A psicogênese das habilidades matemáticas

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A psicogênese das habilidades matemáticas
Psychogenesis of mathematical skills
Marco Montarroyos Callegaro
Rodrigo Sartorio
Juliana Frainer
Simone Nunes Ferreira
Resumo: Muitos estudos têm sido realizados sobre o modo como o cérebro lida com a informação
matemática. Este artigo apresenta uma síntese sobre a origem, evolução, estruturação e
desenvolvimento das habilidades matemáticas no cérebro humano. Pesquisas sobre o senso numérico
em animais e bebês humanos, aliadas aos recursos tecnológicos das neurociências trazem novas
evidências sobre a arquitetura e o funcionamento cerebral no domínio numérico. Todos possuímos um
Módulo Cerebral Numérico que nos confere a capacidade inata para o pensamento matemático. A
expansão desse módulo, porém, depende de como e quanto conhecimento matemático adquirimos da
cultura em que vivemos através da aprendizagem. A compreensão desse assunto pode trazer
importantes reflexões acerca da concepção que os professores têm do que seja aprender Matemática.
Palavras-chave: cérebro; cognição; educação; matemática
Sobre os autores:
Marco Montarroyos Callegaro
Diretor do Instituto Catarinense de Terapia Cognitiva, professor do curso de Psicologia do CESUSC,
Mestre em Neurociências.
Email: [email protected]
Rodrigo Sartorio
Professor Adjunto II do CESUSC – Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina e ICTC –
Instituto Catarinense de Terapia Cognitiva, Licenciado em Ciências Biológicas pela UFSM, Msc. em
Neurociências pela UFSC e Dr. em Psicobiologia pela UFRN.
E-mail: [email protected] / [email protected]
Juliana Frainer
Estudante da 4ª fase do Curso de Psicologia do Complexo de Ensino Superior de Santa Cataria,
Formada em Biblioteconomia com Habilitação e Gestão da Informação pela Universidade Estadual de
Santa Catarina – UDESC.
E-mail: [email protected]
1. Introdução
Os primeiros estudos relevantes sobre o desenvolvimento das habilidades matemáticas
foram realizados por Jean Piaget e seus colegas durante as décadas de 40 e 50. Essas
pesquisas foram feitas com crianças a partir de três anos de idade que, de um modo geral,
fracassavam nos testes propostos especialmente no aspecto do entendimento numérico
considerado mais importante por Piaget: a conservação do número (FLAVELL, MILLER,
MILLER, 1999, p. 100).
Assim, por exemplo, quando o experimentador colocava diante da criança duas fileiras
de cinco elementos cada uma em correspondência visual um a um, fazendo-as ficar com o
mesmo comprimento, a criança facilmente concordava que ambas as fileiras possuíam a
mesma quantidade de elementos. Porém, quando o experimentador alongava uma das fileiras,
criando um espaçamento entre os seus elementos e, consequentemente, aumentando o seu
comprimento em relação à outra, a criança pequena julgava maior a fileira mais comprida,
deixando-se levar pela aparência perceptiva enganosa do evento.
Tais confusões e déficits de entendimento relatados por Piaget acabaram por traçar um
perfil predominantemente negativo do conhecimento matemático das crianças pré-escolares.
“Historicamente, nós subestimamos terrivelmente a habilidade que a criança pequena tem
para a matemática”, diz Glenn Doman (1995, p. 228), fundador do Instituto para o
Desenvolvimento do Potencial Humano, na Filadélfia.
Na última década do século XX, conhecida como a Década do Cérebro, modernas
técnicas de ressonância magnética, tomografia de pósitrons e mapeamento cognitivo cerebral
desenvolvidas por neurocientistas constataram que, embora o entendimento matemático das
crianças pré-escolares seja incompleto, suas habilidades no domínio numérico são mais ricas
do que se costumava acreditar. Durante os últimos vinte anos, psicólogos têm demonstrado
conclusivamente que os bebês humanos são sensíveis à dimensão do número e capazes de
discriminar conjuntos com pequenas numerosidades1, possivelmente até 4 ou 5. O matemático
e neuropsicólogo francês Stanislas Dehaene (1997, p.45) afirma que as crianças dos
experimentos de Piaget sabiam perfeitamente que o número se conservava quando os
elementos dos conjuntos eram apenas movidos, o que não entendiam era o modo como as
questões haviam sido formuladas. Se tivessem que escolher entre quatro balas espalhadas ou
cinco balas colocadas bem juntinhas, elas provavelmente acertariam.
1
“Número” de elementos de uma coleção. Os cientistas utilizam o termo numerosidade para distinguir a
percepção numérica de quantidades dos bebês e animais do conhecimento posterior do conceito de número.
(DEHAENE, 1997, p. 35).
Rochel Gelman (BUTTERWORTH, 1999, p. 110), uma psicóloga da Universidade da
Califórnia, cujo trabalho com as habilidades numéricas de crianças tem sido o mais influente
desde Piaget, diz que as habilidades numéricas básicas podem constituir habilidades naturais e
universais para as quais estamos predispostos evolutivamente assim como andar ou falar.
Butterworth (1999, p. 6) argumenta que o cérebro humano contém um Módulo Numérico –
um conjunto de circuitos neurais altamente especializados que nos capacita a categorizar
pequenas coleções em termos de numerosidades. Perceber numerosidades ao nosso redor é tão
básico quanto enxergar o mundo em cores. As cores não estão no mundo físico, elas são um
atributo construído pelo nosso cérebro assim como os números. Quando vemos três vacas
marrons, nosso cérebro automaticamente e involuntariamente nos diz que são três vacas e que
elas são marrons.
Dehaene (1997, p. 4) denomina de senso numérico essa capacidade inata de
reconhecer, comparar, somar e subtrair aproximadamente pequenas quantidades sem o uso do
recurso da contagem. O senso numérico, diferentemente do que se pensava, é também um
atributo de muitas espécies de animais como outros mamíferos e aves que, na luta pela
sobrevivência e perpetuação da espécie, precisam ser capazes de distinguir, classificar e
quantificar os objetos do seu meio. “Uma das descobertas mais interessantes das
neurociências foi a de que a noção de numerosidade (ou cardinalidade) de um conjunto parece
ser um conceito filogenético partilhado por um número muito grande de animais”, afirma
Rocha (2000, p. 44), professor de Neurofisologia da Unicamp.
Keith Devlin (2000, p. 121) ressalta, porém, que dos quatro níveis de pensamento
abstrato (Quadro 1) muitas espécies de animais alcançam apenas o nível 1 de abstração e
algumas poucas espécies chegam ao nível 2, enquanto que apenas os humanos são capazes de
atingir os níveis 3 e 4. Para um animal, por exemplo, 5+5 não são 10, mas algo em torno de
10: talvez 9, 10 ou 11, pois sua estrutura cerebral não lhe permite uma aritmética exata, fruto
do uso de sistemas simbólicos que requerem níveis superiores de abstração. Dehaene (1997,
p. 73) explica que nossa habilidade para a linguagem e para a notação simbólica nos capacitou
a desenvolver representações mentais exatas para números grandes assim como algoritmos2
para cálculos precisos. Grande parte da matemática é uma pirâmide de construções mentais
progressivamente abstratas. Nas palavras de Adam Smith, “os números estão entre as ideias
mais abstratas3 que a mente humana é capaz de originar”.
2
Procedimento passo a passo para a resolução de uma tarefa matemática, equivalente a uma receita para fazer
um bolo.
3
Os números não são propriedades dos objetos. Você não pode tocá-los, vê-los ou senti-los. Diferentemente das
propriedades de uma laranja (cor, textura, tamanho, forma, cheiro, gosto), um conjunto de quaisquer cinco
Nível
1
Habilidade Envolvida
Pensar sobre objetos perceptualmente acessíveis do ambiente imediato.
