DESCENTRALIZAÇÃO E AUTONOMIA MUNICIPAL NA GESTÃO DA POLÍTICA DE SAÚDE LIMA, Luciana Leite – UNICAMP- [email protected] Resumo O texto que segue é uma reflexão sobre a atuação de um governo municipal na gestão e implementação da política de saúde. Considera-se que o legado histórico institucional da política de saúde que precedeu o Sistema Único (SUS) forjou um governo local com capacidades limitadas de gestão e implementação. Assim, para a efetivação do SUS deve-se atentar para a necessidade de desenvolver capacidades institucionais nos municípios com o intuito de habilitá-los aos novos desafios advindos da nova conformação institucional do sistema nacional de saúde. Notas Introdutórias O texto que segue é fruto de reflexão, com base em dados empíricos, sobre a gestão1 e implementação do Sistema Único de Saúde e se pretende uma contribuição para o campo de estudos de análise de políticas públicas. Interessa, aqui, refletir sobre a operacionalização, no nível municipal de governo, do processo de descentralização do sistema de saúde. Conforme defendido no Brasil, o conceito de descentralização implica autonomia dos municípios na gerência das políticas públicas. Por sua vez, para exercer autonomia os governos locais necessitam desenvolver capacidades institucionais. Assim, o foco desse artigo é a possibilidade (ou não) do exercício dessa autonomia por parte dos municípios e as capacidades institucionais necessárias para tanto. O campo de estudo é o município de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Em 1996, o município adere à forma de gestão descentralizada chamada Semiplena2, que representava o mais alto nível de descentralização dos serviços de saúde. Com isso, o município passava a gerir a totalidade da rede assistencial existente em seu território. O termo ‘gestão’ é utilizado conforme definição constante na Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde de 1996 ( NOB-SUS/1996). “[...], gestão é a atividade e a responsabilidade de dirigir um sistema de saúde (municipal, estadual ou nacional), mediante o exercício de funções de coordenação, articulação, negociação, planejamento, acompanhamento, controle, avaliação e auditoria” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1996, p. 7). 2 Conforme Norma Operacional Básica da Saúde de 1996 (NOB/SUS-96). 1 2 Cabe destacar algumas considerações conceituais relevantes em relação à perspectiva teórica que orienta o entendimento da realidade que se propõe analisar. Argumenta-se que a conformação da política de saúde após a reforma setorial é influenciada pelas características institucionais da política que a precedeu, de acordo com o referencial do neo-institucionalismo histórico. Uma breve consideração sobre a análise institucional e o enfoque da dependência de trajetória A análise institucional enfatiza a relevância das instituições na compreensão do comportamento dos atores e nos resultados das políticas. As instituições, de uma forma genérica, representam as “regras do jogo”, isto é, o contexto de ação no qual os atores políticos participantes dos processos decisórios agem (MARQUES, 1997 ; FREY, 2000). Assim, considera-se que os atores agem não somente por interesses pessoais, mas suas ações são afetadas pelo contexto institucional no qual estão inseridos. Na abordagem institucional evidencia-se, aqui, a corrente chamada neo- institucionalismo histórico, a qual enfatiza o processo histórico de emergência e desenvolvimento da política e considera o legado de políticas precedentes. As opções políticas são sempre constrangidas pelo legado da política (policy) existente, das estruturas políticas (politic) e administrativas (ORLOFF, 1988). Nessa perspectiva o desenvolvimento institucional é visto enfatizando a path dependence, ou trajetória dependente, e as conseqüências imprevistas. A trajetória dependente refere-se à influência de políticas prévias na configuração de novas políticas. Atentar para a importância da trajetória dependente significa aceitar que a capacidade de um governo de assumir novas políticas é influenciada por políticas anteriores que geraram “certas capacidades administrativas, definiram uma distribuição de recursos, incentivaram alianças e consolidaram procedimentos burocráticos” (COELHO, 1998, p. 