Digoxina revisitada no século XXI, a olhar para o futuro Há descrições da utilização dos digitálicos (glicosídeos da dedaleira e de outras plantas) na Europa, para tratar situações de anasarca e de dispneia, a maioria possivelmente por insuficiência cardíaca (IC), desde há provavelmente mais de mil anos. Até há bem poucos anos, cerca de 30-40, os fármacos disponíveis para tratar a IC eram os digitálicos e os diuréticos. Desde então, numerosos outros fármacos foram provando a sua utilidade, demonstrando efeitos na melhoria da qualidade de vida, no aumento do tempo de sobrevida e na redução das re-hospitalizações. Os efeitos benéficos destes fármacos resultam do controlo da hiperativação neuhumoral, com a redução da retenção hidrossalina, a redução ou reversão da remodelagem ventricular e vascular, a redução das disrimias ventriculares fatais e a redução da frequência cardíaca. A utilização da digoxina na IC em dose alta explora o seu efeito inotrópico positivo; o fármaco tem ação vagomimética e efeito dromotrópico negativo, que concorrem para a bradicardia e também para o bloqueio aurículoventricular, o que contribui para o controlo da frequência cardíaca na fibrilhação auricular (FA). De lembrar que a digoxina aumenta também o batmotropismo, isto é, a excitabilidade, tendo, pois, um efeito arritmogénico. O conhecimento adquirido de que alguns bloqueadores adrenérgicos têm um efeito extremamente benéfico no tratamento da IC com fração de ejeção diminuída (ICFED), sendo também fármacos que permitem controlar a frequência cardíaca, quer nos doentes em ritmo sinusal quer em FA, e com efeito antiarrítmico nas disriimias ventriculares, veio reduzir o campo de ação da digoxina. Mais recentemente, a ivabradina, inibidor dos canais If do nó sinusal, com efeito bradicardizante e sem efeitos hemodinâmicos, trouxe mais uma achega importante ao tratamento destes doentes O estudo SHIFT permitiu mostrar a sua eficácia, em adição à terapêutica base já instituída, na redução da re-hospitalização, o que é um objetivo muito importante: melhoria importante do prognóstico, melhoria da qualidade de vida e redução muito substancial dos custos com o tratamento da síndrome. Na Heart Failure’ que decorreu em Belgrado em 2012, Gheorghiade apresentou os resultados de uma análise retrospetiva de uma população de doentes com IC de alto risco, estudada no estudo DIG (Digitalis Investigation Group), dividida em três grandes grupos (cerca de 2200 em cada grupo, cerca de 1100 sob digoxina): doentes em classes III e IV da NYHA, doentes com fração de ejeção do VE < 25% e doentes com cardiomegalia (índice cardiotorácico > 0,55)(1), seguidos em média durante dois anos. Esta análise mostrou que estes doentes sob digoxina tinham significativamente menos re-hospitalização, embora o efeito na mortalidade fosse nulo. Os resultados são interessantes, mas é preciso não esquecer que, à data do estudo DIG, (publicado em 1997) Fátima Ceia Médica, especialista em Medicina Interna, professora associada convidada da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. Hospital de S. Francisco Xavier, Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental. 