Apresentação Com este terceiro número da Presença Ética, damos continuidade à reflexão sobre a temática “ética, política e emancipação humana”. Sabemos que o debate sobre ética ganha, nos últimos anos, relevância internacional, confirmada pela realização de vários eventos, tais como o Seminário Internacional sobre ética e direitos humanos, ocorrido no Rio de Janeiro, que contou com a participação de intelectuais das mais diversas áreas do conhecimento. O aprofundamento da discussão sobre ética nos faz tomar consciência da amplitude de questões que emergem no processo de desenvolvimento da sociedade capitalista e da necessidade que se torna, cada vez mais evidente, no sentido de contribuir para um processo de subversão dos valores que dão sustentabilidade à lógica do capital. Tal postura implica na constatação de que se torna ingênuo pensar numa superação da ordem do capital separando as dimensões objetivas e subjetivas da realidade. Importa considerar a dimensão de totalidade que permite uma análise da realidade concreta, do ponto de vista econômico, político e social e, dentro deles, a ética se constitui como elemento de transversalidade que perpassa todas as dimensões da atuação do homem no mundo. Nesse sentido, compete aos estudiosos da questão ética, envidar esforços no processo de produção de conhecimento sobre as contradições éticas da realidade e oferecer subsídios para a construção de estratégias políticas que, em última instância, constituam-se como elementos de elaboração de uma cultura hegemônica de enfrentamento ao capital. Vale salientar, portanto, que o objetivo mais amplo desta revista é contribuir com o processo de produção de conhecimento na área de Serviço Social, que se constitui como profissão que emerge no âmbito das contradições do modo de produção capitalista, tendo como objeto de atuação a questão social. Neste sentido, ressalte-se a contribuição da Professora Ana Elisabete Mota, ao refletir sobre as Dimensões da Prática Profissional, contextualizando as possíveis atribuições da profissão, bem como os questionamentos daí resultantes, numa perspectiva de busca de enfrentamento da questão social na atualidade e seus desafios éticos. Nesta perspectiva, deve-se levar em consideração o significado do pluralismo e a necessidade do respeito à diversidade, não apenas no interior da categoria profissional, mas, sobretudo, como necessidade posta na contemporaneidade, para que se torne possível a convivência entre os homens e entre diferentes culturas. Tal temática é abordada pela Professora Lúcia Barroco que destaca, no seu artigo, a importância da compreensão da diversidade nos seus múltiplos aspectos, enquanto condição objetiva para o respeito à pluralidade e às diferenças, no sentido específico de uma postura de tolerância como requisito básico para a mútua convivência numa sociedade de profundos contrastes. A perspectiva de relação entre singularidade-universalidade nos remete, necessariamente, a uma análise sobre a cultura política brasileira no intuito de resgatar as possibilidades de implementação das categorias/princípios constituintes do código de ética profissional e do projeto ético-politico do Serviço Social. Destaca-se, assim, a relevância de uma luta permanente pela manutenção e avanço da democracia, na sociedade brasileira, entendida como valor universal, tema tratado pela Professora Edistia Abath, que examina a configuração da Democracia no contexto da globalização. Convém salientar que esse número da revista tem o privilegio de ser lançado na comemoração dos dez anos do Código de Ética profissional do Serviço Social fato que, por si só, nos coloca a imensidade e diversidade de questões éticas que perpassam, na atualidade, o desempenho profissional do Serviço Social. O resgate histórico do processo de elaboração e implementação do Código de Ética é tema do artigo da Professora Sâmya Rodrigues que busca estabelecer a conexão entre as dimensões teológica e deontológica da ética, a partir da relação entre código de ética e projeto político-profissional. Como se sabe, a construção de um projeto ético-politico é fruto de um processo profundo de amadurecimento da categoria, o que reflete um compromisso com as lutas sociais, no sentido da emancipação humana e com o enfrentamento da questão social que se agrava no Brasil e no mundo. Neste contexto, a Professora Alexandra Mustafá busca, no seu artigo, resgatar os fundamentos filosóficos desse projeto ético-politicoprofissional, suscitando questionamentos emergentes nesse processo de elaboração coletiva, cujos desdobramentos repercutem na formação e no exercício profissional. Estes fundamentos suscitam, portanto, o tratamento de questões que perpassam a análise crítica sobre a lógica instrumental e suas implicações no formalismo e na própria concepção de direito, analisados aqui pela autora Cláudia Gomes. Seu artigo reforça a perspectiva contida no projeto ético-político do Serviço Social ao criticar algumas concepções hoje bastante referendadas sobre a ética, sobretudo aquelas derivadas do pensamento Kantiano, expressas no formalismo do tipo utilitário. A Professora Silvana Mara contextualiza e apresenta elementos sobre a nova conjuntura dos movimentos sociais, no contexto mais amplo das lutas históricas da classe trabalhadora. A autora reflete sobre a necessidade de reconhecimento e garantia de direitos à liberdade de orientação sexual, tendo em vista a legitimação de tais direitos numa perspectiva crítica ao tradicionalismo que predomina enquanto valor ainda arraigado nas sociedades contemporâneas. O artigo da Professora Marieta Koike ressalta os rebatimentos da lógica neoliberal no âmbito do ensino superior e as implicações éticas daí decorrentes. Busca apreender as novas e recorrentes demandas que a sociedade brasileira apresenta à Universidade, tendo em vista oferecer subsídios à discussão sobre a formação profissional no contexto do capitalismo. O artigo de Miriam Inácio trata, da violência contra mulheres procurando desnaturalizar esta manifestação de poder praticada contra mulheres, assentada nas relações de gênero dominantes. A autora analisa a violência de gênero numa perspectiva de totalidade, percebendo uma relação com as questões de classe e etnia. E afirma que qualquer alternativa de emancipação feminina exige consolidar “um feminismo socialista”, comprometido com a superação dos processos e relações sociais que limitam o exercício da sociabilidade. Mantendo o compromisso do GEPE, em estimular a produção de alunos (as) de iniciação cientifica do curso de graduação em Serviço Social, a revista Presença Ética abre mais uma vez um espaço para esses jovens pesquisadores. O artigo das alunas de graduação, Gabriella Araújo, Gisely Couto e Maria Rosane Martins faz uma reflexão da antieticidade da realidade em que vivem gerações de crianças e adolescentes no Brasil. Elas reconhecem os avanços jurídicos alcançados com o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, como uma “conquista ética” enfatizando a necessidade do Estado colocar em prática Políticas Sociais que garantam a efetivação de direitos pautados pelos princípios da justiça e da equidade. Com esse número da revista acreditamos reforçar a contribuição ao debate da ética, considerando que todos somos sujeitos históricos e, portanto, responsáveis tanto pela crítica contundente, quanto pela redefinição da análise histórica. Agradecemos mais uma vez à coordenação da pós-graduação em Serviço Social da UFPE, em especial à Professora Ana Elisabete Mota, no seu apoio à essa iniciativa que se materializou graças ao aporte financeiro desta pós-graduação. Agradecemos, também, aos (às) colaboradores (as); aos membros do conselho editorial e aos que contribuíram com seus artigos. Esperamos consolidar essas e novas parcerias nas próximas edições. Comissão Editorial As dimensões da prática profissional * Ana Elizabete Mota** Sabemos que nossa profissão é furto de um conjunto de contradições, presentes no desenvolvimento histórico da sociedade capitalista. Tal conjunto relaciona-se com as expressões da “questão social” e vincula-se diretamente com mecanismos: sóciopolíticos e institucionais requeridos para o seu enfrentamento. Estes mecanismos, na sociedade burguesa madura, são predominantemente acionados na esfera pública, quer seja através da ação do Estado, quer seja através de iniciativas dos sujeitos sociais. No primeiro caso (ação do Estado), o cenário é formado pelas Políticas Públicas, particularmente as denominadas sociais, e por outros meios que regulam situações sociais, e por outros meios que regulam situações e relações sociais, como é o caso dos direitos constitucionais, das leis que regulamentam as condições de trabalho, dos estatutos formadores de sujeitos de direitos (o caso do ECA, por exemplo) ou ainda, dos mecanismos de controle social. No segundo (sujeitos sociais), estão situadas as iniciativas da denominada sociedade civil. Estamos tratando aqui de um ambiente atravessado/ determinado pela existência de interesses e posições de classe, reveladores de relações/ posições de confronto, conflito e heterogeneidade política. Em ambas situações, o que está em jogo é a tensão entre as necessidades do capital e as do trabalho, cuja natureza antagônica e contraditória é originária do modo desigual como estas classes participam do processo de produção e distribuição da riqueza socialmente produzida. No plano histórico, o Serviço Social participa deste processo por força de determinações sociais muito precisas. Vejamos: constitui-se como uma profissão que tem a particularidade de intervir em situações reveladoras das profundas desigualdades geradas pelo próprio capitalismo, mas que, contraditoriamente, por força das pressões e dos confrontos daqueles que são espoliados, o capital é obrigado a administrá-las para manter a sua dominação de classe. Vale lembrar que assim o faz, através de um conjunto de mediações de ordem econômica, política, ideológica e dependendo das condições objetivas existentes, quais sejam: a força organizativa das classes subalternas, o ambiente político-democrático, a ampliação do Estado, etc. *Texto didático elaborado para a Disciplina Estágio II. Recife, julho de 2002 ** Professora doutora do Departamento de Serviço Social da UFPE; atual coordenadora da pós-graduação em Serviço Social da mesma universidade. No plano prático operativo, aquelas determinações anteriormente apontadas, adquirem materialidade na própria constituição da profissão que passa a ter uma utilidade social marcada pela sua capacidade de dar respostas ao conjunto das demandas sociais que lhe são postas. Assim, ao longo do seu desenvolvimento histórico, adquiriu a característica de ser uma profissão de natureza interventiva, possuindo uma determinada instrumentalidade, qual seja a de conhecer, explicar, propor e implementar iniciativas voltadas ao enfrentamento das desigualdades sociais, que, repito, são inerentes à constituição da sociedade capitalista. Segundo Yolanda Guerra, essa instrumentalidade da profissão é sócio-histórica e pode ser apontada em dois níveis: a) A instrumentalidade face ao projeto burguês que indica o fato da profissão pode ser convertida num instrumento a serviço do projeto reformista da burguesia, qual seja o de reproduzir as relações sociais capitalistas. b) A instrumentalidade das respostas profissionais que se expressa nas funções que desempenha na implementação de políticas sociais; no horizonte do exercício profissional vinculado ao cotidiano das classes vulnerabilizadas, interferindo no contexto social e nas condições objetivas e subjetivas de vida dos sujeitos, marcado pelo cotidiano e pelas necessidades imediatas. Isto significa dizer que o Serviço Social vincula-se com as práticas sociais que ora dão visibilidade às desigualdades sociais existentes, ora requerem meios de atendimento das necessidades delas derivadas, ou ainda, formulam, propõem e operam ações voltadas para o trato e/ou superação de situações e conjunturas que afetam as condições de vida e de trabalho daqueles que são sujeitos da desigualdade social. De igual forma, também significa reconhecer as diversas dimensões presentes na prática profissional do Serviço Social, tais quais: a dimensão política, a dimensão ética e a dimensão técnico-operativa da profissão. Estas dimensões possuem uma unidade, cujos elos que a sustentam são tanto de natureza teórica, vinculada aos fundamentos que a profissão abraça, quanto ídeo-culturais, reveladores da visão de mundo dos sujeitos profissionais. Assim, enquanto a dimensão política da prática encontra-se imbricada nos objetivos e finalidades das ações, principalmente nas possibilidades de interferir nas relações e situações geradoras das desigualdades e nos mecanismos institucionais para elas voltados; a dimensão ética reclama por princípios e valores humanos, políticos e civilizatórios; e a dimensão prático-operativa consiste na capacidade de articular objetivamente os meios disponíveis e os instrumentos de trabalho para materializar os objetivos com base nos valores. Por isso, penso que a chave para desvendar as tendências do Serviço Social nesse início de milênio é o conhecimento da própria realidade, posto que nela estão presentes os processos sociais sobre os quais a profissão intervém. Em termos gerais, significa apreender os processos societários em curso e os modos e meios através dos quais eles afetam o conjunto da vida social, em cada realidade. Estou defendendo a idéia de que as tendências da profissão dependem da realidade objetiva e da capacidade que tenhamos de decodificá-la criticamente, abrindo frentes de intervenção social e propondo iniciativas que incidam sobre os perversos mecanismos de reprodução das desigualdades sociais. Aqui estamos pensando nos processos que respondem por transformações na esfera do trabalho, da ação das classes sociais, do Estado, da cultura e da ideologia. Diria ainda que, em função da natureza da ação profissional, o Serviço Social é instado a fazer recorrências e propostas que tensionem os mecanismos de reprodução das desigualdades sociais, materializadas (estas últimas) na exclusão econômica, política, social e cultural e no “desmonte” a que a sociedade brasileira vem sendo submetida em matéria de direitos sociais e de políticas publicas, por exemplo. Nesta direção talvez estejam em curso duas tendências básicas no exercício profissional: a da naturalização da ordem vigente, via incorporação do discurso e das práticas que “mistificam publicamente” o combate à pobreza através do neo-solidarismo, da regressão das políticas públicas em prol da criação de novos nichos de mercado e do fim do trabalho socialmente protegido em função do “empreendedorismo” individual, para falar somente em coisas básicas; a outra posição, consiste no tato crítico e qualificado das “exigências da modernidade”, pautado num conjunto de princípios éticos e políticos presentes no ideário da construção de uma nova sociedade. Esta segunda posição, longe de qualquer idealismo romântico vem impondo aos profissionais a necessidade de flexibilizar, rever, propor e criar novos modos e meios de intervenção que estejam organicamente articulados ao atual movimento da sociedade. Movimento este que se encontra eivado de desafios e dificuldades derivadas do que anteriormente chamei de mistificação pública do tratamento dispensado às desigualdades sociais no Brasil deste final de século. Aqui penso numa idéia gramsciana para partilhar as angustias profissionais dos que querem construir uma nova ordem: é preciso não ter medo de ousar porque a firmeza dos princípios determina a flexibilidade das estratégias. Quais as principais mudanças observadas na profissão nos últimos anos? Muitas têm sido as mudanças observadas. O primeiro quesito diz respeito às profundas mudanças no mercado de trabalho. Não acho que o mercado de trabalho seja o único determinante das mudanças, mas é um indicador legitimo e necessário para verificar a legitimação social da profissão, isto é, o conjunto das exigências e demandas reveladoras da utilidade social do Serviço Social. Também apontam as condições de trabalho dos profissionais e as competências que estão sendo exigidas do profissional. Neste ambiente, noto algumas mudanças significativas, dentre elas, a migração dos postos de trabalho do setor público para as organizações não governamentais, das empresas para as fundações empresariais, assim como a emergência dos chamados serviços voluntários que passam a requerer alguma qualificação técnica na elaboração de projetos, planos de trabalhos, etc. Estes são apenas alguns sinais mais evidentes. Eles mostram apenas a superfície das mudanças e requerem uma análise mais acurada da dinâmica social que lhes é subjacente. Já em relação às condições do trabalho profissional, penso que os Assistentes Sociais como a maioria dos trabalhadores brasileiros, passam por grandes dificuldades, seja na condição de servidores públicos, seja na condição de trabalhadores precários, sem segurança no trabalho como é o caso das ONGs que contratam profissionais por projeto, seja nos chamados trabalhos temporários, como é o caso dos professores substitutos, ou mesmo em algumas áreas como ocorreu em Pernambuco na Secretaria da Justiça. Estas condições de trabalho, por vezes, são instrumentos de desqualificação profissional porque o profissional não tem condições de fazer proposições, está ali como um mero executor de um projeto, sabe da vulnerabilidade da sua condição profissional, etc. Isso para não falar dos baixos salários que inviabilizam o acesso a livros, revistas, cursos e outras atividades necessárias à sua atualização. No âmbito da formação profissional, em sentido ampliado, também estamos observando sinais de mudanças que se vinculam a esta conjuntura do “mundo do trabalho” dos Assistentes Sociais. Há uma pressão muito grande para que a nossa formação deixe de ser crítica e generalista para adequar-se à cultura pragmática e efêmera da pós-modernidade. O saber técnico especializado – necessário a qualquer atividade – está se restringindo ao “saber-fazer”, à formação de competências especificas e conjunturalmente necessárias para quem nos contrata. Nada tenho contra formar especialistas; a minha questão é não perder a perspectiva da totalidade, é permitir que sejamos bons e argutos críticos da realidade. Acho que os Assistentes Sociais têm obrigação de ter opinião e posição sobre o que ocorre no nosso ambiente. Ainda hoje estava pensando: diante do escândalo das subvenções na Assembléia Legislativa, nenhum de nós escreveu no jornal ou deu qualquer depoimento sobre assistencialismo, clientelismo, assistência, etc. Isso nos qualificaria como trabalhadores, intelectuais e profissionais. Precisamos publicizar nossos pontos de vista, pensar e aproveitar seriamente o potencial que temos para reproduzir massa crítica, explorar nossa experiência. Estamos, ora procurando o que não temos e perdendo o espaço que conquistamos nos anos 80; ora reféns da passivização dessa ordem que quer desmontar nossos princípios e valores profissionais e sociais. Neste sentido penso que estamos num momento decisivo: ou mobilizamos nossas forças para evitar que esta profissão se transforme num mero exercício técnico-aplicado, ou enfrentamos o desafio de sermos trabalhadores sociais com capacidade de intervir qualificadamente nos mecanismos de enfrentamento e superação das desigualdades sociais no país. É preciso ousar intelectual e politicamente com os meios de que dispomos. O CRESS é um deles. Referências Bibliográficas GUERRA, Yolanda. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo, Cortez, 1995. Ética, direitos humanos e diversidade * Maria Lúcia Silva Barroco** Diversidade e direito à diferença A diversidade é um tema que envolve profissionais, pesquisadores e militantes políticos nos debates que se realizam no campo dos direitos humanos. Nesse pequeno ensaio, sem nenhuma pretensão de aprofundar uma temática tão complexa, nos propomos a pensá-la como objeto de reflexão ética. Como componente da realidade social, a diversidade está presente nas diferentes culturas, raças, etnias, gerações, formas de vida, escolhas, valores, concepções de mundo, crenças, representações simbólicas, enfim, nas particularidades do conjunto de expressões, capacidades e necessidades humanas historicamente desenvolvidas. Assim, é elemento constitutivo do gênero humano e afirmação de suas peculiaridades naturais e sócio-culturais. As identidades que unem determinados grupos sociais, diferenciando-os dos outros, não deveriam resultar em relações de exclusão, desigualdade, discriminações e preconceitos. Quando isso ocorre é porque suas diferenças não são aceitas socialmente e, neste caso, estamos entrando no campo das questões de ordem ética e política, espaço da luta pelo reconhecimento do direito à diferença, uma das dimensões dos direitos humanos. Em torno da problemática da discriminação e do preconceito, articulam-se determinados valores como a tolerância e a alteridade. Tais valores adquirem uma dimensão ético-política mais abrangente, pois implicam na liberdade e na equidade. Tolerância e alteridade, mais do que valores, são mediações estabelecidas nas relações entre os homens, donde sua historicidade. Podemos constatar, recorrendo à história, que a defesa da tolerância pertence às conquistas da sociedade moderna; perpassa pela reivindicação da tolerância religiosa, com Locke, pela tolerância política, com Voltaire e os ilustrados, no século XVIII e por Stuart Mill e Bentham, no século XIX (Vázquez: 1999). Costuma-se definir tolerância, em geral, como uma relação social que supõe a existência de alguma diferença aceita como um direito: o direito de ser diferente. * Texto elaborado para a pesquisa “Ética e direitos humanos: unidade e diversidade do Fórum Social Mundial” que integra o Núcleo de Estudos e Pesquisa em Ética e Direitos Humanos (NEPEDH) do Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social PUC-SP e do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre ética do Programa de Pós-graduação em Serviço Social (GEPE) da UFPE. ** Coordenadora do NEPEDH. Alguns autores tratam de dois tipos de tolerância: a positiva e a negativa (Exteberria: 2001). A positiva, quando a diferença nos afeta de modo que não possamos ficar indiferentes a ela (Vázquez, 1999); a negativa, quando não a aceitamos, mas a “toleramos” com indiferença. Por outro lado, Jacquard chama a atenção para não confundirmos respeito com tolerância uma vez que: “A tolerância é uma atitude muito ambígua (Para isso, existem casas..., dizia Claudel). Tolerar é julgar-se em condições de dominar e de julgar, isto é, é ter de si mesmo um conceito o bastante positivo para aceitar o outro com todos os seus defeitos” (Jacquard, 1998:04). Jacquard está propondo substituir a tolerância pela alteridade: “É necessário tomar um rumo completamente diferente e tomar consciência da contribuição dos outros, que se torna tanto mais rica quanto maior for a diferença em relação consigo mesmo” (Idem, 04). A alteridade, como o respeito ao outro (que é diferente), complementa a fundamentação pertinente à defesa da diversidade como direito. “A valorização da alteridade é também uma crítica ao individualismo burguês, ou seja, à idéia de que respeitar o outro é entender que “o limite da nossa liberdade acaba onde começa a do outro”, portanto, uma liberdade “sem o outro”. A tolerância positiva, assim como a alteridade, implica na liberdade e na equidade porque exige, como vimos, uma aceitação consciente do diferente; uma aceitação que vê o outro como sujeito livre e que respeita a sua decisão embora ela não seja compartilhada. Não existe indiferença, nem isolamento (como na liberdade liberal do tipo “cada um na sua”, o que representa uma total indiferença), portanto, a relação social não é rompida, existe uma reciprocidade mediada pela diferença, pela aceitação e pela alteridade. Até aqui falamos da diversidade como valor positivo, donde sua relação com a alteridade, a liberdade, a equidade e a tolerância como direito à diferença. No entanto, a ética não trata apenas do “bem”, ou do que no campo dos valores entendemos por valores positivos. A negação de todos esses valores, isto é, a intolerância, o desrespeito ao outro, a defesa da desigualdade e da não liberdade são também temas da reflexão ética, uma vez que se trata de compreender que o movimento real entre a afirmação e a negação dos valores é um movimento muito mais complexo do que parece. Na intolerância, também ocorre uma relação social em que um dos sujeitos (ou um grupo, uma raça, etc) é diferente ou faz algo diferente e isso nos atinge. Não ficamos indiferentes, porém nossa reação é oposta à da tolerância positiva; aqui, diante das diferenças, assumimos atitudes destrutivas, fanáticas, racistas. A diferença é negada; mais do que isso: buscamos destruí-la, excluir a identidade do outro, através da afirmação da nossa tomada como a única válida (Vasquez, 1999). Historicamente, a intolerância percorre a trajetória da humanidade, destacandose a religiosa e a racial como dois grandes marcos da opressão e injustiça vinculados à questão da diversidade e aos direitos humanos. Também sabemos que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que foi elaborada após a II Guerra Mundial, teve como uma de suas finalidades tentar evitar que se repetissem atrocidades a exemplo do Nazismo. Entretanto, mesmo que a partir deste marco muito já se tenha avançado em termos político-jurídicos internacionais, a história da intolerância continua a ser escrita, em todos o mundo. Na prática, o que podemos constatar, sem dúvida, é que os mecanismos de denúncia de violações aos direitos humanos, a organização crescente dos movimentos sociais, com destaque para os de mulheres, negros e homossexuais, o uso da tecnologia virtual e o fortalecimento de movimentos “globais” anticapitalistas, como os do Fórum Social Mundial, têm contribuído para um enfrentamento mais dinâmico, no sentido de sua visibilidade e agilidade social no enfrentamento das questões que estamos analisando. Uma questão ética e política: a tolerância tem limites? Destacamos, anteriormente, que a discussão sobre a diversidade não é simples. Tentaremos traçar novas linhas de sua complexidade através da polêmica que envolve a relação entre tolerância e intolerância sob o ponto de vista da ética e da política, no âmbito da defesa dos direitos humanos. Assinalamos que a tolerância (respeito à diferença) é um valor positivo quando promove o desenvolvimento de capacidades e vínculos essenciais do homem (como a alteridade, que é sinônimo de reciprocidade e um vínculo de sociabilidade, e a liberdade que é o valor ético-político essencial). Por outro lado, tomamos a intolerância como um desvalor, por negar aquelas mediações. Não podemos esquecer que tais relações e vínculos – aqui tratados abstratamente – são sociais e historicamente construídos. Teoricamente, adotamos a seguinte medida de valor para considerarmos uma ação eticamente positiva: São de valor positivo as relações, os produtos, as ações, as idéias sociais que fornecem aos homens maiores possibilidades de objetivação, que integram sua sociabilidade, que configuram mais universalmente sua consciência e que aumentam sua liberdade social. Consideramos tudo aquilo que impede ou obstaculiza esses processos como negativo, ainda que a maior parte da sociedade empreste-lhe um valor positivo (Heller, 1972:78). Nesse sentido, as ações que estariam impedindo a objetivação da liberdade, da sociabilidade, da consciência e universalidade deveriam ser toleradas? Quando está em discussão a diversidade cultural, trata-se de indagar sobre a abrangência e validade do particular e do universal em termos dos valores éticos e das decisões e implicações políticas que permeiam as diversas práticas culturais da humanidade, ou seja, perguntamos se é possível e mesmo desejável sob o ponto de vista ético-político que sejamos tolerantes de forma absoluta. Historicamente, no campo da antropologia cultural, encontramos posicionamentos que defendem o ponto de vista do chamado relativismo cultural, que baseado nos princípios da alteridade e da tolerância privilegiam o respeito à indiferença; à particularidade. Para Diniz (2001): O reconhecimento da existência do humano no plural, da diversidade cultural da humanidade, fez com que a perspectiva do relativismo cultural – como uma ferramenta básica da antropologia – se consolidasse. O problema não parece ser, no entanto, o relativismo cultural como uma perspectiva metodológica de apreensão da realidade, mas o relativismo como uma ideologia que justifica as diferenças em termos culturais, ou seja, que assume as premissas culturais como verdadeiras (Idem: 60). Assim, Débora Diniz chama a atenção para a gênese desse movimento: a recusa da dominação imperialista, o questionamento acerca dos limites dos padrões universais. Como ela mesma afirma, o relativismo cultural pergunta: Sobre quem teria a autoridade do tribunal de julgamento da diversidade, ou seja, de quem é a voz do tribunal acima das contingências culturais? Em outras palavras, quem vai ditar a verdade para a humanidade sobre o que seja ou não um padrão de cultura válido? Quem vai determinar a validade ou a legitimidade de uma crença? (idem). As questões mais polêmicas, no âmbito desta discussão, referem-se a práticas culturais que representam – para os movimentos de direitos humanos – e para parte da humanidade, atos de violência inadmissíveis. Podemos citar como exemplos de práticas culturais: o genocídio, o etnocídio, o racismo e várias práticas culturais relativas à discriminação contra à mulher, dentre elas a da mutilação sexual. Isso sem contar a lista interminável de violações que consta dos documentos de direitos humanos e que não se restringe a práticas culturais, tais como o trabalho escravo, a tortura, o terrorismo de estado, a guerra, a fome, a prostituição infantil, etc. Por isso, é importante salientar que embora os exemplos a respeito das práticas culturais de violação aos direitos humanos acabem recaindo sobre os países não ocidentais (como é o exemplo das mulheres nos países mulçumanos), isso não significa afirmar que a civilização ocidental seja um exemplo de não violação. A medida é dada pelas conquistas da humanidade, em termos genéricos e históricos, levando em conta o que a humanidade e cada segmento específico já conseguiu avançar em termos de conquistas dessas questões, sempre tendo por medida a liberdade, a sociabilidade, a universalidade, isto é, os atributos e capacidades que ampliam as possibilidades do homem e que estão objetivados em documentos, leis, declarações, em âmbito nacional e internacional, enquanto produto de lutas por direitos. Acompanhamos, recentemente, através da mídia, o caso de uma africana condenada por leis muçulmanas à morte por lapidação1, por um crime de adultério, apesar de estar separada do marido ao ter concebido sua filha. Para a opinião pública mundial, tais práticas não deveriam mais existir; porém sabemos que esta é apenas uma dentre inúmeras questões que envolvem, interesses políticos, religiosos, culturais, mas também comprometem ativistas dos direitos humanos e estudiosos a se posicionarem frente a ela. Perguntamos se em nome do respeito à diferença devemos concordar com essa condenação; ou, então, se devemos nos omitir. Segundo Combesque (19998), Em vinte países africanos e também em certas regiões da Ásia e do Médio Oriente, mais de 102 milhões de mulheres são vitimas de mutilações sexuais. Todos os anos a excisão e/a infibulação são praticadas em cerca de dois milhões de adolescentes (Idem: 114). As conseqüências da mutilação não se resumem à perda do prazer, “As conseqüências destes atos bárbaros na sua saúde dão muito graves e multiplos, por vezes mortais, durante ou após a ‘operação’, realizada como auxílio de uma lâmina de barba, de uma agulha ou linha, sem anestesia...” (Idem) Diniz (2001), que pesquisa a questão da mutilação genital feminina; afirma que a prática é utilizada em 83 países e justificada sob as mais diferentes formas. “Na Etiópia, por exemplo, 98% das mulheres são mutiladas pelo sistema de mutilação faraônica [...] que extrai toda a genitália feminina” (Idem: 59). Segundo ela, as diferenças no trato da questão já aparecem na qualificação dada ao ato de mutilação: para os antropólogos é um ritual; para os movimentos de mulheres, um ato de violência. Mas embora com qualificações diferentes, a questão que se coloca, diz ela, é a mesma: “quais valores culturais justificam tal ato?” (Idem). 1 Trata-se de Amina, condenada à morte, com apedrejamento, na Nigéria, divulgado amplamente pela Anistia Internacional. O que podemos observar é que a qualificação da prática (ritual ou ato de violência) interfere inclusive na caracterização da violação, ou seja, podemos ou devemos julgar um ato de violência contra as mulheres, mas julgar um ritual já é algo muito mais ameno, menos caracterizado como objeto de julgamento ético-político. Ainda para Diniz, A cirurgia de mutilação feminina é um dos grandes ícones de uma geração de antropólogos que vem passando os limites da cultura, da tortura e dos valores universais. O curioso é que a grande maioria dos antropólogos procura antes justificar a mutilação da mesma forma que as culturas o fazem, do que sair à procura de mecanismos de julgamento para a diversidade cultural (2001: 60). Observamos a imbricação entre essa discussão e a ética, uma vez que o que está em pauta são as ações julgadas ou não a partir de valores ético-morais com implicações políticas, pois o não julgamento não significa uma ausência de valores, mas sim uma concepção de neutralidade ética e política, uma vez que não contribui para o avanço da autonomia das mulheres, para o fortalecimento de sua emancipação. O eixo da discussão posta aponta para a indagação acerca da validade universal dos valores e normas culturais relativas a direitos. Como vimos, para as correntes do relativismo cultural a resposta é negativa. Na base das teorias que defendem o relativismo cultural também observamos a presença de suportes ético-filosóficos como o relativismo moral que defende a existência de vários códigos morais na sociedade; cada qual com seu valor relativo e as tendências do chamado relativismo ético; correntes que se aproximam do irracionalismo, defendendo a idéia de que “não é possível chegar a um acordo racional universal na discussão dos princípios éticos, e, portanto, à impossibilidade de discernir, entre juízos morais em conflito, qual é o correto” (Etxberria, 2002: 256). Resgatando o caráter universal da ética As questões já assinaladas recolocam a questão inicialmente proposta: devemos tolerar tudo? Qual é o limite da tolerância? Ao colocar um limite estaríamos necessariamente caindo no pólo oposto – o da intolerância? Não temos todas as respostas, apenas nos propomos a ensaiar algumas reflexões, partindo de alguns supostos buscados na ética, de acordo com o referencial que tem seus fundamentos na ontologia social de Marx. A ética, entendida como uma ação prática consciente, que deriva de uma escolha racional entre alternativas e orienta-se por valores que buscam objetivar algo que se considera “valoroso”, “bom”, “justo”, contêm algumas mediações essenciais: a razão, as alternativas, a consciência, o projeto que queremos realizar, os valores éticos, a responsabilidade em face das implicações objetivas da ação para os outros homens, para a sociedade. A questão da responsabilidade é, pois, central na ação ética, uma vez que ela dá sentido à sociabilidade e à liberdade inerente às escolhas2. Ontologicamente considerada, a ética é também uma atividade que permite ao indivíduo sair de sua singularidade para estabelecer uma conexão consciente com o humano genérico; logo, é uma atividade universalizante, mesmo sendo realizada por um indivíduo particular. Nesse sentido, a ética se põe como mediação entre todas as esferas sociais, inclusive da esfera moral, campo institucionalizado de normas e deveres orientadores do comportamento dos indivíduos sociais e campo propício à reprodução de valores e deveres assimilados espontaneamente pela tradição, pela repetição, pelo hábito, ou seja, de forma acrítica, levando à reprodução da alienação no campo do comportamento ético-moral. A ética é uma capacidade humana fundada na liberdade de escolha, mas a autonomia implica na racionalidade crítica capaz de ultrapassar o nível do que é repetido espontaneamente para recriar a vida em patamares cada vez mais criativos e livres. A ética tem um caráter universalizante porque sua razão de ser é exatamente a de estabelecer a conexão entre a singularidade e a genericidade do homem. Para Marx, a liberdade consiste na participação dos indivíduos sociais na riqueza humano-genérica construída historicamente: “a humanidade será livre quando todo homem particular possa participar conscientemente na realização da essência do gênero humano e realizar os valores genéricos em sua própria vida, em todos os seus aspectos” (Marx, segundo Heller, 1977: 217). 