Conferência clínica – Clinical conference Transtorno bipolar: tratando o episódio agudo e planejando a manutenção Bipolar disorder: treating the acute episode and planning the maintenance José Alberto Del Porto e Marcio Versiani Resumo O transtorno bipolar do humor é considerado uma condição psiquiátrica grave e recorrente, tendo várias vezes um curso crônico e incapacitante. Levando-se em consideração sua natureza episódica, ao tratar o episódio agudo devemos sempre planejar a terapêutica de manutenção. Este artigo apresenta o caso de uma paciente com uma forma grave de transtorno bipolar, com uma longa história de doença, no momento hospitalizada por um episódio maníaco com sintomas disfóricos. A discussão que se segue é realizada no modelo de uma conferência clínica, com o comentário de dois experts na área, abordando vários aspectos relacionados a diagnóstico, evolução e tratamento do caso. Palavras-chave: transtorno bipolar, mania, mania disfórica, tratamento, conferência de caso. Abstract Bipolar disorder is considered a severe and recurrent psychiatric condition, with a chronic and incapacitating course. Considering its episodic presentation, the treatment of an acute episode has to include the planning of the maintenance. This article presents a case of a woman with a severe form of bipolar disorder, with a long course of the illness and current hospitalization due to a maniac episode with dysphoric features. The discussion that follows was conducted using a clinical conference format, with the comments from two experts in the area focusing on several aspects of the diagnosis, outcome and treatment of the case. Key words: bipolar disorder, mania, dysphoric mania, treatment. Recebido 30-05-05 Aprovado 07-06-05 O transtorno bipolar do tipo I é caracterizado por pelo menos um episódio de mania, no qual o indivíduo apre­senta humor exaltado ou irritável associado com outros sintomas, tais como aumento da pressão para falar, do nível de energia e de atividade (American Psychiatric Association, 2000). Alguns desses pacientes também evidenciam episódios depressivos, com rebaixamento do humor e diminuição do interesse e da energia. Além do mais, episódios hipomaníacos, mistos ou sintomas psicóticos podem ocorrer, assim como sintomas subliminares como, por exemplo, uma significativa instabilidade de humor entre os episódios. Todos esses aspectos fazem com que o transtorno bipolar seja considerado um transtorno psiquiátrico grave e recorrente, tendo por vezes curso crônico e incapacitante (Hirschfeldt, 2004). O transtorno bipolar causa um grande número de conseqüências psicossociais. Pacientes com transtorno bipolar apresentam aumento da mortalidade por suicídio, homicídio e acidentes (Keck, 1998). O episódio maníaco do transtorno bipolar, em particular, está associado a elevado potencial para o indivíduo se envolver com atividades de risco para si ou para terceiros (Feldman, 2001). Impulsividade, agressividade, hipersexualidade e gastos excessivos estão entre os correlatos do comportamento maníaco associados com esse risco (Hirschfeldt, 2004). Adicionalmente, esse diagnóstico parece estar associado com conseqüências negativas em vários aspectos da vida pessoal. Assim, indivíduos com sintomas do spectrum bipolar estão mais predispostos a problemas no ambiente de trabalho e nos relacionamentos interpessoais (Hirschfeldt, 2004). Pode ocorrer progressivo comprometimento dos relacionamentos familiares ocasionando, sobrecarga aos membros da família (ou cuidadores). Sobrecarga esta que pode ser tanto de natureza objetiva – divórcios, queda da renda familiar – Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Del Porto JA) Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Versiani M) Correspondência para: José Alberto Del Porto Rua Dr. Diogo de Fari, 1.087 – conj. 409 – 04037-003 – São Paulo-SP e-mail: [email protected] Transtorno bipolar como também subjetiva – o preconceito em relação à doença, o aumento do estresse pessoal (Dore, 2001). O tratamento do transtorno bipolar impõe um conjunto de desafios tanto para o paciente quanto para o médico. Vários aspectos da doença