2
3
Pensar sobre objetos familiares não acessíveis perceptualmente.
Pensar sobre objetos reais nunca antes encontrados ou imaginar variações de um objeto real. Um
unicórnio, por exemplo, é uma variação de um cavalo que jamais vimos, mas sobre o qual podemos
pensar.
4
Pensar sobre objetos totalmente abstratos (pensamento matemático).
Quadro 1: Níveis do Pensamento Abstrato
Fonte: Adaptado de Devlin (2000, p. 121).
Mesmo assim, ou seja, mesmo que a capacidade matemática de muitos animais seja
limitada, não podemos mais acreditar que a habilidade de contar e calcular seja
exclusivamente humana, racional. A evolução dotou nossos cérebros e o de muitas espécies
animais com mecanismos numéricos básicos porque tal habilidade representa uma vantagem
evolutiva. Se nascemos com a habilidade de extrair numerosidades do nosso mundo,
quantificar e realizar pequenos cálculos é porque isso é muito útil para nossa sobrevivência.
“Qualquer animal que não seja capaz de aprender onde há mais comida e menos inimigos não
terá muita chance de sobreviver”, diz Rocha (2000, slide 2, palestra 1)4. Além disso, se
herdamos estruturas cerebrais para a matemática, isto implica que nossos ancestrais próximos
ou distantes devem apresentar tais habilidades mesmo que de forma rudimentar. Tudo o que
precisamos para fazer matemática, complementa Devlin (2000, p. 10), são nove habilidades
mentais básicas – (1) senso numérico, (2) habilidade numérica, (3) habilidade de raciocínio
espacial, (4) senso de causa e efeito, (5) habilidade de construir e seguir uma seqüência de
fatos ou eventos, (6) habilidade algorítmica, (7) habilidade para entender abstração, (8)
habilidade de raciocínio lógico e (9) habilidade de raciocínio relacional – desenvolvidas por
nossos ancestrais há milhares de anos atrás para sobreviver num mundo hostil.
Por outro lado, não podemos atribuir as habilidades matemáticas humanas
exclusivamente a fatores biológicos apoiados nos princípios da seleção natural. A evolução
deve ser considerada como uma perspectiva teórica viável para se entender o
desenvolvimento cognitivo humano; porém, devemos nos lembrar que, para seu completo
entendimento, devemos incluir igualmente influências biológicas e culturais (GEARY, 1995).
A natureza dotou o cérebro humano com um Módulo Numérico cuja expansão, porém,
depende das habilidades individuais para aprender e para usar as ferramentas matemáticas
transmitidas pela cultura geral e adquiridas através de interação significativa.
elementos não possui tais características. O que todas as coleções de 5 elementos possuem em comum é a sua
fiveness e isto é abstrato (BUTTERWORTH, 1999, p. 4).
4
Informação verbal.
Geary (1995) distingue as habilidades cognitivas humanas em biologicamente
primárias (herdadas e aprimoradas) e biologicamente secundárias (adquiridas culturalmente),
e alerta que a aquisição destas últimas é geralmente lenta, exige esforço e apenas ocorre
através de educação formal ou informal. Para ele, portanto, o desenvolvimento de habilidades
matemáticas biologicamente primárias (discriminação e ordenação de numerosidades,
princípios de contagem, adição e subtração de pequenos conjuntos) e de habilidades
matemáticas biologicamente secundárias (contagem verbal, sistema numérico, álgebra,
geometria, resolução de problemas e tantas outras) exigem abordagens educacionais
específicas, pois emergem em contextos bem diferentes.
Desse modo, apresentaremos nesse artigo as pesquisas sobre o senso numérico de
algumas espécies animais, para que possamos entender a base biológica da evolução das
estruturas cerebrais para matemática e, também, os estudos realizados com bebês para
identificarmos o desenvolvimento das habilidades matemáticas inatas ao homem. A partir de
uma síntese da tese do Módulo Cerebral Numérico, é possível explicar porque apenas alguns
são bons em matemática mesmo que todos sejam igualmente dotados de um “instinto
numérico”.
2. Nossos talentosos ancestrais animais
Para sabermos se os animais possuem um senso de numerosidade há dois métodos
básicos: treiná-los para responder à numerosidade ou verificar se um comportamento animal é
governado pela numerosidade no seu ambiente natural independente de treino. Começaremos
com alguns relatos de experiências com animais treinados.
2.1. Animais treinados
O alemão Wilhelm von Osten (DEHAENE, 1997, p. 14) era um professor de
matemática e treinador de cavalos que, no início do século vinte, e influenciado pelas ideias
de Darwin dedicou-se a demonstrar a inteligência animal. Por mais de dez anos, ele ensinou
matemática ao seu cavalo Hans e os resultados foram surpreendentes. Em suas
demonstrações, se o público perguntava “Quanto é 5 mais 3?”, o treinador mostrava-lhe 5
objetos alinhados em uma mesa e outros 3 objetos em outra mesa ao que Hans respondia
batendo oito vezes com a pata no chão. Mas as habilidades matemáticas de Hans não paravam
por aí. Alguns problemas aritméticos eram escritos num quadro em notação digital, outros
envolviam operações com frações ou ainda determinar os divisores de um certo número. Hans
ficou tão famoso que, em 1904, um grupo de especialistas liderado pelo psicólogo Carl Stump
decidiu estudar o fenômeno e, após extensivas investigações, concluiu que não havia
manipulação nem trapaça por parte do treinador e que era o próprio cavalo que chegava às
respostas.
Um aluno de Stumpf, entretanto, não se deu por satisfeito e junto com seu mestre
iniciou um estudo sistemático das habilidades matemáticas de Hans concluindo por fim que,
embora o treinador estivesse sendo extremamente honesto, o cavalo possuía uma singular
habilidade de detectar minúsculos movimentos inconscientes e involuntários na fisionomia de
von Osten identificando o momento de parar de bater com a pata. Mesmo na ausência do
treinador, Hans ainda era capaz de identificar os mesmos sinais no público que o assistia. De
certo modo, tal acontecimento desacreditou qualquer pesquisa posterior sobre a inteligência
matemática animal e mostrou a necessidade de critérios mais rigorosos que evitassem as
influências inconscientes dos pesquisadores nos experimentos.
Entre 1930 e 1950, o etologista Otto Koehler (BUTTERWORTH, 1999, p. 135),
realizou uma série de experimentos importantes sobre as habilidades matemáticas de aves,
mas seu trabalho teve pouca repercussão devido à Segunda Guerra Mundial e por ter sido
publicado apenas em alemão. Koehler acreditava que os humanos nunca teriam chegado a
contar sem duas habilidades pré-linguísticas que partilhamos com os pássaros: a habilidade de
comparar numerosidades, e a habilidade de guardar o registro de numerosidades. Assim, ele
treinou o corvo Jacob a escolher, entre duas pequenas caixas, aquela cuja tampa continha a
mesma quantidade de pontos que um certo cartão mostrado inicialmente, mesmo com arranjos
espaciais diferentes.
Mais intrigante ainda é o episódio do experimento realizado com a gralha Lana. Dada
uma fileira de caixas com iscas, ela era capaz de abrir as caixas até apanhar um total préestabelecido de iscas. Numa certa vez, foram distribuídas 1, 2, 1, 0 e 1 iscas nas cinco
primeiras caixas de uma fileira e sua tarefa era apanhar cinco delas. A gralha abriu as três
primeiras caixas pegando, portanto, apenas 4 iscas. Koehler já estava quase marcando em suas
anotações que Lana havia errado a resposta quando ela volta ao início da fileira de caixas,
bica uma vez a primeira caixa (agora vazia), bica duas vezes a segunda caixa, bica uma vez a
terceira caixa, abre a quarta caixa (não encontra comida), parte para a quinta caixa, abre-a,
come a única isca e despreza o resto da fileira de caixas dando por terminada a sua tarefa!