2 Em nossa sociedade, nem todas as escolhas deveriam ser julgadas moralmente; muitas se referem a opções pessoais cujo resultado não está impedindo a manifestação das capacidades humanas. São escolhas, como por exemplo, a orientação sexual, o modo de se vestir ou de se comportar, ou seja, questões que só são tidas como morais pela presença do preconceito, típico do moralismo. Por riqueza humana, Marx concebe a universalidade das necessidades e capacidades, o domínio do homem sobre a natureza, a explicitação absoluta de suas faculdades criativas. Em suas palavras3: “Uma explicitação na qual o homem não se reproduz numa dimensão determinada, mas produz sua própria totalidade(...) Na qual não busca conservar-se como algo que deveio, mas que se põe no movimento absoluto do devir...” (Marx, 1971, I, 372). Pelo exposto, podemos considerar que a diversidade, tomada como a explicitação dos “valores humano-genéricos em todos os seus aspectos”, como a expressão da manifestação da criatividade humana, da multiplicidade de capacidades e possibilidades do ser social é, como afirmamos inicialmente algo valoroso porque é elemento de explicitação do próprio homem, como ser humano-genérico, rico em, necessidades e formas de satisfação. Ao mesmo tempo, a existência concreta de relações mediadas tanto pela tolerância como pela intolerância vem nos mostrar que no processo de desenvolvimento do homem – marcado pela existência da alienação, que coincide com o surgimento da sociedade de classes – ocorrem, simultaneamente, o desenvolvimento de conquistas do gênero humano na direção de sua emancipação e a sua negação, por parte dos indivíduos sociais, grupos e extratos sociais. De acordo com esses pressupostos, manifestações culturais que representam atos de violência que, em termos das conquistas humano-genéricas emancipatórias já foram negadas, não podem ser toleradas, inclusive porque representam formas de alienação , cuja superação significa a apropriação de conquistas já efetuadas em termos do desenvolvimento humano genérico e significa, também, em termos da liberdade, a superação, a ruptura com os obstáculos e impedimentos que se colocam como limites à plena manifestação dos indivíduos sociais. Isso posto, entendemos que o desenvolvimento da história no horizonte da emancipação humana encontra na relação entre as particularidade que constituem as diversas culturas e modos de ser humanos e a universalidade de suas conquistas na direção da liberdade, a possibilidade de intercambio gerador da riqueza humana historicamente construída. ”Em todas as formas, ela [ a riqueza representada pelo valor ] se apresenta sob a forma objetiva, quer se trate de uma coisa ou de uma relação mediatizada por uma coisa, que se encontra fora do indivíduo e casualmente a seu lado[...] Mas, in fact, uma vez superada a limitada forma burguesa, o que é a riqueza se não a universalidade dos carecimentos, das capacidades, das fruições, das forças produtivas, etc., dos indivíduos, criada no intercâmbio universal? O que é a riqueza se não o pleno desenvolvimento do domínio do homem sobre as forças da natureza, tanto sobre as chamadas da natureza, quanto sobre as da sua própria natureza? O que é a riqueza se não a explicitação absoluta de suas faculdades criativas, sem outro pressuposto além do desenvolvimento histórico anterior, que torna finalidade em si mesma essa totalidade do desenvolvimento, ou seja, do desenvolvimento de todas as forças humanas enquanto tais, não avaliadas segundo um metro já dado? ( Marx, 1971, I, 372) 3 E a ética, pelo seu caráter universalizante e valorativo, pode fornecer uma medida para o julgamento de valor em face de alternativas que se referem à diversidade. Dessa forma, tanto a absolutização do particular como do universal, sem levar em conta sua historicidade e, como tal, a presença de relações contraditoriamente marcadas pela alienação e por possibilidades de sua superação levará a soluções abstratas e unilaterais. Vimos que para o relativismo ético não é possível, diante de vários códigos morais em conflito, chegar a um acordo racional, o que significa deixar de atribuir ao sujeito ético o uso da razão, a capacidade de escolha e a responsabilidade pelas escolhas, que, na verdade, deixa de ser um sujeito com autonomia, fundamento ontológico da capacidade ética do ser social. Ao mesmo tempo, nega-se a possibilidade de consensos, princípio político democrático produzido pelo confronto entre diferentes. No limite, caímos no niilismo ético-político, pois se tudo é relativo nada tem valor e se não é possível consensos também deixa de ter sentido o debate plural. Assinalamos, também, que a crítica do relativismo cultural fundamenta-se basicamente na negação do imperialismo cultural ocidental e na indagação em face da seguinte questão: quem teria a responsabilidade de julgar a diversidade? Essa questão já implica afirmar que qualquer cultura que se dispuser a julgar terá um ponto de vista particular. Se refletirmos sobre o significado ideológico destes questionamentos, vemos que eles têm sua razão de ser uma vez que, de fato, a cultura dos direitos humanos que representa a base dos documentos internacionais e que servem de referência para as violações, é um produto histórico da civilização ocidental; portanto, ideologicamente marcada por uma determinada forma de sociedade, de cultura e de valores. Entretanto, a questão é muito mais complexa, pois sua negação, em nome da recusa à dominação imperialista, tem seus desdobramentos, com implicações éticas e políticas que podem produzir um resultado objetivo oposto ao desejado pela sua crítica. Nos parece que o enfrentamento dessa problemática não se resolve pelo relativismo, pelo já exposto, mas o inverso – a defesa do universal – também implica em muitas mediações. Por um lado, não podemos aceitar, a priori, que as Declarações de Direitos Humanos, cujos fundamentos correspondam a uma determinada cultura (ocidental, cristã, liberal, capitalista), sejam tomadas como um modelo ético0político perfeito. Sua validade sempre deverá ser mediada pelo nível de incorporação das diferentes culturas e de uma construção que estabeleça mediações entre o particular e o humano genérico, através do debate dos movimentos mundialmente articulados e representativos de todas as diversidades existentes na vida social e tendo por horizonte a emancipação humana, o que supõe a superação desse modelo. No âmbito da defesa dos direitos, a mediação entre o particular e o universal deve ser buscada pela via democrática, através do debate plural que comporte a diversidade, mas que tenha um objetivo comum: preservar as particularidades, elegendo alguns princípios universais que garantam um consenso em torno de valores éticos políticos. Esse universal – tendo por parâmetros as conquistas emancipatórias – seria então o limite entre o tolerável e o intolerável, o limite entre o que fere e anula as identidades particulares, ou seja, os valores e princípios que hoje são utilizados para julgar as violações contra os direitos humanos e outros que forem criados pelos homens, pois para o humano, a medida de valor é o próprio homem. Por isso, a questão do pluralismo, assim como a da diversidade, não significa ausência de conflitos e interesses, mas sim o posicionamento diante deles, a possibilidade de todos se manifestarem, a responsabilidade ética de tomar uma posição diante do que não concordamos e a condição política de lutar pela hegemonia do projeto que defendemos. Nesse sentido, nosso Código de ética é bem claro quando, em seus princípios afirma que os assistentes sociais elegem como princípios fundamentais, a liberdade, a democracia, a equidade, a justiça social, o empenho na eliminação de todas as formas de preconceito e de discriminação por questões de classe social, gênero, etnia, religião, respeito à diversidade, à discussão das diferenças e a garantia do pluralismo, através do respeito às correntes profissionais democráticas existentes... De forma explícita, nosso Código indica uma concepção de diversidade e de tolerância, cujo limite é colocado em torno do campo democrático e da negação daqueles valores cujas ações e manifestações produzam o racismo, o preconceito, a discriminação, enfim, a negação dos valores considerados positivos. Esse posicionamento, que vem sendo conquistado em várias dimensões do Serviço Social brasileiro, há pelo menos três décadas, evidencia um amadurecimento teórico – metodológico e ético-político que – se por um lado precisa ser constantemente realimentado para não se perder – por outro, nos coloca como interlocutores privilegiados no campo da defesa dos direitos, em suas várias configurações. Referências Bibliográficas BARROCO, Maria Lúcia Silva. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. São Paulo, Cortez, 2001. CFESS. Código de Ética Profissional do Assistente Social, CFESS, Brasília, 1993. COMBESQUE, Marie Agnès. Introdução aos direitos do homem. Portugal, Lisboa, Terramar, 1998. DINIZ, Débora. Direitos Universais, valores culturais. In Novaes, Regiva (Org.), Direitos Humanos: temas e perspectivas, Rio de Janeiro, Mauad, 2001. ETXBERRIA, Xabier. Etica de la diferencia. Espanha, Bilbao, Universidad de Deusto, 2001. HELLER, Agnes. O quotidiano e a história. 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Na atualidade, diversas configurações políticas, são chamadas de democracia, embora, ao serem analisadas, mesmo sob o mero prisma da etimologia da palavra, não resistem a questionamentos amplos e profundos, sobre as formas que imprimem àquelas estruturas que chamam de democracia. Held destaca o fato de que, Sob a epiderme do triunfo da democracia, surge um aparente paradoxo: ao mesmo tempo em que o “governo do povo” ganha novos defensores, a própria eficácia de democracia, como forma nacional de organização política, pode ser colocada em dúvida. As nações proclamam-se democráticas, no momento exato em que as mudanças, no âmbito da ordem internacional comprometem a possibilidade de um Estado-nação democrático, independente (Held, 1991: 91). Constata-se, aqui, um novo aspecto a ser considerado, tendo em vista as premissas subjacentes à doutrina da democracia – tanto em sua versão liberal, como na chamada “radical”. As democracias podem ser tratadas, essencialmente, como unidades auto-suficientes; e as democracias são, claramente, separadas umas das outras. Ademais as mudanças, no âmbito de uma democracia, dizem respeito às estruturas internas e à dinâmica das sociedades democráticas nacionais; o que a política expressa, em última analise, é a interação de forças, operando no plano do Estado-nação (Idem). * Professora da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, doutoranda do Programa de PósGraduação em Serviço Social da UFPE e pesquisadora do GEPE/UFPE. E-mail: [email protected] A democracia liberal, no dizer de Held, provocou um enorme crescimento das burocracias públicas, congestionando o espaço da iniciativa privada e do exercício da responsabilidade individual. Nessa perspectiva, observou-se a preocupação da esquerda como crescimento da congruência entre os representantes políticos e os cidadãos ordinários, tendo em vista a responsabilidade política e democrática do Estado. A esquerda, não se alinhou à idéia de que o Estado é uma autoridade independente e deve manter seu poder circunscrito, em relação à cidadania – proposição que corresponde à auto-imagem ou à ideologia do Estado Moderno. Segundo Mcpherson(1985) e Patewrman (1970), o Estado se encontra, inexoravelmente, comprometido com a manutenção e reprodução das desigualdades da vida cotidiana. Em diversas formas de democracia participativa e em concepções republicanas de cidadania, na busca de maior democratização do Estado e da Sociedade Civil, a ênfase recai na obrigação de levar o processo político a uma maior responsabilidade com grupos e indivíduos e numa maior transparência e sensibilidade aos desejos e necessidades do povo. É preciso, porém, além de assinalar os elementos de continuidade na formação e estrutura do Estado e da sociedade modernos, considerar os elementos, na sua forma e dinâmica atual, quando se tem uma ordem internacional que compreende a emergência de um conjunto complexo de regras, sobretudo econômicas, mesmo para aqueles de maior relevância, no cenário político. Pode-se destacar que essas normas não permitem o controle individual em nenhum Estado, nem, também, a expansão de redes transnacionais de comunicação sobre as quais os Estados, individualmente, têm pouca ou nenhuma influencia. De acordo com Held, é necessário, também, considerar: A intensificação da diplomacia multilateral e a interação transgovernamental, que pode opor contrapesos e limitar a latitude de ação dos estados mais poderosos; o desenvolvimento de uma ordem militar global e a edificação de meios de guerra total como características estáveis do mundo contemporâneo que podem reduzir o espectro de políticas a disposição dos governos e seus cidadãos (Idem). Por meio desses elementos, considera-se que os processos atuais de decisão democrática devem ser vistos no contexto de uma sociedade multinacional, multilógica e internacional e no cenário de uma série de Instituições, já existentes ou emergentes, em nível regional ou global e nas áreas políticas, econômicas e culturais: A expansão das conexões intergovernamentais e transnacionais contudo, a era do Estado-nação de modo algum terminou. Ainda que o Estado-nação territorial tenha declinado, é preciso observar que esse é um processo desigual e em particular, restrito ao poder e ao alcance dos Estados-nação dominantes do Ocidente e do Leste. A sociedade global européia alcançou seu ponto de máxima influencia na virada do século XX, e a hegemonia americana caracterizou as décadas do pós guerra (...) se o sistema global se configura hoje por mudanças significativas, isso deve ser entendido menos como o fim da era dos Estado-nação que como um desafio à era dos Estados hegemônicos (Idem: 92). Isso constitui um desafio, pela imposição de limites e restrições ao Estadonação, que terá as possibilidades de tornar uma sociedade democrática soberana diferenciada. Held diz que a soberania é erodida, apenas, quando deslocada por uma autoridade superior ou independente que reduz o âmbito legitimo de decisão do Estado nacional. O autor ressalta que soberania diz respeito à autoridade política: No seio de uma comunidade que detém o direito incontestado de definir o sistema de normas, regulamentos e políticas num dado território, e de governar de acordo com esse direito, da capacidade real do Estado de agir independentemente na articulação e busca de objetivos políticos domésticos e internacionais... a autonomia refere-se à capacidade do EstadoNação agir independentemente das restrições internacionais e transnacionais e de alcançar objetivos quando estes tenham fixados (Idem: 94). Nesse sentido é que se pode indaga: será que a soberania se mantém, quando a autonomia foi reduzida? Como fica a democracia, diante dessas injunções da realidade? Algumas “disjuntivas” são apontadas no estudo do autor já citado, no tocante à democracia, tendo em vista os mecanismos, desenvolvidos pelo processo de globalização, ou seja: “há uma disjuntiva entre autoridade formal do Estado e o sistema vigente de produção, distribuição e comércio que limita de varias maneiras o poder ou âmbito de ação das autoridades políticas nacionais (Held, 1989: 13). Entre essas disjuntivas, destacam-se: a economia mundial que compreende a internacionalização do que é produzido ou seja, seu planejamento é realizado, tendo, como referencia a economia mundial e as operações financeiras, que, devido ao avanço da informática, passaram a ter mobilidade em relação aos diversos tipos de moeda, estoques e ações, podendo, desse modo se adequar às operações como todo tipo de organizações financeiras e comerciais; o enfraquecimento das fronteiras, provocado pelo progresso tecnológico das comunicações e transporte, torna mais vulneráveis e sensíveis os mercados; (anteriormente sem essa aproximação, esse limite era preservado permitia a administração de políticas econômicas e nacionais independentes); A interconexão das economias do mundo contribui para a dificuldade de aplicação das políticas econômicas e sociais, pois estabelece um padrão de prioridade, geralmente sob a ótica do Mercado. Outras disjuntivas são, ainda, apontadas por Held1, segundo as quais são estruturadas novas formas de sociabilidade, ou seja, de pressão para implementação de políticas mundiais. Dentro do conjunto dessas proposições, pode-se destacar: O desenvolvimento do direito internacional submeteu indivíduos, governos e organizações não governamentais a novos sistemas de regulação legal. O direito internacional reconheceu poderes e limitações, direitos e deveres que transcendem a Estados-nação, e que, mesmo não sendo garantidos por instituições dotadas de poder coercitivo, têm conseqüências de grande alcance (Held, 1991: 173). O autor chama a atenção para o fato de que as regras, as quais visavam proteger a autonomia dos Governos, em julgamentos, no que concerne à sua política externa e interna e restringir a ação dos tribunais de cada País a ações em seu próprio território, preservando-se, assim, a soberania das diversas nações, vêm sendo, cada vez mais, questionadas, indicando forte tensão entre soberania e Direito Internacional. Outra disjuntiva para a qual o autor chama a atenção é: “O sistema global de Estados, caracterizado pela existência de grandes potências e blocos de poder, que às vezes debilita a autoridade r a integridade do Estado (Idem: 176). Através desse conjunto de aspectos, observa-se que a Ordem Internacional está mudando e, inexoravelmente, também o papel do Estado. Há bastante tempo, um complexo global de interconexões vem se difundindo, porém, atualmente, pode-se identificar uma intensa propagação da internacionalização de atividades domesticas e uma concentração dos processos decisórios, em nível internacional. A esse respeito, McGrew e Held afirmam: O Estado transformou-se numa arena fragmentada de formulação de decisões políticas, permeada por redes transnacionais (governamentais e não governamentais) e por órgãos e forças internos. Do mesmo modo, a vasta penetração das forças transnacionais na sociedade civil alterou sua forma e sua dinâmica... Criaram-se novas formas de política multilateral e global, que envolvem governos, organizações intergovernamentais (OIGs) e uma vasta gama de grupos de 1 Vasta gama de organização e regimes internacionais estabelecida para administrar setores inteiros da atividade transnacional (comercio, os oceanos, o espaço e assim por diante). O crescimento do número dessas novas formas de associação política reflete a rápida expansão das ligações transnacionais. pressão transnacionais e organizações não governamentais internacionais... Houve um aumento explosivo do número de regimes internacionais, como o regime de não-proliferação nuclear (Held, 2001: 31 -32). Observa-se, ainda, uma intensa rede de atividades nos e entre os principais foros internacionais, formuladores de política, as quais abrangem as reuniões de cúpula da ONU, do G7, do FMI, da Organização Mundial do Comércio (OMC), da União Européia, da Cooperação Econômica Asiática no Pacífico (CEAP), do Fórum Regional da Associação de Nações do Sudeste Asiático, de reuniões para o desenvolvimento da Área Livre de Comércio das Américas (ALCA) e Mercado do Cone Sul (MERCOSUL).Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a globalização revela em uma magnitude crescente, o aceleramento e o aprofundamento do impacto dos fluxos e padrões inter-regionais de interação social. Um outro aspecto a destacar é que o debate sobre a globalização se difundiu paralelamente à expansão do projeto neoliberal. O consenso, de Washington, acerca da desregulamentação, privatização, programas de ajuste estrutural (Paes) e limitação do Governo provocaram a emergência de muitas questões, nos principais países do mundo, ligados às condições de vida do seu povo e à organização estrutural de produção, emprego e renda. Embora não se possa atribuir as responsabilidades dos aspectos citados à globalização, uma vez que se tem claro que o processo globalista resulta de forças múltiplas, do qual fazem parte , tanto os elementos econômicos, políticos e tecnológicos, além do fatores característicos de uma determinada realidade, tem-se, como claro, que o referido processo provocou um conceito de transformação global que alterou todos os princípios de ordenação da vida social, em nível mundial, sugerindo questionamentos sobre a nova configuração do Estado Moderno, sobretudo, em relação aos aspectos da: soberania, Estado-nação, autonomia, igualdade, liberdade e outros. Tendo em vista o desenvolvimento dos processos, ora citados, o espaço e o sentido de democracia devem ser reconhecidos: É essencial dar-se conta de que pelo menos as conseqüências centrais de globalização: em primeiro lugar, da maneira pela qual os processos de interconexão econômica política legal e militar, entre outras, estão modificando por cima a natureza do Estado Soberano; em segundo lugar, da maneira pela qual os nacionalismos locais e regionais estão erodindo os Estadosnação por baixo; e em terceiro lugar, da maneira pela qual a interconexão global cria cadeias de decisões políticas e resultados interligados entre os Estados e seus cidadãos que alteram a natureza e a dinâmica dos próprios sistemas políticos nacionais. A democracia tem de acertar contas com esses três desenvolvimentos e suas implicações para os centros de poder nacionais e internacionais (Held, 1991: 179). O aspecto referido acima, já ressaltado, não pode deixar de ser analisado no tocante à expansão da proposta de Estado neoliberal, que vem erodindo princípios, antes consagrados pela democracia, tais como a igualdade, a liberdade e a autonomia, de acordo com o receituário, que o caracteriza. Para pensadores, como Friedman, o financiamento do gasto público, em programas sociais, provocou as seguintes distorções: a ampliação do déficit público, a inflação, a redução da poupança privada, o desestímulo ao trabalho e à concorrência, com a conseguinte diminuição da produtividade, e até mesmo a destruição da família, a falta de motivação para os estudos, a formação de gangues e a criminalização da sociedade. A ação do Estado, no campo social, deve se ater a programas assistenciais: auxílio à pobreza, de forma irregular, assistemática, para não provocar distorções no Mercado. Observa-se, no entanto, que a fragmentação do agir ou do papel do Estado gerou impactos negativos, sobre a integridade dos sistemas de proteção social, introduzindo rupturas, entre os que são empregados e gozam de proteção e os que não são empregados e, provavelmente, não o serão, precariamente, protegidos. A renda mínima, baseada no argumento progressista, ou seja, como uma nova forma de conceber a distribuição da riqueza social, ou como uma nova forma de solidariedade social, baseia-se na mudança de concepção de Justiça Social. De um ideário de justiça cumulativa – preconizando que se dê a cada um o equivalente ao que contribuiu para criar, desloca-se para uma justiça (re) distributiva, entendendo estar assegurado, a cada um, o direito de participar da riqueza geral, seja qual for a contribuição que deu para gerar a riqueza social. A descentralização, a focalização e a privatização foram implantadas como forma de atendimento a esses segmentos menos favorecidos. A descentralização é concebida como modo de aumentar a eficiência do gasto, já que aproxima problemas e gestão. Busca-se incrementar a interação em nível local dos recursos públicos e dos não governamentais, para o financiamento das atividades sociais. A focalização, por sua vez, significa o direcionamento do gasto social a programas e a públicos-alvos específicos, seletivamente escolhidos pela sua maior necessidade e urgência. Justifica-se a partir da visão de Friedman, que o Estado só deve intervir residualmente e no campo da assistência e que em geral não são mais necessitados aqueles que recebem o benefício. A privatização expressa-se como o deslocamento da produção de bens e serviços públicos para o setor privado lucrativo. Considera-se uma resposta de alívio à crise fiscal, racionaliza os recursos. Propõe também o deslocamento da produção e/ ou distribuição de bens e serviços públicos para o setor privado não-lucrativo composto por associações de filantropia e organizações comunitárias. 1. a transferência (incluindo a venda) para a propriedade privada de estabelecimentos públicos; 2. a cessação de programas públicos e o desengajamento do governo de algumas responsabilidades específicas (privatização implícita); reduções (em volume, capacidade, qualidade) de serviços publicamente produzidos, conduzindo a demanda para o setor privado (Draibe, 1993: 97). O neoliberalismo não tem, em vista, razões pertinentes à justiça social. Suas justificativas voltam-se para questões do volume e, sobretudo, da eficácia do gasto social. A expansão do mencionado sistema vem afetando e, sobretudo, acirrando a questão social2, manifesta nos mais diversos aspectos da produção e reprodução da vida material e espiritual e provocando a desigualdade e a exclusão social. Nessa ótica, é que se questiona o sentido da democracia, na atualidade, quando se percebe que todos os valores, sobre os quais se balizou, desde a formação do Estado Moderno estão eqüidistantes ou esvaziados. Como compreender o sentido de tal categoria, na atual conjuntura? Como interpretar seu significado, frente às contradições da realidade e adotá-la, como Princípio, no exercício de uma determinada profissão? Tomando, como referencia, as palavras de Chauí (2003), em analise sobre a realidade atual, em relação às diversas manifestações dos movimentos sociais, mais especificamente dos que vêm, há décadas, buscando realizar a reforma agrária: O que está acontecendo no país, não é uma crise social, mas sim, pela primeira vez na história, o pleno funcionamento da democracia. É uma coisa espantosa e certamente deixa as pessoas desorientadas porque é uma experiência inédita. Contra a idéia liberal de que a democracia é o único regime da lei e da ordem da democracia é o único regime político no qual os conflitos são considerados o princípio do seu funcionamento... Na democracia graças ao trabalho do conflito, a democracia diz ao governo o que ela pensa, o que quer e como quer que seja feito (Chauí, folha de São Paulo: 03/08/2003). 2 Questão social aprendida como conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem um raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantem-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade. (Iamamoto, 1998: 27) Nesse entendimento, através da plena expansão do direito de reivindicar o acesso aos bens e serviços, necessários à sobrevivência e bem-estar, quem sabe pode se construir uma sociedade, com maiores possibilidades de interferir nos processos fundamentais da formação de uma sociedade emancipada? Retomando a questão sobre a performance da formação da democracia, na realidade atual, Bresser Pereira reflete, acerca dos conflitos, na atualidade, que vêm preocupando os setores conservadores, os quais priorizam a ordem, em relação à justiça. Os representantes dessa concepção exigem o respeito à lei, à propriedade e aos contratos bem como a repressão aos movimentos sociais. Em sua análise, tomando a essência, a natureza do pensamento autoritário, cujas bases atribui à doutrina liberal-clássica, oligárquica ou tecnocrática, indaga: Serão as pressões sociais a melhor forma de obrigar o governo a pensar por conta própria e a tomar as decisões de interesse nacional? O pensamento autoritário seja ele de origem oligárquica, liberal clássica ou tecnocrática, dirá imediatamente que não. O pensamento oligárquico, porque é autoritário por definição; o pensamento liberal clássico, porque, para ele, a democracia representativa significa dar autonomia ao governo eleito para tomar decisões (que só poderão ser avaliadas pelos cidadãos nas próximas eleições); o pensamento tecnocrático, porque entende que a razão técnica deve sempre prevalecer. E o que diz o pensamento democrático? Afirma que o conflito social e o debate público são dois elementos constituintes das democracias modernas. Não existe democracia sem convivência com conflitos e sua solução através do compromisso ou da argumentação, ou de uma combinação de ambos. (...) A democracia é o regime do conflito social, da argumentação e do compromisso, mas é também o regime da lei e da ordem (Pereira, folha de São Paulo: 10/08/2003). O autor, coerentemente à linha do seu pensamento, atribui um papel significativo à ordem, como imprescindível às democracias. Por outro lado, arroga o aguçamento das questões sociais, a forma da nossa organização social cujo modelo buscou, sempre, preservar um certo tipo de ordem, a qual, no decurso da história gerou tantas incongruências. Nesse sentido, configura-se o tensionamento, gerado entre os diversos segmentos da sociedade civil brasileira, na atualidade, diante da possibilidade de expressar e reivindicar direitos, há muito tempo, já definidos e até reconhecidos como tal. Isso caracteriza o embate, contextualizado pelo autor, acima referido, entre as diversas forças em conflito, que, há décadas, por que não dizer séculos, vêm se confrontando, pela manutenção de privilégios, que segmentam e dividem a nossa sociedade, em classes diferenciadas: de um lado, uma minoria que detém todo o poder, em detrimento dos direitos de grande maioria, que luta, por eles, ainda, que mínimos. Ressalte-se que a tese sobre a democracia analisada pelo autor, acima, indica a perspectiva, adotada por diversas correntes as quais têm um entendimento ligado a uma visão conservadora de democracia. Tais visões, em geral não admitiam conflitos, como forma de tentativa de solucionar as questões os impasses. Para o autor, só nas democracias modernas, os conflitos se estabelecem, como meio de reivindicação de direitos. Observa-se, entretanto, que em nossa sociedade, considerada, historicamente, uma sociedade moderna, diversos episódios, provocaram inflexões em seu processo de se construir como democracia. Em muitos desses episódios, a expressão de conflitos foi debelada pela força e pelo excesso de autoritarismo. Nesse sentido, acredita-se no confronto, dialeticamente, empreendido como meio de construção de um novo patamar de relações, através do qual se fortaleça o entendimento de que só a superação das desigualdades pode dar esperança à formação de uma sociedade democráticaemancipada. 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Prós e contras da globalização. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001. IAMAMOTO, Marilda V. O serviço social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez, 1998. 10 anos do Código de ética dos (as0 Assistentes Sociais: dimensão histórica, lutas e desafios Sâmya Rodrigues Ramos * Em 2003 o código de ética dos assistentes sociais comemorou uma década de aprovação, no entanto, inúmeros desafios ainda se colocam na perspectiva de materialização dos seus princípios ético-políticos no cotidiano profissional. Discutir os 10 anos do atual código de ética profissional pressupõe contextualizar aspectos do seu processo de elaboração, tendo como referencia as determinações sócio-políticas e o processo de renovação da profissão no Brasil. 