mencionados anteriormente devem ser considerados quando iniciamos o planejamento terapêutico individual. Características associadas à psicopatologia específica, aspectos individuais, a evolução e o curso da doença, a resposta terapêutica anterior, a presença ou não de consciência de morbidade, a história de adesão ao tratamento e uma rede adequada de apoio social são algumas das variáveis a ser consideradas. Assim, após decidir o local adequado para o tratamento do paciente, o profissional deve planejar uma estratégia racional (American Psychiatric Association, 2002). É imprescindível que a abordagem terapêutica do episódio agudo leve sempre em consideração a necessidade do tratamento de manutenção. Com base nas recomendações de vários consensos e algoritmos de tratamento (American Psychiatric Association, 2002; Goodwin, 2003; Suppes, 2001), o uso do carbonato de lítio e do valproato de sódio, isolados ou em combinação, tem sido proposto como agentes de primeira escolha no tratamento da mania aguda. A associação com um agente antipsicótico é também recomendada, quando da presença de sintomas psicóticos na síndrome maniforme. Muito embora ainda incipiente, um crescente número de evidências tem servido de base para o emprego de novos agentes anticonvulsivantes (gabapentina, lamotrigina e topiramato), assim como dos chamados antipsicóticos atípicos (olanzapina, risperidona, aripiprazol, quetiapina, ziprasidona), no tratamento do transtorno bipolar. É importante ressaltar que, além do uso de psicofármacos, estratégias psicossociais (Vieta, 2004; Justo, 2004) devem ser utilizadas em conjunto na abordagem do paciente com transtorno bipolar, como a psicoeducação e abordagens familiares, entre outras. Para exemplificar as dificuldades que o clínico pode encontrar em sua prática diária com pacientes bipolares, apresentamos um caso de uma paciente que foi hospitalizada em função de um episódio maníaco grave com sintomas psicóticos. Logo após a apresentação do caso, passaremos a comentários de vários aspectos relacionados ao diagnóstico e à sua condução clínica, destacando-se o tratamento farmacológico do episódio agudo e o planejamento terapêutico futuro. Caso clínico História clínica A Sra. E. tem 62 anos, é de raça branca, divorciada, professora primária (aposentada por doença) e encontra-se sob internação psiquiátrica há quatro dias. Não formula uma queixa principal, dizendo apenas que foi trazida para a emergência por sua filha. Nos registros do setor consta que a filha da Sra. E encontrou-a em casa, sozinha, muito agitada, falando sem parar e acendendo velas por todos os cômodos, inclusive próximo a recipientes de gás. Frente ao risco potencial desses atos a filha resolveu trazê-la para avaliação psiquiátrica. Segundo informações de sua filha, a Sra. E. parece ter tido a sua primeira internação psiquiátrica por volta dos 25 anos. Nessa ocasião, começou a evidenciar uma crescente irritabilidade, falando exageradamente e passando as noites sem dormir. Com o passar do J Bras Psiquiatr 54(2): 84-88, 2005 tempo, a sua hostilidade foi se tornando crescente, principalmente com o esposo, tendo chegado a agredi-lo fisicamente. Foi internada nessa época, e permaneceu hospitalizada por aproximadamente 30 dias. Recebeu alta recuperada, sem as alterações comportamentais descritas anteriormente, e voltou a assumir plenamente as suas atividades profissionais. Após essa primeira internação, a Sra. E. teve mais outras seis, motivadas por episódios semelhantes ao anteriormente descrito. Todas as suas hospitalizações tiveram uma duração média de 15 dias a dois meses, tendo sido tratada com carbonato de lítio, carbamazepina, haloperidol, clorpromazina (isoladamente ou em associação, de acordo com vários esquemas posológicos). Numa das internações foi tratada com eletroconvulsoterapia. Não faz referência a nenhum episódio depressivo desde o início de sua doença. As “crises” da paciente foram se tornando mais graves com o passar do tempo. Passou a se comportar com se fosse muito rica, gastando todas as economias domésticas, cada vez que, apresentava um novo episódio. É importante também