Lana demonstrou que até mesmo as aves são capazes de obter representações mentais de
numerosidades.
Sabemos que os pássaros e os ratos têm cérebros muito pequenos mesmo levando em
conta o tamanho dos seus corpos e que os humanos são os animais que possuem o maior
cérebro proporcionalmente ao corpo. Logo após os humanos, os golfinhos são os que
possuem o maior cérebro em relação ao corpo (BUTTERWORTH, 1999, p. 138). Contudo,
pouquíssimas são as pesquisas sobre as habilidades matemáticas deles. Sabe-se apenas que
alguns deles já foram treinados para associar objetos arbitrários a um determinado número de
peixes. Há inúmeros experimentos com ratos, alguns com papagaios e esquilos, mas agora
vamos nos concentrar em nossos parentes próximos cujo cérebro é o mais parecido com o do
homem – os chimpanzés.
George Romanes, um aluno de Darwin, foi o primeiro a treinar um chimpanzé a usar
números em 1898 (BUTTERWORTH, 1999, p. 129). Uma demonstração, porém, mais
interessante das habilidades numéricas dos macacos vem de Sheba, uma chimpanzé treinada a
reconhecer os algarismos de 0 a 9 e comparar numerosidades usando os algarismos indoarábicos até 4. Ela também era capaz de procurar laranjas escondidas em três lugares de sua
jaula e determinar o total de laranjas encontradas usando símbolos numéricos. “Nunca um
animal tinha chego tão próximo das habilidades de cálculo simbólico exibido pela
humanidade”, afirma Dehaene (1997, p. 37).
Não podemos deixar de relatar, entretanto, uma curiosa dificuldade de Sheba. Para
treiná-la a identificar o menor de dois números, sua treinadora mostrava-lhe dois conjuntos de
balas de goma (suas preferidas) e quando Sheba apontava para um deles a treinadora dava-o
para um outro chimpanzé, logo Sheba ficava com a quantidade que não havia apontado.
Enquanto a treinadora usou comida, Sheba nunca conseguiu apontar para a menor
numerosidade e ficar com a maior. Porém, na primeira vez em que a quantidade de balas foi
trocada por seu correspondente numeral indo-arábico, Sheba imediatamente apontou para o
menor deles!
Um excelente exemplo de habilidades abstratas de adição num animal é o trabalho de
pesquisadores da Universidade da Pensilvânia com um chimpanzé que realiza operações
aritméticas com frações (DEHAENE, 1997, p. 24). Inicialmente, mostravam-lhe um copo
com um líquido azul até a metade para que ele apontasse outro copo com a mesma quantidade
do líquido e depois, um copo com ¾ do líquido para que apontasse outro idêntico.
Aumentando progressivamente o nível de abstração da tarefa, mostravam-lhe novamente um
copo com líquido azul pela metade e davam-lhe como opções metade de uma maçã ou ¾ dela.
O chimpanzé alcançou sucesso em todas essas tarefas mostrando ser capaz de saber que ¼ de
torta está para a torta inteira assim como ¼ de um copo de leite está para um copo cheio de
leite! E, por fim, quando lhe mostravam ¼ de maçã junto com ½ de um copo de leite
oferecendo como opções um disco inteiro ou ¾ do disco, ele optava por ¾ do disco, na
maioria das vezes. Afinal, ¼ + ½ = ¾ !
2.2. Talentos selvagens
Entre os relatos de evidências de comportamento animal governado pela numerosidade
em seu ambiente natural, destaca-se o experimento realizado com macacos rhesus em Porto
Rico (BUTTERWORTH, 1999, p.141) que demonstravam surpresa quando os pesquisadores
faziam, através de manipulação experimental, com que 1 pedaço de planta mais outro não
resultasse em 2 pedaços de planta; ou quando 2 pedaços menos 1 pedaço não dava 1 pedaço.
Tal estudo demonstra que esses macacos são capazes de usar numerosidades para estimar
suprimento de comida (planta).
Outro experimento é o de um zoólogo suíço que ao observar Brutus, o líder de um
grupo de chimpanzés, pode perceber que o uso de habilidades numéricas também faz parte da
cultura desses animais (BUTTERWORTH, 1999). Quando o grupo de dez chimpanzés saía
em busca de alimentos, Brutus usava um código simbólico baseado no número de suas batidas
nas árvores com um pedaço de pau, enviando mensagens específicas ao grupo como, por
exemplo, 2 batidas na mesma árvore significando descansar por uma hora. Esse fato evidencia
que os chimpanzés podem usar sua capacidade numérica para distinguir numerosidades e se
comunicar.
Uma das melhores demonstrações, contudo, do uso de números na natureza vem de
um experimento realizado com um grupo de leões (BUTTERWORTH, 1999). Ao anoitecer,
quando uma leoa voltava sozinha para o seu grupo, pesquisadores emitiram um único rugido
por um alto-falante. Ela parou e, não reconhecendo o rugido do intruso, retornou
silenciosamente ao seu grupo, evitando assim uma disputa de um para um. Na semana
seguinte, novamente ao anoitecer, quando ela retornava junto com mais quatro leoas do
grupo, os pesquisadores emitiram três rugidos. Desta vez, após ouvir os sons, a líder seguida
das demais resolveu prosseguir e afugentar os intrusos (3 deles contra 5 delas). A decisão de
ataque da leoa líder apoiou-se, então, na enumeração dos intrusos (percepção auditiva),
daqueles que estavam com ela (percepção visual ou memória), na abstração da numerosidade
dos dois conjuntos (intrusos e defensores) e na comparação dessas numerosidades abstratas.
Uma habilidade numérica surpreendente!
2.3. Matemática imprecisa
Obviamente, a performance dos animais não está livre de erros. É importante notar
que, a aritmética dos animais é aproximada, imprecisa. “É como se trabalhássemos com os
seguintes números: 1, 2, 3, em torno de 5, em torno de 8 etc.”, afirma Rocha e Rocha (2000,
p. 45). A aritmética filogenética é precisa quando as operações envolvem conjuntos pequenos
e aproximada quando contêm muitos elementos. Assim, a resposta de um animal é mais
precisa quanto menores forem as numerosidades envolvidas e também sua performance será
tanto melhor quanto maior for a distância entre os números envolvidos5.
No entanto, todos esses relatos não só mostram que animais treinados são capazes de
apreender quantidades numéricas, memorizá-las, compará-las e até mesmo realizar operações
aritméticas simples, como também sugerem que eles podem e usam numerosidade em seu
ambiente natural para resistir aos predadores e se comunicar em busca de alimento
(BUTTERWORTH, 1999, p. 139):
Para essa capacidade ter sido preservada por milhões de anos, ela deve ter oferecido alguma
vantagem para aquelas espécies que a possuíam. Mas qual poderia ser? A vida do animal
individual – o fenótipo – depende de alimento e segurança contra os predadores. Assegurá-los
ajuda a todos os membros de uma espécie similarmente dotada – o genótipo – a sobreviver e
reproduzir-se melhor e, outras coisas permanecendo iguais, a procriar-se mais que membros da
espécie sem tal herança. Desse modo, a valiosa capacidade de realizar essas simples tarefas
numéricas permanecerão no pool genético.
Nas palavras de Dehaene (1997, p. 39):
A evolução é um mecanismo conservativo [...] Se os nossos primos próximos, os chimpanzés,
possuem habilidades aritméticas e se espécies tão diferentes quanto pássaros, ratos e golfinhos
não estão desprovidos de habilidades numéricas, então parece que nós também devemos ter
recebido uma herança similar.