1. Os determinantes da conjuntura da década de 1990 Vivenciamos desde a década de 1970, e mais explicitamente nos anos de 1980/90, uma crise estrutural caracterizada pelo reordenamento do capital para recuperar seu ciclo reprodutivo. A ofensiva do capital, destina-se a Reestruturar o padrão produtivo estruturado sobre o binômio taylorismo e fordismo, procurando, desse modo, repor os patamares de acumulação existentes no período anterior, especialmente no pós-45, utilizando-se de novos e velhos mecanismos de acumulação (Antunes, 1999: 36). O cenário internacional, a partir do início dos anos de 1970, vivencia um quadro de crise estrutural do capital, o que leva o capital a utilizar vários mecanismos de reestruturação, com destaque para a expansão da acumulação no interior da esfera financeira (Ghesnais, 1996) e a substituição do padrão taylorista e fordista pela “acumulação flexível” (Harvey, 1992). No âmbito dessa crise estrutural do capital, a social democracia e o socialismo real entraram em crise e expandiu-se fortemente, notadamente na década de 1990, o projeto neoliberal. Referindo-se à década de 1990, Chesnais afirma que; o triunfo da “mercadorização”, isto é, daquilo que Marx chamava de “fetichismo da mercadoria”, é total, mais completo do que jamais foi em qualquer momento passado. O trabalho humano é, mais do que nunca, uma mercadoria, a qual ainda por cima teve seu valor venal desvalorizado pelo * Professora da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN; Doutoranda do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e Pesquisadora do GEPE – UFPE. Email: [email protected] “progresso técnico” e assistiu à capacidade de negociação de seus detentores diminuir cada vez mais diante das empresas ou dos indivíduos abastados, suscetíveis de comprar o seu uso. As legislações em torno do emprego do trabalho assalariado, que haviam sido estabelecidas graças às grandes lutas sociais e às ameaças de revolução social, voaram pelos ares, e as ideologias neoliberais se impacientam de que ainda restem alguns cacos delas (Chesnais, 1996:42). Essa conjuntura de mundialização do capital (Chesnais, 1996) revela as orientações ídeo-políticas do neoliberalismo que, dentre outras questões: enaltece o papel do mercado em detrimento da ação pública; enfraquece os Estados nacionais; deteriora as condições de trabalho e de vida da classe trabalhadora; reconhece como sujeito tão somente o cidadão-consumidor; difunde um novo tipo de individualismo; dissemina a ideologia do neosolidarismo e da filantropia empresarial nas respostas às múltiplas expressões da questão social. Para entender o surgimento da perspectiva neoliberal, é importante salientar que é só a partir de meados do século passado que o capitalismo vive a sua fase liberal por excelência. Hobsbawm (1982) chamou esse período áureo do liberalismo compreendido entre 1848 e 1875, de “a era do capital”. Deste período até as primeiras décadas deste século, o liberalismo torna-se, segundo Teixeira (1998), o credo do capitalismo, mediação obrigatória para o desenvolvimento da sociabilidade sob o capital. Essa fase áurea chega ao seu fim com a grande depressão, ocorrida no final dos anos vinte e início da década de trinta. Para superar esta grande crise do capital, entra em cena o modelo social-democrático de desenvolvimento que irá viver seu apogeu no período compreendido entre a Segunda Guerra Mundial até meados da década de setenta. Harvey (1994) indica algumas características do capitalismo no período de 1945/1973, quais sejam: manutenção de taxas estáveis de crescimento econômico nos países capitalistas avançados de massa; manifestação de um surto de expansões internacionalistas; ameaças remotas de guerras intercapitalistas. Para que este modelo de desenvolvimento obtivesse êxito, foi necessário efetivar compromissos entre os diversos sujeitos envolvidos naquele processo de reestruturação capitalista. O Estado Keynesiano teve que assumir novos papéis. Nesse sentido, o capital e o trabalho assumem novas funções relacionadas aos processos de produção para garantir a lucratividade. As organizações sindicais, por exemplo, foram sendo, cada vez mais “convencidas” para “trocar ganhos reais de salários pela cooperação na disciplinação dos trabalhadores, de acordo como sistema fordista de produção” (Harvey, 1994:129). A partir da década de 1970, este modelo econômico e social entrou em colapso – expressão de uma crise orgânica do processo de acumulação capitalista. O esgotamento desta forma de organização da economia capitalista, fez emergir uma nova resposta teórico-sócio-política para enfrentar esta crise: o neoliberalismo. Retomando a tese básica da economia liberal desde Adam Smith1, 1 Analisando as idéias do liberalismo, Teixeira (1998:209) argumenta que o pensamento de Adam Smith entende a sociedade capitalista como uma “sociedade na qual o mercado deverá ser a instância suprema e intranscendível da vida humana”. a proposta neoliberal, defende que o mercado é a instância perfeita para resolver os problemas econômicos, argumentando que o que falta é implementá-lo em termos totais. O desempenho máximo do mercado é designado com a categoria de equilíbrio, conseguido Quando todos os consumidores podem gastar seus rendimentos segundo suas preferências, quando as empresas vendem todos os seus produtos ou serviços, recuperando pelo menos os custos e quando todos os fatores oferecidos no mercado são usados na produção destes produtos (Oliveira, 1995:60). A perspectiva neoliberal conclui que o mercado possui uma tendência imanente ao equilíbrio e que duas condições são essenciais para permitir uma aproximação com essa tendência: a propriedade privada e a liberdade de contrato. Quanto mais são asseguradas essas condições, mais se caminha para o equilíbrio. Nesta concepção, portanto, o mercado é reconhecido como solução para o problema econômico de base, como mecanismo único de coordenação das atividades econômicas de uma sociedade moderna. Em vários balanços realizados sobre as conseqüências da implantação do neoliberalismo, constata-se que há diversos indícios do fracasso econômico deste modelo na América Latina, que se expressam, sobretudo, nas seguintes questões: desemprego, aumento da pobreza e pauperização das classes médias, colapso das economias regionais, incontável déficit fiscal, avassalador aumento da dívida externa, alienação da quase totalidade do patrimônio público via privatizações (Boron, 1999). Antunes (1999) sinaliza as conseqüências mais importantes dessas transformações ocorridas no processo de produção para o mundo do trabalho. São elas: diminuição do operariado fabril típico do fordismo; aumento acentuado das inúmeras formas de precarização do trabalho; aumento expressivo do trabalho feminino no interior da classe trabalhadora; enorme expansão dos assalariados médios, especialmente no “setor de serviços”; exclusão dos trabalhadores jovens e dos trabalhadores “velhos” do mercado de trabalho; intensificação e superexploração do trabalho; ocorrência de um processo de desemprego estrutural. Por outro lado, a perspectiva neoliberal obteve uma grande vitória no terreno ideológico e moral, na medida em que disseminou seus desvalores2 individualistas, competitivos, egoístas, alardeando a falsa idéia de que não existe outra alternativa em termos de projeto societário. O fim da história e o pensamento único são expressões desse fetiche que convenceu amplos segmentos, inclusive no universo do pensamento de esquerda em nível mundial. É nesse contexto da década de 1990, que se desenvolve a materialização do projeto profissional de ruptura, no âmbito do processo de renovação do Serviço Social brasileiro. 2. O processo de renovação do Serviço Social brasileiro e a construção do projeto profissional de ruptura Na trajetória histórica da profissão no Brasil, podem ser identificados diversos projetos profissionais que a categoria profissional tem procurado construir. Silva e Silva (1995) sinaliza a existência de três grupos de respostas que configuram os projetos profissionais que alcançaram certa hegemonia em determinados contextos históricos: o processo de institucionalização, marcado pelo esforço de profissionalização da assistência social; a construção da vertente modernizadora, que teve como marco o Movimento de Reconceituação do Serviço Social no Brasil e o desenvolvimento do projeto profissional de ruptura nas décadas de 1980/90. Netto, ao analisar o processo de renovação do Serviço Social, resgata a trajetória de disputas e polemicas no interior da categoria profissional, só possíveis de se expressarem no período pós-ditadura. Segundo este autor, (...) é inconteste que o Serviço Social no Brasil, até a primeira metade da década de sessenta, não apresentava polêmicas de relevo, mostrava uma relativa homogeneidade nas suas projeções interventivas, sugeria uma grande unidade nas suas propostas profissionais, sinalizava uma formal assepsia de participação político-partidária, carecia de uma elaboração teórica significativa e plasmava-se numa categoria profissional onde parecia imperar, sem disputas de vulto, uma consensual direção interventiva e cívica. A ruptura com este cenário tem suas bases na laicização do Serviço Social, que as condições Utilizamos a distinção feita por Agnes Heller entre valor e desvalor, segundo a qual “pode-se considerar valor tudo aquilo que, em qualquer das esferas e em relação com a situação de cada momento, contribua para o enriquecimento daqueles componentes essenciais; e pode-se considerar desvalor tudo o que direta ou indiretamente rebaixe ou inverta o nível alcançado no desenvolvimento de um determinado componente” (Heller, 1989:45). Os componentes da essência humana são, para Marx, o trabalho (a objetivação), a sociabilidade, a universalidade, a consciência e a liberdade. 2 novas postas à formação e ao exercício profissionais pela autocracia burguesa conduziram ao ponto culminante; são constitutivas desta laicização a diferenciação da categoria profissional em todos os seus níveis e a consequente disputa pela hegemonia do processo profissional em todas as suas instâncias (projeto de formação, paradigmas de intervenção, órgãos de representação etc.) (Netto, 1991: 128). Do ponto de vista de Netto (1991), tal laicização é um dos elementos constitutivos da renovação do Serviço Social e assim como os demais, tais como a emergência da produção teórica, só puderam ocorrer graças ao desenvolvimento das relações capitalistas durante a “modernização conservadora”. Nesse sentido, a crítica ao conservadorismo foi a primeira condição para a construção do novo projeto profissional. Embora, na segunda metade dos anos 1960, já tenhamos, através do Movimento de Reconceituação, questionamentos às tendências conservadoras na profissão, é somente na transição dos anos 70 aos 80, que a recusa e a crítica destas tendências se viabilizaram. Netto (1991), ao analisar o processo de renovação do Serviço Social brasileiro, sob a autocracia burguesa, sinaliza três direções: a perspectiva modernizadora, a reatualização do conservadorismo e a intenção de ruptura. A perspectiva renovadora, que imprimiu significativa influencia ao processo de construção do projeto ético-político profissional, foi a intenção de ruptura. Assim, (...) é precisamente na perspectiva da intenção de ruptura que se plasmam as conotações inerentes a um exercício profissional (e suas representações) compatível com a modernidade: o reconhecimento dos projetos societários diferenciados das classes e dos parceiros sociais, a compreensão da dinâmica entre classes/sociedade civil/Estado, a laicização do desempenho profissional, a assunção da condição mercantilizada dos serviços prestados pelo profissional etc. (Netto, 1991: 305). Neste sentido, A ruptura coma herança conservadora expressa-se como uma procura, uma luta por alcançar novas bases de legitimidade de ação profissional do Assistente Social, que, reconhecendo as contradições sociais presentes nas condições do exercício profissional, busca colocar-se, objetivamente, a serviço dos interesses dos usuários, isto é, dos setores dominados da sociedade (Iamamoto, 1994: 31). Afinal, a construção de uma nova direção social, expressa na profissão, não constitui um movimento endógeno ao âmbito profissional, mas integra uma dimensão mais ampla - a sociedade. Em relação ao projeto profissional do Serviço Social é, sobretudo, na primeira metade da década de 1990, que se verifica, no interior da profissão, a conquista da hegemonia do novo projeto ético-político profissional, materializada, principalmente, através do crescente envolvimento de segmentos cada vez maiores da categoria nos eventos profissionais promovidos pelas entidades representativas, e no fato deste projeto profissional vincular-se a um projeto societário antagônico ao das classes dominantes. Nesse processo, é fundamental a articulação com segmentos do movimento democrático e popular nas suas lutas contra o projeto neoliberal (Netto, 1999). Nesta perspectiva, a manutenção e o aprofundamento do projeto éticopolítico profissional dependem, cotidianamente, da organização da categoria e também do revigoramento do movimento democrático e popular. Afinal, A vitalidade desse projeto encontra-se estreitamente relacionada à capacidade de adequá-lo aos novos desafios conjunturais, reconhecendo as tendências e contra-tendências dos processos sociais, de modo que torne possível a qualificação do exercício e da formação profissionais na concretização dos rumos perseguidos (Iamamoto, 1999:113/114). 3. O Código de ética de 1993 como expressão do projeto profissional O projeto profissional do Serviço Social tem, na literatura recente, recebido a denominação de projeto ético-político. Em relação à dimensão ética, é somente na década de1990 que esta passa a ser reconhecida explicitamente como componente fundamental do projeto profissional que, nos últimos vinte anos, tem construído hegemonia no Serviço Social. Tal reconhecimento se dá a partir, sobretudo, de dois aspectos. Em primeiro lugar, do contexto sócio-histórico, no início da década de 1990, que, em face da corrupção exacerbada, abre espaço para as reflexões em torno das possibilidades da ética na política. O ponto alto desse momento é formação de movimentos pela ética na política e, logo em seguida, a aprovação, pela primeira vez na história do país, do impeachment do então Presidente da República. Nesta perspectiva, a ética profissional “se vincula aos projetos sócio-políticos em sua luta pela hegemonia, o que aponta para a sua conexão com a práxis política e para a moralidade profissional em suas dimensões individual, cívica e profissional” (Barroco, 1996:216). O segundo aspecto refere-se aos debates, em nível nacional, sobre a aprovação em 1993, do novo código de ética profissional. A renovação do debate ético – profissional, no âmbito da construção do projeto profissional de ruptura, se configura no contexto da década de 1980, na medida em que ocorre a explicitação da ruptura com o Serviço Social tradicional. Isto ocorre em sintonia com o amadurecimento do pensamento crítico, da reflexão marxista e pela revitalização da organização política profissional, dentre outros aspectos. O Código de 1986 constitui-se numa das grandes expressões deste processo de ruptura com o tradicionalismo profissional, presente nos Códigos anteriores (1947, 1965 e 1975) que, fundamentados nas concepções filosóficas neotomista e funcionalista, defendiam uma ética da neutralidade e valores abstratos. Estes códigos representaram a hegemonia do tradicionalismo ético no Brasil em consonância com vários códigos internacionais. O processo de erosão de bases de legitimação do Serviço Social tradicional se coloca como um fenômeno internacional na década de 1960. Neste período, o Serviço Social se move entre diversas propostas que sinalizam perspectivas modernizadoras, reatualizadoras do conservadorismo e as rupturas. Uma questão que merece destaque é que os códigos de ética latino-americanos3 ainda não expressavam, no final da década de 1970, os pressupostos das vertentes críticas da reconceituação, ou seja, os fundamentos filosóficos do ethos tradicional não foram criticados/superados neste contexto (Barroco, 2001). Em termos nacionais, o tradicionalismo ético também permanece até a década de 1970. No código de 1947 prevalece a perspectiva do pensamento católico tradicional, que defende, dentre comportamentos e a aceitação passiva da autoridade institucional. O código de 1965 se diferencia do anterior, pois defende uma perspectiva liberal articulada à concepção neotomista. Já o código de 1975, reafirma o conservadorismo tradicional ao fundamentar-se no personalismo e na defesa, dentre outros postulados, do bem comum e da justiça social. A vigência do tradicionalismo ético - profissional no Brasil prevalece até a aprovação do Código de 1986; que contribui, portanto, para o desenho de uma nova moral profissional, fazendo emergir a necessidade quanto ao aprofundamento da questão ética na profissão. O código de 1986, apesar da sua inconteste importância para a renovação profissional, apresentava limitações tanto do ponto de vista filosófico como no âmbito operacional. Barroco (2001) afirma que o problema deste código não é o compromisso com as classes trabalhadoras, tomado como princípio de um projeto profissional articulado a um projeto de sociedade, mas a forma como este é explicitado no âmbito de um código de ética profissional e a sua abordagem sobre o pensamento de Marx. A forma como esse compromisso foi exposto, expressa; uma concepção ética mecanicista, que deriva imediatamente a moral da produção econômica e dos interesses de classe; uma ausência da mediação dos valores próprios à ética; um comprometimento com uma classe, como se esta, a priori, fosse detentora dos valores positivos; uma visão idealista e desvinculada da questão da alienação. 3 Barroco aborda os códigos de ética dos seguintes países do continente americano: Costa Rica, Chile, Peru, Porto Rico, Colômbia, México, Brasil e Panamá. Esta autora, cuja tese de doutorado4 foi um marco na reflexão ética profissional da década de 1990, adverte para existência de uma defasagem em relação à teorização ética nos marcos dos avanços da vertente de ruptura nos anos de 1980. Do seu ponto de vista: A reflexão teórica marxista forneceu as bases para uma compreensão crítica do significado da profissão, desvelando sua dimensão político-ideológica, mas não a desvendou em seus fundamentos do conservadorismo e sua configuração na profissão, o que não se desdobrou numa reflexão ética específica. A prática política construiu, objetivamente, uma ética de ruptura, mas não ofereceu uma sustentação teórica que contribuísse para uma compreensão de seus fundamentos (Barroco, 2001: 177). Nesta perspectiva, a organização política profissional, ao sinalizar aspectos de uma ética da ruptura na década de 1980, se antecipou à necessária e indispensável produção teórica nesta área que só viria acontecer nos anos de 1990, como resultado de diversos fatores, com destaque para o intenso debate coletivo para reformular o código em 1993; a consolidação da pós-graduação e da pesquisa no Serviço Social brasileiro e o amadurecimento da vertente marxista. Este amadurecimento teórico-político no debate profissional, especialmente pelo percurso às fontes marxianas e pela aproximação com o pensamento gramsciano, levou à superação do mecanicismo, moralismo e voluntarismo ético-moral, simplificações encontradas anteriormente na produção teórica desta área. O código de 1986, além de trazer tais limites filosóficos, apresenta, também, dificuldades para ser operacionalizado no cotidiano profissional, dada sua fragilidade enquanto instrumento normativo, ao apresentar artigos abstratos e ambíguos. Nesta mesma direção, Silva (1996) ao analisar os limites deste código, Acrescenta alguns desafios para o seu processo de reformulação, dentre os quais, destaca-se a necessidade de problematizar a relação ética-moral-política; ampliar os conceitos de classe e instituição; ampliar a concepção de ser social para além da classe, considerando suas inserções de raça, gênero; incluir aspectos com a relação à crítica das práticas de discriminação. A revisão do código de 1986 se processou na perspectiva de manter suas conquistas e superar as suas insuficiências. Assim, Intitulada “Ontologia social e reflexão ética” foi defendida em 1996 no Programa de Pós-graduação em Serviço Social da PUC-SP. Posteriormente em 2001 publicou o livro “Serviço Social e Ética: fundamentos ontológicos”. 4 (...) teve como pressuposto a consolidação do projeto profissional nele evidenciado, numa perspectiva superadora, ou seja, de garantir suas conquistas e ao mesmo tempo superar suas debilidades (...). Nesse sentido, o recurso à ontologia social permitiu decodificar eticamente o compromisso com as classes trabalhadoras apontando para sua especificidade no espaço de um Código de Ética: o compromisso com valores referidos à conquista da liberdade (Barroco, 1996:284) No processo de produção do novo Código de Ética, duas preocupações foram norteadoras, a saber: Torná-lo um instrumento efetivo no processo de amadurecimento político da categoria bem como um aliado na mobilização e qualificação dos assistentes sociais diante dos enormes desafios e demandas da sociedade brasileira. Urge transformá-lo num mecanismo concreto de defesa da qualidade dos serviços profissionais que desempenhamos; - e, complementarmente, havia que constituí-lo como um mecanismo eficaz de defesa no nosso exercício profissional, por meio da garantia da legalidade de seus preceitos, fornecendo respaldo jurídico à profissão (Paiva e Sales, 1996:180). 4. Considerações finais Enquanto expressão do debate ético - profissional, o código de ética de 1993 mantém uma nítida relação com o projeto profissional e com a organização da categoria. Um determinante que tem sido fundamental para a manutenção da hegemonia desse projeto, é o nível de organização política da categoria profissional. Esta organização se constitui como força impulsionadora na materialização das projeções coletivas, construídas ao longo das duas últimas décadas. A organização política teve uma importância significativa no processo de elaboração do atual código de ética profissional, tendo as entidades representativas da categoria do papel preponderante na coordenação/dinamização do debate coletivo, notadamente em fóruns realizados no início da década de 1990, com destaques para: Seminário Nacional de Ética (1991), 7º CBAS (1992), XII ENESS (1992) e XX Encontro Nacional CFESS/CRESS (1992). Nota-se, mais uma vez, a decisiva participação dos segmentos que compõem a categoria profissional nas discussões sobre os rumos da profissão. Em relação ao processo de discussão para a aprovação do Código de Ética de 1993, ressalte-se a publicação, pelo CFESS, do livro Serviço Social e Ética: convite a uma nova práxis, que trouxe reflexões relevantes que contribuíram para o amadurecimento do debate ético profissional. Este livro constitui-se um marco na publicação sobre a temática da ética no Serviço Social, demonstrando, dentre outros fatores, a inclusão de questões que até então não eram levadas em consideração no debate profissional. Dentre os avanços obtidos nesses 10 anos de materialização do Código de ética dos (as) assistentes sociais, a significativa intervenção do CFESS em diversas frentes, tais como: a atuação da Comissão de Ética e Direitos Humanos, a realização do Projeto Ética em movimento5, a inserção no âmbito das políticas sociais. Além dessas atividades, coordenadas pelo CFESS, ressalte-se: o debate ético no processo de construção das diretrizes Curriculares aprovadas em 1996; o aumento de pesquisas e publicações sobre a temática da ética e dos direitos humanos6 e o surgimento e a articulação de grupos de pesquisa sobre ética em Serviço Social, tais como o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Ética e Direitos Humanos - NEPEDH da PUC-SP e o grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ética- GEPE da UFPE7. Apesar desses inegáveis avanços, o Serviço Social brasileiro se depara com inúmeros desafios no âmbito da intervenção ética, dentre os quais destaco: problematizar e debater os conflitos morais decorrentes de diferenças entre os diversos projetos individuais x projetos profissionais x projetos societários presentes na profissão; conhecer e utilizar sistematicamente o código de ética no cotidiano profissional; contribuir para aprofundar/fortalecer o debate da ética na sociedade brasileira, imprimindo visibilidade à reflexão ética nas diversas dimensões da vida social; multiplicar o conhecimento e as possibilidades de utilização sistemática do código de ética no Âmbito da categoria profissional; 5 O projeto Ética em movimento foi criado pela gestão do CFESS 1999/2002 e aprovado no XXVIII Encontro nacional CFESS/CRESS. Este projeto foi gestado com o objetivo de contribuir para o avanço do debate ético, tendo como eixos de ação os seguintes: capacitação, denúncias, visibilidade social da ética profissional, fortalecimento da interlocução com organismos internacionais e nacionais de defesa dos direitos humanos e sociais. No eixo da capacitação estão sendo realizados, desde 2000, cursos de capacitação ética para conselheiros e assistentes sociais, em todos os estados brasileiros. 6 Nos anos seguintes outras publicações sobre esta temática somaram-se a esta, tais como: o livro “Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos”; a revista “Presença Ética”, editada anualmente desde 2000 pelo Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ética, GEPE-UFPE; além do nº5 da revista Temporalis periódico semestral da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social- ABEPSS, cujo tema foi “Ética, política e direitos humanos” e dos três livros publicados pelo CFESS no projeto Ética em movimento, quais sejam: “Ética e sociedade”, “Ética e práxis profissional” e “Ética e instrumentos processuais”. 7 Estes dois grupos estão realizando conjuntamente o projeto integrado de pesquisa aprovado pelo CNPQ em 2003, cujo título é “Ética e Direitos Humanos: unidade e diversidade do Fórum Social Mundial”. disseminar a importância do posicionamento ético do(a) profissional frente aos conflitos cotidianos postos no ambiente de trabalho, favorecendo a compreensão das contradições que se apresentam nas estratégias e na construção de alianças com outros sujeitos profissionais e sociais8; promover uma capacitação continuada sobre a reflexão ética nos diferentes locais de trabalho; ampliar a participação e envolvimento dos(as) assistentes sociais em espaços coletivos de discussão da dimensão ética profissional; promover uma intensa capacitação docente para a materialização do debate ético no cotidiano das Unidades de ensino; aprofundar, nos ambientes profissionais, estudos e reflexões sobre as diferentes formas de opressão relacionadas às dimensões: gênero, raça, orientação sexual, dentre outras; realizar pesquisas com o objetivo de aprofundar a análise teórica sobre os princípios éticos-políticos sinalizados no código, qualificando melhor, os termos do debate, o horizonte e os limites das lutas por democracia, cidadania, justiça social e sua articulação contraditória com um projeto de emancipação humana; intensificar as articulações com outros segmentos coletivos na perspectiva da luta anticapitalista. Tais desafios requisitam uma profunda atuação teórico-política, no universo das unidades de ensino, dos locais de trabalho, das entidades organizativas da categoria profissional. Esta atuação será bem sucedida quanto mais estiver conectada às lutas e mobilizações desenvolvidas pela classe trabalhadora, na perspectiva da crítica radical à sociabilidade do capital. Sousa(2002) reflete esse e outros desafios no seu artigo “A ética e o trabalho cotidiano do assistente social”, publicado na revista Presença Ética nº2. 8 Referências Bibliográficas ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999. BARROCO, Lúcia. Ontologia Social e Reflexão Ética. Tese de Doutoramento apresentada à PUC-SP. São Paulo, 1996. _________. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. São Paulo: Cortez, 2001. BORON, Atílio. 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Vale considerar que, para Aristóteles, o telos da felicidade destinava-se ao homem virtuoso, exigia a contemplação do bem, assim como a posse de bens materiais que possibilitassem o atendimento das necessidades vitais para uma vida digna. A segunda tendência encontra seu marco fundamental no início da modernidade, com Hobbes, que preconizou a necessidade da passagem de um estado de natureza para um estado social através de um pacto, ou o contrato, entre súditos e soberano, cabendo a este último estabelecer as leis a serem obedecidas pelos primeiros, tendo em vista a criação de um Estado autoritário, capaz de assegurar a paz e a sobrevivência dos homens, visando, em última instância, a preservação da espécie. Historicamente, a discussão que perpassa entre os dois tipos de ética referese à temática do bem, entendido como consideração dos princípios últimos que fundamentam a ação, e a temática da justiça, entendida como conjunto de regras que podem oportunizar uma melhor vida entre os homens. O debate continua acirrado até os nossos dias, existindo aqueles que defendem uma discussão pautada nos princípios últimos que, para alguns significa o resgate da metafísica e, para outros, representa a retomada da ontologia. Para os defensores da ética deontológica, o dilema se coloca entre a opção por um consenso de intersecção que elege, dentre as principais teorias do bem já existentes, aquela que melhor se aproxima da “melhor vida para o homem” ou, a negação dos princípios últimos (por já estarem previamente definidos) e o estabelecimento de novas normas que possam assegurar a justiça e a democracia. * Palestra apresentada no Seminário Internacional sobre Ética e Direitos Humanos, realizado na UFRJ, no Rio de Janeiro, em novembro de 2003. ** Professora do Departamento de Serviço Social da UFPE. Doutora em filosofia. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ética (GEPE) – UFPE. E-mail – [email protected] A ética teleológica nos parece aquela que melhor representa a idéia de que o homem é o sujeito da história (considerando as condições objetivas que determinam esta história), ao mesmo tempo em que suscita a discussão sobre os princípios e os fins últimos da existência humana, e considerando também os determinantes que fundamentam o agir humano e o agir das sociedades contemporâneas. O próprio Marx, na sua ontologia social, definiu o home como ser teológico: o ser que pensa o seu trabalho, projeta a sua atividade laborativa antes de confeccionála. A sua célebre frase de que “o pior arquiteto é melhor do que a melhor abelha” abre espaço para uma discussão fecunda sobre a dimensão teológica do homem. Com efeito, é através do trabalho que o homem transforma a natureza e constrói suas relações sociais e é nesta sociabilidade que ele pode formular projetos sociais coletivos e individuais. É através do trabalho que o homem se objetiva no mundo e pode desenvolver suas potencialidades. O trabalho é a dimensão concreta da capacidade de realização humana, pois o homem é um ser de possibilidades ainda não dadas. Entretanto, vivemos numa sociedade que nega a dimensão teleológica do homem. Se tomarmos como ponto de reflexão o mundo do trabalho, vamos encontrar um intenso processo de alienação em que a liberdade de realizar é podada pelos ditames do modo de produção que sufoca a criatividade humana e o completa a obedecer a regras, a normas de comportamento, a determinações da máquina – o homem é robotizado para se enquadrar na nova ordem do capital. Daí a necessidade ética de por, na ordem do dia, o debate sobre a superação do capital. Debate este que objetiva a “humanização” do homem, especialmente na sua atividade fundante que é o trabalho. A reflexão ética aponta para um novo tipo de sociedade em que a atividade do trabalho seja empreendida como forma de realização humana, onde o trabalho não seja explorado e alienado e o prazer seja visto não na lógica utilitarista – como condição da natureza humana, contrário à dor, e como parâmetro do atendimento das necessidades da maioria – mas como telos subjetivo e objetivo da humanidade. Vale ressaltar, entretanto, que, devido ao avanço das civilizações, não é possível desvincular a ética teleológica daquela deontológica. Com efeito, o direito subjetivo precisa ser objetivado através de normas, sem perder de vista que estas normas são históricas e mutáveis. Faz-se necessário refletir se os princípios da “melhor vida para os homens” está sendo levado em consideração e quais estão sendo desrespeitados para que se altere o conjunto de normas que regula o comportamento social. Daí a mutabilidade inevitável das normas. Daí a necessidade de elaboração de novos direitos tais quais os direitos chamados de terceira geração como direitos ecológicos e das minorias (mulheres, homossexuais, negros, indígenas, etc.) Não que estes direitos não fossem necessários de serem regulamentados anteriormente, mas as condições históricas não permitiam a sua legitimação. Dada a indissolubilidade entre a ética teleológica e a deontológica, os princípios devem necessariamente ser objetivados sob a forma de códigos, normas, leis e práticas para se fazerem cumprir pelos membros da sociedade. A ênfase na ética teleológica, em detrimento da deontológica, nos faria cair no abstracionismo, na elucidação de valores universais, sem o devido acompanhamento das condições objetivas que fizessem vales tais princípios. É neste sentido que se coloca a proposta do projeto ético-político do serviço social e o código de ética de 1993. Com efeito, o projeto-político aponta para uma nova ordem social – princípio este preconizado também no código de ética de 1993 – e, com isto, indica a necessidade de se rever os princípios em que se fundamenta a atual ordem social. Sem sombra de dúvidas, o capitalismo, desde suas origens, se pauta no princípio da exploração do homem pelo homem, preconizando assim um processo avassalador de desumanização. A vitória do capital representa o avanço da lógica instrumental, pautada no princípio da denominação, da transformação do homem em mercadoria, objeto descartável que pode ser jogado fora quando não se presta aos interesses do sistema. Diante dessa realidade concreta, cabe à ética fazer a crítica do modo de produção capitalista e suscitar a discussão sobre a nova ordem societária que tenha como telos a felicidade, a humanização e a emancipação do ser social. Isto não é uma abstração, nem tampouco uma tarefa fácil de ser implementada: a ética de vê buscar subsídios nas demais ciências para realizar sua crítica e para fazer valer seus princípios. Daí porque nos currículos de serviço social, a ética, além de ocupar seu espaço enquanto disciplina, constitui-se também como temática transversal que perpassa todas as demais disciplinas, sendo o fio condutor da reflexão crítica e propositiva para o exercício profissional e para a produção de conhecimento sobre a realidade. O projeto ético-político do serviço social não se propõe, portanto, a ser um projeto redentor. A profissão de serviço social, ou melhor, os profissionais de serviço social têm uma direção social que lhes fornece a consciência do caráter contraditório que caracteriza a profissão, na sua interconexão entre o capital e o trabalho, bem como da impossibilidade de alcançar o telos de uma nova ordem social sem a conexão com um projeto societário que aglutine os interesses da classe trabalhadora. Este projeto societário é, na verdade, o projeto de uma nova ordem social – daí a sua dimensão política. Não se pode alcançar tal projeto sem passar pela articulação com os demais setores da sociedade, o que explica que o projeto profissional é também político. Neste nível da discussão, vale ressaltar que, apesar de historicamente, a política ter-se caracterizado como aspecto de dominação, isto não faz parte de sua essência. A política é a forma de organização que assumem as sociedades na sua dinâmica histórica; o que implica em dois aspectos bastante significativos: primeiro – que a superação da atual ordem societária requer uma articulação e uma profunda leitura da conjuntura política, e segundo – ninguém pode prever que a nova ordem social não necessite de uma organização política. Sendo assim, o adjetivo “político” não pode ser desprezado, nem menosprezado na configuração do projeto ético profissional. Trata-se de ver as coisas como elas são, Istoé, na sua dimensão rela e não utópica... Faz-se necessário, entretanto, algumas considerações sobre o que acabamos de expor. Em primeiro lugar, fazer referencia à política não significa dar prioridade à política em detrimento da dimensão antes de tudo, a consideração, a análise aprofundada dos componentes econômicos do modo de produção capitalista – enquanto as condições objetivas não forem dadas, não se dará a transformação. Mas, cabe lembrar, que a objetividade não se dá senão em sintonia com a subjetividade. Neste sentido, desejar e almejar uma nova forma de organização social é tão necessário quanto as condições objetivas. Este “desejo” requer e implica a socialização de valores como a liberdade, a igualdade e a justiça – bases fundamentais para uma nova ordem societária. O que torna possível falar em emancipação humana, em nova ordem societária. É a simbiose entre objetividade – subjetividade; ética – política – economia. Um outro elemento a considerar é a articulação com os demais setores da sociedade. Uma única profissão não pode se arvorar a tarefa de transformar a sociedade. Daí a necessidade de o serviço social estar em sintonia com os anseios populares, com os movimentos sociais, com as representações da sociedade civil – e tudo isto é política. Vale lembrar que todo o avanço implementado desde os anos 80, no que se refere ao código de ética, proposta curricular e desempenho profissional, deve-se à intrínseca articulação com os segmentos mais progressistas da sociedade e, em alguns casos, com o pioneirismo do serviço social na defesa incansável dos interesses da classe trabalhadora. O caráter ético-político do projeto profissional do serviço social consolida uma hegemonia no interior da profissão e é reflexo de uma adesão de classe, no sentido que busca estabelecer alianças com setores progressistas que se empenham na luta pela amplificação dos direitos sociais, tendo em vista um projeto mais amplo de sociedade. Não se pode negar, portanto, que o caráter revolucionário não