salientar que, entre os episódios, a paciente não seguia regularmente o tratamento de manutenção com carbonato de lítio. Abandonava o seu uso alguns meses depois da alta, pois dizia que ficava muito trêmula. No período intercrítico mantinha, segundo a sua filha, um comportamento irritável, falando demais e tecendo comentários indiscretos, geralmente de natureza sexual. Houve um agravamento do seu estado nos últimos cinco anos, o que pode estar refletido nas quatro internações que sofreu neste período. Por fim, há cerca de um ano, após a separação de seu companheiro, começou a apresentar comportamento continuamente exaltado, passando a envolver-se em brigas freqüentes com os vizinhos e também a realizar gastos exagerados. Durante esse período morou sozinha e deu praticamente todos os móveis de sua casa, assim como também as suas roupas. Nos dias anteriores à sua internação passou a exibir um comportamento mais alterado ainda. Dizia ter muito dinheiro, pois sua família era muito rica, possuidora de várias fazendas. Foi a dois supermercados e fez compras extravagantes e muito caras. Levou para casa cerca de 60 pacotes de biscoitos, inúmeras garrafas de uísque e vários produtos de beleza, dizendo que iria doá-los aos pobres. Passou a adotar um discurso místico, julgando-se dona de poderes especiais. No dia de sua internação, ao chegar à sua casa, a filha constatou que a Sra. E vinha acendendo várias velas em lugares com potencial risco de incêndio (sob a cama, perto das cortinas e de botijões de gás). A paciente é portadora de hipertensão arterial há longo tempo, fazendo uso regular de captopril 75mg/dia. Nega ter diabetes mellitus ou outras doenças degenerativas, assim como também nega já ter se submetido a cirurgias ou transfusões. A mãe da Sra. E. faleceu de causa desconhecida quando a paciente tinha 7 meses de idade. Seu pai faleceu por “problemas cardíacos” quando ela era adolescente. Possui cinco irmãos e uma irmã, todos saudáveis, não havendo história de doença mental na família. Teve duas filhas, sendo que uma delas faleceu aos 7 meses por complicações de uma gastroenterite. A Sra. E. nasceu de parto normal a termo, sem complicações. Apresentou crescimento e desenvolvimento normais. A filha da paciente diz que seus tios lembram que, quando era jovem e morava no interior, a Sra. E ficava muito agitada e falante, o que 85 Del Porto JA & Versiani M fazia com que seus pais procurassem alguns religiosos e curandeiros para acalmá-la. Sua menarca foi aos 13 anos. Teve duas gestações e dois partos, sem história de abortos. Sua menopausa ocorreu há cerca de dez anos e refere não ter tido acompanhamento ginecológico. Conheceu seu companheiro aos 20 anos e com ele viveu até cerca de um ano atrás. A filha da paciente informa que o pai separou-se da mãe após a sua última crise, quando ela cometeu várias indiscrições, chegando a relatar detalhes de sua vida sexual para todos os conhecidos da família. A Sra. E trabalhou regularmente como professora primária durante 20 anos. Está atualmente aposentada, devido à sua doença psiquiátrica e, quando está bem, passa a maior parte do tempo cuidando de sua casa. Reside em casa própria de alvenaria e com boas condições sanitárias. Desde que seu companheiro a deixou, vive sozinha. Sua filha reside no andar inferior da casa e somente a encontra no período noturno, já que trabalha durante o dia. Tinha um bom relacionamento com os vizinhos até cerca de um ano atrás. De forma complementar, o exame físico geral e, em particular, o neurológico, realizados na paciente, não revelaram nenhuma anormalidade. Exame psíquico Quando solicitada, a paciente aceitou prontamente ser entrevistada. Trajava-se com vestes próprias e limpas. Tinha os cabelos penteados e as unhas das mãos e dos pés pintadas com uma cor extremamente viva (amarelo cintilante). Sabia corretamente a data e o local onde se encontrava. Prestava atenção ao entrevistador e não parecia se distrair com os eventuais barulhos do ambiente. Dava respostas adequadas às perguntas, parecendo compreendê-las plenamente. Entretanto, falava ininterruptamente, engatando um assunto no outro, de forma