3. A matemática dos bebês
Experimentos sobre a competência numérica dos bebês realizados a partir de 1980 têm
demonstrado que inclusive recém-nascidos possuem uma compreensão intuitiva de número
(senso numérico), a mesma capacidade encontrada nos animais. Esses estudos são
considerados por Gelman (FLAVELL, MILLER, MILLER, 1999) como evidência de que as
habilidades numéricas básicas podem ser naturais e universais para os seres humanos, uma
5
Esses fenômenos ocorrem também com os seres humanos e são conhecidos por:
• Efeito do tamanho – é mais fácil e rápido perceber que 3 >2 do que 9>8, porque 2 e 3 são números menores do
que 8 e 9;
• Efeito da distância – é mais fácil e rápido perceber que 9>1 do que 9>8, porque 9 está mais longe de 1 do que
de 8. (Dehaene, 1997, p. 26).
vez que parecemos estar predispostos a processar a informação numérica desde muito cedo
antes mesmo da linguagem, da educação formal ou de experiências mais relevantes.
3.1. Os experimentos
O primeiro desses experimentos foi realizado na Universidade da Pensilvânia
(DEHAENE, 1997, p. 49) com 72 bebês entre 16 e 30 semanas os quais, sentados no colo da
mãe, observavam slides com dois grandes pontos pretos ou com dois objetos domésticos
(pente, carro, frutas) dispostos de maneira diferente a cada projeção. Ao mesmo tempo, uma
câmera de vídeo filmava os olhos do bebê registrando o tempo que ele concentrava sua
atenção na imagem. À medida que os slides com dois elementos eram passados, os bebês
olhavam cada vez menos para eles até que a imagem era substituída por outras contendo três
pontos pretos ou três objetos domésticos e imediatamente eles voltavam a concentrar-se por
mais tempo na figura.6
Um experimento usando técnica similar foi reproduzido na Universidade de Maryland
com recém-nascidos, os quais também foram capazes de discriminar perceptualmente
conjuntos com 2 e 3 elementos (subitizing7). O fato de vários aspectos físicos (cor, tamanho,
tipo de objeto, disposição espacial) da imagem mostrada aos bebês ter variado, com exceção
da quantidade, sugere que o único fator que justifica a atenção renovada deles é sua
sensibilidade numérica.
Os psicólogos imaginaram que talvez os bebês pudessem estar reconhecendo o padrão
visual dos arranjos dos objetos (1 objeto é um ponto; 2 objetos formam uma linha; 3, um
triângulo; e, 4, um quadrado) e não sua numerosidade. Realizaram, então, um experimento
com bebês de 5 a 13 meses com figuras que se moviam em trajetórias aleatórias e os
resultados foram igualmente surpreendentes: os bebês realmente discriminavam a
numerosidade dos conjuntos. Karen Winn, uma brilhante pesquisadora do Laboratório de
Cognição Infantil da Universidade do Arizona, acredita ainda que os bebês são também
sensíveis a conjuntos de ações. Usando um teatrinho de marionetes, ela mostrava
repetidamente um boneco dando 2 pulos e a cada vez o interesse do bebê diminuía. Assim que
6
Essa técnica utilizada com bebês é conhecida como habituação-desabituação. Submeter o sujeito a um mesmo
estímulo continuadamente causa a habituação e consequente perda de interesse, enquanto um estímulo novo
(desabituação) reaviva o seu interesse (FLAVELL, MILLER, MILLER, 1999, p. 104).
7
O termo subitizing designa uma “apercepção global” da numerosidade de uma pequena coleção quando
apresentada durante um período muito breve (FAYOL, 1996, p. 44). Os adultos também possuem essa
capacidade de determinar num relance a numerosidade de um arranjo visual de, aproximadamente, 4 objetos sem
o uso da contagem. Subitization ou subitizing deriva do latim subitus que significa súbito, repentino
(DEHAENE, 1997, p. 68).
o boneco deu três pulos, o tempo de atenção do bebê no evento quase dobrou. O inverso foi
usado como controle: 3 pulos seguidos de 2 pulos surtiam o mesmo efeito, o interesse do bebê
era reavivado diante da mudança na numerosidade do conjunto de ações (BUTTERWORTH,
1999, p. 103).
As experiências de Winn foram além e mostraram que os bebês possuem expectativas
sobre operações aritméticas simples como adição e subtração. No experimento de adição,
bebês de 4 e 5 meses observavam um boneco no palco do pequeno teatro de marionetes, então
uma tela ocultava esse boneco e Winn mostrava mais um boneco colocando-o atrás da tela.
Sempre que a tela era levantada mostrando o resultado correto (1 boneco + 1 boneco = 2
bonecos), os bebês mostravam pouco interesse. Mas, quando Winn alterava o resultado sem
que eles percebessem mostrando que 1 boneco + 1 boneco = 1 boneco, os bebês olhavam por
mais tempo para esse evento aritmeticamente impossível. Para Butterworth (1999, p. 107),
essa é uma boa evidência de que os bebês nascem com a capacidade de formar expectativas
aritméticas, possuem um senso de numerosidade e podem engajar-se em atividades de adição
e subtração de pequenas numerosidades, provavelmente até 4.
Outro experimento investigou a percepção numérica intermodal de bebês entre 6 e 8
meses. Foram-lhes mostrados duas imagens de conjuntos, um deles com 2 objetos domésticos
e outro com 3 e, enquanto isso, os bebês ouviam uma sequência de 2 batidas de tambor.
Durante as repetições, os bebês olhavam por mais tempo para o conjunto cujo número de
elementos era equivalente à quantidade de batidas, como que percebendo uma equivalência
abstrata entre os dois estímulos: a equivalência numérica (FLAVELL, MILLER, MILLER,
1999, p. 105).
3.2. Habilidades matemáticas inatas
Todas essas evidências empíricas sugerem, portanto, que habilidades numéricas são
inerentes ao ser humano. Conforme Geary (1995, p. 2), as habilidades matemáticas
biologicamente primárias (Quadro 2) possuem funções evolucionárias e, por isso, são
encontradas nos bebês humanos em todas as culturas sendo naturais e universais, além de
partilhadas com muitas espécies de animais.
O desenvolvimento normal das habilidades matemáticas biologicamente primárias
requer apenas que os sistemas neurocognitivos e neurobiológicos estejam íntegros, pois o
envolvimento das crianças pequenas em atividades de aprendizagem informal é espontâneo e
intrinsecamente prazeroso.
Habilidades Matemáticas Biologicamente Primárias
Numerosidade – Habilidade de determinar com precisão a quantidade de elementos de pequenos conjuntos ou
eventos (em torno de 4 elementos) sem o uso da contagem.
Ordinalidade – Compreensão básica das noções de “maior que” e “menor que” para quantidades provavelmente
menores que 5.
Contagem – Conjunto de princípios inatos (Princípios de contagem de Gelman8) que guiam a aquisição das
habilidades de contagem verbal.
Aritmética Simples – Sensibilidade a acréscimos (adições) e decréscimos (subtrações) na quantidade de
elementos de pequenos conjuntos, em torno de 3 ou 4.
Tabela 2 – Habilidades matemáticas biologicamente primárias .
Fonte: Adaptado de Geary (1995, p. 7).
3.3. Habilidades numéricas na infância e a teoria de Piaget
Todos esses experimentos colocam à prova a noção piagetiana de que os bebês iniciam
a vida sem nenhum conhecimento numérico (DEHAENE, 1997, p. 44):
Agora nós sabemos que esse aspecto do construtivismo de Piaget estava errado. Obviamente,
crianças pequenas têm muito para aprender sobre aritmética, e obviamente sua compreensão
do conceito de número depende da idade e da educação – mas elas não estão desprovidas de
genuínas representações mentais de números, mesmo ao nascerem!