esteja imbricado nesta postura de mediação política. Na realidade, lidar com a questão social, dentro dos moldes do modo de produção capitalista, significa estabelecer um processo de conquista que se efetua e se desdobra em duas faces: a imediaticidade da ação e sua projeção futura. O grande desafio é não perder de vista esta dupla dimensão unitária. E é exatamente dentro dessa tensão que foi elaborado o código de ética profissional de 1993. Com efeito, após as conquistas democráticas da Constituição de 1988, tornou-se urgente assegurar e lutar para ampliar os direitos sociais como forma de implementar um processo de avanço no âmbito da consolidação das políticas sociais. Se através destas políticas não se alcança um modelo de sociedade emancipada, não se pode deixar de entrever aí um processo de mediação, no marco das condições atuais do exercício profissional, desde que se tenha clareza dos limites e do alcance do projeto profissional. Como foi dito anteriormente, o código se insere na dimensão deontológica da ética e o ético-político-profissional, constitui sua dimensão teleológica. Por isso mesmo, vale ressaltar que o próprio código de 1993 contém em si, uma dimensão teleológica, quando, antes de apresentar as normas que devem regular o exercício profissional, reúne alguns princípios fundamentais que norteiam tais normas e apontam para o telos de uma sociedade emancipada – tal como previsto no projeto ético-político da profissão. Os princípios indicam um claro compromisso político com a classe trabalhadora, apontando na direção da ruptura com a ordem burguesa e se revelam como fundamento filosófico do agir profissional, denotando o avanço no campo teórico e de reprodução de conhecimento alcançado pela profissão. Se o código de 1986 rompia com o tradicionalismo, com o personalismo cristão e com princípios abstratos e neutros – característicos do neotomismo -; o código de 1993 preconiza uma apropriação teórica da produção marxiana, pautando-se na ontologia social de Marx e no seu projeto societário, o que se constitui como embasamento filosófico à leitura de realidade e atuação profissional. Vale ressaltar, aqui, que a discussão sobre ética, tão evidenciado hoje no serviço social, acompanha uma tendência mundial ao resgate do debate sobre a ética face ao aumento da miséria, das injustiças sociais, da corrupção política, bem como do agravamento da distancia entre países pobres e países ricos. Ao mesmo tempo, o avanço da ciência, especialmente na área da biogenética, vem provocando polemicas as mais diversas sobre o futuro da humanidade e as condições de vida para as próximas gerações. A inserção da pauta dos direitos humanos, colocada na ordem do dia, tem suscitado a necessidade de eventos tais como os fóruns sociais mundiais, discussão no âmbito acadêmico, formação de comissões de ética, assim como o surgimento de grupos de estudos e pesquisas no interior das universidades, tomando como eixo central a reflexão sobre a ética. Diante de tal contexto, conclui-se que o direito à vida está ameaçado, bem como a sobrevivência da própria espécie humana e do próprio planeta. Os interesses econômicos dos países ricos estão acima de qualquer acordo pela paz mundial (observe-se o exemplo da guerra dos EUA contra o Iraque), bem como de acordos ambientalistas em defesa da preservação da natureza. Isto demonstra que a discussão sobre a ética, no interior da profissão de serviço social, está em sintonia com um movimento internacional em defesa da vida e da “melhor vida para o ser humano”. No entanto, vale ressaltar que este movimento se coloca em oposição à lógica mundial da globalização do capital, visto que esta ameaça vem da própria contradição entre capital e vida. Neste sentido, a ética é discutida por setores progressistas, mas é, também, tema de setores liberais que, numa tentativa de justificação da ordem burguesa, vulgarizam e banalizam o próprio significado da ética. Podemos citar como exemplo a teoria dos jogos, defendida por Hayeck. Segundo este pensador, a sociedade funciona como um jogo, onde há ganhadores e perdedores; o jogo tem suas regras e todos devem aceitá-las, não existindo, portanto, a possibilidade de os perdedores se rebelarem contra os vencedores. Do nosso ponto de vista, esta é uma ética que preconiza desvalores, mas, para os liberais, trata-se de legitimar a lógica do capital. Podemos afirmar, seguramente, que não existe um consenso no debate ético mundial: constata-se uma tendência genelarizada de resgatar o pensamento de Kant, o personalismo comunitário de Jacques Maritain (neotomismo), o pensamento de Aristóteles (neoaristotelismo). Com efeito, autores como John Rawls e Jürgen Habermas, por exemplo, apesar das diferenças entre as suas abordagens, discutem a ética numa perspectiva neokantiana, buscando definir valores universais e normas procedimentais que regulamentem os princípios da justiça e dos direitos humanos. Rawls busca teorizar sobre um novo contrato social baseado na “autonomia” (defesa de interesses universais), identificando o estado da natureza com uma situação originária, em que todos estão inconscientes quanto à sua condição social através daquilo que ele chamou de: véu da ignorância. E nesta condição, seriam capazes de definir princípios de justiça para se alcançar um nível de equidade que, respeitando o princípio da diferença, atribui vantagens para todos, contudo, sem prejuízo para os mais avantajados. A teoria habermasiana, por sua vez, apresenta a ética do discurso, ou da comunicação, buscando estabelecer normas que regulamentem a forma de argumentação numa ordem democrática. Trata-se da busca do consenso, sem levar em consideração o conflito de interesses inerente ao conflito de classes, próprio do modo de produção capitalista. O comunitarismo, defendido por MacIntyre, resgata a vida virtuosa da polis e preconiza uma possibilidade de vida ética entre os que compõem uma mesma comunidade. Com efeito, seu livro “Além da virtude” é uma tentativa de salvar a cultura a partir do resgate da vida virtuosa de pequenos grupos. Rorty, por sua vez, enaltece o discurso da solidariedade, mas o transforma numa forma mesquinha de ser solidário: para ele, a solidariedade só é possível entre pessoas pertinentes ao mesmo grupo cultural, que comunguem da mesma língua e da mesma nacionalidade. Enquanto defensor do pós-modernismo, Rorty defende o radical nacionalismo e os interesses das grandes potências, amortecendo a luta por direitos humanos universais e por uma solidariedade entre os povos, em suma: Rorty não tem perspectiva do ser humano genérico. Esta rápida abordagem sobre o debate ético mundial nos possibilita constatar que não raras vezes, nele encontram-se verdadeiras deturpações do significado da ética. No debate ético mundial o que muitas vezes predomina são normas que possam dar sustentação ao capital, em detrimento de princípios que questionem a lógica da exploração. Por motivos de tal gênero, é que consideramos que tais abordagens não merecem ser chamadas de “teorias éticas”. É mais adequado chamá-las de teorias “antiéticas” que se camuflam em valores como solidariedade, justiça, equidade tendo como objetivo mais profícuo legitimar a ordem burguesa. Diante deste quadro internacional, vemos que o Brasil não foge a estas influências. Aqui também, o pós-modernismo invade, por meio de pura retórica, todas as áreas do conhecimento e da cultura nacional e a defesa de princípios verdadeiramente éticos torna-se cada vez mais difícil. No entanto, alguns setores resistem a esta influência neoliberal e conseguem formular um pensamento livre do pós-modernismo e de suas tendências nefastas. Entre estes segmentos, encontra-se o serviço social. Neste sentido, tanto o projeto ético-político do serviço social, quanto o código de ética de 1993, ao serem coerentes com a perspectiva marxiana, assumem uma postura revolucionária face ao caos instalado pelo capitalismo. Ele dá uma direção social à profissão, pautada nos ideais de emancipação humana, constituindo-se num protagonismo que desafia a realidade concreta e pretende transformá-la, numa perspectiva realista. Tal perspectiva encontra eco na leitura de realidade que serve como fundamento para a identificação dos princípios que dão sustentabilidade ao novo código de ética. Numa conjuntura adversa, marcada pelo neoliberalismo, busca-se redefinir o conceito de liberdade, entendida não como valor liberal, burguês, mas como ponto de partida e condição sine qua non para a relaização do homem como sujeito histórico e como ser capaz de auto-reprodução. A liberdade significa não apenas a capacidade de decidir e fazer escolhas individuais e coletivas, mas também a condição concreta de exercer o trabalho sem amarras da exploração e da alienação – o que só será possível em outro modo de organização social e não sob a égide do capital. Para isto, não basta ao serviço social restringir-se ao campo das políticas sociais que minimizam o desemprego e a miséria, mas buscar compreender criticamente as condições de trabalho que reproduzem as relações sociais que caracterizam a sociedade contemporânea. De um ponto de vista ético, a definição de mínimos sociais – herança do utilitarismo - não contempla o princípio da justiça social, nem tampouco da democracia que pressupõe uma “socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida” (Código de Ética de 1993). No entanto, é fundamental reconhecer a ambiguidade no fato do lócus de atuação do profissional de serviço social ser a política social, mais especificamente, a política de assistência. Como lidar, então, com esta contradição? O código de 1993 prevê dois princípios que parecem responder a esta interrogação: “posicionamento em favor da equidade e justiça social, que assegure universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, bem como sua gestão democrática” e “compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população e com o aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência profissional”. Na atualidade, os programas e políticas sócias são cada vez mais focalizados e seletivos, mesmo aqueles que tinham a universalização como proposta inicial. O assistente social, assim como qualquer outro profissional ou trabalhador, seja individualmente ou como categoria, não tem força política para assegurar a universalidade. Apenas à classe social cabe este papel. Mas o assistente social pode posicionar-se a favor desta universalização e somar com outros segmentos sociais, numa perspectiva de classe, sendo assim, protagonista de uma ideologia enfocada em princípios éticos. Na realidade, tais princípios parecem inserir-se na ótica da promoção de um Estado de Bem Estar Social, mais do que de uma sociedade emancipada. No entanto, entre o real e o possível, existe muito caminho a ser percorrido e é da competência ética fazer análise crítica do existente e oferecer subsídios que apontem para o devir. Optar por uma nova ordem social, exige uma atuação crítica e competente que favoreça o desmonte da realidade objetiva adversa e sinalize os princípios para uma nova ordem social. Trata-se de conquistar espaço dentro dos limites impostos pela lógica neoliberal e pela dinâmica do capital, enquanto esta for hegemônica. Tais elementos nos induzem a identificar no código de ética de 1993 e no projeto ético político do serviço social sinais de uma proposta revolucionária, não evidenciada em outras profissões. Seus princípios apontam para um compromisso com o aprimoramento intelectual, para possibilitar a competência profissional. E esta competência se revela, no cotidiano, na implementação de programas e políticas sociais. Compete ao profissional desvendar a lógica, os fundamentos e a direção de tais políticas e programas, produzir um acúmulo de conhecimentos sobre o seu significado e repassar, para o usuário, o serviço com boa qualidade e a concepção de direito nele contida. Na realidade, esta consciência do direito é ainda muito frágil na sociedade brasileira; nela vigora, ainda, o clientelismo e suas implicações mais desumanas de transformar o homem-sujeito no homem-mendigo, receptor de favores e das sobras dos mais abastados. É preciso, portanto, suscitar na sociedade um nível de indignação pelo agravamento da questão social, pelo empobrecimento da classe trabalhadora e pelo grau de miséria em que se encontram os considerados pela estatística como os que vivem abaixo do nível de pobreza. A indignação é o sentimento ético que reclama a justiça e faz emergir da indiferença e da naturalização da pobreza, a perspectiva da transformação, da crítica radical contra o antiético. Vale ressaltar que o conhecimento produz indignação, na medida em que desvenda a realidade e revela seu lado mais perverso: a exploração e o individualismo – desencadeadores de um processo de má distribuição de renda que se revela como questão social, expressa na fome, na morte prematura, na miséria, na violência e na desumanização. Estes desvalores fazem parte da lógica do capital que se alimenta continuamente da exploração do homem pelo homem; e porque não dizer, transformando seres iguais em seres desiguais, já que dentro desta lógica, o explorado assume a condição de animal. Um animal adestrado, obediente, servo, mas útil e fundamental ao processo de acumulação. Ou ainda, um objeto descartável, porque não produz, não consome, não existe para o capital – o miserável, abandonado nas ruas, vítima de toda sorte de violência: é este é o usuário do serviço social. Como contribuir para reverter este quadro? Como se inserir num processo de transformação? Hoje, o assistente social adquiriu consciência e conhecimento dos limites e possibilidades da profissão. O arcabouço teórico-metodológico e ético-político, acumulação nos últimos anos lhe dá segurança para compreender a realidade e intervir profissionalmente. Além disso, existe o sentimento de indignação que o impele a buscar os “porquês” e os “como”. Em outras palavras, busca-se o aprimoramento intelectual – ético – político que forneça os elementos necessários ao desvendamento da continuidade e um competente exercício profissional. Com isto, podemos afirmar que a ética é um movente, um elemento desencadeador de um processo que se inicia com a indignação e se consolida na postura crítica e investigativa. Como se vê, a ética não é uma abstração, não é apenas um conjunto de regras; é, antes de tudo, um componente de luta social. No que se refere ao projeto ético-político do serviço social, vale ressaltar ainda, que ele se gesta nas décadas de oitenta e noventa que foram décadas caracterizadas pelo processo de democratização do país e, por isto, o serviço social tende a ser protagonista de um processo que busca assegurar esta democracia como valor supremo da sociedade e das relações sociais. Apontando para o telos de uma sociedade emancipada, traz no seu bojo a necessidade de assegurar os direitos adquiridos e conquistados pela classe trabalhadora. Por combater as teorias neoliberais e pós-modernas, o projeto ético político do serviço social se embate contra o clientelismo, contra o assistencialismo, contra o conservadorismo e contra o tradicionalismo. E nada disso seria possível sem o esforço concreto das instâncias que representam a categoria profissional, como o CFESS, os CRESS’s, a ABEPSS, a ENESSO; nem também sem os segmentos progressistas no interior das universidades, no processo de formação profissional e produção de conhecimento, seja na graduação, seja nas pós-graduações. Trata-se de um protagonismo que se inicia com a “intenção de ruptura” e tem continuidade e rebatimento nas instâncias de representação da categoria que estiverem e estão presentes, de forma atuante, na defesa dos interesses dos trabalhadores, lutando lado a lado por mais conquistas sociais, pelo fim da exploração e da alienação, enfim, por uma sociedade emancipada. Este é o verdadeiro compromisso ético da profissão e é, através dele, que pretendemos contribuir com a dimensão ético/política para um processo social que elimine a exploração do homem pelo homem e resgate os princípios da igualdade, da liberdade e da justiça social. Referências Bibliográficas ABBAGNANO, N. Ética in Abbagnano N. Dizionario di Filosofia, UTET, Torino, 1988, pp. 437 -446. GEPE, Coletânea de códigos de ética profissional do (a) assistente social. Recife, CTC, 2003. HABERMAS, J. Teoria dell’agire comunicativo: I Razionalità nell’azione e razionalizzazione sociale, II mulino, Bologna 1997. HAYEK F. A. Legge, legislazione e libertà In MAFFETTONE S. – VECA S. Lídea di giustizia da Platone a Rawls. Laterza, Roma- Bari, 1997 pp. 304-318 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: teses sobre Feuerbach. São Paulo: Moraes, 1984. RAWLS J. Una teoria della giustizia, Milano: Feltrinelli, 1983. RORTY R. La filosofia dopo la filosofia: contingenza, ironia e solidarietà. Laterza, Roma-Bari, 1989. A crítica ética do sistema vigente: uma abordagem a partir da racionalidade instrumental e do formalismo moral de tipo utilitário Cláudia Maria Costa Gomes* Introdução A exclusão que se aprofunda radicalmente com o processo de globalização do capital no final do século XX e inícios do séc. XXI é um problema que afeta a realidade concreta de milhares de seres humanos, condição absoluta de apreciação da ética e das alternativas já presentes de libertação humana nesta experiência do processo de sociabilidade. O marco ou contexto desta ética é o processo de globalização do capitalismo, como processo de exclusão que afeta grandes minorias da humanidade e que se apresenta, sobretudo, como uma estratégia de enfretamento dos problemas que, paradoxalmente, solapa as bases do seu próprio sistema. Este cenário se configura, na realidade, como uma profunda crise deste projeto societário, que se expressa em uma conjuntura histórica particular, capaz de revelar o movimento orgânico que estrutura a vida social. Como efeito desta crise, verificamos hoje um amplo movimento de desagregação desse moderno processo civilizatório, onde a solução de conflitos na vida pública e na democracia ingressam numa frágil relação com o capitalismo, que se agrava com a desvairada corrida neoliberal, radicalizando ainda mais a ocorrência, a troca de mercadorias, a luta, a aquisição de propriedades e de poder, fazendo do cultivo à individualidade o valor supremo, como “fruto de um novo ethos social”, nos termos de Oliveira (1995:43) Ora, na forma em que se encontra tal processo, os apelos éticos e morais dessa nova sociabilidade fracassam em sua responsabilidade porque destroem as pessoas tidas no sistema como “sujeitos livres”. O homem não é, pois, verdadeiro sujeito, mas como contribuiu Marx1 na sua crítica à sociedade mercantil-capitalista, é identificado, pura e simplesmente como coisa, mercadoria, alienado do próprio gênero humano; ou seja, um indivíduo isolado e egoísta, para o qual a sociabilidade ética é apenas um apêndice. Por essa razão; * Doutoranda pelo programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ética – GEPE/UFPE. Email:[email protected] 1 Foi exatamente a partir desta concepção do homem como indivíduo isolado que se articulou a ética da sociedade moderna, contra a qual Marx vai construir toda a sua crítica. Já nos Manuscritos econômicofilosóficos, considera a eticidade capitalista como a perda do homem. O capitalismo aliena o homem do homem, e isso tem consequências na relação do homem com a natureza, com os outros homens e consigo mesmo. A eticidade capitalista significa a inversão do homem em nãohomem, já que os predicados atribuíveis ao hoemem (liberdade, propriedade) não são seus, mas sim do capital, o verdadeiro sujeito ontológico dessa configuração ética. (Oliveira, 1993:275). Neste argumento, parece-nos implícita a identificação com aquilo que, no pensamento da Escola Crítica, corresponde ao que Adorno denomina de mundo administrado. Um mundo no qual, “a consciência das pessoas foi manipulada de tal forma que elas perderam a capacidade de pensar criticamente” (Adorno, 1995:16). Consequentemente, a constituição de tal processo incide numa série de implicações no campo da ética, tornando na prática completamente inviável o exercício da máxima moralia no sentido Aristotélico. Para este filósofo, “a ética pressupõe um agir do homem em consonância com a natureza. Nesse agir, ele encontra o seu fim, o seu bem, a sua felicidade” (Palanca, 2001:49). O atrofiamento do pensamento crítico, promovido nas modernas sociedades do mundo globalizado, resulta na predominância da instrumentalidade da razão apoiada no progresso tecnológico e no hedonismo, característico do utilitarismo inviabilizando a sua dimensão emancipatória. Neste sentido, a superação da moralidade capitalista (fundamentado em um sistema formal de normas, juízos de valor e princípios) para uma eticidade alternativa significativa, pensando com Marx, a passagem para a constituição da sociabilidade onde “o homem é posto como sujeito verdadeiro2”. Isto implica, portanto, um modelo alternativo de sociabilidade onde a liberdade humana, significa a produção de homens livremente socializados, regidos por um modo de produção comunitária, autotransparente, expressando o que denomina ‘reino da liberdade’. E se isto não for ética, a expressão teria perdido seu sentido. A Razão Instrumental como expressão do Formalismo Moral O conceito de razão se apresenta na história do pensamento ocidental sob diversos aspectos. A partir da filosofia grega, várias expressões foram usadas para determinar o sentido correto do termo como noção, conceito, idéia, pensamento, palavra, visão (inteligível), sentido e significação. No entanto, é na modernidade que o conceito ganha autonomia, rompendo com a querela da filosofia medieval entre fé e razão. Kant foi um dos pensadores modernos que enfrentou esta situação, convertendo a metafísica em crítica da razão. Para ele, Cf. K. Marx. Na crítica ao Programa de Gotha ver a problemática do “reino da necessidade” e do “reino da liberdade”, 1984, p. 88. 2 A razão é toda faculdade de conhecer superior, caso em que o racional se distingue do empírico. É a faculdade que proporciona os princípios do conhecimento a priori. A razão se distingue do entendimento; este é a faculdade das regras, isto é, a atividade mediante a qual se ordenam os dados da sensibilidade pelas categorias, enquanto aquela é a faculdade dos princípios, a atividade que unifica os conhecimentos do entendimento nas idéias. (FM., 1974: 2457) Muitos são os significados da razão filosófica kantiana, mas o principal tem como endereço ser a faculdade que regula princípios orientadores que liberem a humanidade; eis a essência do ideal Iluminista. Segundo Horkheimer (1991:20), “o Iluminismo desde sempre seguiu o objetivo de livrar os homens do medo e de fazer deles senhores”. A razão que calcula, que faz ciência, nos primórdios da modernidade, tinha como finalidade precípua libertar e emancipar o homem da ignorância, da irracionalidade e do despotismo da Idade Média. Kant vai não apenas ser influenciado por essa postura, como também legitimá-la, tematizando a razão como primado/princípio da liberdade e da autonomia do homem. Ao defender a Revolução Francesa, ele dirá: “vivemos uma época de esclarecimento, de emancipação, de libertação. A humanidade começa a sair de sua menoridade”. (ibid, p. 23). No entanto, não obstante, a razão iluminista conter em sua gênese uma concepção emancipatória, foi sendo suprimida pela dimensão instrumental, imposta pelo domínio da burguesia emergente. A razão entra em crise na medida em que renuncia à busca pela racionalidade capitalista. O significado da razão, que deveria levantar questões fundamentais do sentido da existência humana, se reduziu a uma concepção meramente operatória, manipuladora das coisas e dos próprios homens. Em termos de reflexão filosófica, a crítica da concepção moderna de racionalidade é empreendida pela Krtische Theorie, a partir das análises de Adorno e Horkheimer sobre os impactos da barbárie fascista e a monstruosidade da segunda guerra mundial, compartilhado com a crítica marxiana da economia política, a análise da transformação da razão emancipatória para a razão instrumental no capitalismo monopolizado. Ao se referir ao logos grego, Horkheimer dirá que: “A razão, em seu sentido pleno, era uma autêntica ‘potência espiritual’, uma instância suprema que dirigia a vida dos homens”. No Iluminismo, “a razão se autoliquidou enquanto meio de julgamento ético, moral e religioso” (1991:23) Esta concepção instrumental da razão, que nasce com a ciência moderna e seu projeto de dominação da natureza, é um marco que cinde a subjetividade humana, transformando-a em objetividade coisal. Ora, o uso exato da razão, para assim, a ser condição fundamental de possibilidade de exploração, seja da natureza fora de nós ou da natureza em nós. Ao mencionar a origem da modernidade, Marx (1974:313) dirá que “pela primeira vez a natureza se transforma puramente em objeto para o homem, em coisa puramente útil; cessa de poder ser reconhecida como poder para si”. Assim, numa perspectiva instrumental da razão, a natureza passa a ser concebida como instrumento do próprio homem, sendo validado como racional unicamente o esforço de autoconservação, perdendo a razão, a preocupação em definir as tarefas mais nobres da existência humana. De tal modo, é coerente a afirmação “que o crescente poder de razão instrumental equivale ao aumento das formas irracionais de dominação, seja da natureza ou do próprio homem” (Silva, 2001:61), expressa tão bem pelo imperialismo sem limites, voltado para um ideal de progresso, que ideologicamente explica, a insaciabilidade do homem e os comportamentos dela resultantes. Na sociedade capitalista avançada, a reificação da produção material, a organização social e a ambição do homem, tornaram-se uma força cega, determinada pelo utilitarismo do mercado. Eis o que caracteriza, de maneira geral, a globalização; forma atualizada da dominação do liberalismo econômico. Trata-se de uma disseminação em escala mundial da economia de mercado, transformado no principal mediador das relações sociais. Neste processo, vão sendo gestadas no âmbito da sociedade, um certo ethos, uma dada moral e um modo de ser cujos valores vão legitimando o projeto societário , imposto pela nova ordem do capital. A moral passa a ser constituída como elemento que funda, não apenas o agir humano, mas, sobretudo as normas, os juízos de valor, as leis, os sistemas de eticidades e a política de um modo geral. Conforme Barroco, Na sociedade de classes, a moral cumpre uma função ideológica precisa: contribui para uma integração social viabilizadora de necessidades privadas, alheias e estranhas às capacidades de “subordinação das necessidades, desejos, aspirações particulares às exigências sociais” (Helle, 1975:133), ainda que não diretamente, mas através de mediações complexas, a moral é perpassada por interesses de classe e por necessidades de (re)produção das relações sociais que fundam um determinado modo de produzir material e espiritualmente a vida social. (2001:45). Assim, a moral constituída aí está presente na própria aquisiçãotransmissão de valores, tacitamente carregados de significações direcionadas para um jogo de regras formalizado, onde que domina é aquele que estabelece os padrões de regras socialmente impostas por grupos detentores de hegemonia. Tal jogo também se naturaliza de maneira sutil, mas ostensiva, no campo da política, pelo jurídicoinstitucional e convenções morais na sociedade. Na cultura, esta moral constituída aparece sobremaneira na forma de várias vertentes éticas, que não obstante, se constituírem com vistas ao bem comum, à equidade social, ou ainda, o melhor para os indivíduos humanos, contraditoriamente têm reforçado a manutenção de um sistema iníquo. Algumas correntes se destacam pela defesa de determinados princípios racionais, baseados em convicções, crenças e valores morais, visando ao estabelecimento da paz e da segurança universal entre os homens, graças a uma racionalização da vida, pretendendo instaurar uma concepção de político, calcado numa ordem de racionalidade ética e econômica de mercado. Destacaremos o utilitarismo como uma das principais vertentes do neocapitalismo. A Racionalidade econômica na perspectiva do Utilitarismo Sondando os fundamentos desta racionalidade, uma das doutrinas que se destacou na modernidade e teve como representantes Stuart Mill (1806), Adam Smith (1723) e Jeremy Bentham (1748) foi o utilitarismo moral, de tipo liberal, que tem como princípio o individualismo, fundamentado numa concepção do agir humano a partir de sua própria experiência e razão, caracterizado pelo interesse no particular, no que tange às ações, o bom é útil para o maior número de pessoas, na medida em que o meu interesse pessoal está envolvido. Ela aponta também para o fato de a utilidade ter uma relação direta com a conseqüência da ação, ou seja, o ato será apropriado se conferir bons resultados. A liberdade, assim, se expressa pela felicidade na satisfação dos interesses particulares, realizados como resultado último. No campo político, o utilitarismo assume maior alcance na doutrina liberal. Para Ramos, “Sua base está na primazia do indivíduo e dos seus direitos subjetivos; a política e o Estado são derivações da questão básica dos direitos individuais. O poder político não possui autonomia, ele participa da própria lógica dos interesses individuais” (1995:108). Assim, a discussão sobre o Estado e suas políticas se dá no sentido de limitar o poder deste, assumindo uma forma negativa em face à positividade da natureza (individual) humana. No campo técnico-científico, a tendência do econômico em anular conflitos é tremenda. A objetividade de que goza a racionalidade científica é técnica, substitui controvérsias ocorridas em vários graus ideológicos, anulando conflitos, produzindo uma espécie de neutralização, pela aceitação de soluções técnicas, das ações efetivamente políticas. A face ideológica resultante dessa racionalidade da doutrina moral hegemônica constituída no político, culmina no ideal das ações ético-políticas, que devem pairar acima dos conflitos existentes na base real da vida, visando ao consenso de grupos majoritários, estabelecendo a felicidade e a paz, no sentido de dar estabilidade social em pleno surgimento do caos. Como afirma Vásquez, Por não considerar as condições histórico-sociais nas quais deve ser aplicado o se princípio, o utilitarismo esquece que, nas sociedades baseadas na exploração do homem pelo homem, a felicidade não pode ser separada da infelicidade que a torna possível. (1997:143) Desse modo, tal perspectiva não consegue ir além de uma visão de mundo calcado num ideal infinito; o progresso3 O movimento que caracteriza este processo consiste na superação da própria finitude do indivíduo, onde o absoluto é o termo. Neste sentido, esse ideal projeta os indivíduos para a acumulação infinita da produção e riqueza, a maximização do lucro e da propriedade, concebidos em última instância como o bem-estar e a felicidade. Ora, para se tornar válida e aceita sua visão de mundo, o liberalismo também se utiliza de um discurso de tipo formal4, abstrato e racional-instrumental, que se expressa através de um procedimento institucionalizado de argumentação, fundado sobre regras políticas. Seu caráter nuclear se baseia na ética de tipo formal-discursiva, operando um deslocamento da finalidade última da política, que é a decisão para o campo discursivo. Esta outra característica da ética liberal encontra-se respaldada nas visões de alguns pensadores contemporâneos, que não obstante, elaborem todo um leque de teorias distintas acerca da relação ético-política, confluem malgrado, suas boas intenções, para uma ratificação da força avassaladora do liberalismo econômico. Os mais representativos são Jürgen Habermas, com sua teoria Ética Comunicacional e Jonh Rawls5 com a Teoria da Justiça. Estas teorias se fundamentam a partir da busca de princípios morais6, dotados de caráter universal (Istoé, válido para todos os casos) e concomitantemente formal (ou seja, que tal validade comece de uma dimensão pura, que anteceda a qualquer situação empírico-prática da vida humana, embora que deva servir para regular esta). A partir de uma compreensão da função ideológica que cumprem estas teorias, no que pensem as propostas destas éticas em estabelecer parâmetros éticos para uma redefinição do modelo de justiça, de verdade, liberdade, apregoados pela tradição liberal – que vem atropelado os direitos às necessidades básicas da humanidade, pela sua voracidade econômica, defendendo a ilimitada liberdade de acumular riquezas e concentrar-expandir a miséria global - elas não sabem criticar o capitalismo; não sugerem uma eticidade pós-convencional crítica, como parecem propor, mas se atêm a uma pós-convencionalidade formal no interior da hegemonia da eticidade, da cultura e do sistema dominante, sem consciência explícita da sua cumplicidade. “No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal”. (Dialética do Esclarecimento, 1985:19). Através de uma análise da negatividade inerente ao movimento Iluminista europeu Adorno e Horkheimer desmascaram a pretensão pseudo-humanista do progresso total da humanidade. 4 Nas nossas reflexões, as críticas referidas à moral constituída se endereçam a dois eixos mais importantes na constituição da moral hegemônica: o utilitarismo e sobre este, o desdobramento das éticas formais. 3 Contudo, é preciso ter presente, que tal postura, torna em princípio, toda ética impossível, já que o pressuposto da ética é a ação consciente e livre do indivíduo a respeito das coisas, do mundo e de si mesmo, ao passo que aqui, a liberdade projeta-se para um mecanismo exterior, autômato, regido pela lógica do mercado, e este realiza uma outra contradição, que consiste na recusa da ética em suas relações. Ora, esta moral constituída sobre a visão de mundo liberal, que instrumentaliza formalmente nosso mundo vivido, colocando toda a atividade política e as relações sociais no âmbito do discurso, radica com muito mais força e com uma nova versão na atualidade – o neoliberalismo - ignorando, cinicamente, os afetados-excluídos das mesas de negociação. Para Yasbek, Esta regressão liberal ao impor-se como lógica do capitalismo atual, consolida a dissociação entre mercado e direitos, aprofunda a cisão entre o econômico e o social, separa a acumulação da produção, instala desregulações públicas, reitera a desigualdade e a diversificação, busca eliminar a referencia ao universal e constrói, uma forma despolitizada de abordagem da questão social (2001:38). Ora, só a partir do exercício da razão ético-crítica é que podemos apontar a verdade deste sistema hegemônico, que se transfigura em sistema negativo, tão bem analisado pelo fetichismo de Marx, a dialética negativa de Adorno e Horkheimer, a inversão dos valores de Nietzsche, O princípio opressione de Dussel, entre tantos outros pensadores que lembram a razão moderna sua própria contradição, que se dá a partir de suas próprias vítimas, dominadas, oprimidas e excluídas, submersas na dor, na infelicidade, na fome, na pobreza e no analfabetismo. Já em 1996, a Organização das Nações Unidas – ONU – declarava que a pobreza a nível mundial atingia uma média de 400 milhões de pessoas, sendo 1,5 bilhões desesperadamente pobres e mais de um bilhão sobrevivendo com uma renda diária abaixo de um dólar, inclusive nos países desenvolvidos. No Brasil, de acordo com o IPEA, em 1999, 60 milhões de brasileiros já se inseriam em condições de vida abaixo da linha da pobreza, recebendo oitenta reais por mês e dentre estes, 24 milhões sobrevivem abaixo da linha de indigência, com quarenta reais por mês. A concentração de renda e riqueza é extrema; 1% da população detém 13,8% da renda total do país e os 50% mais pobres ficam com 13,5% sem contar que o salário mínimo é um dos mais baixos do mundo. Uma das principais obras de referencia de Rawls encontra-se traduzida para o português: “Uma teoria da Justiça”. Lisboa, Presença, 1993. 