36 Recebido para publicação: Novembro de 2012 Aceite para publicação: Novembro de 2012 Revista Factores de Risco, Nº28 JAN-MAR 2013 Pág. 36-38 «... a digoxina é um fármaco que requer experiência no seu manejo. É eliminado por via renal, tem uma janela terapêutica estreita, tem interações medicamentosas importantes com fármacos e produtos de hervanária que sejam metabolizados pela via do citocrómio P450, provoca disritmia ventricular, supraventricular e bloqueio SA e AV e está contra-indicado formalmente nos doentes com pré-excitação ventricular.» os doentes tinham, como tratamento de base, diuréticos e IECA, mas não tinham bloqueadores adrenérgicos, pois o estudo é anterior à sua indicação no tratamento da ICFED. Assim, os resultados têm de ser interpretados cautelosamente, à luz deste fato e por ser uma análise retrospetiva. Numa breve revisão, lembramos que a digoxina é um fármaco que requer experiência no seu manejo. É eliminado por via renal, tem uma janela terapêutica estreita, tem interações medicamentosas importantes com fármacos e produtos de hervanária que sejam metabolizados pela via do citocrómio P450, provoca disritmia ventricular, supraventricular e bloqueio SA e AV e está contra-indicado formalmente nos doentes com pré-excitação ventricular. A intoxicação digitálica pode ser letal(3); o seu diagnóstico em fase inicial, antes da ocorrência de disritmias, requer estado de alerta do médico e experiência, pois os sinais e sintomas são muito incaraterísticos: anorexia, perda de peso, náuseas, perturbações do comportamento e do humor. O doseamento sérico da digoxina permite concretizar o diagnóstico e avaliar, de acordo com a clínica, a necessidade de iniciar o tratamento com anticorpos Fab anti-digoxina. Por este motivo parece-nos abusivo afirmar, como o fez Gheorghiade, que seja um medicamento barato. Uma análise de custo/eficácia que tivesse em conta todos estes problemas, seguramente confirmaria uma relação muito menos atraente do que o especulado, para alem dos riscos sérios inerentes à terapêutica. Acresce ainda que o seu uso é particularmente delicado nos idosos, que são o maior grupo de doentes com IC e FA. Já antes referimos as vantagens da ivabradina no contexto da ICFED, nomeadamente nos doentes que não toleram bloqueador adrenérgico ou toleram apenas doses muito baixas. Todavia, a ivabradina não atua nos doentes em FA, cuja prevalência na ICFED pode atingir os 40%. Temos, pois, aqui um potencial nicho para a utilização da digoxina. Sabemos que o ponto importante nestes doentes com FA não é a conversão a ritmo sinusal, mas o controlo da FC. Para atingir este objetivo terapêutico, dispomos dos blo- queadores adrenérgicos e da amiodarona. A amiodarona é um fármaco largamente utilizado, com manejo bem conhecido, tendo como principais problemas a sua farmacocinética extremamente variável de caso para caso e a possibilidade de causar disfunção tiroideia, hiper ou, mais frequentemente, hipotiroidismo. De referir que os endocrinologistas habitualmente «toleram» o uso da amiodarona em doentes com hipotiroidismo desde que tratado e estável. Não podemos concordar com a opinião recentemente expressa por Eade e cols, que consideram que o «tempo da dedaleira finalmente já passou»(4). Os autores fazem uma interessante revisão dos trabalhos que mostram os riscos e os benefícios da digoxina, na IC – estudo DIG, por exemplo, e na FA – estudo SPORTIF, por exemplo, e chamam a atenção para alguns pontos interessantes relacionados com a digoxina. Por exemplo, no estudo SCAF, os doentes com prescrição de digoxina e de espironolactona tiveram menor mortalidade – talvez por terem níveis mais elevados de caliemia; é sabido que a hipocaliemia constitui um risco para intoxicação digitálica. Noutro estudo sobre FA, foi observado que o número e a duração dos episódios de FA, eram maiores, o que foi atribuído à estimulação vagal associada à digoxina. Sobre a digoxina, destacamos as opiniões apresentadas nas recentes Recomendações da Sociedade Europeia de Cardiologia para o diagnóstico e tratamento da insufi- «… as Recomendações indicam que a associação de bloqueador adrenérgico com amiodarona e digoxina está interdita.» 