Na verdade, Piaget não negava que bebês são capazes de discriminar conjuntos com 2
ou 3 elementos, mas ele não considerava essa habilidade como uma prova do conhecimento
de número (BUTTERWORTH, 1999). Piaget afirmava que o conceito de número emerge aos
4 ou 5 anos de idade, pois para ele a ideia de numerosidade estava construída sobre conceitos
lógicos mais primitivos considerados como pré-requisitos: o raciocínio transitivo9, a
conservação do número e a habilidade de abstração. Segundo Piaget (DEHAENE, 1997), as
crianças nascem sem nenhuma ideia pré-concebida sobre aritmética, levando anos de
observação atenta antes que elas realmente entendam o que é número. Logo, o conceito de
número, assim como qualquer representação abstrata do mundo, deveria ser construído nas
interações sensório-motoras com o ambiente.
8
Segundo Gelman (FLAVELL, MILLER, MILLER, 1999, p. 101), as atividades de contagem das crianças são
governadas por cinco princípios que estão presentes desde muito cedo na sua vida em uma forma embrionária:
• princípio um-um – designar um e somente um nome de número para cada item a ser contado;
• princípio da ordem estável – sempre recitar os nomes dos números na mesma ordem;
• princípio cardinal – o último nome de número pronunciado denota o total de itens contados;
• princípio da abstração – qualquer tipo de entidade pode ser contada; e
• princípio da irrelevância da ordem – a ordem em que os objetos são enumerados não importa.
9
Se A > B e B > C, então A > C. Segundo Piaget, a criança não conseguiria ordenar os números por tamanho
sem essa capacidade.
Para Butterworth (1999), no entanto, o entendimento de número pressupõe o
conhecimento de duas outras ideias: primeiro, a ideia de que um objeto é algo que pode ser
individualizado e formar uma coleção que possui uma numerosidade; e segundo, ser capaz de
determinar quando dois conjuntos possuem a mesma numerosidade e quando um conjunto
possui a numerosidade maior que outro conjunto. E mais, tal conceito deve poder aplicar-se a
conjuntos com qualquer quantidade de elementos. Os bebês e os animais, portanto, parecem
realmente possuir o conceito de numerosidade só que limitado a pequenas numerosidades.
4. A matemática no cérebro
Os estudos sobre o senso numérico dos animais e bebês humanos aliados às modernas
técnicas de mapeamento cerebral “in vivo”10 e às investigações sobre os danos causados à
atividade cognitiva em lesados cerebrais permitiram que se determinasse quais as áreas do
cérebro humano envolvidas no pensamento matemático. É válido ressaltar, porém, que as
primeiras imagens do cérebro ativo foram feitas por volta de 1970 sendo que somente em
meados de 1985 iniciaram-se as buscas de imagens do cérebro matemático (DEHAENE,
1997, p.213). Como diz Butterworth (1999, p. 196): “Métodos de imageamento estão ainda
nos seus estágios iniciais de desenvolvimento, e nós não sabemos ainda exatamente o que
estamos vendo através das câmeras de escaneamento. Nós estamos em uma posição similar a
de Galileu ao usar os primeiros telescópios”.
4.1. O Módulo Cerebral Numérico
Butterworth (1999) acredita que o genoma humano11 contém instruções para construir
circuitos no cérebro especializados em processar a informação numérica, o qual ele chama de
Módulo12 Numérico. Ele é o núcleo inato de nossas habilidades numéricas e sua tarefa é
categorizar o mundo em termos de numerosidades fazendo-nos sensíveis ao número de
elementos de um conjunto. Assim, como já mencionado, ao vermos três vacas marrons no
10
Os primeiros estudos sobre a estrutura e o funcionamento cerebral foram realizados com cérebros de pessoas
mortas. Somente com o advento das tecnologias das neurociências é que se tornou possível estudar o cérebro em
atividade. Experimentos demonstram que a atividade cerebral aumenta o fluxo de sangue nas regiões corticais
requisitadas pela tarefa proposta.
11
Conjunto de gens que nos faz ser o que somos. (BUTTERWORTH, 1999, p. 6).
12
Segundo Jerry Fodor (BUTTERWORTH, 1999, p. 4), um módulo cognitivo é um conjunto de circuitos
neurais altamente especializados que extraem um único tipo de informação dos sentidos. Através dos nossos
gens herdamos instruções para construir os módulos no cérebro os quais encontram-se prontos assim que
nascemos ou logo depois como no caso da visão colorida nos bebês. Os módulos operam rapidamente, pois são
automáticos de modo que ao vermos uma flor vermelha não podemos evitar enxergar sua cor.
pasto não podemos evitar ver que elas são marrons e que são três, pois isso ocorre
involuntariamente como um reflexo.
4.2. Localização do Módulo Numérico no cérebro
O estudo de imagens de ressonância magnética (RM) e de tomografia de pósitrons
(PET) permitiu a localização do Módulo Numérico no cérebro humano: parte inferior
esquerda do lobo parietal. O lobo parietal é, na verdade, uma grande área do cérebro e,
portanto, nem toda ela é dedicada aos números. Atualmente, acredita-se que uma parte
inferior relativamente pequena é o núcleo da nossa habilidade numérica (BUTTERWORTH,
1999, p. 195). Uma circunvolução posterior do lobo parietal chamada “giro angular” (área 39
de Broadman) desempenha um papel crucial na representação mental dos números. “Talvez
ela seja a área onde se localiza o nosso senso numérico”, diz Dehaene (1997, p. 189). A
posição do giro angular é privilegiada. Ela é uma área de associação polissensorial onde
convergem informações de outras áreas associativas como, por exemplo, visuais, auditivas e
táteis e, segundo Dehaene, “um local ideal para a aritmética porque o conceito de números se
aplica igualmente a todas as modalidades sensoriais”.
Rocha e Rocha (2000, p. 45) explicam que o lobo parietal esquerdo é importante para
a representação de posições e movimentos das mãos e dedos e também tem uma participação
importante em várias tarefas que envolvem manipulação do espaço. É tal a importância dessa
área que uma lesão nela pode causar a síndrome de Gerstmann responsável por déficits tão
diversos quanto: acalculia ou discalculia13, dificuldades em escrever (agrafia ou disgrafia),
impossibilidade de distinguir direita de esquerda e incapacidade de envolver os dedos da mão
em processos mentais tais como o de contar (ALONSO, FUENTES, 2001, p. 569). A região
parietal esquerda se subdivide, portanto, em microrregiões altamente especializadas para os
números, a escrita, o espaço e os dedos.
Acidentes cerebrais são utilizados como um recurso para a localização do Módulo
Numérico. Um dos casos citados por Butterworth (1999, p. 150) é o da sra. Gaddi, 59 anos,
que sofreu um derrame causando uma lesão no lobo parietal esquerdo do seu cérebro. Em
conseqüência, ela não consegue mais determinar, num relance e sem contar (subitizing), o
número de elementos de uma coleção mesmo quando são apenas dois ao todo! Para recordar13
Incapacidade do indivíduo em compreender operações aritméticas básicas e manusear os números (ROCHA,
ROCHA, 2000, p. 45). O neurologista Salomon Henschen introduziu o termo “acalculia” no final de década de
20 (BUTTERWORTH, 1999, p. 152).
se quantas rodas há em um carro, ela precisa evocar a imagem mental de um carro e contar em
voz alta as rodas que ela vê na sua mente. Além disso, a sra. Gaddi não consegue julgar qual é
o maior de dois numerais acima de 4 mesmo quando os algarismos são substituídos por
pontos representando a quantidade. Ela também é incapaz de dizer quantos dias há em uma
semana, seu número de telefone ou sua idade.
