir as janelas da prevenção. Do ponto de vista epidemiológico,
a educação, que é um componente essencial da prevenção, caminha sempre mais devagar do que a doença. E essa atitude pode e
deve ser modificada no Brasil, através de informação do público
leigo, capacitações de profissionais da saúde e políticas públicas
consistentes e sistematicamente revisadas à luz de evidências.
Dessa forma, evitaremos a resolução de problemas com uma única solução e, por consequência, o risco de panacéia.
Referências Bibliográficas
1 Nappo, S. A.; Galduróz, José Carlos Fernandes ; NOTO, Ana Regina . Uso do crack em São Paulo: Fenômeno Emergente? Revista
da ABP-APAL, v. 16, n. 2, p. 75-83, 1994.
2 AT, Mclellan; AL, Alterman. Patient treatment matching: a conceptual and methodological review with suggestions for future
research. NIDA Res Monogr. 1991, 106:114-35.
3 Inciardi JA, Surratt HL, Pechansky F, Kessler F, von Diemen
L, da Silva EM, Martin SS.Changing patterns of cocaine use and
hiv risks in the south of Brazil. J Psychoactive Drugs. 2006
Sep;38(3):305-10.
debate
hoje | 23
Opinião
Crack
Marco Antonio Bessa
Secretário do Departamento de
Dependência Química da ABP
Doutor em Ciências, UNIFESP
Mestre em Filosofia, UFSCar
Presidente da Sociedade
Paranaense de Psiquiatria
Marco Antonio Bessa
CRACK
No meio do caminho
tem muitas pedras
O
início de 2010 foi marcado por intensas chuvas que atingiram o
Sul e o Sudeste do Brasil ocasionando centenas de mortes e prejuízo aos cofres públicos superiores a R$ 1 bilhão. Tudo explicado
pela inclemência da natureza ou pelos desígnios de Deus. Esse é
um exemplo semelhante ao que ocorre em qualquer outra região
a qualquer época do ano.
Tais acontecimentos não são novidades nem tão imprevisíveis. Basta procurarmos os registros de notícias nas últimas décadas e constataremos a
repetição dessas tragédias anunciadas. Mais do que a natureza, o descaso,
a irresponsabilidade e a incompetência dos múltiplos governos municipais,
estaduais e federal que se sucedem, são os principais responsáveis por
essas situações.
Em 1996 foi publicado pela editora Ática o livro “Crack – o caminho das
pedras”, do jornalista Marco Antonio Uchoa. Nele já são descritos, com
início em 1988, todos os problemas que a chegada do crack começava a
desencadear em São Paulo e Rio de Janeiro. Eram relatos de pessoas pobres
debate
hoje | 25
Opinião
Crack
e humildes que, como ovos de serpentes, mostravam a força avassaladora com
que essa droga atingia suas vidas, prenunciando os graves problemas sociais
que daí resultariam.
Desde 2008/09 a mídia brasileira, em particular a do Rio de Janeiro, sensibilizada com os casos de dependentes de crack oriundas das classes média e alta
que começaram a ser percebidos, passou a dar grande destaque a esse “novo”
fenômeno urbano, responsável por tantos problemas.
Para quem trabalha com as dependências químicas, a denominada epidemia do
crack não é um fato novo, não nos pegou de surpresa, como dizem os políticos.
Há muito estamos alertando as “autoridades constituídas” para a desassistência
aos pacientes psiquiátricos e aos dependentes químicos em particular. Reclamamos a total inexistência de políticas efetivas de prevenção ao uso de drogas
(que não se resumem a fazer cartilhas e palestras bem intencionadas). Clamamos
pelo controle da propaganda das bebidas alcoólicas, das cervejas, em especial.
Mas o que recebemos é o massacre psicológico e emocional diário de nossos
“guerreiros e heróis” defendendo a honra da Pátria, encharcados pelos comerciais da cerveja patrocinadora da seleção na África do Sul. Encerrada a Copa,
novos comerciais serão produzidos e veiculados.
Enquanto isso, pela proximidade das eleições e enorme apreço que os políticos
possuem pela opinião pública, fomos brindados com a movimentação célere do
Ministério da Saúde para enfrentar essa terrível calamidade acidental que nos
persegue há décadas.
Aqui cabe uma ressalva. O que se propõe não é uma discussão eleitoral, uma polêmica entre presidenciáveis e seus asseclas, ávidos por garantir um esplêndido
lugar à sombra no Planalto Central.
Esse debate seria pobre e raso. E, o que é mais curioso: não haveria vencedores,
pois o histórico e as evidências são amplamente desfavoráveis a todos os políticos
e seus partidos. Se não, vejamos – para deixar as opiniões bem claras e distintas.
De 1988 para cá, estiveram na presidência da República representantes do PMDB,
PRN, PSDB e PT. Se investigarmos nos Estados e nas principais cidades – embora
o crack esteja presente em todos os municípios do país –, também constata-
26 | debate
hoje
Marco Antonio Bessa
remos que todos os partidos estiveram no poder aqui e ali, por tempo mais ou
menos longo. No Poder Legislativo não seria diferente. Com as poucas honrosas
exceções – como, por exemplo, a legislação restritiva ao consumo do tabaco–,
vossas excelências muito pouco fizeram de efetivo no vasto e complexo campo
das drogas lícitas e ilícitas.