6 Na tradição filosófica é com Immanuel Kant (1724-1804) que se estabelecem as bases para uma elaboração das morais formais, acentuando o caráter racional da ação como único garante de atos genuinamente livres. 5 Marx (1997:144), ao criticar o modo concreto pelo qual o capitalismo nega a vida humana, vai dizer que “esta propriedade privada material, imediatamente sensível, é a expressão material e sensível da vida humana alienada”. A crítica se origina, a partir da análise da dialética da produção e reprodução humana que se desenvolve, através e/ou pelo trabalho, e que no sistema capitalista é objetivado, transformando o trabalhador em objeto determinado num mundo objetivo. Ora, porque na sociedade capitalista os indivíduos são tidos como proprietários de objetos trocáveis, cada um é relacionado com o outro à medida que pode obter dele algo equivalente a seu produto. Desta forma, se do ponto de vista da ética, O homem é fundamentalmente eticidade, ou seja, na própria terminologia de Marx, o conjunto das relações sociais, o reino da liberdade é a eticidade alternativa, pressuposta em todas as análises de O capital, como a totalidade que instaura o homem como sujeito ontológico, em contraposição à totalidade contraditória, conflitual, que é o modo de produção capitalista, fundado numa sociabilidade objetivamente mediada (Oliveira, 1993:277) Assim, quando Marx realiza uma hermenêutica da negatividade do sistema capitalista, que aponta na sua forma mais preemente para a desrealização do trabalhador, o faz, a partir do exercício da razão ético-crítica utópica num nível material, colaborando para a construção do sujeito histórico, como coletivo anti-hegemônico de vítimas, capazes de criar uma nova validade para além do capital. Portanto, a liberação do mundo vivido e de sua submissão aos ditames da autovalorização do capital, pressupõe a superação da moral por uma eticidade alternativa, que considere “a socialização plena da natureza humana, tendo como condição de possibilidade a socialização plena das relações humanas” (Idem: 281) Considerações finais Não obstante o enorme predomínio do capital financeiro globalizado, que impõe hegemonicamente todo seu poder, o mundo não pode ser induzido a esta única dimensão. Tal perspectiva é própria da concepção positivista, que instrumentaliza o mundo vivido e ideologicamente reduz o pensamento social. Não é à toa que a ética utilitária conta sempre com uma economia distribucionista, cujo valor da mercadoria é excepcionalmente estabelecido pelo desejo ou preferências do comprador, negando sempre que o produto já foi produzido por um produtor (o operário), cuja sorte significa o cumprimento de necessidades, não só preferências que nunca poderão ser descobertas pelo utilitarismo. Por isso, é preciso “ampliar a perspectiva, e pensar a sociedade e a cultura fora da prisão do mercado e do fetichismo tecnológico, imposto pelo neo-imperalismo realmente existente” (Castro, 2001:43). Negar as estruturas reais, que impedem a liberdade e a justiça a partir da crítica dialética dos problemas éticos. Como tal crítica é o lado teórico, assim a subversão e a revolução do lado prático da base da ética da libertação. Ela é, em realidade, na prática, o imperativo categórico, de derrubar todas as condições, nas quais o homem é um ser rebaixado, escravizado, abandonado, desprezível. (...) Sem tal negação como crítica e como subversão, não existe justiça positiva, nem concreta nem abstrata (porque, como diz a boca do povo, o pelego não pode ser lavado sem que seja molhado) (Thielen, 1994:2014). Assim, a crítica da sociedade é fundamentalmente ética, pelo fato de negar, abertamente a opressão, a destruição e a injustiça social. E o é também, porque transforma os sistemas de eticidades convencionais, ideológicas, numa forma de crítica teórica revolucionária e subversiva. Finalmente a crítica será ética se, na medida em que refletir a própria práxis ética, for capaz de mostrar os caminhos concretos para a emancipação da humanidade. Referências Bibliográficas BARROCO, Maria L. Silva. Ética e Serviço Social: Fundamentos Ontológicos. São Paulo, Cortez, 2001. BICCA, Luiz. Racionalidade Moderna e Subjetividade. São Paulo: Loyola, 1997. DUSSEL, Henrique. Ética da Libertação na Idade da Globalização e da Exclusão. Trad. Ephraim F. Alves et all. Petrópolis: Vozes, 2000. 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Rompendo com o tratamento da sexualidade em sua dimensão estritamente biológica, vários estudos trouxeram, para o debate, enfoques que transitavam em torno do reconhecimento das identidades sexuais, dos direitos reprodutivos e, mais recentemente, dos direitos sexuais. A orientação sexual constitui-se numa dessas temáticas que compõem a questão da diversidade, termo que utilizaremos, aqui, como uma definição estratégica que designa um conjunto de reivindicações sócio-culturais: igualdade de gênero e racial; liberdade de orientação sexual, dentre outras. Nosso objetivo é analisar como as forças de esquerda intervêm para modificar os limites da liberdade de orientação sexual. Esta temática ganha visibilidade quando o assunto é a violação dos direitos humanos. Entre algumas conquistas e um universo amplo de tratamento sóciopolítico-jurídico desigual, os problemas se repõem e as soluções, até aqui, soam epidérmicas. Resta-nos interrogar: quais os limites impostos por esta ordem de material na resolução das questões no campo da diversidade, notadamente na efetivação da liberdade de orientação sexual? A homofobia como prática sócio-cultural legitimada na sociabilidade vigente Partimos de três pressupostos fundamentais. Primeiro, a sexualidade humana, aqui, é pensada de forma concreta a partir da constituição da individualidade, que assume características e expressões determinadas de acordo com a sociabilidade capitalista, uma forma inteiramente histórica e essencialmente limitada de organização da vida social. * Agradeço as contribuições das por Andréa Lima, Sâmya Rodrigues e Marylucia Mesquita que discutiram este artigo comigo. ** Professora do DESSO/UFRN, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFPE e pesquisadora do GEPE/UFPE. E-mail: [email protected] Essa limitação se explica em virtude da “produção de mercadorias – não importa sob que forma concreta – ser o momento fundamental desta ordem social” (Tonet, 1999:101) e não a satisfação das necessidades humanas. Temos, assim, como segundo pressuposto que uma das características da sociabilidade do capital é a sua indiferença às identidades culturais e às diferenças subjetivas dos indivíduos sociais submetidos ao seu sistema de exploração. O terceiro aspecto refere-se ao fato de que, em nossa reflexão, as questões no âmbito da sexualidade humana não se constituem expressões superficiais ou periféricas da vida, mas representam uma dimensão profundamente significativa das relações humanas e do desenvolvimento da individualidade. A individualidade constitui-se um complexo social parcial1 e, como tal, é indissociável da totalidade da vida social. Dessa afirmação não resulta nenhuma apreensão mecânica entre a totalidade e os complexos sociais parciais, pois mediante o desenvolvimento da formação social, os complexos particulares se tornam cada vez mais mediados, contraditórios e enriquecidos com dilemas e desafios postos de modo permanente. Isso implica que a individualidade possui movimento e demandas próprias, embora, do ponto de vista ontológico, prevaleça, em sua configuração, as determinações oriundas do lugar e da função que ocupa na totalidade social. Nessa perspectiva compreender a sexualidade, como uma dimensão da individualidade, não significa admitir que esta possa ser pensada como uma espécie de essência, própria de um sujeito singular que vive isolado e independente das relações sociais. Ao contrário disso, o processo de individuação é uma construção social que revela o modo como os homens e mulheres produzem seus meios de vida e usufruem da riqueza socialmente produzida. De acordo com Palangana (1998:07), o ser humano nasce como um membro da espécie igual aos demais e se distingue, quer dizer, desenvolve propriedades diferenciadas na práxis social. Para torna-se um indivíduo em particular há que se apropriar da cultura, do legado das gerações precedentes, fazendo-o seu. Nessas condições, “a práxis social é o elo ontológico que articula de modo absolutamente necessário indivíduo e sociedade” (Lessa, 1995:82). “lukács denomina de complexo de complexos: as diferentes necessidades, cada vez mais humanas, postas pelo processo reprodutivo à sua continuidade, exigem o desenvolvimento de complexos sociais que, para cumprirem as funções que lhes são específicas, devem se desenvolver enquanto complexos distintos de processualidade social global. Quanto mais desenvolvia a formação social, maior a diferenciação entre esses complexos parciais e maior a autonomia de movimento e reprodução que exibem frente à totalidade social” (Lessa, 1995:72). 1 Na vivência da sexualidade, mulheres e homens expressam os conflitos da singularidade com tipos variados de dilemas, controles e critérios que orientam as escolhas individuais e as decisões afetivo-sexuais, ao tempo em que expressam, também, ainda que não de forma linear, as tendências históricas da generalidade humana2. Com isso, podemos afirmar que a realidade das relações afetivo-sexuais é construída historicamente, levando-se em consideração, dentre outras, as mediações da cultura e da afetividade não se constituindo, portanto, numa mera derivação biológica, nem algo estático, voltado, exclusivamente, para a reprodução da espécie e para o desenvolvimento imanente do indivíduo. A vivência amorosa e a prática sexual entre pessoas do mesmo sexo integram, praticamente, todas as sociedades, nas mais distintas épocas3. Resta, no entanto, identificar as razões sócio-históricas que fazem com que o capitalismo apesar de se apresentar, desde suas origens, como um projeto societário voltado para o reconhecimento dos indivíduos, na condição de sujeito de direitos, além de não absorver um conjunto de reivindicações de segmentos particulares que ficam destituídos do acesso a direito, não cumpre sua promessa de igualdade e liberdade, mesmo numa perspectiva formal, para todos os indivíduos sociais. Apresenta, ainda, enorme capacidade de utilizar, em benefício próprio, várias formas de opressão que atingem segmentos específicos da população. Exemplo disso é que o relacionamento entre indivíduos do sexo oposto se impõe como orientação aceita socialmente, enquanto qualquer envolvimento afetivo-sexual diferente da relação heterossexual é alvo de práticas discriminatórias. Temos que considerar, no entanto, que os problemas relacionados à discriminação e ao preconceito contra indivíduos que vivenciam relação homo-afetivo-sexual é anterior à sociabilidade do capital. Pela metade do século XIV, a visão de sociedade quanto à identidade sexual era muito diferente da que existira no mundo antigo. Essa mudança radical foi produzida pelas autocracias combinadas da Igreja e do Estado, que se recusavam a admitir a bissexualidade. A sexualidade estava agora tocada pela divindade de Deus e tornou-se sagrada (as mulheres eram tão marginalizadas que sequer eram consideradas). Em termos práticos, qualquer expressão sexual fora do casamento (...) estavam contaminadas pelo demônio (Spencer, 1999:119). “A generalidade humana, por ser a portadora última das necessidades originárias da reprodução humana, por ser a expressão máxima do patamar de universidade efetivado pelo gênero a cada momento, exerce o momento predominante no desenvolvimento social global e, portanto, seu movimento é ontologicamente prioritário frente aos processos dos complexos parciais”(Lessa, 1995:72) 3 Para resgatar o modo como relação afetivo-sexual entre indivíduos do mesmo sexo era tratada nas sociedades antigas Cf. dentre outros, Spencer (1999). 2 A bissexualidade, que até então era tida como dimensão integrante da sexualidade humana, torna-se proibida. Foi nesse período, quando a prática bissexual ganhou status de perversão sexual, que se instituiu uma espécie de polaridade na prática sexual, dividindo-a entre práticas que deveriam ser estimuladas, ou seja, àquelas desenvolvidas entre indivíduos de sexo oposto e as que deveriam ser reprimidas, porquerealizadas entre indivíduos do mesmo sexo. Estava consolidada, assim, o que Spencer (1999) denominou como sendo a criação do Estado Homofóbico, ou mais precisamente, a formação da sociedade homofóbica4. Dissemina-se, então, a naturalização de ações autoritárias e conservadoras voltadas para o controle social da sexualidade que, em nome do ideal “heterossexual”, procuram expurgar, com a utilização de formas extremamente violentas, a dimensão da bissexualidade da vida dos indivíduos. O resultado disso foi a institucionalização de práticas e valores no âmbito da família, da escola, enfim as relações sociais são impregnadas pela imposição da “heterossexualidade” como a única orientação sexual considerada legítima e saudável. Estavam decretadas, assim, as condições sóciohistóricas quanto à impossibilidade dos indivíduos orientarem sua vida afetivo-sexual com liberdade de expressão e de acordo com o desejo e o sentimento. Durante o século XIX, sucessivas gerações de médicos, na Europa e na América, dedicaram-se à busca da causa do que consideravam ser uma disfunção sexual. Até 1700 isto era tido como um pecado contra Deus e, portanto, uma falha moral e teológica. Tornou-se, a seguir, um crime social, contra o qual o Estado legislava. Agora estava por transformar-se numa inadequação médica e psicológica, que muito rapidamente poderia vir a ser uma doença mental. Esta passagem de pecado para crime, e daí para insanidade, foi provocada por mudanças sociais (Spencer, 1999:273)5. 4 O termo homofobia designa um conjunto de práticas que limitam a vivencia afetivo-sexual dos indivíduos, restringindo, ainda mais, as possibilidades para a realização da liberdade humana. “Fobia é um sentimento ou reação externa de rejeição a algo de que não gostamos, sobre o qual não concordamos, que não aprovamos ou do qual temos medo” (Gonçalves, 2001:13). A fobia é o medo e rejeição a uma determinada situação, levados ao extremo. Existe um tipo de fobia que se desenvolve em relação às pessoas, ao jeito de ser e viver. Nestes casos, a fobia se manifesta em relação à sexualidade, mas também à religião, à raça, ao estilo de vestir e falar, entre tantos outros aspectos que configuram o modo de vida dos indivíduos em sua contidianeidade. 5 O poder da medicina, tal como ocorreu com a questão racial, intensificava-se e muito contribui na formação da homofobia. As teorias médicas contrárias ao livre exercício da sexualidade foram bem aceitas pelos segmentos dominantes da sociedade, que assimilaram e disseminaram a relação afetivosexual, entre indivíduos do mesmo sexo, como uma anomalia da natureza, uma doença, algo que deveria ser extirpado da vida humana. No desenvolvimento histórico da sociabilidade humana, diferentes obstáculos sócio-culturais foram superados. Entender a relação específica entre cada uma das dimensões da diversidade e o sistema vigente remete à análise ontológica do direito e da política e à análise sócio-histórica, considerando as particularidades do desenvolvimento do capitalismo nos diferentes contextos e a função que assume determinadas ideologias. Obviamente, não faremos isto aqui. Observamos, no entanto, que a sociabilidade capitalista, ao se constituir numa forma de organização da vida social que se caracteriza pela subordinação de todos os valores humanos aos ditames da acumulação do capital e sua exigências de lucro, torna-se flexível, ora integrando, ora descartando a solução para as opressões particulares. O que é relevante ressaltar é que toda a vida dos indivíduos, em todas as suas manifestações é, de algum modo, colocada sob a ótica do capital. Desde o trabalho propriamente dito, até as manifestações mais afastadas dele, como a religião, os valores morais e éticos, a afetividade e as relações pessoais. O que não significa (...) que os aspectos, em sua totalidade, estejam subsumidos ao capital. Se assim fosse, sequer os indivíduos poderiam existir como indivíduos. Esta afirmação significa, apenas, que nenhum aspecto da vida social e individual, hoje, deixa de ser perpassado pelos interesses do capital (Tonet, 1999:102). Em nossa realidade, podemos afirmar que a homofobia está profundamente enraizada como prática sócio-cultural e ideológica legitimada. A homofobia está presente quando a vivencia afetivo-sexual diferente da heterossexualidade é considerada doença ou quando tomamos as diferenças de orientação sexual, entre as pessoas, como fonte de discriminação. Em maior ou menor grau de desenvolvimento, as práticas homofóbicas significam rejeição do outro que orienta sua vida afetivo-sexual desejando e amando indivíduos do seu mesmo sexo. Desse modo, fica estabelecido, no campo da convivência afetivo-sexual, uma separação radical entre práticas que são socialmente aceitas e estimuladas e aquelas que são condenáveis e proibidas6. Em síntese, podemos afirmar que são características desse tipo de fobia toda ordem de violência física, emocional e psicológica cometida contra quem vivencia relação homo-afetivo-sexual. As práticas de violência que avançam pelas ruas, pelas casas e pelas instituições das pequenas e grandes cidades são realizadas pela política, pelo Estado, mas, também, por homens e mulheres comuns, no seu cotidiano. Das piadas preconceituosas, passando pela violência policial e avançando para a violação e/ou não reconhecimento dos direitos. 6 Alguns historiadores discordam que esta separação tenha ocorrido no século XIV, argumentando que ela aconteceu mais tarde, no século XIX, quando passa a vigorar uma identidade sexual que se separa e se distingue da bissexualidade. O clima hostil e violento contra os segmentos homossexuais se passa num ambiente de “normalidade” que expõe as contradições e os limites da igualdade e da liberdade nesta forma de sociedade. As esquerdas e a questão da diversidade As práticas individuais e coletivas em defesa da liberdade de orientação sexual estiveram presentes nas mais diferentes épocas. Passo a contextualizar, em linhas gerias, duas tendências que repercutem mais fortemente no pensamento das esquerdas nos dias atuais. A partir da década de setenta e, principalmente, nos anos oitenta e noventa do século XX, o debate em torno da questão da sexualidade humana ganha novo destaque no ambiente político. Isto ocorre no contexto da crise de caráter estrutural da ordem do capital e das mudanças objetivas operacionalizadas para enfrentar esta crise; ao mesmo tempo é, também, a partir desse período que surge um conjunto de movimentos sociais (MS) com potencial contestatório dos valores sócio-culturais dominantes. De início, são as mulheres que, através do movimento feminista, conseguem apresentar, aos partidos políticos, suas reivindicações particulares, exigindo da esquerda uma redefinição do seu ideário político-cultural, até então centrado numa linguagem em práticas marcadas pela desigualdade de gênero. A idéia de que “a classe operária tem dois sexos” abriu o debate em torno da diversidade subjetiva da classe trabalhadora e da pertinência da esquerda assumir estas reflexões no seu campo teóricopolítico. Na esteira do movimento feminista, vieram, dentre outros, o movimento de negros e negras e o movimento pela liberdade de orientação sexual. Esse processo colocou em discussão o próprio conteúdo das lutas históricas da esquerda. A entrada na política cultural era mais compatível com o anarquismo e com o liberalismo do que com o marxismo tradicional, levando a nova esquerda a se opor a atitudes e instituições tradicionais da classe trabalhadora. Ela abraçou novos movimentos sociais que eram eles mesmos agentes de fragmentação da política da velha esquerda. Na medida em que esta última era, na melhor das hipóteses, passiva, e, na pior, reacionária (no tratamento das questões de raça e de gênero, da diferença, e de problemas dos povos colonizados e das minorias reprimidas e das questões ecológicas e estéticas), algum tipo de mudança política da espécie proposta pela nova esquerda por certo se justificava. Mas, ao fazer esse movimento, a nova esquerda tendia a abandonar a sua fé tanto no proletariado como instrumento de mudança progressista como no materialismo histórico enquanto modo de análise (Harvey, 1999:319-320). É nesse quadro histórico, de crise estrutural do capital, de decadência das sociedades pós-capitalistas e de crítica às estruturas históricas de organização política da classe trabalhadora, que se dá o fortalecimento do arcabouço teórico-político-cultural da pós-modernidade. O anúncio do fim da centralidade do trabalho na vida social e todas as conseqüências que advém daí, destacando-se, entre estas, a centralidade da política na vida social e o cancelamento das classes sociais, têm direcionado a análise e as estratégias de luta de boa parte da esquerda em nível mundial e nacional. No tratamento teórico-político dispensado às questões da diversidade, notadamente no campo da orientação sexual, este novo tipo de esquerda, denominado de “esquerda democrática” procura se diferenciar da “esquerda tradicional”7. Com o objetivo apenas de ilustrar esse debate, considerando os limites deste artigo, apresentaremos essas duas grandes tendências. A primeira tendência, protagonizada pela “esquerda tradicional”, herdeira de uma tradição determinista, mostra-se solidária com as lutas de grupos específicos, mas, na sua ação política, considera desnecessário e sem relevância social definir estratégias voltadas ao enfrentamento dos problemas apresentados no campo da diversidade, que ficam subordinados, de forma mecânica, à superação da ordem do capital. Tal subordinação fez com que o debate em torno dessa questão da orientação sexual, por exemplo, não ganhasse nenhum tipo de destaque no horizonte das estratégias de intervenção partidária. A “esquerda tradicional”, ao admitir que as reivindicações sócioculturais atravessam a luta como um todo, acaba por cometer uma espécie de desqualificação das demandas específicas, com o argumento de que a classe trabalhadora não pode se fragmentar nem se dividir. Reitera-se, desse modo, uma concepção restrita na articulação entre classe e cultura e entre indivíduo e gênero humano. Além disso, as reivindicações particulares no campo da diversidade são entendidas, equivocadamente, como uma questão “das minorias”. O equívoco consiste em desconsiderar que as demandas postas por esses segmentos, que são identificados como “minorias”, dizem respeito ao modo de organização da vida social e, portanto, seu enfrentamento vincula-se ao processo de desenvolvimento da sociabilidade e do gênero humano, não se constituindo questões de interesse apenas de determinados indivíduos, uma suposta “minoria”. Isso posto, podemos afirmar que a “esquerda tradicional”, pressionada pelos movimentos sociais e por militantes que vivenciam, em sua singularidade, algum tipo de opressão específica, admite a gravidade de múltiplas formas de opressão, no entanto, não agrega essa reivindicações à sua plataforma de luta. A segunda tendência revela-se através da “esquerda democrática”, que opera uma mudança significativa em relação ao tratamento dado pela “esquerda tradicional”, posto que há o reconhecimento quanto a relevância social e política de estabelecer, em seu ideário e no seu campo de atuação, estratégias de enfrentamento das questões que denotam a opressão em suas particularidades, seja em relação ao gênero, à raça, à orientação sexual, dentre outras. 7 O termo esquerda tradicional se refere aos segmentos que se identificavam com os postulados do marxismo-leninismo e com a orientação dada aos partidos comunistas em nível internacional. Esse reconhecimento não ocorreu de forma espontânea e imediata, mas num processo complexo de interação e disputa política, entre diferentes sujeitos individuais e coletivos que tensionaram a estrutura e os membros partidários para que acolhessem e valorizassem a agenda dos movimentos sociais e de outros diferentes segmentos sociais. Essa agenda tem sido trabalhada, no âmbito da “esquerda democrática”, a partir de um conjunto de iniciativas políticas que dão visibilidade social às formas de opressão particulares. Integra essas iniciativas, a defesa de que os sujeitos, protagonistas das reivindicações específicas, devem se auto-organizar para que possam ser reconhecidos como sujeitos demandatários de direitos. Isto denota a diferença do tratamento secundário e invisível que essas questões recebem na perspectiva da “esquerda tradicional”. Do ponto de vista da “esquerda democrática”, as reivindicações, quanto à questão da orientação sexual, devem ser incluídas no campo e no horizonte da luta pelos direitos humanos. À luta pelos direitos civis, políticos e sociais deve-se acrescentar os direitos sexuais, raciais, dentre outros. Assim, vislumbra-se que compete ao Estado, através do aparato jurídico-político, a resolução da desigualdade entre os indivíduos. Verificamos, desse modo, que a questão é remetida ao tratamento jurídico sem que se realize, no entanto, uma reflexão mais profunda sobre a desigualdade estrutural da sociedade capitalista e suas particularidades neste momento histórico de mundialização da economia em que o poder do capital define, conforme seus interesses de acumulação, a agenda social e política para o presente e o futuro da humanidade. Nos países de capitalismo periférico, a situação se agrava mediante o fato de que tem prevalecido, até aqui, uma integração subalterna à ordem mundial, com efetivação de uma agenda social contrária aos interesses da maioria da população. Segundo Sader (2000)8, “ se fosse definir sinteticamente a época em que vivemos, diria que se trata de uma época de expropriação de direitos. Do lado econômico, é uma época de desregulamentação e, do lado político e social, é uma época de regressão da civilização, de expropriação de direitos”. O horizonte da luta proposta pela “esquerda democrática”, no campo da diversidade, consiste em alcançar os direitos já conquistados pela população branca, no caso das reivindicações raciais ou atingir os mesmos direitos dos heterossexuais, no caso dos homossexuais. A “esquerda democrática” orienta os grupos específicos a conquistarem o que compreende que outros grupos já possuem. Desse modo, chegaríamos à conquista da cidadania e liberdade plenas e, assim, supostamente, ao ápice da liberdade humana. A individualidade é, então, entendida sob o signo da fragmentação e de uma concepção de identidade que, ao reconhecer as diferenças entre os indivíduos, centra-se em referencias teórico-políticas que deixam intacta a exploração capitalista. 8 Cf. Sader, Emir. Direitos humanos e subjetividade In: Psicologia, direitos humanos e sofrimento mental. Conselho Federal de Psicologia, 2000. Os fenômenos se explicam em sua imediaticidade e as estratégias de enfretamento, adotadas pela “esquerda democrática”, não possibilitam a superação das formas de economicismo e reducionismo da “esquerda tradicional” e nem conseguem ampliar a luta anticapitalista. Ao contrário disso, verifica-se uma espécie de definição estratégica compulsiva para a aceitação da ordem social existente e suas possibilidades de aperfeiçoamento. Para além da identidade de grupos específicos e da igualdade de oportunidades A “esquerda democrática” implementou, ao longo das três últimas décadas, uma ampla revisão teórica dos conceitos, tais como socialismo, democracia, cidadania, revolução, dentre muitos outros. O ponto de partida de suas reflexões, que resultaram nesta revisão conceitual, foi, em linhas gerais, determinada pela crítica às sociedades pós-capitalistas que suprimiram, por completo, a liberdade humana e não efetivaram a socialização da política. Trata-se de uma crítica à postura da “esquerda tradicional”, que, até aproximadamente a década de 1940, divulgava amplamente a tese de que a democracia e cidadania eram valores burgueses e que deveriam ser superados tão logo fosse instituída a sociedade socialista. Diversos fatos, contudo, vieram abalar essas convicções. Por outro lado, as conseqüências trágicas deste modo de pensar, nos países ditos socialistas. Todos tinham suprimido as liberdades democráticas e tinham se transformado em ditaduras brutais, tornando os homens menos livres e não mais livres como se supunha que aconteceria no socialismo. Por outro lado, nos países ocidentais, a sociedade capitalista tinha atingido um grau de complexidade muito grande, aí incluindo as instituições democráticas e os direitos do cidadão, de modo que seria impossível suprimi-los para substituí-los por uma ditadura, mesmo que essa fosse a da classe trabalhadora (Tonet, 2001:17). Os fundamentos teóricos e as estratégias políticas desse tipo de esquerda instituíram uma perspectiva de politização da totalidade9. Isto significa que a propriedade é discutir e intervir exclusivamente no plano político, desconsiderando a totalidade da vida social e os pressupostos que fundam esta sociabilidade. 9 As classes dominantes fazem, na sua trajetória histórica de intervenção na realidade, uma nítida distinção o discurso econômico e o discurso político como forma de estabelecer os procedimentos ideológicos de sua dominação. Assim, sob a égide do capitalismo, o indivíduo é destituído de suas determinações em nome da decomposição da totalidade em esferas particulares: a arena da política, da economia, da cultura etc. É uma das maiores e mais sutis vitórias da situação (...) fazer precisamente a oposição propor e polemizar, viver exclusivamente o “político”, enquanto ela própria – a situação – retendo todos os comandos, realiza seu projeto global (Chasin, 19977:147). Trata-se do enfrentamento da concepção determinista, legado dos postulados da II e III internacional e de uma série de interpretações teóricas e práticas que se formaram no último terço do século XIX, pela via da centralidade da política na vida social. Isto ocorre em detrimento da consideração da anatomia do social e implica no entendimento de que a política, a moral, o direito, a cultura, dentre outros complexos sociais parciais, podem ser apreendidos, exclusivamente, a partir de seu próprio movimento e do desenvolvimento da vontade humana. Os partidos políticos de esquerda, como é o caso do Partido dos trabalhadores, e outros movimentos sociais, que haviam participado de mobilizações contestatórias importantes, constituíram-se, em grande parte, nos países do ocidente, intermediações favoráveis ao conjunto da organização do modo de vida capitalista, ou como afirma Bihr (1988:11), estas forças de esquerda estão desempenhando muito bem “seu papel de força supletiva do capital”. As armas teórico-políticas, com que se reveste a “esquerda democrática” para enfrentar as opressões particulares, se estruturam no apelo à população e ao Estado para o desenvolvimento da esfera pública com participação ativa da chamada “sociedade civil”. A conquista da cidadania aparece como substituto da crítica à sociabilidade capitalista. As categorias da identidade, da diversidade e da diferença são tidas como aglutinadoras e capazes de explicar o tempo presente e o indivíduo atual com as suas crises de sentido na vida. Fundamentadas na concepção de que a singularidade, o cotidiano e a pluralidade regem a história, a “esquerda democrática” revitaliza um conteúdo quase que puramente liberal, afastado do horizonte teórico de um projeto de emancipação humana, quando não em explícita oposição a este. Essa orientação traz, como conseqüência prática, o fato dos indivíduos sociais representativos de grupos específicos, como é o caso de homens e mulheres homossexuais, terem que remeter suas reivindicações ao terreno jurídico-político, como horizonte máximo para a realização da igualdade. Nesse sentido, acredita-se que é pela correlação de forças estabelecida, principalmente, no parlamento, que será possível fazer avançar seus direitos, num processo contínuo até conquistarem cidadania e liberdade plenas na vida social. A perspectiva é de que a aprovação da lei resulte na conquista do direito, que por sua vez, implica na conquista da cidadania, dos direitos humanos e da liberdade. Duas questões derivam dessa orientação dada pela “esquerda democrática”. Em primeiro lugar, igualdade formal e liberdade são entendidas como sinônimo e, em segundo lugar, ao invés de incluir as demandas sócio-culturais no universo de um projeto societário alternativo, as forças de esquerda tendem a se distanciar da elaboração desse projeto, fixando-se na luta por uma suposta igualdade de oportunidades para diferentes indivíduos e segmentos sociais. Observa-se, aqui, que não se trata de desvalorizar as lutas por direitos, mas de reconhecer a incapacidade do aparato jurídico-político para resolver opressões ideologicamente consolidadas. Afinal, os valores têm fundamentação objetivo-subjetiva. Desse ponto de vista, na reconstituição de um projeto político alternativo à sociabilidade do capital é vital a inclusão das questões relacionadas à individualidade e à diversidade, que, no entanto, não podem ser explicadas a partir, exclusivamente, da identidade de grupos específicos, numa apologia à política da fragmentação, em que as questões, alem de serem descoladas da base material, são entendidas em sua dimensão estritamente singular e cotidiana, sem conexão com as conquistas e dilemas históricos do gênero humano. Extravia-se, assim, a relação dialética entre a individualidade e a forma societária vigente com seus avanços, contradições, ambigüidades e condições destrutivas. Essa ruptura entre o gênero humano e a singularidade; entre a política, o direito, a cultura e a totalidade da vida social tem sido a tônica das teorias pós-modernas que atestam e investem numa posição teórico-política centrada na narrativa do “Eu”, em que a concepção de identidade “torna-se uma celebração móvel” (Hall, 2003:13) que está fundada numa estrutura deslocada com pluralidades de centros de poder (Laclau, 1992) em contraposição às grandes narrativas e, notadamente, ao fato de que “os complexos sociais sempre funcionam com base em reciprocidade dialéticas” (Mészáros, 2002:269). Tem sido neste ambiente teórico-político, deslocado da totalidade da vida social, que a “esquerda democrática” de modo hegemônico, elabora e estabelece sua estratégias. Uma das conseqüências dessa forma de pensar é a contraposição entre os interesses de classe e as questões da diversidade, como se a valorização de uma das dimensões, implicasse, necessariamente, na desvalorização da outra. Na perspectiva de criticar a “esquerda tradicional” que, simplificava, numa redoma economicista10, o entendimento da identidade de classe, da individualidade e da formação do sujeito revolucionário, a “esquerda democrática” tem contribuído para enfatizar o processo de formação de identidades de grupos específicos à medida que obstaculiza, de modo acentuado, a identidade de classe. Isso porque tem se configurado uma tendência de pensar os indivíduos a partir de demandas cada vez mais específicas. Essa concepção fragmentada do sujeito, que o aprisiona em sua dimensão singular, traz como conseqüência imediata o fato de que a esquerda passa a estruturar suas lutas, no horizonte do pensamento burguês, que instaura a cisão entre o ser genérico e o ser singular, fixando sua atenção para a imediaticidade da vida cotidiana, onde reinam os indivíduos entregues aos seus interesses particulares. No horizonte da “esquerda tradicional”, questões como a coragem, a disciplina e a solidariedade de classe pareciam encerrar o debate em torno da subjetividade. As determinações de gênero, etnia e orientação sexual, que tantas implicações trazem na formação do indivíduo, dando, inclusive, origem a vários dilemas da vida pessoal, não foram consideradas na constituição de um projeto societário alternativo. Formou-se, assim, uma identidade política do sujeito revolucionário, sem problematizar, em profundidade, determinações no campo sócio-cultural. 