No caso da sra. Gaddi, a linguagem foi igualmente afetada, porém recuperada mais
tarde o que não aconteceu com suas habilidades numéricas. É válido acrescentar que, nos
testes de raciocínio lógico, como “Se Paulo é mais alto do que Carlos, e Pedro é mais baixo
do que Carlos, então quem é o mais alto dos três?”, e de memória (fatos históricos e
geográficos que não envolvam números, passado pessoal) a sra. Gaddi saiu-se perfeitamente
bem o que para Butterworth (1999, p. 153) sugere que linguagem, memória e raciocínio
intactos não são por si só suficientes para uma boa performance numérica.
O caso do sr. Van (BUTTERWORTH, 1999, p. 163), 86 anos, é praticamente o oposto
da sra. Gaddi. Provavelmente devido à doença de Alzheimer, ele sofre de amnésia, sua
memória semântica14 foi severamente comprometida, possui grande dificuldade de raciocínio
e é incapaz de realizar as tarefas que Piaget considerava como pré-requisitos para adquirir a
idéia de numerosidade (raciocínio transitivo, conservação do número e habilidade de
abstração). No entanto, ele é capaz de estimar o número de elementos de um conjunto,
comparar números e sair-se excepcionalmente bem em cálculos difíceis como, por exemplo,
escolher dentre os números 42, 61, 62 ou 68 qual é a raiz quadrada de 3844!
O sr. Bell (BUTTERWORTH, 1999, p. 154), por sua vez, possui uma doença cerebral
degenerativa que atingiu seu lobo parietal esquerdo poupando-lhe apenas a região inferior
(possível localização do Módulo Numérico) e fazendo-o perder a linguagem quase por
completo. Contudo, ele ainda é capaz de reconhecer os algarismos indo-arábicos, somar e
subtrair com precisão e, apesar de ter perdido alguns fatos multiplicativos (resultados de
tabuada), ainda mostra um bom entendimento de que multiplicar é adicionar parcelas iguais.
Comparativamente, um tumor no lobo parietal do cérebro da sra. Huber preservou seus
resultados de tabuada, mas afetou severamente seu desempenho em adições e subtrações
simples. Quando solicitada que contasse nos dedos, ela simplesmente dizia que não sabia
14
Neurologistas e psicólogos distinguem pelo menos três sistemas de memória cada qual com localização
própria no cérebro:
• memória episódica (autobiográfica) para eventos vivenciados na nossa vida, é o tipo de memória perdida com a
amnésia;
• memória semântica para armazenar o conhecimento geral como aquele que aprendemos na escola, o que inclui
as tabuadas decoradas;
• memória de trabalho para armazenar a informação temporariamente como, por exemplo, guardar o “vai um” na
adição 87 + 56.
como eles poderiam ajudá-la! A lesão cerebral da sra. Huber poupou-lhe todo conhecimento
matemático aprendido verbalmente como, por exemplo, resultados decorados de tabuada, mas
roubou-lhe o principal: a compreensão dos números e de aritmética. Como diz Butterworth
(1999, p. 157): “Sem compreensão, esses fatos verbais são de bem pouco uso. Fatos
matemáticos armazenados verbalmente não se conectam a outras partes da aritmética”.
A parte inferior do lobo parietal esquerdo desempenha, portanto, um papel crucial no
processamento numérico, o que não significa, porém, que seja a única região cerebral
requisitada para essa tarefa. Pelo contrário, a capacidade para o cálculo é uma função cerebral
altamente complexa que requer a participação de várias áreas formando redes de circuitos
neurais. Para aritmética simples, no entanto, lesões no hemisfério esquerdo causam acalculia
severa em 16% dos pacientes, enquanto lesões no hemisfério direito não causam perdas tão
significativas (BUTTERWORTH, 1999, p. 191). No entanto, há evidências de que nossa
habilidade numérica mais básica, o subitizing, possa estar representada em ambos os
hemisférios cerebrais uma vez que, em alguns casos, lesões no lobo parietal direito ocasionam
deterioração dessa habilidade. Um veterano do Vietnã, por exemplo, perdeu seu hemisfério
esquerdo em combate e, contudo, ainda pode identificar a numerosidade de um conjunto de
objetos, reconhecer numerais e comparar quantidades.
Estudos com pacientes cujo corpo caloso15 foi rompido mostraram também que ambos
os hemisférios cerebrais reconhecem visualmente os números na forma de dígitos, bem como
conseguem convertê-los em quantidade e compará-los. Contudo, somente o hemisfério
esquerdo é capaz de identificar os números quando escritos por extenso, ter acesso a uma
memória verbal de tabuadas e realizar cálculos exatos, enquanto o direito é incapaz de efetuar
cálculos mentais e produz apenas respostas aproximadas aos cálculos aritméticos
(DEHAENE, 1997). Um dos casos relatados por Dehaene (ALONSO, FUENTES, 2001) de
um paciente com extensa lesão na metade posterior do hemisfério esquerdo exemplifica esse
fato, pois para ele um ano tem “uns 350 dias”, uma hora tem “uns 50 minutos” e uma dezena
de ovos tem “uns 8 ou 10 ovos”, respostas falsas mas aproximadas das corretas.
Através do uso da ressonância magnética funcional, os neurocientistas verificaram
também a existência de áreas cerebrais bilaterais para a representação de quantidades
numéricas. Linha numérica (Figura 2) é a expressão usada por Dehaene (1997) para designar
a forma como o cérebro humano codifica os números naturais. Cada vez que somos
confrontados com um numeral indo-arábico, nosso cérebro trata-o como uma quantidade e a
15
O corpo caloso é um feixe maciço de fibras nervosas que conecta os dois hemisférios cerebrais e é responsável
pela transmissão de informação entre eles (DEHAENE, 1997, p. 181).
representa mentalmente com precisão decrescente. Assim, relutamos mais em responder que 8
e 9 são dígitos distintos do que 2 e 9 porque 8 e 9 são representados internamente por
quantidades muito próximas.
Segundo Dehaene (1997), se não possuíssemos uma representação interna da
quantidade “oito”, nós provavelmente seríamos incapazes de atribuir significado ao dígito 8.
A linha numérica que usamos para representar quantidades claramente dá suporte a uma
forma limitada de intuição sobre os números. Ela codifica apenas inteiros positivos e suas
relações de proximidade16. Talvez essa seja a razão não apenas da nossa compreensão intuitiva
do significado dos inteiros, mas também da nossa carência de intuição acerca de outros tipos
de números (p. 87).
Apesar de ambos os hemisférios representarem quantativamente os números do
mesmo modo que comparamos o nível de água de dois copos, apenas o hemisfério esquerdo
pode representar numerosidades. Essa é, inclusive, a provável razão de o hemisfério direito
ser aproximativo e apenas o hemisfério esquerdo realizar cálculos com precisão. Mesmo
assim, está claro para Butterworth (1999, p.193) que nosso Cérebro Matemático está
localizado no lobo parietal esquerdo.
4.3. Ampliando o Módulo Numérico: a importância da aprendizagem
O ser humano, diferentemente dos animais, possui a habilidade de desenvolver
sistemas simbólicos e de expressar e compartilhar seus pensamentos com outros membros da
sua espécie. Esse foi o diferencial que tornou possível o surgimento de habilidades
matemáticas mais avançadas do que as proporcionadas pela nossa herança genética – o
Módulo Numérico (DEHAENE, 1997, p. 40).
O Módulo Numérico é o núcleo de nossas habilidades numéricas básicas o qual
herdamos de nossos ancestrais. Graças a ele, somo capazes de extrair numerosidades do
mundo ao nosso redor, compará-las e realizar adições e subtrações, tudo isso apenas com
pequenos conjuntos, provavelmente até 4 ou 5 elementos. Para ir além de 5, nós construímos
habilidades matemáticas mais avançadas sobre o Módulo Numérico utilizando ferramentas
conceituais fornecidas pela nossa cultura. Essas novas habilidades são adicionadas através da
aprendizagem ao que já conhecemos sobre números e matemática.