Esclarecendo que não se trata, aqui, de se criticar ou defender qualquer governo
ou partido político, passo a comentar o chamado Plano Emergencial para o Crack
apresentado pelo Ministério da Saúde.
Tal plano segue a lógica reinante nas políticas para a psiquiatria. Lógica fundamentada em princípios ideológicos muito evidentes. Um deles é o furor antimédicos e, em especial, antipsiquiatras.
Como sabemos pelos inumeráveis exemplos da História antiga e contemporânea,
ideologias podem cegar ou no mínimo estreitar a visão de seus crentes. Muitas
vezes produzem monstros, que, se não lidassem com situações graves que envolvem a vida real de milhões de pessoas, estariam próximas da genialidade de
Marx (o Groucho, é claro).
O uso de crack e sua consequente dependência é um transtorno psiquiátrico.
Para ser mais claro, é uma patologia grave que afeta o cérebro dos doentes,
danificando neurônios, sinapses e todo o aparate neuroquímico do sistema nervos central. Por isso provoca as alterações emocionais, psicológicas e clínicas
(acidentes vasculares cerebrais, lesões cardíacas, pulmonares, etc.). E o que mais
tem chamado a atenção da população e das mídias é que produz fortes alterações
comportamentais que resultam em violência, prostituição, exposição a situações
de risco, como prática de sexo desprotegido, tráfico de drogas e criminalidade.
Se levarmos em conta que parte significativa dos dependentes de crack é de
crianças e adolescentes, podemos imaginar as consequências atuais e futuras
desse fato.
O Ministério da Saúde acredita que o crack é mais um fenômeno social, uma
construção histórica. Por um lado é uma opinião respeitável, uma vez que a Aids,
a tuberculose, as neoplasias e todas as outras enfermidades são fruto de múltiplos fatores sociais, históricos, econômicos etc. Mas, para enfrentá-los, além das
campanhas preventivas e educacionais para esclarecer a população e diminuir
debate
hoje | 27
Opinião
Crack
os estigmas e preconceitos, é necessária uma ampla e cientificamente bem fundamentada assistência médica, que ofereça diagnóstico e tratamento, inclusive
medicamentoso. Só assim é possível, por exemplo, que hoje tenhamos pacientes
portadores de HIV levando uma vida plena. Se não fosse o atendimento médico
e o uso correto da medicação, ainda estaríamos só distribuindo camisinhas e trocando seringas para esses pacientes, enquanto a morte os levaria rapidamente.
Ou seja, além de reconhecer e enfrentar o substrato social, cultural e histórico das doenças, é imprescindível estudar, compreender e criar meios de
enfrentar a dimensão biológica das enfermidades, para poder tratá-las de
modo correto e positivo.
Foge ao escopo desse artigo discutir as medidas sociais e políticas para se combater o crack, não porque elas não sejam importantes, mas por falta de espaço.
Por isso, vamos nos centrar na dimensão médica.
O paciente dependente do crack é portador de uma doença psiquiátrica grave,
necessita e merece um tratamento especializado. Todas as outras medidas sociais, jurídicas e políticas são importantes para a prevenção e posterior reintegração social desses doentes. Mas isso não valida a opinião ingênua defendida
pelo Ministério da Saúde de que o problema desses doentes é a vulnerabilidade
social e não o crack e sua dependência. Mesmo que fosse, não se resolve vulnerabilidade social com Caps ou mantendo os doentes nas ruas.
Ao negar a patologia psiquiátrica, o MS insiste em querer oferecer leitos em
hospitais gerais para atendimento desses doentes. Aqui fica evidente a posição
antipsiquiátrica e que, a rigor, penaliza os doentes e suas famílias.
Os hospitais gerais, em sua grande maioria, não dispõem de psiquiatras e muito
menos de psiquiatras especializados em dependência química para o atendimento clínico e emergencial. Também não dispõem de estrutura física nem de
enfermagem e corpo técnico treinados para esse tipo de atendimento.
Segundo: todos sabemos como é quase impossível obter uma vaga em hospital
geral para atendimento de alcoolistas. Para dependentes de crack seria mais fácil?
Só quem nunca atendeu um paciente usuário de crack pode apresentar tal
proposta e brincar com recursos públicos que são tão escassos para a saúde,
28 | debate
hoje
Marco Antonio Bessa
haja vista o subfinanciamento do SUS.
Tal proposta é tão absurda de um ponto de vista médico quanto se fosse proposto
tratar paciente com infarto do miocárdio em enfermaria clínica e não em UTI, por
considerar esses ambientes agressivos, excessivamente tecnificados e que não
valorizam o lado humano do doente, que seria agredido em sua subjetividade,
livre arbítrio e dignidade ao ficar conectado a aparelhos, tubos e fios.
Cada patologia demanda o ambiente, os medicamentos e os especialistas que o
atual estágio do conhecimento científico propõe e dispõe. O paciente em condições clínicas graves necessita e merece o acesso a uma UTI. O dependente
químico merece a melhor assistência psiquiátrica possível, que não é suprida
nem pelo hospital geral nem só pelos Caps, como a ilusão obsessiva que o MS
quer impor, negando a realidade clínica, das ruas e da vida.
A meu ver, a principal, a falha no plano do MS é essa negação ideológica da
dimensão biológica da dependência química. Isso leva a atribuir o uso de drogas
a fatores sociais, culturais e antropológicos, fundamentando-se em uma romantização nostálgica do uso de drogas há muito superada pelas neurociências.