6). Assim, a evolução de uma nova política é afetada por políticas anteriores, que geraram certas capacidades políticas e institucionais e definiram uma dada distribuição de recursos. Abarcam-se elementos de continuidade e mudança, as instituições são apreendidas em termos relacionais e os arranjos institucionais não podem ser entendidos isolados do cenário político e social no qual estão inseridos. Deve-se salientar que a relação entre instituições e o comportamento dos atores não é de determinação. As instituições fornecem o contexto para a ação, auxiliando no entendimento de por que os atores 3 fazem determinadas escolhas. Não se exclui a capacidade da agência humana, apenas enfatiza-se o papel das instituições. Entende-se que toda “rota” eficaz e institucionalizada tomada tende a se cristalizar e tornar-se coercitiva. Apontamentos sobre a trajetória da Política de Saúde no Brasil A trajetória institucional da política de saúde brasileira foi marcada por centralização decisória e financeira no governo federal, pela consolidação de um sistema de prestação de serviços no qual a atenção terciária ou complexa constituiu-se em prioridade tanto na oferta de serviços quanto no financiamento do setor e pelo desenvolvimento deste tipo de atenção sob gestão, principalmente, de empresas privadas. Neste sentido, até meados da década de 70, observava-se, no âmbito gerencial, centralização no nível federal de governo e, no âmbito operacional, a importância de organizações privadas na prestação de serviços de média e alta complexidade. No que se refere ao gerenciamento da política de saúde, a centralização decisória e financeira no governo federal, fruto da lógica administrativa dos governos autoritários, eclipsou a participação dos governos municipais. Forjando um governo local historicamente destituído de capacidades institucionais e administrativas no que se refere á formulação e financiamento da política de saúde no seu território. Em relação à prestação de serviços assistenciais, o sistema nacional de saúde caracterizou-se pelo desenvolvimento de instituições públicas e privadas que se complementavam na oferta de ações e serviços de saúde. Enquanto as ações de saúde pública e os serviços de atenção básica estiveram, tradicionalmente, a cargo do setor público, a rede assistencial hospitalar e de alta complexidade cresceu sob gestão, principalmente, de organizações privadas. Este processo foi viabilizado por incentivos governamentais3 e sem a constituição de formas eficientes de regulação destes serviços. Se por um lado tinha-se um setor privado proeminente no sistema de saúde, por outro lado, tinha-se um governo local destituído de prerrogativas de gestão. Até o final da década de 1970, as características citadas formavam parte do retrato do sistema de saúde no Brasil. No âmbito operacional, configurou-se o chamado “modelo assistencial estatal - privativista”, caracterizado por uma concepção de saúde curativa, 3 Através do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS), em 1975, o governo financiou diretamente, a juros negativos, a construção de hospitais privados e a compra de equipamentos médicos, o que ampliou significativamente a oferta de serviços deste setor (OCKÉ REIS, 2000, p. 134). 4 individual, assistencialista, viabilizado pela constituição de uma estrutura assistencial com alto grau de complexidade tecnológica, tendo o hospital como lócus central do processo de produção de serviços médicos. E, no âmbito gerencial, a proeminência do governo federal que centralizava a formulação e financiamento da política de saúde e as relações contratuais com os prestadores privados. Este padrão de gestão da política de saúde passou a ser criticado por sua ineficácia e iniqüidade. Assim, ao final dos anos 70 iniciaram os debates sobre a reforma do sistema de saúde. Um dos principais temas posto em discussão foi a centralização, considerada causadora das distorções do modelo da política setorial. Com isso, é incorporado ao debate o tema da descentralização expresso na ampliação da autonomia municipal. Na década de 80, amplia-se a luta pela democratização do Estado e consolida-se, na área da saúde, o Movimento pela Reforma Sanitária. Neste momento, “se afirma a bandeira da unificação das diferentes redes