10 De outro modo, trata-se de recuperar os fundamentos teóricos para a compreensão da individualidade em sua relação dialética com a genericidade humana. A sociabilidade constitui a determinação central da individualidade por se tratar do conjunto de relações que os indivíduos desenvolvem entre si, à medida que produzem sua existência. Nesse sentido, as possibilidades de desenvolvimento estão circunscritas e delimitadas pela sociabilidade. Isto implica admitir que os indivíduos são, necessariamente, sociais e que suas ações e sentimentos não podem ser entendidos fora da vida social, de forma isolada e autônoma. A vida social constitui-se numa totalidade articulada das relações que os indivíduos estabelecem entre si. Há um caráter nitidamente social determinando a individualidade e isto faz com que o processo de individuação seja algo que acontece na dinâmica societária, configurando um processo extremamente complexo de determinações e contradições.Diante disso, pensar, do ponto de vista de classe, não significa destituir os indivíduos de sua individualidade, diferenças e diversidade. A classe como “unidade na diversidade” é especificada, ela própria, pela autonomia dos indivíduos que a compõem. Pensála como matriz única a partir da qual se constituem os indivíduos como sua repetição ao nível micro é não entendê-la como produto da multiciplicidade desses indivíduos. A classe é, portanto, um coletivo de indivíduos. Coletivo que deve ser enriquecido pela história empírica desses indivíduos enquanto construtores da(s) racionalidade(s) social (ais) (Dias, 1996(b): 39). Trata-se, pois, de um processo histórico de construção de uma “coletividade individualizada” que, sendo heterogênea e diversa na sua constituição, através do seu modo de ser, de viver e de aprender a realidade, busque homogeneizar sua intervenção, através da elaboração de um projeto societário que apanha a totalidade da vida social, distinguindo, do ponto de vista ontológico, o momento predominante da dominação burguesa e suas formas de alimentar ou desconsiderar variados tipos de opressão sóciocultural. Vale enfatizar que, sob o controle do capital, o reconhecimento da diversidade sócio-cultural tem implicações sócio-jurídicas. No entanto, tais implicações são revestidas de um caráter formal e não podem se objetivar como resultado meramente da vontade humana ou do consenso intersubjetivo forjado, de modo político, entre as parte dos indivíduos e suas representações coletivas. Apostar nessa perspectiva de enfretamento é “desconhecer, por um lado, a força e o peso material das ideologias, e por outro, reduzir a luta hegemônica ao jogo iluminista do esclarecimento (...). Nenhuma Ciência destrói ideologia alguma. Enquanto a ideologia criticada tiver base social/material ela permanece” (Dias, 1996(b): 19). Considerações Finais A causa da igualdade das mulheres, dos segmentos afrodescendentes e homo-afetivo-sexuais, dentre outros segmentos específicos, tende, até aqui, a permanecer não-integrável à dinâmica societária atual, apesar de muitas conquistas históricas. A promessa de oportunidades iguais “é utilizada como desvio mistificador pela ideologia dominante, permanecendo para os que aspiram a uma oportunidade tão impalpável como um sonho impossível, é grande a tentação de virar as costas para toda essa questão da igualdade e procurar vantagens relativas para porções mais ou menos limitadas de homens ou mulheres em posição ideológico oco da igualdade de oportunidades tenciona obter prometendo um avanço em direção a uma condição cuja realização está negando e ao mesmo tempo excluindo a possibilidade de uma ordem social equitativa” (Mészáros, 2002:301). A impossibilidade objetiva para efetivação da igualdade substantiva e real nas microestruturas e no plano das relações interindividuais reside no fato histórico de que o sistema do capital não pode se manter sem reproduzir relações hierárquicas de poder entre os indivíduos sociais, inclusive “nas menores microestruturas ou microcosmos da reprodução e do consumo habitualmente teorizados sob o nome de família” (Mészáros, 2002:268). Embora as variedades existentes de hierarquia com potencial discriminatório expressas nas relações de gênero, nas relações raciais e no campo afetivo-sexual, não se constituam na causa original da desigualdade e do exercício de relações antagônicas do sistema de funcionamento do capital, neste momento histórico, elas estão emaranhadas numa rede de relacionamento dialéticos, profundamente afetados pelas características estruturais fundamentais de todo o complexo social. Isto não significa que as lutas e iniciativas contra as formas de discriminação e preconceito, no tempo presente, não sejam necessárias e importantes. A questão está em discernir, do ponto de vista teórico-político, tanto as estratégias como o horizonte da luta. É preciso considerar que o paradigma hegemônico, em busca de sua legitimidade, vai se remodelando e, mediante as lutas dos movimentos sociais e demais organizações coletivas, incorpora algumas reivindicações postas pelos sujeitos coletivos que atuam no terreno da orientação sexual. Esse processo tem sido tenso e profundamente ambíguo, pois se, por um lado, identificamos algumas mudanças, que são importantes para o reconhecimento dos direitos e valorização dos diferentes segmentos, por outro lado, este processo é feito mediante a lógica mercantil, em que os sujeitos são respeitados, sobretudos, por sua condição de consumidor. Nossa constatação é que, mesmo depois de tantas décadas de lutas, ao invés da resolução, os problemas se repõem e as novas gerações são formadas num ambiente sócio-cultural que tende a ignorar ou tratar, em nível formal e superficial, as diferenças reais e subjetivas, presentes no modo de vida dos indivíduos. Isso porque as questões da diversidade só entram no circuito de atenção do capital quando podem ser reapropriadas para os propósitos do lucro e da mercantilização. A família ocupa uma função ideológica de destaque no processo de reprodução social, à medida que, além de ter a responsabilidade na garantia das condições físicas e emocionais das futuras gerações, é no convívio familiar, onde primeiro ocorre a socialização dos valores que incidem na formação de homens e mulheres. Esses valores tendem a reproduzir, ainda que não de forma mecânica, os fundamentos básicos da sociabilidade do capital, em que os interesses particulares prevalecem face aos interesses da humanidade. Assim, a família, mesmo se constituindo, também, um núcleo afetivo, nesta sociabilidade, é atravessado pelas determinações mais gerais da produção material, não sendo, pois, um espaço independente e autônomo das relações sociais. Ao contrário, por seu intermédio, se repõe, de modo permanente, uma espécie de treinamento sócio-afetivo voltado para a produção de individualidades subalternas à lógica de convivência sócio-cultural, posta pelo projeto societário dominante. As práticas afetivo-sexuais, desenvolvidas entre indivíduos do mesmo sexo, têm potencial questionador sobre essa estrutura familiar, afinal, por intermédio dessas práticas, entra em discussão o questionamento da relação afetivo-sexual ter como principal finalidade a reprodução da espécie, assim como podem ser questionados os valores machistas e a própria estrutura hierárquica e de posse entre homens e mulheres, instituídos pelo casamento monogâmico e pela dominação masculina, dentre outras questões. No entanto, para que esse potencial questionador se consolide e possa integrar as reflexões e estratégias no processo de elaboração de uma nova hegemonia, é necessário compreender que as mudanças nas instituições, como é o caso da família, por mais bem intencionados e profundas que possam parecer, não têm força para transformar o solo matrizador da formação sócio-econômica da sociedade. As iniciativas de mudanças sócio-culturais, quando postas isoladas da luta pela emancipação humana, acabam se constituindo em ações insuficientes e fragmentadas, desenvolvidas por alguns indivíduos que, apesar de todo o empenho, são derrotados na perspectiva de superar as diversas modalidades de opressão que incidem na forma da individualidade. A sociabilidade vigente, em sua dinamicidade, absorve reivindicações, no campo da diversidade, submetendo-as, no entanto, ao controle do capital, longe, portanto, da valorização do gênero humano e de suas diferenças subjetivas. Não foi à toa que ao final do longo estudo sobre a história da orientação sexual, Spencer (1999:13) tenha sido levado a concluir que “nossas sociedades ocidentais têm se mostrado ultimamente mais homofóbicos do que nunca; não talvez na legislação, mas nas atitudes morais”. Referências Bibliográficas ANDREUCCI, Franco. A difusão e a vulgarização do marxismo. In: HOBSBAWM, Eric J. História do Marxismo II: o marxismo na época da Segunda Internacional. Tradução de Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. BIHR, Alain. Da grande noite à alternativa: o movimento operário europeu em crise. São Paulo: Boitempo, 1998 CHASIN, J. A “Politização” da totalidade: oposição e discurso econômico. In: Revista – Temas de Ciências Humanas nº 02. São Paulo: Editorial Grijalbo, s/d. DIAS, Edmundo Fernandes. Cidadania e Racionalidade de classe. In: Universidade e Sociedade. Ano VI Nº 11, Junho, 1996(a). __________.Hegemonia: racionalidade que se faz história. 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O fato de ser a última a falar me dá o privilégio de ir aprendendo, agregando, reformulando e, desse modo, fortalecendo minhas próprias idéias, no decorrer das apresentações de cada conferencista. Assim, os temas desenvolvidos, aparentemente díspares em suas especificidades, reforçaram a argumentação que irei desenvolver no debate que vamos aqui estabelecer. Com isso, foi possível perceber que os temas tratados constituem aspectos de uma mesma realidade, forjada sob determinações sociais que configuram o processo contemporâneo da reprodução social, cuja determinação maior são as atuais condições da valorização do capital. O denominador comum articula e dá sentido a esta Mesa na qual se analisa a saúde, a assistência social, as questões da criança e do adolescente, previdência, ética e educação, refere-se ao caráter das estratégias necessárias para criar as condições que possam restabelecer os padrões de lucratividades do capital. Enredados em seus próprios limites, potencializados pela extensão e durabilidade de uma das mais complexas crises experimentadas pelo capitalismo, os desdobramentos do fenômeno ampliam as necessidades da produção e realização do valor, única forma do capital combater sua imanente tendência de queda da taxa de lucro. A necessidade de superar ou moderar os efeitos daquela tendência instaura um movimento de contra-tendências no qual, tudo o que pode representar obstáculo à restauração do lucro, deverá ser destruído/recriado ou simplesmente remodelado/atualizado, em função do estabelecimento de outros padrões de sociabilidade e de acumulação capitalista. Mecanismos e práticas sociais consolidados no embate das classes sociais, assegurados pela ideologia e pelo aparato estatal, perdem organicidade, transformam-se e se recriam no movimento desencadeado no enfrentamento da crise contemporânea do capital. * A autora preservou a forma da apresentação feita por ocasião do evento comemorativo ao Dia do Assistente Social, realizado na Universidade Federal de Pernambuco, em 15-5-2003. **Professora do Departamento de Serviço Social da UFPE. Assim, o que foi construído como coisa pública, no período compreendido entre a crise de 30 e esta que se inicia nos anos 70, conquistado como direito coletivo, patrimônio das classes trabalhadoras, encontra-se, presentemente, em radical processo de reconfiguração ou mera supressão. A sociedade vive um momento em que se redefinem as condições da reprodução social sob as quais o trabalho se reestrutura, emergindo em condições de maior subalternidade e conseqüente precarização. Avalizado e amparado pela ideologia neoliberal que legitima a reforma do Estado destinada, prioritariamente, a ceder o espaço público ao privado e firmar a primazia do mercado, o capital lança mão de tudo o que pode ser mobilizado para produzir taxas adequadas de lucratividade. Os pressupostos apenas citados indicam o fio condutor da análise das questões que este seminário enfeixa como Situação das Políticas Públicas no Brasil. Passemos aos aspectos que me foram designados: ética e educação, que possuem entre si uma íntima relação no processo da reprodução social. Não se pode pensar em educação sem uma recorrência à dimensão ética dessa prática social. Do mesmo modo, não dá para falar da ética sem a dimensão educativo-pedagógica que esta implica. Homens e mulheres, como sujeitos de sua autocriação, não nascem humanamente, socialmente, completos. Eles permanecem no mundo como seres em formação e, como tais, são um permanente devir com o próprio mundo. Em tal processo o trabalho tem a centralidade, pela preeminência no ato originário do ser social. E ainda, nesse processo de autocriação do homem pelo trabalho, isto é, de conquista da humanização do ser social, a educação e a ética tornam-se componentes essenciais da construção coletiva e universal que é a História. Como nos ensina o grande e sempre atual filosofo que formulou a matriz teórica capaz de desvendar os mistérios da sociedade capitalista, sob este modo de organização social, ainda vivemos a pré-história da humanidade. Por isto é preciso especificar qual ética e qual educação falamos para que se entenda que nem a ética, nem a educação, surgiram com o capitalismo e nem com ele irão desaparecer. A educação e a ética como dimensões da práxis humana, são constitutivas do processo da reprodução social e, desse modo, sofrem transformações historicamente determinadas. Em seus diferentes momentos históricos, a sociedade teve necessidade de uma conduta moral que, por sua vez, supõe uma prática socializadora, organicamente vinculada às relações sociais de produção vigentes. O problema, portanto, não estaria em desenvolver argumentos acerca dessa necessária relação entre ética e educação, nas diferentes formas históricas de organização social, mas temos um desafio contemporâneo que é compreender-lhes o significado, isto é, o tipo de relação que as vincula e as tendências que tal relação assume, no atual momento do capitalismo. Inicio pela análise da educação e, para ser mais direta, da educação superior e da instituição que a realiza – a universidade. Que ensino, que pesquisa, que extensão, que formação acadêmica estão sendo produzidas? O que o capital em crise está requerendo da universidade? Qual ethos presente na concepção e nas práticas educativas efetivadas pela universidade nesse momento de reorganização do capital para fazer frente aos seus inelimináveis e agora, ainda mais, exacerbados antagonismos? Tenho como referencia o Brasil pós anos 90, na perspectiva da forma subordinada de sua inserção na mundialização do capital. A universidade, em diferentes países, vive a redefinição de suas relações com a sociedade, o que significa dizer que a própria sociedade se re-configura. A educação superior, de forma generalidade, desloca-se, cada vez mais, do âmbito do Estado para o terreno dos negócios privados transita, a passos largos, do campo dos direitos coletivos para o setor de serviços transacionados como qualquer outra mercadoria. Como fenômeno, essas transformações na educação e na universidade, têm registro em países centrais e periféricos, de todos os continentes, sendo vasta a literatura que dá conta do problema. O foco das análises nessas diferentes realidades é a crescente mercantilização do ensino e da pesquisa, na universidade. Autores franceses, denunciam A morte da República das Letras por um visível Naufrágio da Universidade. Na Inglaterra, Itália, Estados Unidos, encontram-se movimentos críticos e de resistência aos vínculos, cada vez mais estreitos, observados entre as atividades acadêmicas e os interesses mercantis. Nesse último país, a questão é considerada uma autêntica “vampirização mercantil”. Na América Latina, segundo dados do Banco Mundial, o Brasil é o único país a não ter completado o processo de privatização do ensino superior público, realizado pelo Chile, durante o golpe militar. Contudo, tal processo se encontra aqui em estágio bastante avançado. O censo realizado pelo MEC, em 2000, demonstrava que 85% das instituições de ensino superior, existentes no país, eram privadas. Em 2001, um milhão e duzentos mil novos alunos ingressaram na educação superior, dos quais, 92% foram para o ensino privado e somente 8% para as instituições públicas. No ano de 2002, esse número alcançou o teto de três milhões de estudantes e desses, mais de dois milhões foram para instituições privadas. O mesmo ano registra, pela primeira vez no Brasil, que das 20 maiores universidades em número de alunos, as duas primeiras posições passam a ser ocupadas por universidades privadas (UNIP e Estácio de Sá). Até 2001, esses lugares eram da USP e da UFRJ, respectivamente. Nesses últimos oitos anos, o negócio da educação superior é o que mais se tem expandido no país, sendo autorizadas pelo Conselho Nacional de Educação. E se o ensino superior transforma-se numa mercadoria, a universidade torna-se a empresa que vende esse serviço que mundialmente se afigura um dos mais promissores, em função da garantida lucratividade. O negócio da educação superior, tornou-se um dos ramos mais disputados nos mercados internacional e nacional, movimentando uma imensa soma de dinheiro alimentada por dois vetores: o dos investimentos que o setor recebe e que variam entre 5% e 7% do PIB dos países desenvolvidos e, entre 3% e 4% nos países em desenvolvimento; o da venda dos serviços educacionais pelos quais as camadas mais pobres da população devem pagar para ter acesso. E apesar dos índices de inadimplência e ociosidade se revelarem elevadíssimos, no Brasil as empresas da educação já encontraram meios de se defender, articulando-se com o capital financeiro. Existem bancos especializados em oferecer serviços ao setor da educação privada, nos diferentes níveis – infantil, fundamental, médio e superior. Dentre esses serviços, destacam-se: o crédito educativo aos estudantes que não podem financiar sua própria formação e os empréstimos aos empresários da educação para investimento nas suas organizações, mediante a transferência da cobrança das mensalidades ao banco que realiza o empréstimo que, desta forma, tem a sólida garantia da remuneração do seu capital. Quando a OMC foi criada, em 1955, como uma espécie de governo do mercado mundial, um dos primeiros itens da agenda negociada com os 140 países signatários (e o Brasil é um deles), foi precisamente a educação. Na OMC existem propostas de 4 países (EEUU, Japão, Austrália e Nova Zelândia) para comercializar livremente, serviços de ensino a todos os níveis, em qualquer país. Na pauta de exportação daqueles países, a educação figura como um dos itens principais. A comercialização deve ser feita como qualquer outra mercadoria: à base de join venture, franschaising, acordos, parcerias e, diretamente, abrindo sucursais e, mesmo, virtualmente, como educação à distância, oferta já bastante comum nas páginas de anúncios dos jornais de grande circulação no país. Como todos sabem, a função da OMC é, precisamente, derrubar todo e qualquer tipo de barreira que impeça a livre circulação das mercadorias, e, dentre estas, a educação. Para o Banco Mundial e o FMI, o ajuste estrutural dos países periféricos coloca a privatização do conjunto das políticas sociais públicas, como finalidade prioritária. No caso do Brasil, em diferentes governos, tem se verificado não só o acatamento dessas diretrizes, como tem sido notório o adesismo governamental na sua efetivação. Assim, os mecanismos do processo de privatização têm sido implementados no país e se mais não se efetivaram, deve-se à resistência de alguns setores da sociedade civil organizada. O crescente corte de recursos e os remanejamentos orçamentários têm deixado à míngua as instituições de ensino superior gratuito. Assediada pelo mercado, a universidade pública, no Brasil, afasta-se da possibilidade de vir a ser um lugar de ensino e de pesquisa voltado aos interesses maiores do país, na medida em que se torna palco de empresariamento de negócios e mercantilização de serviços. Para isso, a instituição se comporta empresarialmente, comercializando funções, atividades e espaços acadêmicos, como os hospitais universitários, auditórios, cursos de pósgraduação, cursos seqüenciais, pesquisas, assessorias, com o intuito da obtenção de recursos que suplementam o parco orçamento. Não só no Brasil a instituição universitária que, desde seus primórdios, lutou por autonomia, condição de preservar objetivos primacialmente acadêmicos, subsume- se às relações comerciais, perfilhando-se às Universidades Corporativas criadas dentro das próprias empresas. E como este constitui o modelo que mais se aproxima daquele proposto para o setor, pelo Banco Mundial, reproduzido na Reforma do Estado no Brasil, encampado pela LDB/96, almejado por autoridades e gestores governamentais, no país, vale uma pequena digressão, mesmo precariamente sintetizada, acerca do que são essas entidades. Nos EEUU, em 1997, existiam mais de 1800 organizações desse tipo, com previsão para em 2010 triplicar esse número. Existem pesquisas sobre as 100 maiores Universidade Corporativas do mundo, com suas respectivas funções e especificidades. O traço comum entre elas é operarem como centros de negócios, gerando lucros como a General Eletric, a Motorola, a Mc. Donald com sua Universidade do Hambúrguer, têm nas Universidades Corporativas a oportunidade de matar vários coelhos com uma única cajadada. Elas capacitam seu próprio pessoal (o que é considerado uma vantagem pois a capacitação se faz com “o pessoal na própria mesa de trabalho”, além de garantir vinculação efetiva e imediata aos negócios que realizam e às necessidades mais amplas da empresa; estendem a capacitação aos participantes da cadeia de valor, constituída pelos revendedores, distribuidores, atacadistas, fornecedores, clientes, sindicalistas e pela comunidade; desenvolvem suas próprias pesquisas, sendo esta uma das vantagens decantadas, considerando a segurança em relação ao direito de propriedade que garante a patente, ao sigilo que cerca as inovações tecnológicas na guerra concorrencial em que vivem mergulhadas essas corporações e, por fim, tais universidades colocam no mercado serviços educacionais como qualquer outro ramo de produtos da empresa. Para os defensores desse tipo de organização, o grande diferencial entre esse “moderno” modelo de universidade e o modelo, digamos, histórico, é que este desenvolve uma estratégia tradicional centrada em custos, orçamentos e, pasmem: dedicada a educar pessoas. Aquele, uma estratégia competitiva, “centro de lucros”, com objetivos de continuamente desenvolver um aprendizado adequado às mudanças e à competitividade, priorizando os negócios da empresa, aperfeiçoando sua performance perante a comunidade e de resto, desenvolvendo o ideário da adesão e do consentimento, traduzido por especialistas em Gestão de Recursos Humanos, como “desenvolvimento do compromisso social entre colaboradores e empresa”. Para nós, no Brasil, que ainda não rompemos com o modelo de universidade oligárquica, autoritária e elitista, o que pode significar sobrepor-lhe essa concepção empresarial e seus objetivos de lucratividade? Pensar as consequências dessa nova configuração da universidade, induz a perguntar o que foi que empurrou tão violentamente, a universidade (e não apenas as públicas), para o terreno da mercadorização? Por certo, essa realidade não se constitui espontaneamente, mas como outros processos e relações sociais, trata-se de uma produção histórica. Contudo, no tempo que ainda disponho, do complexo de determinações sociais que respondem pelo movimento que detonou o generalizado processo de privatização da educação superior e conseqüente avanço no empresariamento da instituição que a realiza, pontuo apenas, o que se coloca como central para o entendimento da raiz da questão. Em primeiríssimo lugar, deve ser mencionado o impulso expansivo do capital, lei do capitalismo, necessária à própria constituição da classe burguesa que para existir e reproduzir-se deveu alastrar-se por toda a parte, enraizar-se, avançar e expandir o capital por territórios, campos, setores, áreas, ramos ainda não mercantilizados. Buscar mercados cada vez mais amplos e diversificados; revolucionar, continuamente, a base material da existência social e com ela, as relações sociais, idéias e concepções de mundo, disseminando as que são próprias de sua classe para todos os demais segmentos da outra classe social, em âmbito mundial. Na realidade, trata-se de um processo de produção de hegemonia, pois quanto mais se espraiam a produção de mercadorias e as relações mercantis; quanto mais se uniformizam as relações sociais e os meios de vida, isto é, a sociabilidade dos povos, tanto mais se efetiva, amplia-se e se consolida a classe burguesa. Embora seja uma tendência não elidível do capital, cedo ou tardiamente, a depender das condições em que opera a luta entre as classes sociais fundamentais, expandir-se por todos os lugares, transformar todas as coisas em mercadoria, é necessário, além de obter adesão e consentimento para consolidar-se e tornar-se hegemônico. Para entender essa Lei pode-se ir ao Manifesto Comunista, de Marx e Engels, no qual os autores não poderiam ser mais claros e didáticos na fundamentação da natureza expansionista do capital. A leitura desses autores e de seus precursores permite hoje compreender que a suposta inexorabilidade do processo de globalização, que teóricos e defensores do neoliberalismo apresentam ao mundo como única possibilidade de resolver as questões socais contemporâneas, advém da própria lógica do capital e não de uma suposta sociedade do conhecimento, originária do progresso técnico. Assim sendo, longe da burguesia acena para obter adesão e consentimento das classes trabalhadoras ao projeto de sua renovada continuidade, o que a mundialização do capital tem feito é aprofundar material, ética e politicamente, os antagonismos entre o capitalismo e as necessidades sociais postas pela reprodução humana na história. Processo este necessária e objetivamente ocultado pela burguesia. Ela - a burguesia não menciona que, no estágio atual do desenvolvimento capitalista, a figura do capitaldinheiro trans-nacionalizado subsume as demais figuras do capital: o trabalho, o Estado e as práticas das classes sociais, dissimulando assim a natureza e as tendências das transformações que a crise opera, sobretudo, no campo estratégico dos direitos sociais, dentre os quais destaca-se a educação. Articulada a essa ordem de causalidade, está a crise (contemporânea) do capital, desencadeada em 73 e ainda em pleno curso, com a especificidade de ser esta a de mais amplo espectro já registrada na história do capitalismo. Diferentes analistas concordam em que, desta vez, nos deparamos com uma crise que além de atingir os fundamentos do capital seria, também, crise política, ética e cultural, supondo rupturas e continuidades que afetam o modo de viver e reproduzir-se em todos os âmbitos e esferas da existência social. Esse enfrentamento, até mesmo porque a implacável tendência expansiva do capital potencializa-se no contexto das crises que ciclicamente acometem o capitalismo. E como, também, o célebre filósofo mencionado formulou, a crise é, igualmente, uma lei do modo capitalista de organização social. Por si mesma, ela é reveladora de que a lógica do capital é uma ameaça para o capital, não sendo essa uma mera tautologia, em face da ineliminável tendência da queda progressiva da taxa de lucro pelo desenvolvimento da força produtiva do trabalho social, isto é, sob o jugo do capital, quanto mais se desenvolvem o conhecimento, a capacidade e destreza humanas em lidar cooperativamente com os processos de trabalho, com a ciência, a tecnologia e os recursos da natureza, ou seja, quanto mais a sociedade avança na capacidade de produzir riqueza material e cultural, ou ainda, quanto mais desenvolve suas potencialidades civilizatórias, menos lucro os proprietários do capital tendem a auferir. E a necessidade de desembaraçar-se dos limites que essa tendência impõe, desencadeia entre os capitalistas uma concorrência brutal na corrida pelos processos de inovação técnica, tanto na base física da produção, reestruturando os processos de trabalho, quanto nas modalidades de uso e o controle da força de trabalho. Trata-se de desenvolver mecanismos e processos que reconduziram o capital ao leito da valorização, fazendo irromper o movimento destinado a contrariar a lei tendencial da queda da taxa de lucro. O movimento de contra-tendência, por sua vez, demonstra que, apenas através de reestruturação produtiva, traduzida em inovação tecnológica e modos flexíveis de gestão e consumo da força de trabalho, não seria possível instaurar outro padrão de sociabilidade e de lucratividade. É necessário gestar não somente uma outra forma de organização do trabalho e da produção material capaz de obter maiores taxas de mais-valia, como se sabe, exclusivo meio pelo qual o capital se valoriza. É necessário, também, instituir outra sociabilidade, uma outra maneira de perceber, sentir e situar-se no mundo, considerando a produção de outras condições de reprodução social. Ambos os processos, constitutivos do mesmo movimento, necessitam, por sua vez, tornar-se hegemônicos. Verdadeiro processo de socialização da sociedade, para produzir, como diria Gramsci, um novo homem para um novo tipo de sociedade, contemporaneamente, a do capitalismo re-atualizado. E essa é uma tarefa que o capital, sozinho, não pode realizar, necessitando amparar-se no Estado e na ideologia, conformados às novas necessidades do processo de valorização. Esse movimento, atravessado pelas lutas de classes e que articula as estratégias destinadas a atenuar, retardar ou suprimir os efeitos da crise, determina o que, no atual contexto, redefine o trabalho, o Estado, suas instituições e suas práticas, isto é, redefine a composição e dinâmica das classes sociais. Compreendida essa totalidade, defendo o pressuposto de que o processo de constituição da sociabilidade requerida pelo movimento que o capital desencadeia e articula para sair de sua própria e atual crise, seria subjacente às transformações porque passa a universidade, no Brasil (e,também no mundo) nessas duas últimas décadas. Com isso, estou considerando que a universidade é uma instituição estratégica nas funções de efetivação desse novo/velho processo de socialização da sociedade demandando pelo atual momento do capital. Nesse complexo de determinações que respondem pelas transformações que re-configuram institucionalmente a universidade no Brasil, coloca-se também a reforma do Estado no interior da qual essa re-configuração se processa. De cunho neoliberal, o caráter gerencial da reforma do Estado define o “tipo” e a direção da reforma setorial da educação e nesta, da educação superior. Seu principal traço é, sem dúvida, a desobrigação do Estado com este nível educacional, impelindo-o, dessa forma, como as demais políticas sociais públicas, para o terreno mercadológico. Mecanismo que, na particularidade da educação, qualifico como indispensável ao processo de constituição dessa outra sociabilidade que o capital necessita. Porém, de que sociabilidade se trata? Quais os seus traços definidores? Quais os parâmetros éticos desse outro ideário social e em que direção ele se instituiu? A análise dessas questões torna-se imprescindível na configuração do caráter e das tendências das novas mediações que vinculam a universidade à sociedade. Na base do novo padrão societário, encontra-se a necessidade de: por um lado, produzir as condições de inserção competitiva do país no mundo globalizado e por outro, obter consentimento e adesão ao projeto de hegemonia da burguesia nacional, articulado ao capital internacional. E, não esqueçamos, todo esse processo ocorrendo num contexto de ofensiva neoliberal voltada para algo mais abrangente e profundo: produzir e reproduzir a Ordem, pela primeira vez, verdadeiramente, mundializada, do capital. Essa necessidade, apresentada nos textos oficiais como Competitividade e Cidadania, é debitada à educação, considerada, em todos os quadrantes, não só no Brasil, o único e indispensável recurso para o enfrentamento da questão. Formar para o exercício da cidadania e incremento da competitividade, isto é, produzir cidadãos competitivos, está no cerne das diretrizes das agências multilaterais quanto aos objetivos de massificação e elevação do patamar educacional da população dos chamados países emergentes. A inovação tecnológica, a capacidade produtiva, a qualidade total, os novos padrões de consumo, enfim, tudo o que pode garantir condições de competitividade nas relações comerciais e políticas, bem como, a formação das consciências, hábitos e valores que favoreçam a construção de consensos, dizem, depende da educação. A coesão social, a redução da pobreza, a paz e harmonia entre os povos, raças e etnias, gêneros e gerações, fazem parte da concepção de cidadania que somente a educação teria o dom de propiciar, sendo a mola mestra do processo civilizatório e limite do desenvolvimento. Essa visão “salvacionista” da educação, adotada a partir dos anos 90, pelo Banco Mundial, encontrada também, nas propostas da UNESCO para o século XXI, merece alguns questionamentos. Um deles, é que essa concepção redentora da educação adquire tal veemência, justamente no momento em que, por imposição do FMI e do Banco Mundial, segundo diretrizes do Consenso de Washington, o setor deixa de ser prioritário no orçamento governamental de diferentes países, negado como direito assegurado pelo Estado, transformando-se em prestação de serviço parametrado pela lógica mercantil. Outro, é que esta centralidade da educação no discurso oficial, coincide com a necessidade coletiva de qualificação decorrente, por um lado, da elevação do padrão tecnológico da sociedade e por outro, do fenômeno da desvalorização da força de trabalho que a acompanha. Tudo isso, num cenário de desemprego estrutural e acirrada competição pelo trabalho. Todas essas “felizes” coincidências que reforçam a idéia da educação como apanágio para todos os males, acontecem ao mesmo tempo em que é explicita sua maior subordinação ao capital. Qual relação poder-se-ia estabelecer então entre esta concepção apologética da educação e sua mercantilização? Por que não é feita alusão ao obstáculo estrutural a esse projeto de “salvação global” via educação, que o desemprego representa? Para onde leva a formação profissional num contexto de precarização do trabalho e de escassez do trabalho assalariado? Não seria sem motivo que a ideologia do empreendedorismo toma conta da universidade e esta passa a disseminá-la como “forma moderna” de