Não há nada de transgressor ou criativo em se utilizar drogas. Também não há
utilização do livre arbítrio nesse uso. Pelo contrário, o cérebro de um dependente
é danificado e modificado de tal modo que a pessoa deixa de ter escolhas, só
restando a busca da substância como objetivo e sentido da vida. O tratamento
deve ter como alvo oferecer a eles a possibilidade de recuperar as outras dimensões da vida que se perderam, ampliar horizontes e não oferecer condições para
que se mantenha a vida unidimensional e opressora das drogas. Propor apenas a
redução de danos é ofertar-lhes a adaptação ao inferno, o conformismo com uma
condição sub-humana.
Em outras palavras, os doentes que perambulam como zumbis pelas cracolândias e
as pessoas que buscam desesperadamente local de atendimento para seus familiares, para não acorrentá-los em casa, ao invés da defesa abstrata da subjetividade
que já se esgotou e da defesa teórica de uma suposta clínica do sujeito, merecem
receber concretamente o melhor tratamento psiquiátrico, baseado em conhecimento científico e experiência clínica, no que poderíamos chamar de uma clínica
para o cidadão concreto em oposição à clínica do sujeito virtual, prisioneiro da
subjetividade vazia, fruto da obsessão ideológica ou de um cérebro danificado.
debate
hoje | 29
Artigo
Abordagem e Tratamento
Abordagem e
tratamento do usuário de
cocaína/crack:
uma breve revisão
O
conhecimento sobre o tratamento psiquiátrico dos dependentes
químicos tem evoluído bastante nos últimos anos e os elementos
essenciais das abordagens psicossociais tendem a ser similares
para diferentes tipos de drogas (Moos, 2006). Contudo, ainda
não está claro na literatura como devem ser integradas as principais técnicas utilizadas com esses pacientes e as terapêuticas psicofarmacológicas para cada substância específica. Apesar de haver uma disseminação
do uso do crack em alguns países há vários anos e de haver um consenso sobre a gravidade desse problema e dificuldade do tratamento, poucos ensaios
clínicos e estudos de coorte foram realizados com essa população. O objetivo
deste artigo é analisar o que a literatura científica propõe para a abordagem
e tratamento de usuários de cocaína, a fim de traçarmos alguns paralelos e
lançarmos perspectivas a respeito do tratamento dos usuários de crack.
Sabe-se que os efeitos e prejuízos do crack tendem a ser mais graves do que
as outras formas de uso da cocaína. Além do mecanismo de ação e farmacocinética da droga, outros motivos podem explicar isso, como o próprio perfil
do usuário, que tende a ter um nível econômico e educacional mais baixo,
além de altos índices de problemas sociais e familiares. Por isso, especulase que as respostas aos tratamentos sejam piores e o esforço terapêutico
necessite ser ainda maior. O rápido deterioro cognitivo e o desenvolvimento
de comportamentos antissociais, em alguns casos, complicam ainda mais
a elaboração de um plano eficaz de tratamento. Paradoxalmente, existem
relatos de pacientes que conseguem abandonar o consumo e se reestruturar. É natural que, mesmo no caso de drogas pesadas, como a heroína e o
32 | debate
hoje
Felix Kessler
Vice-diretor do Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas do Hospital de
Clínicas de Porto Alegre/UFRGS
crack, uma parcela da população não tenha tanta
predisposição a se tornar dependente. Esses não
desenvolvem uma grande compulsão nos primeiros meses e, muitas vezes, migram para outros
tipos de drogas ou alcançam a abstinência, a fim
de evitar mais danos. Alguns estudos que acompanharam usuários de crack por anos notaram que
uma parte estava abstinente ao final do seguimento, mesmo sem frequentar tratamento. Quando não são mortos pelo tráfico ou pelos demais
comportamentos de risco associados (ex. sexuais,
violência), a abstinência estável parece aumentar
a longo prazo. Outras vezes, os usuários oscilam
períodos de abstinência e consumo excessivo (Lopez, 2008; McKay, 2005; Gossop, 2002).
Em relação às abordagens terapêuticas, é de fundamental importância ter claro que não existe um
único tratamento que abarque as características
multidimensionais das adições. Ao contrário de
outros transtornos psiquiátricos, em geral, o psiquiatra não deve se aventurar a atender sozinho,
exceto os casos de usuários muito motivados, o
que é raro. Deve-se recomendar uma equipe técnica treinada para atender esses usuários, preferencialmente multiprofissional e interdisciplinar.
Em virtude da gênese multifatorial da dependência química, a atenção ao dependente precisa ser
direcionada às diversas áreas afetadas, tais como:
social, familiar, física, mental, questões legais,
qualidade de vida e enfocando especialmente
as estratégias de prevenção de recaída. O tratamento dessas questões pode ser tão importante
quanto as estratégias dirigidas ao consumo de
drogas, especialmente com o foco na diminuição
de estressores externos (Knapp, 2009; Kessler,
2008). Portanto, é importante uma avaliação criteriosa das necessidades de cada paciente e que
haja flexibilidade na abordagem terapêutica. Está
bastante claro, por exemplo, que as comorbidades
psiquiátricas podem influenciar na efetividade
do tratamento dos usuários de cocaína e crack,
agravando o prognóstico de ambas as doenças.