de prestação de serviços de saúde, da universalização do acesso à saúde e seu reconhecimento como direito social universal” (CARDOSO Jr, JACCOUD, 2005, p. 231). Assim, em 1988 a Constituição Federal definiu um novo arranjo federativo, com expressiva transferência de capacidade decisória, funções e recursos do governo nacional para os estados e, sobretudo, para os municípios. Além disso, aprovou a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) pautado pelos princípios da universalidade, eqüidade, integralidade e organizado de maneira descentralizada, hierarquizada e com a participação da comunidade. Tentando amenizar as distorções do modelo anterior, a participação do setor privado no SUS foi inserida de forma complementar, seguindo suas diretrizes. A descentralização do sistema de saúde promoveu a redefinição das atribuições dos governos municipais na gestão setorial e a reconfiguração das relações intergovernamentais e entre esferas de governo e provedores privados de serviços de saúde. Além disso, promoveu a transferência da rede assistencial estadual e federal para o âmbito do município. Em relação à rede hospitalar privada, foi descentralizada a autoridade para gerenciá-la, isto é, os prestadores passariam a trabalhar sob o controle da gestão municipal, inseridos no sistema público, respeitando os contratos e tetos assistenciais que deveriam ser negociados com o governo local. Gestão da política de saúde: o caso de Porto Alegre Objetivos de Gestão Municipal da Política de Saúde 5 A descentralização do sistema de saúde, concretizada por meio da municipalização, foi um processo de transferência da gestão financeira, política, administrativa, além da transferência de pessoal, equipamentos, estrutura física, ações e serviços, dos níveis federal e estadual para a esfera municipal da administração pública. Este processo representou uma significativa modificação no arranjo institucional, principalmente no que se refere ao papel das secretarias municipais de saúde na gestão do sistema. Se por um lado, existia um movimento das municipalidades pela descentralização, por outro lado, havia a preocupação com as competências técnicas, administrativas e financeiras necessárias para desempenhar as novas funções. Em relação ao padrão de atuação anterior, os gestores municipais viram suas responsabilidades aumentarem significativamente. Se antes, eram responsáveis por uma limitada rede de atenção básica própria relegada a funções de execução e prestação de serviços, agora recebiam a incumbência de gerir uma rede assistencial complexa que abarcava todos os níveis de complexidade. Se antes, suas funções estavam limitadas á execução e prestação de serviços, agora eram responsáveis pela formulação, planejamento, implementação, controle, avaliação e regulação. O objetivo de ampliar e qualificar a rede assistencial básica refere-se às prioridades do gestor, após a municipalização, relacionadas com a organização do sistema municipal de saúde e a ampliação de sua autonomia na administração da rede assistencial. A organização e o fortalecimento desta rede eram essenciais para a implantação do SUS, pois o processo de reorganização da política de saúde dependia da qualificação de uma rede básica que pudesse organizar e orientar a demanda para os hospitais. Além disso, para assumir a gestão do sistema municipal era necessário promover uma modificação na relação entre o setor privado prestador de serviços de saúde e o setor público, representado agora pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Por sua histórica autonomia frente à gestão pública e por sua relevante participação no financiamento do sistema nacional de saúde tornava-se importante expandir a capacidade de regulação e intervenção nos serviços prestados pelo setor privado. O processo de regulação do setor privado contratado, no entanto, foi permeado por dificuldades, na medida em que a expansão da gestão pública neste segmento significava modificar a forma como historicamente produziam seus serviços e se relacionavam com a esfera pública. 