ganhar a vida. Alçado ao status de disciplina, o ensino do empreendedorismo tem por objetivo preparar o estudante para “criar o plano de negócio” que deverá “vender” às empresas ou ele mesmo desenvolver, ao deixar a universidade. Foi cunhado o epíteto Sindrômico, para aqueles que vão para a universidade com a pretensão de emprego na vida profissional. Aspiração esta que não passaria de uma síndrome do funcionário e da estabilidade. Nas atuais necessidades da acumulação do capital, o empreendedorismo como nova cultura, (apesar da proposta ser por demais antiga, pois remonta aos anos 40 quando foi idealizada por Joseph Shumpeter), é apresentado como “um estado de espírito”, “uma paixão” e uma qualidade, de que os estudantes devem ficar impregnados durante sua permanência na universidade. Como dizem autores e instrutores de empreendedorismo, é este “o perfil que a sociedade requer”. Traduzida como associação, num mesmo indivíduo, de inovação tecnológica + competitividade + vivência do ciclo de reprodução da mercadoria: a capacidade empreendedora é qualidade rara no mercado. Diferente da capacidade técnica, existente em abundância em todos os lugares. A capacidade de empreender torna-se, desse modo, a qualidade privilegiada do novo perfil que as empresas demandam. Por esse atributo, o cidadão e sua força de trabalho passam a ser avaliados e distinguidos no mercado. Com ele, os recémformados ingressam no mundo dos negócios, depois de terem realizado como estudantes, seus processo as de aprendizagem empresarial. Nessa lógica, o ensino e a pesquisa têm, como horizonte, o empreendimento que cada aluno ou grupo de alunos, vai “aprender a estruturar” no curso da sua formação acadêmico-profissional. Nesse processo, os docentes são considerados agentes privilegiados na disseminação da sociabilidade empreendedora, pelo “poder que detêm de mudar a vida do aluno”, desde que transformem a sala de aula e, melhor, “todo curso”, em “oficina de aprendizagem do empreendedorismo”. É interessante perceber que tal ideologia surge ao mesmo tempo em passam a desaparecer as fronteiras entre a universidade e as empresas. E essa nova feição que a universidade assume, será determinante do que ela se realiza como ensino, pesquisa e extensão. A natureza deste tripé que caracteriza a instituição universitária, não só estaria ameaçada, como adquire um caráter danoso, do ponto de vista da reiteração do histórico caráter oligárquico e excludente do ensino superior no país. A atividade de extensão, prática de ensino mediante a prestação de serviços à comunidade, descaracteriza-se pela venda de serviços, tornando difícil distinguir-se uma atividade da outra, abrindo caminho para a mercantilização que vai se insinuando, tornando-se natural, generalizada, legitimada, indispensável e irreversível. A pesquisa, a mais mercadorizada das atividades acadêmicas, pelos fins lucrativos de que se reveste, cada vez mais se desconfigura como atividade autônoma articulada ao ensino e à extensão, imprescindível à qualificação da formação profissional e às estratégias de emancipação econômica e política do país. No processo de privatização do ensino superior, a pesquisa aplicada, de retorno imediato, torna-se determinante na vida da universidade, em detrimento da pesquisa básica, da produção de conhecimento e cultura. A universidade , não apenas cede seus pesquisadores, laboratórios e infra-estrutura para a incubação e desenvolvimento de empresas dentro de seus muros. Ela mesma, torna-se lugar para a prática dos negócios mercantis, de onde emergem as figuras do professor-empresário (executivo nas inúmeras ONGs e fundações que proliferam nos campos universitários, acionistas, proprietários ou sócios das empresas gestadas na instituição e para as práticas de outras formas de proveito financeiro das atividades acadêmicas desenvolvidas com finalidades comerciais) e também para a prática do aluno-trabalhador que passa a suprir a carência de servidores administrativos para o funcionamento da universidade. Como processo, essa práticas seriam facilitadas, por um lado, pelos crescentes cortes e re-direcionamentos dos recursos destinados ao sistema público da educação, expressando o caráter da reforma do Estado que o desonera das políticas públicas e por outro lado, pelos oito anos sem reposição salarial para os servidores públicos federais e pelo evidente empobrecimento da maioria dos estudantes e de resto, da população brasileira. A nova conformação das práticas acadêmicas inflexiona o ensino, sobre o qual recaem, diretamente, os efeitos dessa transfiguração institucional da universidade. Para viabilizá-lo nesses novos parâmetros, diferentes mecanismos têm sido introduzidos, seguindo as diretrizes do Banco Mundial, dos quais vou mencionar apenas, a diferenciação e diversificação dos tipos de instituição universitária. A criação de novos tipos de instituição de ensino superior – centros universitários, faculdades integradas e estabelecimentos isolados, embora estes últimos já existissem no país, porém com outras características, antes de tudo, contribui para a legalização da ruptura da indissociabilidade entre ensino, pesquisa, e a extensão, além da proliferação de estabelecimentos privados não-universitários com finalidade empresarial. Com essa estrutura, oficializa-se a existência de dois tipos de ensino superior: ensino pleno, oferecido pelas universidades que associam formação e produção de conhecimento, e ensino parcializado, segmentado e focal, expressando e aprofundando as desigualdades de classes, instituindo um novo tipo de exclusão social: a dos diplomados, emprestando assim, outra configuração ao fenômeno até então comum aos iletrados. Corroborando essa realidade, o papel do currículo é indiscutivelmente estratégico. Flexibilizado e aligeirado, este passa a ser pautado pelo novo padrão de relações entre o capital e o trabalho viabilizando o processo de socialização das gerações que poderiam viabilizar as condições da acumulação capitalista. O que nos coloca diante da maior de todas as questões: quais sujeitos sociais a universidade estaria estrategicamente ajudando a construir? Seriam meros “aprendizes de capitalista”, os futuros constituidores da sociedade brasileira? O que temos diante de nós, é a lógica mercantil subsumindo o trabalho acadêmico, disseminando a racionalidade empresarial, apagando as classes sociais com a pretensão ideológica de que todos ajam como patrão, sufocando a dimensão crítica, humanista e emancipatória da formação acadêmico-profissional. Para concluir: não seria, apenas, para funcionar como mercadoria, que a educação superior e a universalidade – a empresa que transaciona essa mercadoria – adquire outra feição. A universidade tem uma missão e esta não foi removida, foi apenas transformada para atender à constituição da sociabilidade requerida pelas atuais condições da reprodução social. O que não representa uma iniciativa unilateral da universidade. Como instituição social, ela exprime e desenvolve suas ações tal como requerido pelo conjunto da sociedade nos diferentes momentos históricos, o que necessariamente inclui a presença das classes sociais e suas lutas. Se a eqüidistância entre a universidade e o mercado deixa de ser nítida, é porque o ethos mercantil que subsume a vida social, na etapa atual do desenvolvimento do capitalismo, recobre o conjunto das práticas sociais. Como instituição, a universidade é parte da sociedade na qual existe, portanto, esse feitio que ela adquire, revela apenas, o momento atual do capitalismo, não se tratando de um fenômeno particular da instituição mas de um processo que recobre a sociedade. Diante disso, o desafio que se coloca até pode parecer novo, mas se afigura o de sempre que é a relação social que o capital encarna. Esta sim, deve constituir o nosso ponto de ataque. Por fim, chegamos ao ponto onde teria sentido questionar a ética e sua relação com a educação sob as determinações aqui esboçadas. Foi necessário esse caminho do pensamento, orientado pela reflexão crítica, para chegar às condições de questionar o significado da ética e de sua relação com a educação neste momento da sociedade brasileira. Nesta perspectiva, o nosso Código de Ética Profissional que está completando 10 anos, apresenta-se como um eficaz instrumento para contribuir no aclaramento dessa relação. Rico de subsídios em seus princípios, sua matriz teóricopolítica induz ao estudo, à pesquisa e à orientação da prática profissional, mantendo a categoria vigilante de sua prática. O nosso é um Código de Ética que toma partido por um projeto de sociedade, é interessado, indica uma direção, carrega uma utopia e convoca a categoria e as demais categorias de trabalhadores ao engajamento na construção de uma nova sociedade onde a vida não seja pautada pelo ciclo de ferro da valorização do capital. Referências Bibliográficas BATISTA, Paulo Nogueira – O consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas latino-americanos. Caderno Dívida Externa, n.6. São Paulo, PEDEX, 1994. DOLABELA, F. – Oficina do empreendedor: a metodologia de ensino que ajuda a transformar conhecimento em riqueza. São Paulo, Cultura Editores Associados, 1999. BANCO MUNDIAL – La enseñanza superior. Las lecciones derivadas de la experiencia. BIRD, Washington, DC, 1995. GRAMSCI, Antonio – Cadernos do Cárcere, v. 4. Edição e tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001. FREITAG, Michel – Le naufrage de I’ Université et autres essais d’épistemologic politique. 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Le Monde diplomatique. IN: Caros Amigos, ano V, n. 49, abril 2001. Violência contra mulheres e esfera familiar: uma questão de gênero?* Miriam de Oliveira Inácio** Qualquer interpretação sobre a problemática da violência contra as mulheres passa obrigatoriamente pela definição sobre o que venha a ser violência e a apreensão de suas feições peculiares, isto é, sua ocorrência predominante no espaço doméstico, no âmbito das relações afetivo-sexuais entre homens e mulheres, relações essas marcadas pelas desigualdades de poder entre os gêneros masculino e feminino. A tarefa de conceituar violência abriga inúmeros desafios. Desde a percepção da violência como fato natural e inquestionável (Arendt, 1985; Costa, 1986) até a elasticidade de seu significado etimológico (Zaluar, 1999), com o perigo de cairmos numa armadilha relativista, na qual cada um define para si o que pode ser considerado violência ou não-violência. Zaluar (1999:08) a considera com um significado polifônico, desde a origem etimológica do termo. A palavra violência vem latim violentia, que remete a vis, termo que, originariamente, não tem um sentido pejorativo, muito mais associado à força, energia, vigor, emprego de força física, rigor, dureza, ferocidade. Essa força torna-se violência, no entanto, quando seu uso ultrapassa os limites estabelecidos pela velocidade, ou seja, quando essa força perde sua legitimidade, perturba acordos e regras morais que ordenam as relações ou se torna um fim em si mesma – o uso da força pela força. A violência varia, portanto, cultural e historicamente, ou seja, é situada. E daí, suas diferentes acepções. Se recorremos às palavras violatio, onis, violo e are, que estão associadas ao termo violentia, veremos, porém, que o termo revela um sentido negativo e maléfico, indesejável. As palavras violatio e onis significam dano, prejuízo, profanação, violação, perfídia e as palavras violo e are indicam fazer violência à, maltratar, danificar, devastar, desonrar, transgredir, infringir, ferir, lesar, ofender, macular. * Este artigo é parte da dissertação de mestrado intitulada “Serviço Social e Violência de Gênero: Ethos e Ação Ético-Política nas Delegacias da Mulher”, defendida em 30 de agosto de 2003, no Programa de PósGraduação em Serviço Social, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Agradeço à professora Drª Maria Alexandra Da S. M. Mustafá pela importante orientação na elaboração da dissertação e à professora Drª Anita Aline de Albuquerque pela valiosa colaboração na condução de todo trabalho. ** Assistente Social, Mestre em Serviço Social, professora do Curso de Serviço Social, da Faculdade de Ciências, Cultura e Extensão – FACEX, do Rio Grande do Norte, pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ética – GEPE, da UFPE e membro do Conselho Regional de Serviço Social – CRESS, 4º Região/RN. Para o senso comum, a violência é tomada como sinônimo de uso agressivo da força física para obrigar alguém a fazer algo contra a sua vontade ou até maltratar alguém como forma de punição por uma conduta socialmente reprovada. No entanto, uma visão ampla do significado da violência sugere que ela permeia todo ordenamento social, no âmbito das relações pessoais e institucionais. Inscreve-se nas relações sociais de classe, gênero, etnia e geração. As discriminações, desigualdades e antagonismos de classe, raça/etnia, gênero e geração caracterizam uma violência estrutural que atinge a imensa maioria da população pauperizada e as minorias sexuais, étnicas e etárias. Conforme salienta Kelkar (1984): Um conceito estreito de violência pode sugerir um ato ilegal, uso criminal da força, mas de forma ampla inclui também a exploração, a discriminação e a manutenção de uma estrutura econômica e social desigual, a criação de uma atmosfera de terror e ameaça, e outras formas de violência política (apud Camargo, 1998:122). Mas a violência e agressividade não têm o mesmo significado, nem são próprios de um sexo. Enquanto a agressividade pertence ao mundo animal e instintivo, a violência possui uma natureza social, cultural e humana. Conforme Arendt (1985), a violência não é animalesca nem irracional, pois ódio e violência não são reações automáticas ao sofrimento. Ao contrário, elas surgem da razão, que procede a tipificação de uma situação como violência ou não-violência. Para Costa1, a agressividade não é necessariamente negativa, ela pode ser considerada positiva quando não se transforma em violência, ou seja, quando não há um desejo humano de maltratar o outro: “... não existe violência sem desejo de destruição, comandando a ação agressiva e, em conseqüência, que violência não é uma propriedade do instinto” (1986:33). Esta distinção é imprescindível à desnaturalização da violência contra as mulheres, comumente justificada por uma incontrolável agressividade masculina, até mesmo nos tribunais de justiça, que utilizam a tese do descontrole emocional para inocentar os assassinos de suas ex-esposas, ex-namoradas e ex-amantes. Como fenômeno histórico, cultural e humano, a violência remete à percepção de um ato que é codificado como tal, sob determinação dos valores e da visão de mundo dos sujeitos construídos socialmente. 1 Em sua crítica ao tratamento dado pela psicanálise à questão da violência, Costa (1986) admite o progresso da visão de Freud, que inicialmente a percebia como agressividade, depois como instrumento para arbitrar conflitos e instaurar a lei, para finalmente apreendê-la como algo domesticável pela ação da civilização, inclusive para a construção da paz. Para Freud, não existe um instinto de violência, mas um instinto agressivo que pode coexistir com a possibilidade do homem desejar a paz ou empregar a guerra. Comporta uma dimensão simbólica, responsável pelas medidas de repressão e, também, pela tolerância, convivência e impunidade que se observa em relação à criminalidade. Em particular, no que se refere aos crimes praticados contra a mulher na esfera familiar, esta dimensão simbólica é construída pelo ordenamento de gênero tradicional, nas quais se legitimam várias formas de opressão feminina. Costa (1986) argumenta que é a partir do julgamento moral do individuo que um gesto será qualificado como violência. Por exemplo, atitudes de indiferença, agressão verbal (calúnia, injúria e difamação) ou até uma agressão física deixarão de ser interpretadas como violência, se o sujeito que sofre a ação não perceber o desejo de destruição na prática do agressor. Violência é o emprego desejado da agressividade, com fins destrutivos. (...) só existe violência no contexto da interação humana, onde a agressividade é instrumento de um desejo de destruição. Quando a ação agressiva é pura expressão do instinto ou quando não exprime um desejo de destruição, não é traduzida nem pelo sujeito nem pelo agente, nem pelo observador como uma ação violenta. (...), pois o animal não deseja, o animal necessita (Costa, 1986:30) Dessa forma, a violência pode assumir uma conotação positiva quando a mulher, resguardando sua integração a ordem tradicional de gênero2, cede à agressão do companheiro para resguardar o “valor” de mulher vítima, submissa, sofredora e frágil que alimenta a crença de que “pancada de amor não dói”. O sujeito sente “... prazer de assegurar a posse dos predicados socialmente valorizados pela cultura. Estes predicados compõem o sentimento de identidade do sujeito, que é tanto mais forte quanto mais se aproxima do tipo psicológico ideal, culturalmente produzido” (Costa, 1986:33) Os esquemas de valores, costumes e práticas que legitimam a violência respondem pela noção naturalizada sobre a submissão da mulher. A violência assume uma dimensão simbólica na medida em que traduz para o sendo comum um padrão dominante de valores, costumes e práticas que ocultam os processos de dominação e naturalizam as desigualdades. Como dimensão simbólica, a violência está associada ao poder, uma vez que todo poder comporta uma dimensão simbólica, ou seja, obtém a adesão inconsciente e a crítica dos dominados (Bourdieu, 1995). Nesse sentido, a legitimação da violência está associada à idéia de poder de dominação de um indivíduo ou grupo sobre outro. Ainda que pese nossas discordâncias às idéias de Bordieu (1995), seu conceito de violência simbólica é bastante elucidativo: 2 A participação de homens e mulheres na manutenção da relação violenta ocorre para resguardar os papéis de gênero tradicionais, suscitando a interiorização da violência como algo positivo. Sobre esta análise ver a produção de Gregori (1993), Brandão (1998) e Saffioti (1997). A violência simbólica institui-se por meio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominador (logo, à dominação), uma vez que ele não dispõe, para pensá-lo ou pensar a si próprio, ou melhor, para pensar relação com ele, senão de instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo a forma incorporada da relação de dominação, mostram esta relação como natural; ou, em outros termos, que os esquemas que ele mobiliza para se perceber e avaliar o dominador são o produto da incorporação de classificações, assim naturalizadas, das quais seu ser social é o produto (1995:41). No pensamento de Arendt3 (1985), a violência é uma manifestação do poder, tendo um caráter instrumental e estando a ele subordinado, pois necessita de uma base de justificação no poder constituído: “tudo depende do poder por detrás da violência” (1985:26). Para ela, o poder, pelo fato de pertencer ao grupo, não precisa de justificativas, mas da própria legitimidade da sociedade. Por isso, na sua definição há uma supremacia do poder sobre a violência: Mesmo a dominação mais despótica de que temos conhecimento, o domínio do senhor sobre os escravos (...) não repousava em instrumentos de coerção superiores como tais, mas em uma organização do poder mais aperfeiçoada – isto é, na solidariedade organizada dos senhores. Homens isolados sem outros que os apóiem nunca têm poder suficiente para fazer uso da violência de maneira bem-sucedida. Assim, nas questões internas, a violência funciona como o último recurso do poder contra os criminosos e rebeldes - isto é, contra indivíduos isolados que pode-se dizer, recusam-se a ser dominados pelo consenso da maioria (Arendt, 1985:27). Como a violência é vista como o último recurso do poder para manter a estrutura vigente, a autora conclui que a violência é fruto da impotência. Em outras palavras, a violência é um recurso fundamental para aqueles que estão ameaçados de perder o seu poder. Diz-se freqüentemente que a impotência gera a violência, o que psicologicamente é verdadeiro, pelo menos quanto às pessoas possuidoras de vigor natural, moral ou fisicamente. Politicamente falando, a questão é que a perda do poder torna-se uma tentação em substituir o poder pela violência... (Arendt, 19/85: 29-30). 3 Vale salientar que a1ª edição de sua obra Da violência data de 1970. Apesar de privilegiar uma análise sobre a violência nos domínios da política, a autora aborda alguns aspectos da violência no âmbito das relações pessoais e de parentesco. A idéia de Arendt de que “a violência é a expressão da impotência” foi desenvolvida numa abordagem feminista que articula o processo de exploração que atinge a maioria dos homens no interior das relações sociais, e que para compensar o massacre de que são vítimas nesse ordenamento social, os homens procuram resolver seu sentimento de impotência demonstrando poder nas relações de gênero, praticando atos de violência contra mulheres e crianças4. Entretanto, temos que fazer uma ressalva a idéia de Arendt a respeito dessa sua afirmação de que a violência seja o último recurso para manutenção de qualquer forma de poder. Os estudos sobre a problemática da violência doméstica praticada contra a mulher têm revelado que ocorre uma rotinização e cronificação da violência no cotidiano familiar, funcionando como um recurso auxiliar e permanente, e não o último, na legitimação do poder patriarcal. Melhor seria afirmar que, em face de qualquer ameaça ao poder masculino ou a ordem de gênero dominante, a violência (seja ela física, sexual ou emocional), se apresenta como um instrumento, muitas vezes o primeiro, de manutenção da subordinação feminina. A rigor, a violência de gênero constitui uma relevante componente do poder masculino, já que se revela eficiente na normatização das relações entre homens e entre adultos e crianças. Neste sentido, poder-se-ia afirmar, invertendo o raciocínio, que a violência [não é o último recurso do poder, mas] se exprime através das relações de poder. WelzerLang vai ainda mais longe, afirmando que ‘a violência é o primeiro modo de regulação das relações sociais entre sexos na sociedade francesa contemporânea’ (apud Saffioti, 1997:166). O formalismo de Arendt (1985) foi criticado por Costa5 (1986:52), para quem o poder só existe quando exercido. Para o autor, fora desta condição não existe poder. E, uma vez que o poder instrumentalizado sempre exprime os interesses de dominação, todo poder é violento. Não há poder sem violência. Se as normas e regras de uma dada cultura são organizadas pelo poder dominante, fundado num conselho ilusório, e como todo poder repousa, em última instância, na violência, é a violência que funda a ordem sócio-cultural (Costa, 1986). As agressões perpetradas contra as mulheres auxiliam na manutenção da ordem de gênero dominante e igualmente encontram justificativas na legitimidade social do poder patriarcal, pois que é expressão de um consenso criado em torno de valores e hábitos nos quais se gestam a submissão feminina. “... Os atos de violência são executados, em grande parte, por aqueles que tentam estabelecer seu amorpróprio, defender sua imagem e demonstrar que também são indivíduos significativos (...) a violência assenta na exploração...” (May, 1981: 20/27 apud Saffioti & Almeida, 1995:43/45). 4 Para Chauí (1985:35), o exercício da violência também visa a manutenção da relação de dominação, mas com uma das partes anulada, submetida à vontade da outra e não totalmente destruída, no qual o sujeito violentado caracteriza-se pela inércia, passividade e silêncio, donde não há possibilidade de luta. A violência deseja a sujeição consentida ou a supressão mediatizada pela vontade do outro que consente em ser suprimido na sua diferença. Assim, a violência perfeita é aquela que obtém a interiorização da vontade e da ação alheias pela vontade e pela ação da parte dominada, de modo a fazer com que a perda da autonomia não seja percebida nem reconhecida, mas submersa numa heteronímia que não se percebe como tal (Chauí, 1985:35). As críticas feministas a este conceito, ainda que se reconheça a caracterização de uma identidade feminina sem autonomia, submetida à vontade do outro (pai, marido, filho, família e comunidade), a sujeição das mulheres adquire a conotação de fatalidade, não vislumbrando as possibilidades da mulher sair daquela situação6. Chauí (1985) não apreende as relações de poder desiguais entre homens e mulheres e a feição transitória do poder, não localizado exclusivamente no domínio masculino, mas também apropriado pelas mulheres, ensejando possibilidades de reação feminina, como nos ensina Foucault. Para Foucault (1993), o poder deve ser entendido como constelações dispersas de relações desiguais, constituídas de discursos, saberes, linguagens e cultura, no âmbito de diversas clivagens sociais e campos de forças. Para ele, o poder não pode ser pensado como algo fixo e localizável num centro de poder, posto que se multiplica e penetra nas relações para produzir dominação, gestando-se nos embates e conflitos. 5 É importante ressaltar que Costa (1986) admite o mérito de Arendt na sua proposta de diferenciação entre poder e violência. Entretanto, sua crítica encontra apoio numa contradição da autora quando ela nega a supremacia do poder sobre a violência, admitindo a vitória da violência sobre o poder num episódio de terror: “A violência pode destruir o poder, mas é totalmente incapaz de criá-lo” (Arendt, 1985:132 apud Costa, 1986:52). Nesse Sentido, se a violência pode destruir o poder, podemos pensá-la como recurso fundamental na manutenção ou transformação de qualquer relação de poder. 6 Gregori (1993) dirige sua crítica a dualidade autonomia/heteronomia. Já Saffioti (1994; 1995; 2002ª), ao explicitar as desigualdades de poder entre os gêneros, desenvolve a argumentação de que as mulheres não consentem, mas cedem em face da ameaça do poder masculino. O poder transita de um pólo a outro e por isso comporta resistências7. Nesse sentido, nos afastamos da posição defendida por Chauí (1985), uma vez que exclui as possibilidades de reação e resistência dos dominados à violência sofrida. Nos aproximamos de uma perspectiva foucaultiana, donde há os processos de reação dos dominados em relações contraditórias e cristalizadas no aparato jurídicopolítico e nas hegemonias legitimadas no ideário cultural de uma sociedade. A definição de violência apresentada por Costa (1986) consegue apreender sua dimensão coercitiva - enquanto intimidação da força física ou constrangimento moral de um ator sobre outro, associada à desigualdade de poder presente no conflito - e sua dimensão simbólica - materializada na infração à lei ou a justiça por alguém que deliberadamente rompe o contrato pelo abuso de força, sem cair numa perspectiva determinista ou fatalista das relações de poder que aí comparecem. Aqui a lei ou contrato refere-se ao direito do sujeito ocupar seu espaço na sociedade, respeitando-se as diferenças sexuais, e possuir uma identidade compatível com sua história no contexto das regras sócio-culturais. Nesta acepção, a violência é definida não só como coerção, mas simultaneamente como desrespeito à lei ou ao contrato. Pressupõe-se, então, a existência de um uso arbitrário e gratuito da força por parte do mais poderoso contra o mais fraco. Violência é, antes de tudo, abuso de força, abuso de poder. A representação indutora da violência é uma representação abusiva que porta em si a patente do arbítrio e da gratuidade (Costa, 1986:95). Dessa forma as violências praticadas contra as mulheres compreendem uma dimensão coercitiva e simbólica, assentada nas relações de gênero dominates8. O cenário da violência contra a mulher assume uma feição particular, uma vez que apresenta como sujeitos homens e mulheres envolvidos em relações afetivo-sexuais entre (ex) maridos, (ex) namorados ou (ex) companheiros no espaço doméstico. “Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais” (Foucault, 1993:88-89). 8 A violência física, com as lesões corporais e o assassinato; a violência sexual, com os crimes de estupro, atentado violento ao pudor e assédio sexual; passando pela violência moral/psicológica, identificada nos crimes de honra (calunia, injuria e difamação) e gestos de ironia, humilhação verbal, ameaça, intimidação. Que causam danos a objetos de valor afetivo e material da mulher, despertando sentimentos de medo, insegurança e vergonha; até a violência simbólica presente no preconceito e discriminação, enquanto uma expressão do abuso e das desigualdades de poder entre os gêneros masculino e feminino. 7 No Brasil os dados da pesquisa “Justiça e Vitimização”, incluída na PNAD de 1988 (IBGE) confirmam uma realidade que não surpreende as lentes mais desinteressadas no assunto. Dentre as pessoas vítimas de agressão, 37% são homens e 63% são mulheres quando a violência acontece em casa. E conforme dados da comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) organizada no Congresso Nacional em 1992 pra investigar a problemática da violência contra a mulher, mais de 50% dos casos de estupro ocorreram no interior da própria família9. Pesquisas realizadas nos EUA denunciam também que, em1992, aproximadamente 28% das mulheres vítimas de homicídio foram mortas por seus maridos ou ex-maridos e namorados ou exnamorados, enquanto 3% dos homens vítimas de homicídio foram mortos por suas esposas ou ex-esposas e namoradas ou ex-namoradas (Soares, 1999). Os limites entre as esferas privada e pública precisam ser suficientemente esclarecidos no debate sobre violência contra a mulher no espaço doméstico, sob pena de privilegiar o viés subjetivista na interpretação da violência ou reduzi-la a uma condição inerente à relação conjugal e ao domínio privado, frequentemente responsável pelo verbete popular “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. A discussão remete às noções de esfera pública e privada, que têm suas raízes históricas nas sociedades antigas. Conforme Arendt (2001), na Grécia antiga a distinção entre as esferas pública e privada equivalia à distinção entre liberdade e necessidade, mas ao mesmo tempo, na sua interdependência e reciprocidade. Por exemplo, o homem somente adquiria sua liberdade e cidadania, situada exclusivamente na esfera política, se garantisse a satisfação de suas necessidades, e isso dizia respeito à família. Como assinala Arendt, “a vitoria sobre as necessidades da vida em família constituía a condição natural para a liberdade na polis” (Arendt, 2001:40). Na polis todos eram reconhecidamente iguais, mas na família podia fazer uso da violência (subjugando escravos), para vencer a necessidade, e assim, alcançar a liberdade na polis10. Enquanto no mundo público todos são vistos e ouvidos por outros, no mundo privado essa condição é negada, os homens são prisioneiros da sua própria subjetividade e singularidade. Daí o termo “privado” aparecer definido em sua acepção original como “privação”, condição na qual o indivíduo é “... destituído de coisas essenciais à vida verdadeiramente humana: ser privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, (...) o homem privado não se dá a conhecer, e portanto é como se não existisse” (Arendt, 2001:40). Assim, ao distinguir as esferas pública e privada, Arendt (2001: 82) lembra que o domínio público refere-se ao “que deve ser exibido” e a esfera privada diz respeito ao “que deve ser ocultado”. 9 Citados por Saffioti (1994; 1995) As atividades exercidas no lar por escravos e mulheres estavam voltados para o atendimento das necessidades básicas de sobrevivência, e, por esta razão, não eram dignas de adentrar à esfera pública. Mulheres e escravos não tinham cidadania - eram mantidos fora das vistas alheias não só porque eram propriedade de outrem, mas porque tinham uma vida “laboriosa”, dedicada às funções corporais. 10 Young (1987), na sua crítica a Arendt, afirma que a privacidade é o aspecto da vida ou atividade que o indivíduo tem “o direito de excluir” dos outros. Mas, para ela, o conceito feminista “o pessoal também é político” não nega a distinção entre público e privado, mas nega uma divisão social entre as esferas pública e privada. A partir desse conceito feminista, propõe, então, dois princípios: “(a) nenhuma instituição deve ser excluída a priori como sendo a questão própria para discussão e expressão pública; e (b) nenhuma pessoa, nem ações nem aspectos da vida de uma pessoa devem ser forçados à privacidade” (Young, 1987:84). Na verdade, as definições de Arendt (2001) não podem ser tomadas de forma descontextualizada, como se fossem dadas por si mesmas. Apesar da autora não desenvolver as distinções entre público e privado na modernidade11, consideramos sua elaboração extremamente valiosa para entender o significado que a dimensão familiar exerce na manutenção das relações de violência. A própria Arendt faz uma ressalva quanto ao significado das noções público e privado, salientando que a tradição de ocultar o aspecto da vida humana relacionado às necessidades vitais deve sofrer transformações na era moderna, com a emancipação das mulheres e das classes operárias. Ao observar que os vestígios da noção tradicional de privação em nossa civilização tem a ver com ‘necessidades’, Arendt (2001) nos permite entender a dominação feminina, explicada a partir de um olhar naturalizado sobre o lugar da mulher no mundo doméstico, na reprodução e nas tarefas voltadas à garantia da sobrevivência do núcleo familiar. Nessa perspectiva, a violência praticada contra a mulher encontra eco na visão negativa do privado como espaço das necessidades e associado à mulher. A noção do que o privado é o “que deve ser ocultado” ainda prevalece na cena contemporânea, frequentemente expressa nos verbetes “roupa suja se lava em casa” ou “entre quatro paredes vale tudo”, o que têm contribuído para o silenciamento da sociedade e do Estado frente ao sofrimento e atos de violência vividos por mulheres, crianças e idosos na intimidade dos lares. Mesmo considerando que a noção de privado como “o que deve ser ocultado” contribui para o silenciamento da violência contra a mulher, a perspectiva 11 Segundo Arendt (2001), no mundo moderno desaparece esse abismo entre a esfera da família e a esfera política, pois ambas estão submetidas na esfera social. Entretanto, a civilização contemporânea da sociedade de massas tem destruído as duas esferas, privado o homem do seu lugar no mundo e do seu espaço no lar privado. Por isso, ela fala sobre o direito à privacidade, mas toma como parâmetro da proteção à livre exposição pública, a mera condição do individuo como detentor da propriedade privada. Então a esfera privada refere-se aquele espaço “... que deve permanecer oculto a fim de não perder sua profundidade num sentido muito real e não subjetivo. O único modo eficaz de garantir a sombra do que deve ser escondido contra a luz da publicidade é a da propriedade privada – um lugar só nosso, no qual podemos nos esconder” (idem: 81) (grifos nossos). deste estudo não admite que este seja um fenômeno intrínseco ao domínio doméstico ou próprio das relações conjugais, pois entendemos que a problemática da violência contra a mulher faz parte de um processo mais amplo de dominação/exploração do gênero feminino. Trata-se de um fenômeno universal e milenar, com profundas raízes históricas e informado pelo encontro de fatores sociais, culturais, econômicos e éticos referidos as relações de gênero presentes nas relações sociais. Nesse sentido, o enfoque das relações de gênero como um sistema de poder resultante de um conflito social, com a consequente desvantagem para as mulheres (Scott, 1990) permite apreender a violência contra as mulheres numa perspectiva ampla, uma vez que desvela as relações de poder construídas entre homens e mulheres e sua articulação com aspectos normativos, simbólicos, políticos, econômicos, institucionais e subjetivos de determinada sociedade. Sem negar a natureza anatômico-fisiológica das diferenças de sexo, o gênero refere-se a dimensão cultural das diferenças entre o masculino e o feminino, em que os valores e comportamentos destinados a homens e mulheres são construídos socialmente a partir da percepção sobre a diferença biológica. Sendo assim, “o gênero é o sexo socialmente construído” (Barbieri, 1993:04). Scott (1990) recuperou as contribuições de Rubin (1979)12, que definiu o sistema sexo/gênero no qual a construção social do gênero se dá sobre um corpo sexuado13. Em Rubin (1979) a dominação masculina sobre as mulheres é produto de relações sociais específicas que a organizam, portanto possui um caráter histórico e mutável. Scott (1990) incorporou as teorias de conflito e poder dos pós-estruturalistas (Deleuze, Derrida e Foucault), no contexto das teorias da linguagem, em que a construção da identidade de gênero é captada por meio da linguagem: na comunicação, interpretação e representação. Sua definição de gênero apresenta como primeira proposição a ideia de que “o gênero é um elemento constitutivo de relações sócias fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos14, e o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder” (1990:14). 