Por exemplo, vários estudos referem que o uso
de cocaína pode ser um fator desencadeador de
sintomas psicóticos. A necessidade do diagnóstico diferencial é fundamental para o sucesso
do tratamento (Kessler, 2008). Existem escalas
multidimencionais, como a Escala de Gravidade
de Dependência (ASI6), que podem auxiliar no
desenvolvimento de um bom plano de tratamento
(Kessler, 2007; McLellan, 2006).
A ideia de pensar a dependência química como
uma doença crônica pressupõe que o tratamento
também deve ser a longo prazo, especialmente
no caso dos usuários de crack que costumam ter
inúmeras recaídas. A maioria dos autores costuma sugerir que a intensidade das consultas e as
técnicas associadas ao longo do tratamento devem estar diretamente ligadas à gravidade sintomatologia dos pacientes e de sua problemática.
Quanto mais graves, maiores a frequência e o número de abordagens que devem ser conjugadas.
(McLellan, 2000)
O desafio inicial é facilitar a procura dos usuários
de crack aos serviços de assistência, pois eles tendem a fazê-lo quando estão frente a situações de
maior crise ou com risco de morte. Nesse sentido,
a busca ativa pode ser interessante (Henskens,
2005). Aqui no Brasil já se inicia um trabalho com
esse propósito através dos chamados consultórios
de rua, das equipes de saúde da família ou até
mesmo de contatos com as equipes de redução de
danos, mas ainda em pequena escala. Contudo,
posteriormente ao vínculo com esses usuários,
os mesmos deveriam ser referidos a um serviço
capaz de oferecer abordagens mais complexas,
embasadas em evidências científicas, e com fins
de abstinência total do crack, o que ainda pouco
acontece na realidade brasileira.
Neste contexto, um dos maiores problemas é que
debate
hoje | 33
Artigo
Abordagem e Tratamento
a adesão dos usuários de cocaína/crack é bastante baixa na maioria dos estudos, geralmente
caindo para menos de 30% nos primeiros dois
meses de tratamento. Apesar disso, os benefícios compensam os custos da insistência em
participar de tratamentos (Lopez, 2008; McKay,
2005; Gossop, 2002). É importante destacar que,
devido aos baixos índices de motivação do dependente de cocaína, a família e a rede social de
apoio exercem um papel crucial durante o processo de intervenção terapêutica. A maioria dos
estudos de revisão sobre famílias de dependentes químicos confirma que o universo familiar
dessa população é frequentemente disfuncional
(Guimarães, 2009). Dessa forma, a configuração
familiar é considerada uma variável importante
no tratamento desses pacientes, como recentemente demonstrado em um estudo comparativo,
no Chile, com 236 usuários de cocaína injetável
e 231 de usuários de crack. Verificou-se que a
estrutura e dinâmica de comportamento familiar
tiveram uma relevante função na reabilitação
dos pacientes (Carmona, 2008). Stanton e colaboradores (1997) demonstraram que, quando
os usuários apresentavam diagnóstico claro de
Transtorno de Conduta, a terapia familiar demonstrou melhores resultados em relação a
outras técnicas. A intervenção mais eficaz foi
a terapia familiar conhecida como estratégicoestrutural, que envolve todos os membros da família, enfocando a aliança terapêutica.
Nos casos em que as consultas não são aproveitadas devido às constantes intoxicações e aos
riscos, não resta muita alternativa que não seja
internar e desintoxicar, voluntária ou involuntariamente. Quanto ao crack, alguns autores observam que tratamentos por longos períodos (que
variam de seis meses a um ano) podem evidenciar
resultados mais promissores. Huesca relata que os
usuários de crack permanecem pelo menos três
34 | debate
hoje
meses nas clínicas mexicanas. Segundo ele, esse
tipo de paciente precisa inicialmente de internação em ambientes protegidos, como hospitais e
instituições especializadas em adições, uma vez
que o controle voluntário das suas ações ainda
é pobre nessa primeira fase e a recuperação das
funções mentais também é lenta.
A intensa fissura desencadeada por drogas como
a cocaína e o crack é um dos motivos atrelados à baixa adesão ao tratamento. Infelizmente,
mesmo após décadas de busca, não se encontrou
uma medicação específica que reduza de forma
potente o desejo subjetivo intenso pelos efeitos reforçadores dessa substância (Karila, 2008).
Inúmeros ensaios clínicos já foram realizados a
fim de testar medicamentos para o uso de cocaína como: antidepressivos tricíclicos; imipramina; inibidores seletivos de recaptacão de serotonina-ISRS: fluoxetina, sertralina e paroxetina;
anticonvulsivantes e estabilizadores de humor:
carbamazepina, gabapentina, lamotrigina, lítio;
antipsicóticos e agentes aversivos como o dissulfiram. Os resultados com usuários no mundo
real ainda não são animadores (Preti, 2007).
Entretanto, nos EUA, vários estudos estão sendo realizados para testar “vacinas” anticocaína,
que agem no organismo produzindo anticorpos
que se ligam à substância. Seu princípio ativo
tem por objetivo isolar a cocaína no soro, em
função do tamanho da molécula, e consequentemente fazer com que a mesma demore mais
a acessar o cérebro. Até agora, os resultados
preliminares tanto em animais quanto em humanos têm sido promissores. Ao conversarmos
com colegas americanos em congressos, eles são
taxativos em afirmar que, enquanto não houver
algum adjuvante famacológico/imunológico que
diminua a fissura dos usuários de crack, as taxas
de respostas aos tratamentos continuarão baixas. Costumam utilizar como exemplo os pobres
Felix Kessler
resultados dos tratamentos de usuários de heroína antes do uso da metadona, buprenorfina ou
naltrexona. Em uma recente palestra, a Dra. Nora
Volkow também chegou a aventar a possibilidade
futura do uso de neuromodulação para dependentes químicos mais graves.