que, com o tempo, afastava-se do tema inicial de sua resposta. Com um volume de voz aumentado, precisava, por vezes, ser interrompida para que outra pergunta fosse feita. Afirmava ser uma pessoa extremamente alegre, dizendo que vivia cantando. Para demonstrar, começou a cantar uma música espontaneamente. No final do seu canto começou a chorar abruptamente, dizendo estar emocionada, e logo após voltou a sorrir de novo. De súbito, começou a tecer comentários críticos sobre uma rede de televisão, dizendo no final que, após a atual internação, iria mandar uma carta para essa emissora para depor o atual presidente da República, pois não o considerava inteligente. Dizia ser uma pessoa muito rica, filha de fazendeiros, sendo possuidora de vasta fortuna. Acreditava possuir poderes especiais, conferidos por uma entidade espiritual. Com esses poderes poderia salvar as pessoas e até curá-las de doenças e, por isso, tinha que acender velas para afastar os espíritos maus. Gesticulava o tempo todo durante a entrevista, com gestos amplos, tendo se levantado da cadeira algumas vezes, mas aceitando voltar a se sentar quando solicitada. Negava ouvir sons ou vozes que outras pessoas não ouviam. Assim também negava ter tido visões ou outras alterações visuais. Não sabia porque tinha sido hospitalizada. Dizia não ter nenhum problema mental, podendo ir embora para a sua casa imediatamente. 86 Diagnóstico e evolução inicial A Sra. E. foi hospitalizada apresentando um episódio maníaco, com sintomas psicóticos, do transtorno afetivo bipolar [F31.2 (CID-10)]. Durante sua primeira semana de hospitalização foi tratada com carbonato de lítio (até 900mg/dia) associado a haloperidol até 10mg/dia. As dosagens seriadas de lítio mostraram valores ascendentes, partindo de zero e chegando ao patamar de 1mEq/L, no qual se manteve. Como, após cerca de três semanas, a paciente evidenciasse apenas uma discreta melhora, ainda mantinha a exaltação e os sintomas psicóticos da época da internação. Nesse momento foi iniciado ácido valpróico (500mg/dia) em associação ao esquema anterior. Comentários do Professor Del Porto A s alterações do humor evidenciadas pela paciente em questão parecem remontar à sua juventude, quando os pais, em função dos períodos em que ficava “agitada e falante”, a encaminharam aos curandeiros da comunidade em que vivia. A primeira internação ocorreu aos 25 anos, em decorrência de quadro maníaco que incluiu “crescente irritabilidade e hostilidade para com o esposo, com agressão física”. São relatadas posteriormente outras seis internações, das quais quatro nos últimos cinco anos (dos 57 aos 62 anos de idade). Agravouse o quadro nos últimos cinco anos, ressaltando-se a história de que, mesmo nos períodos ditos intercríticos, a paciente vinha se mantendo irritada e querelante, brigando com os vizinhos e fazendo gastos exagerados. Embora o DSM-IV restrinja em muito o conceito de mania mista (o paciente deve preencher critérios completos para episódios maníacos e depressivos, quase todos os dias, na maior parte do tempo, segundo esse manual), outros autores definem os quadros mistos de maneira mais abrangente, na esteira das concepções de Kraepelin e Weigandt. Assim, por exemplo, McElroy et al., 1992) enfatizam a importância do diagnóstico de mania disfórica, de acordo com critérios operacionais mais flexíveis, e chamam a atenção para o fato de que tais episódios são mais graves, mais comuns em mulheres, tendo início mais precoce e prognóstico pior. O conceito tem implicações terapêuticas, uma vez que a mania disfórica não responde bem aos sais de lítio, parecendo ser mais bem tratada com anticonvulsivantes (ou, eventualmente, neurolépticos atípicos) e eletroconvulsoterapia (ECT). Considerando-se a importância do humor disfórico nas crises apresentadas pela paciente (evidenciado por hostilidade e agressão ao esposo, brigas com os vizinhos e marcada irritabilidade), cabe refletir nesse caso sobre o conceito e as implicações terapêuticas do diagnóstico de mania disfórica. Depreende-se do exposto a relativa ineficácia do lítio, sendo a paciente tratada, nas suas crises, com carbamazepina, neurolépticos