12 A análise pioneira de Rubin (1979) submete a uma crítica feminista as teorias de Levis-Strauss sobre o parentesco e a psicanálise na vertente Lacaniana. Fazendo incursões com o pensamento marxista, a autora contextualiza a situação das mulheres nas relações sociais capitalistas, destacando a função do trabalho doméstico no desenvolvimento do sistema capitalista, mas esclarece que a opressão das mulheres não reside na sua utilidade no interior da divisão sexual do trabalho capitalista. 13 ”Adoto como definição preliminar de um ‘sistema de sexo/gênero’: um conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana, e na qual estas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas” (Rubin, 1979:02). 14 Diferentemente de Rubin (1979), aqui “... o vetor vai do social para o anatômico e não o inverso. Ou melhor, o social engloba tudo, na medida em que o anatômico só existe enquanto percepção socialmente modelada” (Saffioti, 1992:197). Portanto a ênfase é na percepção, interpretação, no universo simbólico. A autora apreende as relações de gênero como processos interligados e não separados, donde a subordinação das mulheres se constitui num começo ou recorte de processos complexos. Por isso, compreende a gênese e a dinâmica das relações de gênero a partir de quatro elementos, quais sejam: Símbolos Culturais; Conceitos Normativos; Instituições e Organizações Sociais e Identidade Subjetiva, em que um não opera sem o outro, mas não de forma simultânea, como um simples reflexo do outro (Scott, 1990). Nos Símbolos Culturais estão presentes as representações simbólicas, muitas vezes de caráter contraditórias, como a oposição representada por Eva e Maria como símbolo da mulher pecadora e santa. Os Conceitos Normativos ilustram as interpretações dos símbolos expressos nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas, que definem os valores e papéis opostos para o masculino e do feminino, num contexto no qual prevalece um padrão em termos de valores15. Com as Instituições e Organizações Sociais demonstra a necessidade de ampliar o debate sobre os determinantes da condição feminina para além das relações de parentesco (restrito a unidade doméstica ou a família como fundamento da organização social), incluindo também as assimetrias de gênero presentes no mercado de trabalho, na educação e no sistema político16. Com a Identidade Subjetiva demonstra o quanto o gênero é produto das organizações e representações sociais historicamente situadas. É através desses elementos que a sociedade constrói, mantém ou modifica as relações de gênero, tendo o gênero um efeito sobre as relações sociais e institucionais, os valores culturais e normativos e a subjetividade (Scott, 1990). Na sua formulação, “o gênero é um primeiro campo no seio do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado”, Scott (1990:16) recorre a Foucault para mostrar que as relações de gênero são construídas na dinâmica social das relações de poder partilhadas entre homens e mulheres. A apropriação da categoria “poder” em Foucault (1993) concorre para a afirmação do gênero como categoria relacional, pois é nesse jogo de forças que um gênero só existe em relação ao outro. O processo de dominação e emancipação envolve relações de conflito e poder entre homens e mulheres. Desprende-se daí que os homens não são os únicos detentores de poder, as mulheres também têm parcelas de poder, que são constantemente negociadas para ampliar sua condição de sujeito ou reforçar sua subordinação. As mulheres agredidas também constroem sua subalternidade e reproduzem padrões de violência, uma vez que na gramática de gênero há uma hegemonia do poder masculino. “A posição que emerge como dominante é, contudo, declarada a única possível. A história posterior é escrita como se estas exposições normativas fossem o produto de um consenso social mais do que um conflito” (Scott, 1990:15). 16 “O gênero é construído através do parentesco, mas não exclusivamente; ele é construído igualmente na economia e na organização política...” (Scott, 1990:15). 15 Dessa forma, enquanto um componente das relações de gênero, a violência entre homens e mulheres denota que ambos dispõem de parcelas de poder - ainda que prevaleça a hegemonia do poder masculino (Saffioti & Almeida, 1995) - que lhes permitem manter e/ou desencadear a violência a fim de assegurar a tradição dos papéis de gênero e a ordem patriarcal dominante, ou buscar romper e transformar as relações de violência. A construção desta perspectiva de gênero representou um salto acadêmico no estudo da condição da mulher na sociedade17. Todavia, quando Scott prioriza a dimensão discursiva da linguagem enquanto um sistema de significação, sob a máxima “sem o sentido não há experiência...” (Scott, 1990:11-12), a ênfase na construção simbólicosocial de gênero recai no idealismo conceitual, negadora de uma perspectiva crítica e de totalidade de análise das relações sociais. As significações atribuídas pelos indivíduos e as realidades discursivas da consciência são produtos da existência, como ensina Marx e Engels. A linguagem não é apenas instituinte, é também instituída pelo conjunto da totalidade do ordenamento social (Saffioti, 1999a). Apesar de Scott (1990) mencionar uma articulação entre os processos de dominação de classe, etnia junto com o genero18, na sua abordagem não há espaço para a intercessão entre gênero, classe e etnia nas relações concretas desta sociedade. Conforme Rubin (1979), o gênero deve apontar para relações sociais, numa dialética articulação com outras relações. Millet (aput Barbieri, 1993) já mostrava a complexidade de analisar a subordinação das mulheres, atentando para a interseção das dominações de gênero, classe e raça/etnia. A violência contra a mulher é determinada primordialmente pelo gênero, mas aspectos de ordem econômica e étnico/racial também interferem. Analisar a violência de gênero numa perspectiva ampla e de totalidade significa perceber sua imbricação às questões de classe e etnia. Os sujeitos sociais são constituídos de classe, gênero, e etnia, e tais contradições se entrecruzam. Um sistema de dominação ora profunda, ora potencializa o outro, ou seja, o nó formado pela imbricação desses antagonismos agrava a condição de opressão experienciada pelo sujeito. Assumir uma perspectiva feminista socialista (Saffioti, 1987; 1997; 1999ª; 2000) significa apreender o cruzamento – o que difere de paralelismo – das contradições regidas pela simbiose patriarcado-racismo-capitalismo, como um único sistema de dominação. 17 Com a perspectiva de gênero, negamos a naturalização da violência contra a mulher expressa na fórmula mulher vítima/passiva e homem agressor/ativo, uma vez que rejeita o determinismo biológico e a eterna dominação masculina/subordinação feminina expressa no patriarcado. Ainda que a condição de classe influencie na manutenção da violência, uma vez que inibe algumas alternativas necessárias ao rompimento da relação, a condição material - enfatizada pelo marxismo feminista dogmático - não é o fator determinante da violência. Também nos afastamos de um ponto de vista que atribui a violência à condição familiar, pois como vimos, os padrões de dominação são construídos no âmbito das relações sociais, em que comparecem várias instituições. “... o gênero deve ser redefinido e reestruturado em conjunção com uma visão de igualdade política e social que inclui não somente o sexo, mas também a classe e a raça” (Scott, 1990:19). 18 Vislumbrar qualquer alternativa de emancipação feminina exige consolidar um “feminismo socialista”, comprometido com a superação de todos os processos e relações sociais que limitam o exercício da subjetividade (Castro, 2000). Esta violência, enquanto expressão das desigualdades de gênero, é um exemplo concreto do efeito produzido pelo entrecruzamento de gênero, classe e etnia na perpetuação das práticas abusivas contra o sexo feminino. Referências Bibliográficas ARENDT, Hannah. A condição humana. 10ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. ________. Da violência. 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É verdade que muito já se alcançou juridicamente em termos de garantias de direitos voltados para à infância e à adolescência, o maior exemplo disto é o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que configura-se, atualmente, para a sociedade brasileira como o principal instrumento de garantia do bem-estar social pleno de sua população infanto-juvenil; mas, é também verdade que tais garantias, na maioria das vezes, permanecem tão somente em um patamar teórico, deixando lacunas na efetivação dos direitos fundamentais. Trata-se, portanto, de encarar sob um novo prisma, no que concerne à história da criança e do adolescente, esta população como cidadãos, sujeitos de direitos em condições especiais de desenvolvimento, expressando, com isto, a necessidade de direcionar a este público alvo atenção prioritária e absoluta. Ficam responsáveis, assim, o Estado, a sociedade e a família, de acordo com os parâmetros da Constituição Federal de 1988 (art.227), o qual o ECA regulamenta ao efetivar a Doutrina de Proteção Integral. O artigo 3º do ECA é claro e específico quando preconiza que: * Graduanda em Serviço Social pela UFPE (7º Período), bolsista de iniciação científica e membro do GEPE. **Graduandas em Serviço Social pela UFPE (5º Período), bolsistas de iniciação científica e membros do GEPE. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Breves antecedentes históricos da situação da criança e do adolescente no Brasil Conhecer o passado das crianças e dos adolescentes brasileiros é uma importante ferramenta para analisar e consequentemente compreender a formulação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual explicita a Doutrina de Proteção Integral como um novo paradigma jurídico dentro da área da infância e da adolescência. O panorama histórico que auxilia na compreensão de toda a trajetória da criação dos mecanismos e instrumentos voltados para atender às crianças e adolescentes pode ser vislumbrado desde a época da colonização do Brasil. Neste período, a atenção voltada para crianças e adolescentes resumia-se à catequização realizada pelos jesuítas dos meninos e meninas indígenas e ao amparo dado pela Igreja Católica àquelas que se encontrassem em situação de abandono e marginalização. Muito importante dizer que o abandono de crianças no Brasil se dá com o advento da colonização do país, com a mistura étnica entre indígenas e portugueses. Estes, ao se relacionarem com as índias brasileiras, engravidavam-nas e não reconheciam os bebês concebidos nestas relações como seus filhos legítimos. Este fato, portanto, originou a questão do abandono de crianças no Brasil. Após a independência política do Brasil, a partir de 1823, as primeiras leis e instituições começaram a surgir, ainda que de forma tímida. Na constituinte deste mesmo ano, não houve grandes preocupações com a criança, em especial a negra, já que o modo de produção da época era baseado na escravidão. José Bonifácio, justificava a idéia de que a mulher escrava permaneceria ao lado de sua cria durante o primeiro mês após o nascimento da criança, idealizando, com isso, dar continuidades ao sistema escravista. Em 1871, com o decreto da Lei do Ventre Livre (Lei 2040), que declarava livres os filhos de mulher escrava nascidos daquela data em diante, foram apresentadas duas alternativas para os senhores de escravos: libertar as crianças, deixando-as abandonadas e sendo por isso ressarcidos pelo Estado ou deixar as crianças sob a autoridade dos senhores os quais seriam recompensados mediante trabalhos forçados das crianças até a idade de 21 anos. Nesta época, não havia ainda reconhecimento, por parte do Estado, da problemática da criança e do adolescente como sendo uma questão social. A Proclamação da República em 1889, veio enfatizar, no âmbito nacional, reações sociais, políticas e econômicas, que deram margem para a proteção e assistência à criança carente, visando mudar o atendimento aos menores, que no período colonial e no império era feito de forma caritativa e filantrópica. Mas é só no início do Século XX que um fato importante vem mudar este cenário: um grande fenômeno de explosão demográfica mexe não somente com a pirâmide etária nacional, mas também com a forma que crianças e adolescentes passam a ser encarados no país, uma vez que, nesse período, o número de pessoas com menos de 19 anos de idade representava mais da metade da população (CONANDA, s/d). Urgia, diante desse contexto, uma tomada de atitude por parte do Estado. Os primeiros movimentos populares da época começaram a cobrar a devida assistência a este segmento populacional, agora ainda mais relevante no contexto sócio-econômico do país. Em resposta a esta agitação social, foi apresentado em 1906 o 1º projeto de lei que versava sobre a assistência e proteção voltadas à infância e à juventude. Apesar da problemática exigir eticamente uma resolutividade eminente, passaram-se vinte anos para que só em 1927 o primeiro Código de Menores (DecretoLei 17.943) viesse a ser promulgado. No entanto, vale salientar que muito embora este Decreto Lei tenha sido homologado, as mazelas relacionadas às nossas crianças e adolescentes não foram eliminadas, uma vez que as medidas estabelecidas no mesmo possuíam um caráter extremamente discriminatório, coercitivo e repressor, obedecendo uma lógica biopsicossocial na qual a criança era vista como deslocada do meio social. Ainda na esfera constitucional, no ano de 1934 se regulamenta a proibição do trabalho aos menores de 14 anos de idade, exceto com ordem judicial; e em 1937, na esfera de proteção à criança, firma-se a tarefa do Estado de cuidar dos casos de carência desde a infância. Salientamos, portanto, que apesar de existir estas leis de proteção ao trabalho infantil, não havia o cumprimento das mesmas. A Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional de 1969, em relação à legislação anterior, simbolizaram para a assistência das crianças um regresso, uma vez que diminui para 12 a idade mínima de iniciação ao trabalho e também porque a educação obrigatória e gratuita só era dever do Estado para com crianças de 7 a 14 anos. É importante situar que neste período o país passava por um regime ditatorial, assim, fica fácil entender a repressão e o atraso em relação aos direitos sociais. Durante sessenta anos, o Código de Menores foi utilizado como o instrumento de referência para tratar as questões pertinentes à infância e à adolescência, quando em 1979 sofreu uma reformulação, passando a introduzir em sua essência a Doutrina da Situação Irregular: (...) a lei existente se referia aos menores”, que estavam numa “situação irregular”. Situação irregular ou porque eram carentes e/ ou abandonados – e por isso precisavam da Proteção do Estado - , ou porque eram infratores e não se adaptavam à sociedade – e por isso precisavam da vigilância do Estado. Esta vigilância era responsabilidade do Juiz de menores”. (...) a lei não era universal, não era destinada a toda população com idade inferior a 18 anos (CEDCA/PE, 2002ª). Apesar deste código registrar avanços em comparação ao de 1927, pontuase nele alguns fatos que permitem contestações, como a existência da prisão cautelar para o menor que seria acometido para supostas verificações, tendo, no entanto, seus direitos infringidos. Mesmo reformulado, o 2º Código de Menores ainda estava impregnado pela lógica dos anos 60, insistindo na caracterização da criança pobre como menor. A década de 1980, conhecida como um período em que o engajamento dos movimentos sociais na luta pela redemocratização do país tornou-se marcante, serviu também de palco para os debates das reavaliações das políticas voltadas para as crianças e os adolescentes. Este processo ocorreu ao mesmo tempo em que se discutia e se construía a nova Constituição Federal, que veio a ser aprovada em 05 de Outubro de 1988. É nesta época também que se dá um dos eventos mais importantes dentro da área da infância e adolescência: a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, realizada pela Organização das Nações Unidas – ONU. A realização desta Convenção teve um registro de grande relevância pois “foi precisamente este instrumento que teve o mérito de chamar a atenção, tanto dos movimentos sociais quanto do setor mais avançado das políticas governamentais, acerca da importância da dimensão jurídica no processo de luta para melhorar as condições de vida da infância” (MÉNDEZ, 1998:34) Desta forma, os princípios e valores que deram norte à ação dos movimentos sociais da época, acabaram por influenciar na construção da Constituição Federal de 1988; prova disto é o artigo 227 da Carta Magna que reza especificamente acerca das crianças e adolescentes: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com prioridade absoluta, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração. Este artigo pode ser considerado um marco dentro da história da política para a infância e a adolescência no Brasil. O que antes tinha um caráter meramente filantrópico, baseado em métodos assistencialistas, agora passa a ser visto como política pública baseada em direitos. Observando mais minuciosamente o artigo supra citado, valemo-nos da análise de Costa (1996), que divide o artigo 227 da Constituição em três aspectos principais: “A primeira parte refere-se à sobrevivência – o direito à vida, à saúde e à alimentação.” Não se faz necessário discorrer muito acerca desta primeira divisão, uma vez que ter direito à vida, gozando de saúde plena e podendo ter o essencial para alimentar-se, eticamente é um princípio universal. Negar estes direitos básicos é negar a oportunidade de existência. “A segunda parte é relativa ao desenvolvimento pessoal e social – o direito que o indivíduo tem de desenvolver potencialidades que trouxe consigo ao nascer: o direito à educação, à cultura, ao lazer e profissionalização.” Aqui, reside a problemática do “privilégio”, pois, no Brasil, “o simples fato de nascer indígena ou branca, de viver na cidade ou no campo, de nascer no sul ou no norte, de ser menino ou menina, de ser filho de mãe com baixa ou alta escolaridade e de ter ou não alguma deficiência, determina as oportunidades que uma criança terá logo nos primeiros anos de vida” (Reiko, 2003) .Desta forma, para que possam desenvolver suas potencialidades, muitas vezes precisam contar com a “própria sorte”, pois o sistema capitalista excludente não oportuniza a todos ter acesso aos bens e serviços que garantem a aquisição do conhecimento. “A terceira parte refere-se ao respeito à integridade física, psicológica e moral – direito à dignidade, à liberdade e a convivência familiar e comunitária. Inclui-se nesta parte o direito da criança e do adolescente de ser colocado a salvo de toda forma de negligência, discriminação e exploração, violência, crueldade e opressão.” Além da garantia dos direitos básicos e essenciais, é assegurado também a criança e ao adolescente a perspectiva de emancipar-se na sociedade. Para tanto, torna-se imprescindível que valores éticos como a igualdade e a justiça, estejam bem enraizados socialmente, contribuindo, desta maneira, para dirimir qualquer forma de preconceito e/ou desrespeito. Depois da promulgação da Carta Magna em 1988, foi aprovado no Congresso Nacional Brasileiro, em 13 de Julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069), que regulamenta o artigo constitucional acima citado e apresenta uma nova proposta de política de atendimento e medidas de proteção relacionadas à infância e à adolescência. A criação deste Estatuto é um dos maiores avanços no campo jurídico, além de configurar-se também como uma conquista ética, afinal, são os princípios éticos que dão fundamentação para que o direito e as normas sejam implementados. Os avanços que o Estatuto traz em relação aos antigos Códigos de Menores são inúmeros. As vantagens podem ser vislumbradas desde a forma de adolescentes até como vêm sendo de fato executadas. O ECA encontra-se dividido em duas partes. Na primeira elencam-se os direitos fundamentais da infância e da adolescência, incluindo a garantia e regulamentação para que seja implementado o conjunto de conquistas expressas no artigo 227 da Constituição Federal. Esta parte corresponde aos artigos 1º ao 85. Na segunda, está definida a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, esta, última, também denominada de “Parte Especial”, corresponde aos artigos 86 ao 267. Mais adiante voltaremos a abordar acerca desta parte especial do Estatuto. Esta retomada histórica buscou de forma sintética, facilitar a compreensão da transferência gradual do paradigma da “Doutrina da Situação Irregular” para o da “Doutrina da Proteção Integral”. Cabe-nos agora, levantar alguns aspectos das políticas sociais voltadas para as crianças e os adolescentes que configuram-se na atual conjuntura e analisar com maiores detalhes as propostas de direito e defesa estabelecidos no ECA. Reavaliando as políticas sociais O desenvolvimento da cidadania percorreu diversos caminhos através de marcos históricos importantes, como as Revoluções Americana e Francesa e todas as lutas trabalhistas ocorridas ao longo do tempo, até alcançar etapas que se caracterizam na conquista dos direitos civis, políticos e sociais. Neste último, deve ser enfatizada a vinculação do Estado aos setores sociais, entre os quais fica estabelecido para o Estado, a responsabilidade, o compromisso de cumprir com a garantia de recursos essenciais para o desenvolvimento, subsistência e dignidade dos indivíduos. Nesse sentido, a máquina estatal opera sobre as demandas da sociedade através das políticas sociais, que funcionam como dispositivo de implementação dos direitos fundamentais. Estas políticas estão divididas em dois hemisférios de atuação: o das políticas sociais básicas – referentes ao conjunto das necessidades elementares da população, portanto, de caráter universal; e o das políticas de assistência social, que abrange os pontos mais críticos de enfrentamento da questão social, atendendo, pois, aqueles que se encontram à margem das condições dignas de cidadania. É no segundo hemisfério – o das políticas de assistência social – onde está inserida a parcela da população mais atingida pelas práticas perversas do processo de produção capitalista, que fomenta a exploração e as desigualdades sociais, rebaixando seres humanos a condições degradantes e humilhantes. A conjuntura social nacional amplia cada vez mais a degradação sistemática das condições de vida nos segmentos sociais, o que se agrava com o redimensionamento das políticas sociais setoriais, as quais vêm assumindo gradativamente um perfil focalista, seletivo e residual, do ponto de vista organizacional, contribuindo para uma visão cada vez mais fragmentada da sociedade e servindo como instrumento de reprodução da lógica do Estado mínimo, se distanciando, com isso, do seu papel de ampliação dos direitos sociais. O Brasil ostenta hoje, sob a égide do capital, o 11º lugar no campo econômico mundial; entretanto, carrega consigo uma das maiores marcas das contribuições produzidas pelo capitalismo: ocupar a colocação de 2º país que apresenta maior contraste social. Manifestações no campo das relações sociais denunciam o rebatimento direto destas questões no cotidiano dos indivíduos. Tal posição requer cada vez mais um equacionamento ético e político no quadro estrutural do país, capaz de estabelecer mudanças que imprimam, positivamente, os direitos de pessoa humana e de cidadania na vida da população marginalizada. Diante dessa situação excludente e injusta, encontram-se crianças e adolescentes, que têm constantemente seus direitos ameaçados pelo modelo político e sócio-econômico de um país como o Brasil, que empurra a população para situaçõeslimite, tais como desemprego, falta de habitação e saneamento básico, de saúde, educação, alimentação e nutrição. O amparo destinado ao público infanto-juvenil está previsto no Livro II do ECA – Parte Especial, o qual fundamenta a prática de uma política de atendimento universal direcionada a esta população. Esta política deve ser entendida como uma reunião de ações integradas, capazes de demandar respostas às necessidades da infância e da adolescência. Na criação destas ações devem estar em sintonia os setores governamentais, não-governamentais, e, sobretudo, a participação da população, no processo de decisão para formulação de políticas públicas tendo em vista o bem-estar social e pessoal das crianças e adolescentes. Para execução da política de atendimento são descriminadas no artigo 87 do ECA, linhas de ação que se caracterizam como vias articuladas, estritamente relacionadas, visando oferecer atendimento absoluto aos sujeitos de direitos em condição peculiar de desenvolvimento. Segue-se uma trilogia das linhas de ação que formam a política de atendimento. São elas: as políticas sociais básicas, destinadas a atender todas as crianças e adolescentes; a política de assistência social, direcionada às crianças e adolescentes em situação de necessidade e a política de proteção especial, comprometida em prestar atenção a crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social (vitimizados e autores de ato infracional). Estas linhas de ação da política de atendimento tomam como norte central a Constituição Federal de 1988, que preconiza todos esses direitos nas Leis nº 8080/90 (Sistema Único de Saúde – SUS), nº 8742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS) e nº 9394/96 (Lei de Diretrizes e Bases – LBD). Todas essas diretrizes legais encaminham à sociedade em geral para o cumprimento legítimo desses direitos, os quais se tornam prioritários no tocante à criança e ao adolescente. Faz-se necessário discorrer um pouco mais sobre a atmosfera dessa estrutura responsável pela ampliação da situação de risco, que se constitui como um desafio que conclama toda a sociedade para a luta pela implementação das garantias legais de proteção infanto-juvenil. Primeiramente, não podemos desvincular esta análise estrutural e seus rebatimentos nas condições de vida das famílias que são o ambiente de nascimento, crescimento e desenvolvimento de meninos e meninas, visto que é esta esfera da sociedade (a família) o locus principal de reprodução e formação desta parcela expressiva da população nacional. Os indicadores sociais revelam a necessidade do Estado intervir diretamente neste âmbito, a fim de atender as demandas da população de forma mais abrangente, o que implica, portanto, na formulação de políticas sociais eficientes, eficazes e, sobretudo, universais que contemplem a promoção e defesa de todos os direitos. Pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (1999), totalizou 160 milhões de habitantes no país, sendo 57,6 milhões crianças e adolescentes. Deste número, mais de 9 milhões de crianças vivem em família cuja renda é equivalente a menos de US$ 41,90 por mês. Quanto à renda, apenas 8,9% está concentrada nas mãos dos 40% da população mais pobre, ao passo que 13,9% da renda pertence a 1% da população. Cerca de 50 milhões de pessoas, o correspondente a 32% da população, recebe até US$ 2,00 por dia (0,71% do salário mínimo). Em situação mais calamitosa estão 21,4 milhões de pessoas (13,9% da população), as quais se encontram classificadas abaixo da linha da pobreza, tentando sobreviver com apenas U$ 1,00 por dia (0,35% do salário mínimo) (IPEA, 2000). Nessas circunstâncias, nascem 3,3 milhões de bebês por ano, contudo, um milhão deles (34,6%) não chega a ser registrado, 57 mil (1,7%) morrem na primeira semana de vida, 120 mil (3,5%) no primeiro ano e 140 mil (4,2%) nos primeiros cinco anos. Cinco mil mulheres não sobrevivem ao parto, 700 mil crianças nascidas na rede pública de saúde são filhos de meninas entre 10 e 18 anos e 14% das adolescentes na faixa etária de 14 a 19 anos têm pelo menos um filho (UNICEF, 2000). Os que conseguem sobreviver se defrontam com uma realidade cruel. De acordo com os dados do IPEA (2000), 91% das crianças de 0 a 3 anos não freqüentam creches e 42% das crianças de 4 a 6 anos não estão inseridas em escolas de educação infantil; dos meninos e meninas entre 7 e 14 anos (1,9 milhão, 7%) estão fora das salas de aula; e dos adolescentes entre 15 e 17 anos (2,2 milhões, 21,5%) estão fora da escola (IBGE, 1999). O nível de escolaridade não é dos melhores: 1,8 milhão de jovens são analfabeto e somente 18,4% dos adolescentes entre 15 e 19 anos possuem mais de 08 anos de estudos (UNICEF, 2000). Como agravante desta situação temos ainda a problemática do trabalho precoce. Em nosso país 6,5 milhões de crianças e adolescentes entre 05 e 17 anos são trabalhadores, utilizados como mão-de-obra barata e transformados em objeto de exploração do capital. Sem falar que todos os anos pelo menos 30 mil adolescentes são privados de liberdade. Estes índices estatísticos apontam para níveis que revelam a aguda pauperização das famílias, o que afeta diretamente a realidade da população infantojuvenil. “Os dados disponíveis sobre a situação das crianças e dos adolescentes brasileiros ainda demonstram uma verdadeira apartação entre as conquistas jurídicas institucionais e a eficácia das políticas sociais para efetivar direitos e proteção integral” (CONANDA, s/d). A qualidade de vida oferecida no campo social confronta barbaramente com as expectativas dirigidas para a proteção humana da infância e juventude do país, visto que o espaço por elas acampado é o da segregação social. Todos esses aspectos se constituem em vetores que vulnerabilizam e expõem a criança e o adolescente à situação de rua, violência sexual, negligência, maustratos, envolvimento com drogas, trabalho precoce, prática de ato infracional, entre outras expressões de violência contidas na realidade do mundo infantil e juvenil. Frente a esses fatores, convém diante de uma ótica ético-política, estabelecer diretrizes profundas, as quais englobem a supressão dessas vias negativas que têm como fundamento a injustiça e a reprodução da desumanidade. As mobilizações sociais dos anos de 1970/80 que resultaram na Constituição Federal de 1988, abriram portas para o debate democrático no país, dando novos direcionamentos ao universo das políticas sociais. O desenvolvimento do Estado durante esses últimos anos, após a promulgação da Carta Magna, apresentou uma série de mudanças e transformações no que consiste ao enfrentamento da questão social. Contudo, o problema clássico da escassez ou inexistência dos recursos para financiamentos das políticas sociais, somado às históricas dificuldades como a centralização política e administrativa, a desarticulação de programas e ações, o desvio de recursos, entre outras, revela a complexidade da realidade brasileira (CONANDA, s/d). Em relação às crianças e adolescentes, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, ocorreu uma reorganização da ordem institucional, na qual foram criados órgãos responsáveis pela implementação de políticas públicas tais como os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, os Conselhos Tutelares e os Conselhos Setoriais de Políticas Públicas. Comprometidas com uma proposta de transformação e mudança nas relações sociais que visam a proteção infanto-juvenil, essas instituições trabalham sob um comando intersetorial, complementar e integral objetivando a articulação de um Sistema de Garantias de Direitos capaz de “(...) permitir a construção coletiva de categoria política estratégica, de sua ação para assegurar sobrevivência, desenvolvimento, proteção e participação de todas as crianças e adolescentes” (CONANDA, s/d). Este sistema de garantia de direitos só poderá ser implementado na íntegra, à medida que a essência da Doutrina da Proteção Integral for incorporada às práticas sociais. Enquanto isso não for legitimado, crianças e adolescentes continuarão sendo negligenciados, descriminados, explorados, violentados, além de sofrerem crueldade e opressão. Entram, portanto, esses fatos em choque com o que está expresso claramente no artigo 5º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, fazendo com que ocorra a violação dos direitos da criança e do adolescente, uma construção inversa do que está legislado não só neste artigo, mas em todo o ECA. O desafio que se coloca, portanto, é afastar todas as questões que se posicionam como obstáculos, como transgressão dos direitos garantidos, porém não efetivados na sua plenitude. Logo, é preciso respostas eficazes do Estado, da sociedade e da família. A resposta do Estado mediante o referido desafio deve ser dada ao colocar em prática políticas sociais, implementando o conjunto de todas as necessidades da infância e da juventude. Com relação à sociedade, cabe desempenhar seu papel cobrando do Estado a efetivação das mudanças de ordem institucional, se fazendo participar na elaboração das políticas, fiscalizando e questionando as mesmas, bem como denunciando atos e omissões que não se enquadrem na Doutrina de Proteção Integral. Já a família, pode dar sua resposta afirmando a responsabilidade de prover as necessidades físicas e emocionais da criança e do adolescente configurando no âmbito familiar a interação entre os fatores psicológicos, socioeconômicos e culturais do ser em desenvolvimento. Diante desse ponto de vista, podemos encarar como maior desafio o exercício de fazer com que seja incorporada em nosso cotidiano, a concepção de que a Doutrina de Proteção Integral a crianças e adolescentes perpassa o ângulo da questão teórica e mergulha no cerne da questão ética, que remete ao direito legítimo de meninos e meninas viverem como seres livres e iguais, numa sociedade pautada pelos princípios da justiça e da equidade. Referências Bibliográficas AMCHAM – Câmara Americana de Comércio de São Paulo. Consulta à internet no endereço eletrônico: www.amcham.com.br/update/update2003-10-09_dtml, data da consulta: 17/12/2003. BOMTEMPO, Denise. Criança e Adolescente. In: CEFESS/ABEPSS/CEAD Capacitação em Serviço Social e Política Social. Módulo 03, Brasília UNB, 2000. P. 183-202 BONETTI, Dilséa Adeodata et. Alli. (orgs). Serviço Social e Ética: Convite a uma Nova Práxis. 4ª ed., São Paulo, Cortez, 2001. P. 21-31. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. 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