Quanto ao manejo psicoterapêutico para usuários de crack e cocaína, as intervenções psicossociais, como a Terapia Cognitivo Comportamental
(TCC), enfocando o treino de habilidades sociais
e a prevenção à recaída visando a abstinência,
têm demonstrado bons resultados em pacientes
que não apresentam graves problemas em decorrência do uso dessas substâncias (McLelland,
2005). Concomitantemente, as Intervenções
motivacionais Motivational interviewing (MI)
e Entrevista Motivacional (Motivacional Enhancement therapy - MET) procuram auxiliar o paciente a superar a ambivalência inicial para o
tratamento, através de uma relação centrada no
paciente com suporte técnico direcionado à mudança do comportamento adicto.
Resultados também interessantes estão sendo
comprovados através do uso da técnica chamada de Gerenciamento de Contingências (GC), desenvolvida nos Estados Unidos para dependentes
químicos. Essa técnica baseia-se no pressuposto
de que o uso de substâncias ilícitas e sua manutenção são mantidos por fatores ambientais e
que esse comportamento pode ser modificado,
alterando as consequências dessa aprendizagem.
A principal estratégia do GC é o uso de incentivos motivacionais (vouchers ou vales-presentes,
dinheiro, objetos e outros reforçadores) para as
visitas à clínica em que o exame para cocaína for
negativo. Cabe lembrar que os usuários de crack
costumam ocultar ou minimizar as recaídas, que
nem sempre podem ser constatadas em consulta,
e o exame toxicológico pode ser um adjuvante
importante no tratamento.
Uma metanálise comparou 47 estudos publicados
no período de 1970 a 2002 baseados no modelo
de Contingency Managment (CM). Os achados indicaram que essa técnica é capaz de estabelecer
e manter a abstinência mesmo em dependências
químicas graves, possibilitando também aos pacientes o desenvolvimento de habilidades psicossociais, e assim prolongando o período de abstinência (Prendergast, 2006). Recentemente, uma
revisão de 37 estudos randomizados demonstrou
que os resultados mais relevantes com dependentes de psicoestimulantes eram provenientes do
uso de diferentes técnicas de intervenção comportamental. Os desfechos apontam maior diminuição de uso de drogas, através de exames de
urina negativos, nos estudos que utilizaram a técnica de gerenciamento de contingência. Contudo,
novamente, a constatação foi de que não existe
uma única técnica que abarque completamente a
grande demanda proveniente da dependência de
cocaína e crack (Knapp, 2009).
Alguns fatores de boa evolução podem ser identificados como: iniciar o tratamento abstinente,
motivação para abstinência completa, e a continuidade do tratamento em regime ambulatorial
após abordagens intensivas (internação ou várias
consultas por semana) (Siegal, 2002). Por outro
lado, o uso nocivo de álcool e outros estimulantes (como as anfetaminas) foram considerados os
fatores de pior prognóstico, assim como chegar
para o tratamento com padrões graves de consumo (Gossop, 2002).
Não há dúvidas que, em função da gravidade do
problema do crack, políticas públicas emergenciais e preventivas devem ser implantadas no
sentido de oferecer educação/informação, oportunidades gratificantes que concorram com o
tráfico ou mesmo aquelas relacionadas à repressão. No que compete ao tratamento dos casos
identificados, é importante que contemplem o
debate
hoje | 35
Artigo
Abordagem e Tratamento
modelo médico de assistência. Cabe salientar a
relevância do treinamento e a capacitação dos
profissionais que atenderão esses pacientes, tendo grande impacto nos objetivos do tratamento,
possibilitando, assim, maior efetividade junto a
esse perfil de paciente (Moos, 2007). Além disso,
a disseminação de novas técnicas de tratamento,
amplamente baseadas em evidências científicas,
deve ser enfatizada para que exista uma padronização no tratamento da dependência química
(William et al.,2006).
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Opinião
Crack, psiquiatria e sociedade
Esdras Cabus Moreira
Doutorando do Programa de
Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal
da Bahia (UFBA)
Mestre em Saúde Pública pelo
Instituto de Saúde Coletiva da UFBA
Mestre em Ciências da Saúde
pela Universidade Johns Hopkins,
Estados Unidos
Professor de Psiquiatria da Escola
Baiana de Medicina e Saúde Pública
(EBMSP)
Psiquiatra do Centro de Estudos e
Tratamento do Abuso de Drogas –
CETAD/UFBA
Esdras Cabus Moreira
O Crack
o psiquiatra e a
sociedade
O
problema do crack envolve o comércio de uma droga ilícita, a
violência gerada por esse tráfico, as consequências legais das
práticas relacionadas à sua produção, distribuição e consumo,
as configurações sociais perversas que afetam várias comunidades nas metrópoles brasileiras onde os traficantes operam seus
negócios, a corrupção dos poderes públicos pelo dinheiro gerado por essa
atividade e, por fim, os problemas médicos decorrentes do abuso e da dependência dessa substância. Se fizermos um paralelo com o problema do
álcool entre nós, veremos uma correspondência muito grande. Para o álcool,
entretanto, a situação pode ser descrita, como fizeram René Jahiel e Thomas
Babor (Adiction 2007; 102: 1335-1339), como uma epidemia industrial, o
que facilita a ação da sociedade com medidas legais que limitem as práticas
perversas, violentas, corruptas e danosas às comunidades das indústrias do
álcool e, para não esquecermos, das do tabaco.