e até mesmo com ECT, recurso reservado para os casos geralmente resistentes às abordagens farmacológicas. A persistência de sintomas importantes nos chamados períodos intercríticos alinha-se em conformidade aos achados de Judd (2002), que em follow up de mais de 12 anos verificaram ser a doença bipolar mais propriamente crônica que episódica, em função mesmo da persistência dos sintomas entre os episódios maiores. A evolução seguiu o curso natural da doença; a paciente – à semelhança de muitos doentes crônicos – não observou os J Bras Psiquiatr 54(2): 84-88, 2005 Transtorno bipolar tratamentos recomendados para a manutenção. Seguiu-se a uma das crises a separação conjugal, ocorrência freqüente para os pacientes com transtorno bipolar. Todos esses dados convergem em assinalar que a doença bipolar é uma condição grave, muitas vezes crônica, com elevado custo para os pacientes e suas famílias; todas essas consequências parecem ainda mais severas para os quadros mistos, aqui incluída a mania disfórica. O papel da educação a respeito da doença, enfatizado por Colom et al. (2003), é da maior importância para a adesão ao tratamento e o engajamento dos familiares no processo de cura (palavra aqui utilizada no seu sentido original, de cuidado). O elevado número de episódios prévios, aliado aos sintomas disfóricos persistentes, faz pensar na utilidade de outros recursos terapêuticos que não o lítio. Nas fases de reagudização é de fato indicado o uso de neurolépticos, em especial os atípicos. Há evidências que comprovam a eficácia dos vários atípicos na mania aguda, incluídos aqui os casos de mania disfórica. Considerando-se a relativa ineficácia do lítio para esses casos, é de se pensar na possibilidade de manutenção com anticonvulsivantes, entre os quais o ácido valpróico assoma como alternativa razoável (Swann et al., 2002). Há também estudos, como o de Greil (et al. 1988), que apontam a carbamazepina como alternativa eficaz para esses casos. Por seu perfil farmacocinético e menores interações, a oxcarbazepina poderia também ser cogitada, em que pese a escassez de trabalhos específicos com esse fármaco. Os neurolépticos atípicos, em especial a olanzapina, têm sido estudados também na fase de manutenção (Tohen et al. 2004). A escolha final irá depender da resposta da paciente às alternativas propostas. Infelizmente, nem sempre é possível utilizar-se apenas um medicamento, como atestam os trabalhos patrocinados pela Stanley Foundation. De qualquer forma, a polifarmacoterapia, quando necessária, deve ser utilizada, neste e em outros casos, com a necessária cautela, atentando-se para as possíveis interações e o agravamento de efeitos colaterais. Comentários do Professor Versiani A paciente tem uma história de 37 anos de transtorno bipolar, com vários episódios de mania e sem episódios de depressão. O fato de ter trabalhado regularmente, como professora primária, durante 20 anos, mostra que por um bom tempo a doença teve uma evolução favorável, mesmo sem a adesão da paciente aos tratamentos de manutenção com estabilizadores do humor (lítio). Na internação atual é descrito um quadro de mania com “idéias deliróides”, na descrição de Karl Jaspers – idéias de riqueza, grandeza, poder (Jaspers, 1963). No DSM-IV, essas idéias são chamadas de “idéias delirantes congruentes com o humor”. O curso do pensamento está acelerado (a paciente engata uma frase na outra), mas não no grau da fuga de idéias, pois os conteúdos mantêm um encadeamento. É interessante a erupção abrupta de uma crise de choro no meio de um quadro de aparente alegria e exaltação exageradas e sua rápida reversão. Isso é muito comum em quadros de mania. As descrições de quadros de mania e de depressão em tratados e aulas de psiquiatria tendem a seguir padrões lógicos que não correspondem à realidade clínica, bem mais complexa. J Bras Psiquiatr 54(2): 84-88 , 2005 A mania é descrita como um quadro de exaltação do humor, com todos os seus componentes. Karl Jaspers já alertava que quadros “puros” de mania ou de depressão são exceção. Quadros mistos seriam a regra. Além disso, como no caso da paciente deste caso