As ferramentas conceituais são de quatro tipos (BUTTERWORTH, 1999, p. 7):
16
Sempre que um numeral nós é apresentado como, por exemplo, 8, convertemo-lo em uma quantidade que está
entre 7 e 9, mais próxima de 10 do que de 2 e assim por diante (DEHAENE, 1997, p. 87).
1. Representações através de partes do corpo – Utilizar os dedos para contar ou mesmo
partes do corpo para representar números nos sistemas de numeração de povos
primitivos;
2. Representações linguísticas – Palavras criadas especificamente para representar
números e contar;
3. Numerais – Símbolos escritos especificamente criados para representar os números e
registrar quantidades com precisão;
4. Representações externas – Marcas nas paredes das cavernas, pedrinhas para contar o
rebanho, ábaco, métodos de cálculo, calculadoras, computadores, entre outras
ferramentas para registrar quantidades e calcular com elas.
Desse modo, a habilidade numérica humana depende de três fatores:
1. Módulo Numérico – núcleo inato das habilidades numéricas básicas;
2. Recursos Matemáticos Culturais – nível de conhecimento matemático da cultura em
que vivemos;
3. Aprendizagem – habilidade individual para adquirir esse conhecimento.
Segundo Butterworth (1999), nosso Módulo Cerebral Numérico é altamente
especializado e arquiteturado sendo que lesões precoces ou falhas na sua construção ou
desenvolvimento ocasionarão dificuldades na aprendizagem, pois nenhuma outra parte do
cérebro pode assumir satisfatoriamente as funções do Módulo Numérico. Mais de 3% de
qualquer população de crianças sofre de discalculia - severa inabilidade inata para lidar
normalmente com números.
Uma vez, porém, que o Módulo Numérico tenha se desenvolvido naturalmente no
cérebro, diferenças individuais na habilidade matemática resultam somente da aquisição das
ferramentas conceituais culturais. Isso não significa, porém, que não haja alguma diferença
essencial e inata entre as crianças que se saem bem em matemática na escola e aquelas que se
saem mal. Butterworth (1999) acredita, contudo, que essa diferença não esteja na capacidade
inata especificamente matemática, mas sim na capacidade de concentração no trabalho ou em
atividades que considerem interessantes. Dehaene (1997, p. 164) argumenta que o talento para
o cálculo parece emergir mais do treinamento precoce17 acompanhado de uma excepcional
(ou até mesmo patológica)18 capacidade para concentrar-se nos números, do que num dom
17
Ver Doman&Doman, 1995.
Dehaene (1997) relata o caso de Dave, um rapaz de 14 anos que sofre de autismo e passa horas concentrado
examinando minunciosamente o calendário da cozinha sendo capaz de dizer o dia da semana correspondente a
qualquer data passada ou futura.
18
inato. Thomas Edison parecia já saber disso: “gênio é 1% de inspiração e 99% de
transpiração”.
Ao
contrário
das
habilidades
matemáticas
biologicamente
primárias
cujo
desenvolvimento depende da integridade física do cérebro, do envolvimento espontâneo da
criança em atividades como brincar e dos estímulos naturais do meio, o desenvolvimento de
habilidades matemáticas biologicamente secundárias (matemática mais avançada) é
geralmente lento, requer esforço e ocorre apenas mediante educação formal ou informal e de
muita prática (GEARY, 1995).
O primeiro contexto dentro do qual as crianças são expostas a domínios cognitivos
biologicamente secundários (por exemplo, leitura, escrita, aritmética complexa) é a escola.
Diferenças individuais em habilidades matemáticas biologicamente secundárias se devem,
portanto, a diferenças culturais nos métodos de ensino19. Uma demonstração desse fato é a
constatação de que praticamente não há diferenças em habilidades matemáticas
biologicamente primárias entre crianças asiáticas e norte-americanas, mas uma vantagem
asiática substancial em habilidades matemáticas biologicamente secundárias. (GEARY,
1995). Butterworth (1999) relata que numa recente comparação internacional de matemática
entre crianças de 12 anos, 89% das crianças de Shangai foram melhores do que a média
americana. Na verdade, eles se saíram tão bem quanto os norte-americanos de 17 anos!
Além disso, a motivação para adquirir habilidades biologicamente secundárias está
intrinsecamente ligada ao valor que a sociedade em geral lhe atribui e ao nível de motivação
individual para engajar-se nessas atividades. Contudo, a crença de que habilidades intelectuais
são biologicamente determinadas é parte do pensamento ocidental. Psicólogos constataram
que pais norte-americanos e até mesmo as crianças consideram que o sucesso em matemática
depende principalmente de talentos inatos individuais, enquanto pais japoneses acreditam que
o esforço e a qualidade do ensino são os parâmetros mais importantes (DEHAENE, 1997, p.
156). Geary (1995) lembra que a prática que aprimora a performance não é inerentemente
agradável mesmo para os experts. Ele analisa também que o construtivismo – um reflexo das
crenças culturais americanas – trata toda a matemática como se ela fosse um domínio
composto exclusivamente por habilidades biologicamente primárias, isto é, dados um
contexto social apropriado e materiais, as crianças estarão naturalmente motivadas e aptas a
19
Um exemplo do sistema educacional chinês com relação ao ensino de tabuadas: eles não forçam as crianças a
recitarem resultados de tabuada, não ensinam a tabuada do 1, não ensinam 3x5 e 5x3 em ambas as tabuadas para
que as crianças percebam que são operações equivalentes e, portanto, a tabuada do 5 começa em 5x5, pois 5x2,
5x3 e 5x4 já foram estudados nas tabuadas do 2,3 e 4 o que reduz a carga da memória de 81 para 36 fatos!
(BUTTERWORTH, 1999, p. 305).
construir o conhecimento matemático por elas mesmas. Isso não é suficiente para habilidades
matemáticas biologicamente secundárias. A aquisição e manutenção de habilidades
matemáticas biologicamente secundárias ao longo do tempo certamente requerem prática
constante. Valores culturais que deem suporte ao envolvimento do aluno nessa prática são
essenciais:
Infelizmente, exceto para conceitos básicos e atividades de contagem, o engajamento na maior
parte das atividades matemáticas não parece ser inerentemente interessante para a maior parte
dos indivíduos, asiáticos ou americanos. Não parece que a aquisição de complexas habilidades
matemáticas biologicamente secundárias ocorrerão para um largo segmento de qualquer
sociedade sem fortes valores culturais que valorizem o desenvolvimento matemático e uma
forte ênfase na educação matemática na escola (GEARY, 1995, p. 12)..
Prodígios calculistas também têm sido estudados para que se possa determinar os
fatores que levam a uma elevada performance matemática. E os resultados indicam que ser
um prodígio calculista não requer grande inteligência. Uma excelente demonstração desse
fato é o experimento realizado pelo psicólogo francês Alfred Binet na virada do século
(BUTTERWORTH, 1999, p. 266). Ele comparou dois prodígios com três estudantes
universitários e com quatro caixas de uma loja de departamento, cada qual com 14 anos de
experiência. Ao realizar cálculos aritméticos, os prodígios foram muito mais rápidos do que
os estudantes, mas na maioria dos testes foram mais lentos do que os caixas! É necessário
ressaltar que o trabalho de um caixa naquela época exigia muito mais habilidades de cálculo
do que os de hoje em dia.