6 Duas questões, que aqui são analisadas separadamente, mas que constituem dimensões de uma mesma realidade e estão imbricadas, emergem nesse contexto proporcionado pelo processo descentralizador: (1) demonstrar que o município tem capacidade para gerir um sistema complexo de saúde e dar conta das necessidades de saúde de sua população, questão que se expressa nas atividades de melhoria da rede de atenção primária; e (2) empreender mecanismos de controle sobre a atuação do setor privado. Assim, a autonomia estava relacionada com duas questões. Primeiro, para incrementar a rede básica era necessário aporte financeiro, garantido pela conformação do Fundo Municipal de Saúde. Entretanto, mostrou-se necessário exercer autonomia na gerência desses recursos. Segundo, gerir o Sistema implicava gerir, também, o setor privado prestador de serviços de saúde. Limites e Possibilidades Institucionais na Gestão dos Recursos A política de saúde que precedeu a criação do Sistema Único de Saúde caracterizava-se, principalmente, no âmbito gerencial, pela centralização decisória no governo federal. Com a descentralização do sistema de saúde as prerrogativas federais de gestão foram, parcialmente, eclipsadas. No entanto, o governo federal foi o indutor do processo de descentralização e hoje é, ainda, o grande financiador dos serviços de saúde. Considera-se que a autonomia dos gestores municipais da saúde pode ser expressa, em grande parte, pela autonomia na gestão dos recursos financeiros setoriais. O texto constitucional estabeleceu que o SUS deve ser financiado com recursos das três esferas de governo. Em Porto Alegre, do total de despesas com saúde em 2003, 60,44% foi financiado com recursos de transferências federais, 0,42% com recursos estaduais e 39,14% com recursos próprios municipais (fonte: SIOPS, Ministério da Saúde). Isto aponta para a reduzida participação de transferências estaduais. Os recursos repassados para a saúde pelas três esferas de governo devem ser depositados no Fundo Municipal de Saúde (FMS). A vinculação do FMS diretamente à SMS, conforme consta na normatização do SUS, tinha por objetivo garantir recursos para a saúde e transparência na gestão financeira. No caso de Porto Alegre, e isso não é uma exceção no Brasil, embora atrelado institucionalmente à Secretaria Municipal de Saúde, o orçamento, a gestão financeira e a liberação de recursos deve ser negociada com a administração municipal central. Os órgãos internos da Prefeitura Municipal ao exercer ingerência na utilização dos recursos do Fundo Municipal de Saúde contribuem 7 para, de um lado, diminuir as incertezas do processo de tomada de decisão na medida em que desempenham um papel de controle, necessário para a gestão do município como um todo. Por outro lado, representam uma limitação ao exercício de autonomia da SMS em relação aos seus recursos e emperram o processo de desenvolvimento de capacidade gerencial e institucional. No que se refere aos recursos repassados, no período de 1998 a 2006, os recursos de transferências federais e os recursos próprios do município representaram a quase totalidade dos recursos para o financiamento do sistema de saúde em Porto Alegre. Na perspectiva dos gestores municipais, a proeminência de recursos de transferências habilita o Ministério da Saúde a ter prerrogativas no processo de definição de prioridades de alocação dos recursos no município. Isso se expressa no fato de que os recursos federais se destinam, principalmente, para o financiamento dos serviços assistenciais e são designados para três grandes grupos de serviços denominados: Assistência Hospitalar e Ambulatorial, Atenção Básica e Ações Estratégicas4. Sendo que para o primeiro grupo convergiram, em 2005, 71,41% do total de recursos transferidos. Nesse sentido pode-se dizer que há uma fragmentação no financiamento do sistema de saúde. Uma vez que os recursos transferidos pelo governo central destinamse para o pagamento de serviços assistenciais, os investimentos estariam, principalmente, vinculados aos recursos próprios municipais5. O modelo de descentralização da saúde implementado no Brasil, mesmo que reconheça a importância da autonomia do gestor local, ainda retém importantes tarefas no nível central de governo. O Ministério da Saúde, sendo o indutor do processo de descentralização, assegura para si as decisões sobre os recursos que transfere para o financiamento dos serviços assistenciais municipais. Essa situação coloca o município na