clínico, irritabilidade e agressividade são muito comuns em quadros de mania. Cassidy et al. (1998), em um dos poucos estudos fenomenológicos bem-feitos sobre mania, mostraram que a sintomatologia se agrupa em torno de cinco fatores – humor disfórico, pressão psicomotora, psicose, função hedônica aumentada e irritabilidade agressiva. Na análise da sintomatologia de uma grande amostra de pacientes com mania, o humor disfórico (depressão, ansiedade e labilidade) apareceu de modo mais claro do que o humor eufórico, ao contrário do que boa parte dos psiquiatras imagina ou do que os livros descrevem. Quanto ao tratamento da Sra. E, torna-se necessário um alerta. Ela fazia uso regular de captopril, um inibidor da enzima conversora de angiotensina (IECA), e foi-lhe prescrito lítio em dose de até 900mg/dia. Os anti-hipertensivos da classe dos IECAs inibem significativamente o clearance do lítio, podendo induzir intoxicação perigosa, mesmo com pequenas doses do sal (Finley, 1996). A associação de um IECA com o lítio só deve ser feita em casos muito raros, quando absolutamente necessária, e requer monitoramento do nível plasmático do lítio com grande freqüência. Pacientes em tratamento de hipertensão arterial requerem atenção especial quanto ao emprego do lítio. Diuréticos tiazídicos, anti-hipertensivos IECA e outros medicamentos diminuem o clearance do lítio. Além disso, a hipertensão arterial é um fator de risco para o comprometimento da função renal, o que também acontece com o lítio. A Sra. E não apresentou melhora considerável em seu quadro maníaco após três semanas de uma associação de lítio com haloperidol (10mg/dia). Foi, então, acrescentado ácido valpróico. A associação de dois estabilizadores do humor tem sido muito recomendada, tanto para o tratamento da mania como para o tratamento de manutenção do transtorno bipolar (Grof, 2003; Post, 2004), quando a monoterapia não é eficaz. A associação de dois ou mais agentes terapêuticos no tratamento da mania (estabilizadores do humor ou antipsicóticos de segunda geração) tem pouca base em evidências de ensaios clínicos controlados e é mais fundamentada em estudos de observação clínica. Por outro lado, há consenso na experiência clínica de décadas no tratamento da mania de que a eletroconvulsoterapia é o tratamento mais eficaz e de ação mais rápida. Além disso, se forem levados em conta os inúmeros efeitos indesejáveis dos medicamentos, que se somam nas associações, além de interagirem perigosamente, a eletroconvulsoterapia pode ser vista, também, como o tratamento mais seguro. Conclusão O profissional envolvido com o tratamento de pacientes apresentando um episódio maníaco do transtorno bipolar deve levar em consideração vários aspectos relacionados ao caso para poder realizar um planejamento terapêutico mais adequado. Algumas 87 Del Porto JA & Versiani M dessas características seriam a idade de aparecimento da doença, a sua forma de apresentação, as modificações na apresentação clínica com o passar do tempo e a presença de sintomas psicóticos e disfóricos. As formas mistas do transtorno bipolar tendem a ter pior resposta ao lítio quando usado como monoterapia. Agentes anticonvulsivantes como o valproato de sódio (usados isoladamente ou em conjunto com o lítio ou com os antipsicóticos atípicos) têm sido recomendados como mais eficazes nesses casos. O uso da eletroconvulsoterpia é um opção adicional em casos graves de transtorno bipolar. Agradecimento Os autores agradecem ao Dr. Leonardo Lessa Telles o fornecimento das informações sobre o caso clínico que serviu de base para a preparação deste artigo. Referências American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders, Forth Edition, Text Revised, DSM-IV. American Psychiatric Association, Washington, DC; 2000. American Psychiatric Association. Practice guidelines for the treatment of bipolar disorder (Revised). Am J Psychiatry; 159(suppl. 4): 1-50, 2002. Bowden CL. Making optimal use of combination pharmacotherapy in bipolar disorder. J Clin Psychiatry, 65(suppl.15): 21-4, 2004. Cassidy F, Forest K, Murry E, Carroll BJ. 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