Sabemos há pelo menos duas décadas que os problemas médicos relacionados ao álcool são proporcionais ao aumento do volume de bebida alcoólica
consumido pela população. Faz sentido, portanto, que as estratégias de pre-
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hoje | 39
Opinião
Crack, psiquiatria e sociedade
venção e de redução dos problemas médicos e psiquiátricos passem por medidas
que limitem a oferta dessa substância, regularize a sua distribuição e a sua
propaganda e coíbam comportamentos de risco entre os seus usuários. Medidas
estas que são de conhecimento dos técnicos, mas que se mostram difíceis de
implantar, pela pressão econômica exercida pela indústria do álcool e por uma
cultura permissiva em relação ao consumo de bebida alcoólica. A redução dos
problemas psiquiátricos associados ao álcool necessariamente envolve a sociedade, sem que em momento algum questionemos a necessidade de intervenções
médicas específicas para aqueles com problemas físicos e mentais já instalados.
Seria um anacronismo discutirmos a necessidade de cuidados hospitalares, de
internamento, para alguns desses pacientes, embora seja atual a irresponsabilidade dos sucessivos governos com esses problemas.
Se para o álcool a redução dos problemas médicos passa pela redução do seu
consumo na população, não parece inadequado pensarmos nas estratégias de
controle ambiental (ações públicas nos fatores sociais e populacionais associados a um maior consumo e disseminação da substância) do uso de crack como
um dos elementos necessários para a redução dos problemas médicos relacionados ao seu consumo. Entretanto, as políticas públicas se tornam mais difíceis
pelo estigma relacionado ao seu uso e por lidarmos com um poderoso, rico e
violento comércio ilícito de uma substância, que foge da regulamentação estatal
e que arregimenta jovens para uma vida curta, porém com acesso a níveis de
consumo de bens materiais e a um poder dentro da comunidade que lhes é negado no real e no imaginário por uma das sociedades mais desiguais do planeta.
Em Salvador, como em Nova York (descrito por Philippe Bourgois em “In Search
of Respect: Selling Crack in El Barrio”, editora Cambridge Press) ou na Filadélfia
(como observa Elijah Anderson em “Code of the Street: Decency, Violence, and
the Moral Life of the Inner City”, editora W. W. Norton & Company), o tráfico de
crack representa uma resposta imediatista e profundamente negativa de pessoas
alijadas pelo Estado de uma incorporação à sociedade de consumo pela educação
e pelo trabalho. A droga, especificamente o seu comércio, é parte da resposta
dada por uma cidade informal, desassistida, que termina por intensificar as desigualdades existentes, justificando condutas draconianas de um Estado, que
passa a responsabilizar o crack pelos seus desacertos. A forma como esse Estado
trabalha o caráter social do problema, não questiona a sua atuação como agenciador da desigualdade na distribuição dos recursos públicos e a prioridade dada
aos interesses dos setores privados e lucrativos da sociedade. Visitando algumas
regiões de Salvador, é fácil imaginarmos o poder atrativo do comércio do crack
40 | debate
hoje
Esdras Cabus Moreira
para muitos jovens. Observamos, tanto para o crack como para o álcool, a clara
falta de vontade política do governo de direcionar seus esforços para mudanças
substanciais na dinâmica social e na regulação das suas práticas econômicas que
realmente favoreçam a sociedade, enfraquecendo suas estruturas oligárquicas,
democratizando os espaços públicos, redistribuindo renda, criando as bases para
o desenvolvimento da comunidade e para a redução da vulnerabilidade social às
práticas ilegais e à violência.
Diante disso, o papel do psiquiatra é complexo e deve ser exercido com cuidado
e muita reflexão sobre a sua prática. Dois elementos são essenciais e os dois nascem do encontro clínico com o usuário do crack: o questionamento sobre a neutralidade da sua técnica e sobre a dicotomia mente-cérebro, ambos remetendo-o
a um papel político na sociedade.
Na avaliação clínica de um usuário com diagnóstico de dependência do crack, vários elementos se integram à descrição do quadro psiquiátrico que nos remetem
à complexidade do seu comportamento e do seu contexto social e interpessoal.
A avaliação técnica do psiquiatra, sem excluir a necessidade de intervenções
médicas como a utilização de farmacoterapia ou o internamento em espaços
terapêuticos especializados no tratamento da dependência química, não pode
reduzir o problema do crack à adequada utilização de instrumentos necessários
à restitutio in integrum, que normatizam a prática profissional nesse campo do
conhecimento. Como psiquiatras, somos impelidos, pelo que nos traz o paciente,
a dimensionarmos politicamente o problema, refletindo sobre a suposta neutralidade da nossa técnica.
Como nos ensina Carl Schmitt (“O Conceito do Político”, editora Vozes), a cultura
europeia ao longo dos últimos quatrocentos anos buscou ‘campos neutros’ que
amenizariam a disputa entre o teológico e o científico, possibilitando uma visão
universal do mundo e a globalização dos mercados. O rápido desenvolvimento das
técnicas, como aplicação de uma crescente visão científica da natureza, cria esse
elemento pacificador. A técnica passa a ser vista como definitivamente neutra.