dependência dos recursos próprios para alcançar o objetivo de ampliar e qualificar a rede básica. Nesse sentido, o aporte de recursos próprios apresentou progressivo crescimento no período de 1998 a 20066. Ampliando o campo de atuação do gestor local de saúde no financiamento do setor. Pôde-se observar que os gestores municipais têm limitadas possibilidades de gerir de forma autônoma os recursos para a saúde. O que se deve ao fato de os recursos de 4 Denominações do Ministério da Saúde. Deve-se salientar aqui a participação do Orçamento Participativo (OP). Neste fórum são debatidos os temas relacionados aos investimentos na rede de atenção como a construção e ampliação de postos de saúde e compra de equipamentos. 6 O crescimento no período 1998/2006 foi de 164,97%. 5 8 transferências federais serem previamente determinados para grupos de ações definidos pelo Ministério da Saúde e os recursos próprios municipais estarem comprometidos, principalmente, com despesas com pessoal. Além disso, há a gestão “compartilhada” do FMS com a área financeira da Prefeitura Municipal. No entanto, a ampliação da capacidade de ação, na gestão dos recursos da saúde, também se relaciona com as possibilidades de regular os serviços privados contratados pelo SUS. A relação com o setor privado A municipalização da saúde representou a descentralização da rede assistencial, a transferência da prerrogativa de gestão do nível federal e estadual de governo para a esfera municipal. Em relação aos serviços comprados do setor privado, a municipalização se referiu a gestão dos contratos estabelecidos com os prestadores e a regulação dos serviços. Isso significou uma modificação na atuação, tanto do gestor público, quanto do gestor privado. A importância do setor privado no sistema de saúde reside no fato de uma parte substantiva da rede hospitalar encontrar-se sob sua gerência. Os serviços de média e alta complexidade constituem os setores mais caros do sistema de saúde, por isso sua relevância quando se discute a gestão dos recursos. A capacidade de influência do setor privado contratado é anterior à municipalização da saúde e tem relação com duas questões. Uma refere-se ao padrão de gastos com saúde, relacionada com a consolidação do modelo estatal-privativista. A outra questão diz respeito ao padrão de consumo dos serviços de saúde, no qual as atividades de prevenção e promoção foram incorporadas na agenda política setorial somente no final dos anos 70. Quando efetivamente o gestor municipal assume prerrogativas de gestão, os prestadores privados já têm um espaço próprio de ação consolidado. Os gestores municipais, ao contrário, necessitam expandir sua capacidade de gestão através do fortalecimento das estruturas institucionais, regulando a prestação de serviços do setor privado e edificando uma rede de atenção básica resolutiva, efetivando assim a gestão pública no sistema de saúde. A principal atuação de resistência dos prestadores privados à ingerência municipal dizia respeito à oferta de serviços, por meio da disponibilização de serviços que trariam maiores retornos financeiros, os quais, nem sempre constituíam as necessidades da rede 9 pública. Para os gestores públicos isso representa uma significativa limitação no que diz respeito á definição de prioridades. Por outro lado, expressa a limitada capacidade municipal de interferir na lógica de oferta de serviços contratados e de rearticulá-la seguindo as diretrizes do planejamento local. Muitas vezes a relação com o setor privado era dificultada pela visão, do gestor público, de que este representava o lado “ruim” do sistema de saúde, imputando a responsabilidade pelas contradições do sistema à atuação desse segmento. Nesse sentido, em contraposição à uma atitude integradora e de conciliação, muitas vezes, o gestor público se dirigia aos prestadores privados por meio de atitudes de autoridade, usando a lei e as normas do SUS como mediadores de um conflito precedente. Nesse contexto, as tentativas dos gestores públicos municipais da saúde de ampliar seu espaço de ação na gerência dos serviços privados contratados podem ser expressas pela criação de instrumentos de regulação como a implantação da Central de Regulação de Leitos e nas ações para descentralização das autorizações