37 Digoxina revisitada no século XXI, a olhar para o futuro Quadro I Papel da digoxina no tratamento de doentes com ICFED crónica, Recomendações da SEC, 2012(5). Recomendação classe de evidência nível de evidência Ref. Pode ser considerada, por reduzir o risco de hospitalização por IC nos doentes em ritmo sinusal com FE ≤ 45% que não toleram BA (a ivabradina é uma alternativa nos doentes com FC ≥ 70 bpm). Os doentes devem estar sob IECA (ou ARA II) e espironolactona (ou ARA II) IIb B 1 Pode ser considerada, por reduzir o risco de hospitalização por IC nos doentes em ritmo sinusal com FE ≤ 45% que se mantêm sintomáticos (classes II-IV) apesar de medicados com BA, IECA (ou ARA II) e espironolactona (ou ARA II) IIb B 1 Recomendações para controlar a FC em doentes com ICFED sintomáticos (classes II-IV), com FA persistente/permanente, sem evidência de descompensação aguda: A digoxina é recomendada para os doentes intolerantes a BA I B 1 Recomendações para controlar a FC em doentes com ICFED sintomáticos (classes II-IV), com FA persistente/permanente, sem evidência de descompensação aguda: A digoxina é recomendada como 2.º fármaco, em associação com BA, quando o BA isoladamente não foi suficiente para controlar a FC I B 1 ICFED: insuficiência cardíaca com fração de ejeção diminuída; SEC: Sociedade Europeia de Cardiologia; Ref: referência bibliográfica; IC: insuficiência cardíaca; FE: fração de ejeção; BA: bloqueadores adrenérgicos; FC: frequência cardíaca; IECA: inibidores da enzima de conversão da angiotensina; ARA II: antagonistas dos recetores da angiotensina II; FA: fibrilhação auricular. Referências bibliográficas ciência cardíaca (2012) (Quadro I)(2,5,6). De realçar que as Recomendações indicam que a associação de bloqueador adrenérgico com amiodarona e digoxina está interdita. Assim, consideramos que a digoxina tem ainda um papel a desempenhar, mas não está perto de ser uma panaceia universal sem problemas para doentes com IC que permanecem sintomáticos com a terapêutica de base. Mesmo numa época de contenção de custos com a medicação, é preciso não esquecer que a digoxina deve ser prescrita em grupos de doentes com IC muito criteriosamente seleccionados; deve ser um fármaco utilizado por quem conhece bem os seus aspetos farmacocinéticos e farmacodinâmicos, com vigilância clínica, da função renal e da caliemia e, eventualmente, electrocardiográfica. 1. Gheorghiade M. Effect of digoxin in high-risk chronic heart failure patients: a prespecified subgroup analysis of the Digitalis Investigation Group trial. Heart Failure Congress 2012; Belgrade. 2. Digitalis Investigation Group. The effect of digoxin on mortality and morbidity in patients with heart failure. N Engl J Med 1997; 336:525-533. 3. Kanji S, McLean RD. cardiac glycoside toxicity. More tan 200 years and counting. Crit Care Clin 2012; 28: 527-35. 4. Eade E, Cooper, R, Mitchell ARJ. Digoxin - time to take the gloves off? Int J Cardiol 2011, doi:10.1016/j.icard.2011.07.034. 5. McMurray JJ, Adamopoulos S, Anker SD, Auricchio A, Böhm M, Dickstein K, Falk V, Filippatos G, Fonseca C, Gomez-Sanchez MA, Jaarsma T, Køber L, Lip GY, Maggioni AP, Parkhomenko A, Pieske BM, Popescu BA, Rønnevik PK, Rutten FH, Schwitter J, Seferovic P, Stepinska J, Trindade PT, Voors AA, Zannad F, Zeiher A; Task Force for the Diagnosis and Treatment of Acute and Chronic Heart Failure 2012 of the European Society of Cardiology, ESC Committee for Practice Guidelines.. Developed in collaboration with the Heart Failure Association (HFA) of the ESC. Eur J Heart Fail. 2012; 14:803-69. Fátima Ceia 6. Hood, WB Jr, Dans AL, Guyatt GH, Jaeschke R, McMurray JJ. Digitalis for treatment of congestive heart failure in patients in sinus rhythm: a systematic review and meta-analysis. J Card Fail 2004; 10: 155-164. 38