Mas o desenvolvimento técnico não nos trouxe a paz ao longo dos últimos dois
séculos, pois, como pensa Schmitt, possui uma neutralidade da qual não surge
nada que nos leve a discussões humanas e espirituais. A técnica pode ser usada
por qualquer um e não está atrelada ao desenvolvimento humanitário e moral.
Percebemos para o crack, como para o álcool e o tabaco, que a necessidade da
utilização de técnicas médicas em alguns aspectos do problema, não deve reduzir
debate
hoje | 41
Opinião
Crack, psiquiatria e sociedade
nosso combate a estruturas sociais desiguais que promovem o aumento do seu
consumo e, consequentemente, a prevalência de quadros psiquiátricos graves.
Não estaríamos mais equivocados, por exemplo, se considerássemos os grupos
psicoeducativos e a farmacoterapia de tratamento do tabagismo como a fórmula
de sucesso para a redução do uso da nicotina na população. Sabemos que o
conhecimento científico, a informação e o aparato técnico para lidar com formas
mais graves de consumo dessa substância não modificariam condutas associadas
a um comércio bilionário do tabaco. Foram e são necessárias ações políticas.
Uma técnica desprovida dessas ações é alienante e pode inclusive ser coaptada
pela própria indústria que nada tem a perder financiando o tratamento das doenças que engendra na população. A mudança que operamos ao tratarmos o indivíduo é, sem dúvida, importante, sempre é prioritário aplacarmos o sofrimento.
Mas não estamos numa cruzada insana para extirparmos a droga da sociedade,
mas para criarmos condições justas de existência para que as pessoas aumentem
a sua resiliência em relação às drogas. O psiquiatra deve ter isso em mente,
mantendo a sua ação profissional precisa, mas consciente dos limites da técnica
médica para a resolução de problemas com profundas implicações econômicas e
políticas, como o comércio e o consumo do crack.
Uma segunda reflexão estimulada pela clínica psiquiátrica do crack é a relação
entre os processos mentais e o cérebro. É comum ouvirmos dos pacientes que o
crack leva as pessoas a mendigar, a praticar delitos para manter o seu consumo e
a uma exaustão física por um uso repetitivo e desenfreado. Um quadro que fortalece a relação entre o comportamento e a ação da droga no cérebro, seguindo os
modelos neurobiológicos de dependência química. Por outro lado, as condições
psicológicas, familiares e sociais que antecedem ou que se relacionam ao uso
da substância, favorecem modelos psicológicos e psicossociais de entendimento
do fenômeno. As visões dogmáticas que defendem um ou outro desses modelos criam um conflito desnecessário que tem repercussão na implementação de
políticas públicas. É função do psiquiatra agir de forma técnica e política na
integração desses modelos e na determinação da ênfase que será dada a um ou
ao outro, na dependência dos achados clínicos.
Acreditamos, considerando as observações de Nassir Ghaemi (“The Concepts of
Psychiatry: a Pluralistic Approach to the Mind and Mental Illness”, editora John
Hopkins University Press), na concepção da mente como dependente, mas não
reduzida, ao cérebro. O comportamento de consumo do crack seria entendido
como o resultado de interações complexas e dinâmicas entre o biológico e so-
42 | debate
hoje
Esdras Cabus Moreira
cial, corroboradas pelos achados dos processos que envolvem a neuroplasticidade. Não poderíamos, portanto, compreender o uso do crack apenas pelo modelo
biológico ou pelo modelo psicossocial, sem operarmos uma redução artificial do
problema. Tais reduções são sempre em prejuízo do paciente, que não se vê como
objeto da psiquiatria, da psicologia ou das ciências sociais, mas como aquele que
sofre, que é estigmatizado e que está preso ao seu martírio e a sua culpa.
Não sabemos se conseguiremos reduzir o consumo do crack ou se ocorrerá essa
redução independente das ações médicas ou das políticas públicas implementadas, como ocorreu nos Estados Unidos. Sabemos, entretanto, que lá, como aqui,
o crack, ou qualquer outra droga, será muito mais danoso nos guetos urbanos
criados pelo desemprego, pela baixíssima educação e pela desigualdade socioeconômica. O psiquiatra não pode se privar da sua técnica, mas deve ter a consciência de que essa técnica pode não representar a imparcialidade, principalmente
quando o aliena das condições sociais que produzem, mantêm e disseminam os
agravos à saúde do homem. O consumo do crack é apenas mais um exemplo da
relação estreita entre a condição de vida e a doença e não será certamente nosso
último desafio.
debate
hoje | 43
Artigo
Crack e prevenção
Especialista mexicano fala sobre
crack e
prevenção
A
cidade de Porto Alegre sediou, em julho, o I Congresso Internacional Crack e Outras Drogas, promovido pela Associação do Ministério Público do RS (AMPRS) em parceria com a Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com apoio do grupo Rede
Brasil Sul (RBS), e contou com 1.500 participantes, representantes de 129 municípios de nove Estados brasileiros.
Especialistas da Argentina, Colômbia e México participaram do evento e
debateram alternativas para o enfrentamento às drogas, especialmente a
chamada epidemia do crack, identificando medidas e estratégias que visam
conscientizar, prevenir e reprimir seu uso. Conferências e oficinas foram realizadas com o intuito de formar propostas para a prevenção, repressão,
tratamento e reinserção social dessa população.