de procedimentos de alto custo (APAC’s) e das autorizações de internações hospitalares (AIH’s). No entanto, estas iniciativas encontram-se em estágios incipientes. Assim, duas formas de atuação, duas lógicas de atenção, estavam institucionalmente consolidadas e, cada uma, regida por objetivos distintos que se confrontam e se tensionam. Parece que o gestor municipal não encontrou o caminho para articular a lógica de funcionamento do setor privado com as necessidades da rede local, demonstrando dificuldade em desenvolver seu papel regulador. Além disso, o fluxo do acesso aos serviços mais complexos não está racionalizado e ainda é possível acessar serviços especializados e de mais complexidade sem a mediação da rede de atenção básica, ou seja, não há controle prévio da utilização dos serviços. A capacidade de ação do gestor municipal da saúde, na regulação dos serviços contratados prestados pelo setor privado, é limitada pela posição que ocupam na operacionalização do sistema e pelo padrão histórico de autonomia, do setor, na saúde, legado da política de saúde precedente. As tentativas de ampliação do espaço dos gestores municipais da saúde e, conseqüentemente, da capacidade de regular os serviços contratados, depende da constituição de mecanismos eficazes de ingerência nestes serviços e da edificação de uma rede assistencial básica forte e resolutiva. Isto é, depende do desenvolvimento de capacidades políticas e gerenciais e do fortalecimento das instituições de saúde municipais. 10 Considerações Finais A Constituição Federal de 1988 alçou os municípios à condição de entes federados com autonomia na condução das políticas locais. Assim como, criou o Sistema Único de Saúde regido por três diretrizes organizativas: a descentralização, a integralidade na assistência, com prioridade para as ações de prevenção, e a participação da comunidade. A descentralização é a diretriz que se relaciona mais diretamente com as novas possibilidades de ação dos gestores municipais, pois promoveu a ampliação das responsabilidades dos Secretários Municipais de Saúde na gerência do sistema local, ampliando seu espaço de ação e possibilitando-lhes prerrogativas de gestão. Contudo, após dezessete anos da implantação do SUS os gestores municipais da saúde necessitam, ainda, consolidar sua autonomia e seu espaço de ação na gerência do sistema local. Isso ocorre porque, historicamente, foram limitadas as prerrogativas dos municípios na gestão do sistema de saúde, em contraste com o protagonismo do governo central. Isso se expressa, hoje, na observância da atrofia das capacidades institucionais, políticas e gerenciais dos governos municipais. Tanto as prerrogativas do governo federal na definição de prioridades de alocação dos recursos de transferências, quanto, a atuação, muitas vezes de oposição às iniciativas do gestor público municipal, do setor privado prestador de serviços de saúde, implicam limitações para a ação do gestor municipal da saúde. As estratégias dos gestores municipais recaem, principalmente, nos setores nos quais podem exercer maior autonomia, ou seja, na rede de atenção básica e nas tentativas, ainda em desenvolvimento, de regulação dos serviços privados contratados. Enfatizaram-se, aqui, duas principais limitações da autonomia dos gestores municipais de saúde na gestão do sistema local: a ingerência federal, na definição das prioridades de alocação de recursos da política de saúde local, e a influência que exercem os prestadores privados de serviços de saúde, na gestão da política setorial. Estas características legadas da política de saúde que precedeu o SUS perpassaram a mudança institucional, ocorrida ao longo das décadas de oitenta e noventa, e permeiam o contexto atual de gestão do sistema de saúde no nível municipal de governo. Referência Bibliográfica 11 CARDOSO JR., José Celso, JACCOUD, Luciana. Políticas Sociais no Brasil: Organização, Abrangência e Tensões da ação estatal. In: JACCOUD, Luciana (org.). Questão Social e Políticas Sociais no Brasil Contemporâneo. Brasília: IPEA, 2005. COELHO, Vera Schattan P. Interesses e Instituições na Política de Saúde. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 13, n. 37, p. 115-128, 1998. 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