Dehaene (1997) explica que o que difere prodígios calculistas e matemáticos
talentosos das demais pessoas é o tamanho do repertório de fatos numéricos que eles podem
mobilizar numa fração de segundos. Quando eles vêem o número 82, por exemplo, sua mente
evoca instantaneamente 2x41, 100-18, 9²+1² tão facilmente quanto nós evocamos “menor que
100”. Normalmente, grandes calculistas são tão apaixonados por números que eles preferem
sua companhia à dos humanos, exatamente o que ocorre com os autistas. Qualquer um que
dedique tanto tempo aos números, só pode aumentar consideravelmente sua memória,
descobrir infinitas relações entre os números além de métodos de cálculo mais eficazes.
De onde vem o talento matemático, então? Dehaene (1997) responde que os genes
provavelmente se encarregam de uma parte. “Fatores biológicos, entretanto, não pesam muito
quando comparados ao poder da aprendizagem, estimulada pela paixão pelos números”. Para
os neurocientistas, contudo, esse fato não é de se estranhar. Estudos sobre plasticidade
cerebral têm revelado que a experiência pode modificar profundamente a organização de
áreas do cérebro. Nas palavras de Dehaene (1997, p. 157), “o tempo e o esforço que alguém
dedica a um domínio modula a extensão de sua representação no córtex”. Caso você ainda
não esteja convencido disso, observe o seguinte experimento. Um psicólogo ensinou a um
grupo de estudantes várias estratégias para cálculos rápidos (DEHAENE, 1997, p. 163). Após
300 horas de treinamento ao longo de dois à três anos, a velocidade de cálculos deles
quadruplicou. Eles levam apenas 30 segundos para calcular mentalmente 59.451 x 86!
Sabe-se, também, que pessoas que gostam de matemática saem-se 15% melhor em
testes do que aqueles que a odeiam. Butterworth (1999) explica que há, na verdade, um
círculo virtuoso – uma boa performance em matemática provoca encorajamento externo, que
conduz ao encorajamento interno, entusiasmo e prazer com a atividade matemática, o qual por
sua vez conduz a mais trabalho, maior compreensão e melhor performance; e um círculo
vicioso – má performance em matemática provoca desencorajamento externo e interno,
ansiedade, condutas evitativas, nenhuma melhora e novamente má performance.
Francis Galton (BUTTERWORTH, 1999), o pai da teoria da habilidade natural, está
certo de que habilidade natural em si não significa apenas capacidade, mas também
disposição, aqueles traços que nos capacitam ou encorajam a trabalhar duro. Para ele,
entusiasmo e muito trabalho bem elaborado são essenciais para o sucesso em qualquer área do
conhecimento. Obviamente, o tipo de “trabalho duro” é de extrema importância. Butterworth
(1999, p. 316) afirma que a chave para o círculo virtuoso é a prática reflexiva, isto é, entender
o que se faz estabelecendo relações entre conceitos e procedimentos estudados. A matemática
é uma disciplina muito sensível a falhas precoces de entendimento. “Carência de
entendimento conduz à confusão, confusão à ansiedade, condutas evitativas, e nenhum
aprendizado”, diz ele.
Diferenças na performance matemática de meninos e meninas são também altamente
afetadas por oportunidades educacionais. “Sem dúvida, muitos fatores psicológicos e sociais
desfavoreceram as mulheres em matemática”, diz Butterworth (1999, p. 126). Em muitos
países, inclusive, as mulheres foram desencorajadas a prosseguir seus estudos em matemática
na universidade. Sabe-se também, que as mulheres mostram mais ansiedade que os homens
em cursos de matemática, são menos confiantes em suas capacidades, vêem a matemática
como uma atividade tipicamente masculina e seus pais, principalmente os homens,
compartilham desse sentimento. Rocha e Rocha (2000) afirmam que a capacidade cerebral
para a aprendizagem de matemática é dada por circuitos neurais herdados filogeneticamente
os quais independem dos cromossomos sexuais X e Y, o que não justifica, portanto, a crença
de que os meninos possuem tendência para obter melhores resultados em matemática. Nas
palavras de Dehaene (1997, p. 160), “estou convencido de que os preconceitos que nossa
sociedade incutiu sobre matemática são largamente responsáveis pela diferença que separa os
escores matemáticos de homens e mulheres, assim como de ricos e pobres... nenhum
determinante neurobiológico ou genético da vantagem masculina em matemática foi
encontrado até hoje”.
Por fim, o currículo e o professor também têm influência sobre os dois fatores que
diferenciam os que vão bem ou mal em matemática: entusiasmo e prática reflexiva. Através
da aprendizagem temos o poder de ampliar a capacidade do Módulo Numérico. A natureza já
fez a sua parte – dotou o nosso cérebro de um equipamento especializado, o Módulo
Numérico. Todo o resto parece ser por nossa conta!
5. CONCLUSÃO
Neurocientistas têm demonstrado empiricamente que muitas espécies de animais,
especialmente os primatas, são dotados de um senso numérico – uma capacidade que os
permite discriminar conjuntos com pequenas numerosidades (até 4, possivelmente), comparálas e realizar operações aritméticas simples (adição e subtração) com elas.
Os experimentos sugerem também que os bebês são igualmente dotados desse senso
numérico e que essa capacidade pode ser algo natural e universal entre os seres humanos que
a herdaram de seus ancestrais próximos ou distantes devido à sua função evolutiva – otimizar
a sobrevivência e reprodução.
Segundo Butterworth (1999), todos nós nascemos com um Módulo Numérico que nos
torna sensíveis a numerosidades e que nos dota de habilidades matemáticas biologicamente
primárias que, conforme Geary (1995), são: numerosidade, ordinalidade, princípios de
contagem e sensibilidade a acréscimos (adições) e decréscimos (subtrações) sempre com
pequenas numerosidades (4 ou 5).
Esse Módulo Numérico foi localizado, através de modernos recursos de imageamento
cerebral, no lobo parietal esquerdo, mais precisamente na parte inferior, numa região
denominada giro angular a qual é uma área associativa estratégica, pois ali convergem
informações de várias modalidades como visuais, auditivas e táteis. Entretanto, uma tarefa tão
complexa quanto à matemática não se restringe a uma única área cerebral, mas resulta da
colaboração de diversas outras áreas cerebrais.
A capacidade de desenvolver a linguagem e de criar sistemas simbólicos através das
ferramentas conceituais culturais – palavras para os números, numerais, métodos de cálculos e
instrumentos para registrar e operar com números maiores – tem permitido que o ser humano
ultrapasse os limites do Módulo Numérico.
Geary (1995) acredita que habilidades matemáticas biologicamente primárias e
secundárias emergem em contextos diferentes. Enquanto as primeiras dependem da
integridade física do cérebro, da motivação inerente à criança pequena e dos estímulos
naturais do meio, as segundas – habilidades matemáticas mais avançadas – ocorrem apenas
mediante instrução, prática, concentração, esforço, entusiasmo e motivação. Diferenças nos
valores culturais e nos métodos de ensino têm comprovado esse fato – crianças asiáticas são
bem melhores em matemática do que as norte-americanas.
Rocha e Rocha (2000) lembram, também, que a capacidade cerebral para a matemática
independe dos cromossomos sexuais e, portanto, meninos e meninas estão igualmente aptos a
adquirir tal conhecimento. Novamente, diferenças na performance matemática entre os sexos
se deve às oportunidades educacionais que durante muito tempo foram privilégios dos
homens.
O talento matemático, como demonstram também as pesquisas com prodígios e
autistas, parece ser mais uma questão de entusiasmo, prática reflexiva, exercícios constantes e
paixão pelos números do que de fatores biológicos. “A matemática é um produto da
capacidade neural de nossos cérebros, da natureza dos nossos corpos, nossa evolução, nosso
ambiente, e nossa longa história social e cultural” (Lakoff & Núñez, 2000).
Referências
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