Um dos principais conferencistas foi o psicólogo mexicano Ricardo Sanchez
Huesca, diretor de Pesquisa e Treinamento dos Centros de Integração Juvenil
(CIJ), que é uma instituição sem fins lucrativos e tem como objetivo tratar
jovens com problemas relacionados ao álcool e outras drogas. Essa organização fundada em 1969 possui uma rede de 110 clínicas espalhadas em vários
Estados do país e organiza trabalhos preventivos e de reabilitação, através
de milhares de voluntários. Realiza também trabalhos de prevenção em escolas, hospitais e na comunidade através de palestras, grupos de leitura e
informações de cursos voltados a crianças, adolescentes e adultos. Alguns
dos temas oferecidos ao público leigo são referentes a fatores de risco e de
proteção ao uso de drogas.
46 | debate
hoje
Felix Kessler* e Bárbara Holmer**
* Psiquiatra, vice-diretor Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas
(CPAD) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre/ UFRGS
** Psicóloga, assistente de pesquisa do CPAD.
Os dados dos estudos conduzidos por Huesca
no CIJ confirmam que, nos últimos anos, foram
atendidos um grande número de usuários de crack e um dos centros, localizado em Monterrey,
é especializado nesse tipo de pacientes, onde o
tratamento ocorre de acordo com a necessidade
de cada paciente. Inicialmente é realizada uma
avaliação que indica o tratamento adequado referente à problemática do indivíduo. As consultas psicológicas e as internações utilizam um
padrão de acordo com a gravidade do problema.
Os pacientes que já demonstram problema com
alguma substância e estão motivados à mudança,
mas não apresentam sintomas para dependência
química, recebem uma intervenção precoce em
conjunto com o apoio da família. Pacientes considerados mais graves, com níveis diferentes de
abuso e dependência são encaminhados para tratamento psicológico com diferentes intensidades
e freqüência. Planos de desintoxicação e internações, bem como trabalhos de redução de danos
também, são oferecidos pelas redes.
Em sua palestra no Congresso, Huesca apresentou
dados sobre o consumo de drogas nas Américas
e salientou que a cocaína, incluindo o crack, é
uma das drogas mais utilizadas, atrás somente da
maconha e das anfetaminas. Ele também apontou
que, além do crescimento do consumo de crack
na última década, houve um aumento no uso de
êxtase, inalantes e metanfetaminas, que podem
trazer consequências sérias aos seus usuários. Ele
fez um alerta para que os brasileiros ajam precocemente com o intuito de prevenir a entrada
dessas drogas no país. O mexicano conceituou
os fatores que influenciam os indivíduos ao uso
de álcool e outras drogas como tendo dois momentos importantes: interno e externo, ou seja,
a vulnerabilidade interna propicia que os indivíduos desenvolvam problemas de abuso e dependência de substâncias psicoativas, bem como o
uso experimental aumenta ainda mais esse risco.
Para Huesca, questões macrossociais, como, por
exemplo, condições socioeconômicas, entre outras, também são considerados fatores de risco. A
ausência de estrutura familiar não pode ser considerada como a causa do problema, visto que é a
combinação de fatores que levam ao uso, abuso
e a dependência química. Segundo Huesca, “ninguém é culpado por ter um usuário na família.” A
família pode sim ser considerada como um risco
que, em conjunto com fatores internos e externos, são favoráveis ao uso de álcool e drogas,
como salienta o psicólogo “o ser humano se forma
através de modelos”.
Huesca salienta que a violência doméstica tem
grande influência na drogadição, como mostra o
estudo que coordenou na cidade do México com
80 indivíduos, entre eles, 40 dependentes químicos e 40 não dependentes. Entre os achados,
verificou que 70% dos dependentes químicos sofreram maus tratos dos pais ou assistiram agressões dos pais em suas mães. No grupo dos não
dependentes, esse valor caiu para 20%. Além disso, 50% dos dependentes relataram uso de droga
também por parte de seus pais e irmãos.
Outro achado importante no estudo de Huesca foi
referente à história escolar dos grupos entrevistados, onde apenas 5% dos indivíduos não usuários
enfrentaram dificuldades escolares. Já no grupo
dos dependentes químicos, esse número aumentou para 23%. Para o psicólogo, o meio escolar,
bem como as amizades dos adolescentes, podem
ser determinantes para o uso de drogas, isso porque os jovens têm necessidade de fazer parte de
um grupo, que, juntamente com outros fatores,
como falta de orientação, insatisfação pessoal,
humor e facilidade de acesso às drogas, podem
levar o adolescente ao consumo. Huesca afirma:
“É mais do que um problema de saúde. É também
debate
hoje | 47
Artigo
A abordagem do crack
um problema econômico e de estrutura social. É preciso ensinar
o jovem a dizer não aos amigos e a ter auto-estima”.
Ao encerrar seu discurso na conferência, Huesca alertou: “Todos buscamos a fuga do sofrimento e a felicidade, mas às vezes procuramos no lugar errado”. “Devemos proporcionar aos
dependentes um ambiente onde todos possam ser felizes e
deixar de sofrer”.
Agradecimento: vários dos dados acima foram disponibilizados pela equipe da Associação do Ministério Público do Rio
Grande do Sul.
48 | debate
hoje
Felix Kessler e Bárbara Holmer
debates
PSIQUIATRIA HOJE
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