Linguagens-culturas: doenças além do social – 1/2 Prof.Dr.HC João Bosco Botelho A teoria dos Quatro Humores, construída no século 4 a.C. por Políbio, médico da Escola de Cós e genro de Hipócrates, e a proposição de Galeno, no século 2 d.C., associando o perfil social como fator nato preexistente ao apa-recimento das doenças — teoria dos Quatro Temperamentos —, se tornaram dogmas quase religiosos, certamente influenciado pelo fato de Galeno ter se declarado cristão, e ampliaram os limites da cura além do social, durante quase vinte séculos. Por outro lado, a inovação de Galeno não modificou a essência da pratica médica de Cós, liderada por Hipócrates: o exame do doente por meio da anamnese, assim descrita em homenagem à deusa da recordação Mnemis. Assim, o médico próximo do doente o interrogava na busca dos fatores pessoais, familiares e sociais que poderiam estar relacionados com aos sinais e sintomas da doença. Com absoluto predomínio das teorias hipocrático-galênicas, a Medicina atravessou a baixa Idade Média. Com pouca resistência se adaptou às intole-râncias cristãs e assim chegou às primeiras universidades, sob forte influência do poder romano. No período mais tenebroso na Inquisição, entre os séculos 14 e 15, alguns médicos ensaiaram teorias para identificar mais facilmente as bruxas. O avanço seguinte ocorreu com a micrologia genialmente descrita por Marcelo Malpighi, no século 17, que pouco a pouco, na medida no aperfeiçoamento do pensamento micrológico celular, obrigou a revisão da ordem hipocrático-galênica. A partir da segunda metade do século passado, a Medicina oficial continuou transmitindo, como verdade final, a morfologia das doenças, desprezando como e por que as pessoas se relacionam com as dores e os prazeres. Apesar da associação saúde-sociedade não ser recente na história da Medicina, nunca se tornou tão obrigatória nos trabalhos acadêmicos, quanto nos últimos cinquenta anos. Notadamente nos países do Terceiro Mundo, onde a exclusão social é mais gritante, escrever ou orientar teses médicas desprovida do suporte metodológico em torno da doença como fruto do social acabou sendo proibido. Admitir como pressuposto que a doença só depende da ordem social, remete o raciocínio, de maneira obrigatória, à falsa premissa da ausência de vetores pessoais que interferem com a etiologia das doenças. A herança genética que molda os corpos dos animais multicelulares foi estruturada, em milhões de anos, para fugir das dores de todos os tipos, física e mental, e buscar o prazer como resposta inata contra o sofrimento. A vida é impossível sem a distensão entre a dor e o prazer. Ao contrário, os sentimentos pessoais e coletivos determinados pelas dores sentidas por cada uma das pessoas, podem induzir ao juízo de valor do tipo da organização social, ou seja, os circuitos biológicos identificadores da dor e do prazer pessoais e coletivos, estão embutidos em processos muito mais densos e pouco compreendidos. Apesar de a Medicina oficial ter feito progresso no trato da saúde coletiva, retirando-a do espaço fechado da classificação nosológica, é saudável insistir que prevalecem, nas academias, as correntes que colocam a doença como um produto exclusivo da organização social. Nesse sentido, a principal proposta teórica, na modernidade, que associou a doença à desordem social e à dor (por corruptela ao capitalismo, como o agente do caos) e o normal à ordem social como agente do prazer (por corruptela ao não- capitalismo), se fortaleceu a partir da descrição das condições de trabalho e da saúde dos operários ingleses (ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Rio de Janeiro. Global, 1986). A tendência de associar a doença à desorganização das sociedades é bem mais antiga. Na Grécia, nos tempos de Sólon, estava estabelecida (JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo. Martins Fontes. 1986): A função da justiça na sociedade corresponde para o corpo à da Medicina, que Platão ironicamente denomina pedagogia das doenças. Todavia, o momento da doença é muito tardio como ponto de partida para uma verdadeira influência educacional. Sendo o médico o conhecedor da doença, ele pode intervir politicamente para evitá-la. As sementes intelectuais da estranha concepção linear da dor e do prazer se reconstruíram, no século 16, interligando nos meios acadêmicos, e trazendo a máquina como o modelo ideal para ser comparado ao corpo humano. Nesse caso, os corpos, como num passe de mágica, passaram a ser comparados aos relógios e as doenças, desajustes na engrenagem. A leitura mecanicista dos corpos serviu para fundamentar uma das mais conhecidas tentativas para explicar a diferença entre o homem, possuidor de alma, e os outros animais, feita pelo médico espanhol Gomes Pereira, em 1554, ao afirmar que os animais são máquinas, incapazes de falar e raciocinar. O peso decisivo para alavancar essas idéias recaiu no filósofo francês René Descartes (1596-1650), ao reforçar a corrente mecanicista, defendendo o corpo como o domínio da física e a alma, da religião. Linguagens-culturas: doenças além do social – 2/2 Prof.Dr.HC João Bosco Botelho As ideias oitocentistas incentivadas pela fisiologia experimental de Claude Bernard aprumaram a ciência na tarefa de explicar como funcionava o corpo, quase sempre o associando aos avanços da técnica. O pleno exagero do mecanismo coube às palavras do pensador La Mettrie (ANCORA, Clemente et al. Homem, In: ENCICLOPÉDIA EINAUDI. Anthropos-homem. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985. V. 5) , em 1748, que conduziu a mecanização das pessoas ao limite máximo: “…em todo o universo não há senão uma única substância diversamente modificada, portanto o homem é uma máquina”. No século 20, com a industrialização impondo as linhas de montagem e a necessidade rápida de mão de obra, os corpos tornaram-se complementos das máquinas. O mecanicismo trouxe um impressionante conjunto metafórico às linguagens-culturas: o coração passou a ser a bomba; o pulmão, o fole; o rim, o filtro e, finalmente, o cérebro, o computador. Os reflexos sobre as mudanças na formação do médico não tardariam. Em 1910, o Relatório Flexner sobre as cento e cinquenta faculdades de Medicina, existentes naquela época, nos Estados Unidos, seguido, dois anos depois, pelo segundo Relatório, que descrevia os cursos médicos da França, Inglaterra, Alemanha e Áustria, selaram o destino da nova metodologia do ensino da Medicina. As universidades admitiram o maior produtor de saúde: as relações científicas vindas dos laboratórios de pesquisa. O conjunto formador estava apoiado na certeza de que o uso de aparelhos, para intermediar a ação médica oficial seria responsável para a melhoria das condições de saúde das populações. Talcott Parsons, em 1951, entendeu a Medicina de modo semelhante às crenças e às ideias religiosas, compreendendo as enfermidades como significantes de desvio social. A saúde só poderia ser alcançada sob a estreita supervisão do médico. Essa abordagem foi marcada pelo etnocentrismo americano do Norte, da década de cinquenta, e legitimou os Relatórios Flexner ao afirmar: “O paciente tem a obrigação de buscar ajuda técnica competente (fundamentalmente um médico) e cooperar no processo de recuperação”. A compreensão de Parsons estabeleceu a premissa de que o homem não pode ajudar-se a si mesmo. O médico seria o mais importante elemento mediador para vencer a doença. Essa abordagem fortaleceu a Medicina-oficial e a morte hospitalar, fixando forte relação de dependência do paciente frente ao médico. É evidente que o estudo de Parsons só poderia ser aplicado em alguns segmentos sociais, nos países industrializados, com grandes recursos disponíveis para pagar os serviços de saúde. Do mesmo modo como a concepção da saúde atada exclusivamente ao social, a aplicação dessa Medicina-oficial mecanicista só é aplicável entre as populações ricas e sem efeito prático nos maiores segmentos dos países subdesenvolvidos, onde a exclusão social esmaga e impede o acesso aos hospitais. A imensa parcela populacional desassistida, tanto no Primeiro quanto no Terceiro Mundo, continua recorrendo aos curadores populares para resolver os problemas da saúde e da doença. Apesar da clara evidência, a prática médica nos países do Terceiro Mundo, desde os anos sessenta, ficou impregnada pelas teorizações de Engels, Flexner e Parsons. Os trabalhos acadêmicos ora primam para qualificar a dor como fruto da injustiça social, ora oferecem a máquina como solução para prolongar a morte temida. Apesar de a maior questão dos saberes médicos não estar resolvida em qual dimensão da matéria viva a doença começa a substituir a forma preexistente para transformar o normal em doença? , os médicos oriundos da sedução marxista ou do tecnicismo exacerbado acreditaram, perigosamente, na infalibilidade da Medicina oficial e distanciaram-se do doente. As intolerâncias dos dois segmentos forçaram o abandono da milenar tradição médica que valoriza a relação médico-paciente, explícita nos escritos da ilha de Cós, como ponto de partida para alcançar a cura. As ordens médicas da doutrina flexneriana e do socialismo desmoronado, como ventos polares, aderiram ferozmente na maior parte dos médicos, entre os anos 1960 e 1980. Se, por um lado, os Relatórios Flexner concorreram para consolidar o ensino da Medicina, nos Estados Unidos da América e nos países da Europa, e a publicação de Engels remeteu à crítica dos abusos do capitalismo, por outro, ambos podem ser responsáveis pelo descrédito com que a ciência lidou, a partir de então, com o conhecimento historicamente acumulado dos curadores populares. A pior resultante da tecnocracia médica se refletiu no abuso dos medica-mentos e da hospitalização. O médico não precisaria conhecer o paciente, bastaria estabelecer o diagnóstico e prescrever o tratamento. Os testes laboratoriais seriam confiáveis para garantir que as doenças, e não os doentes, responderiam de acordo com o esperado. Na contracorrente da intolerância que afastou o médico do doente, alguns centros de pesquisas sociais iniciaram estudos para entender como as pessoas se relacionavam com as doenças e práticas de curas fora dos muros das universidades. O trabalho desses críticos da exclusiva tecnocracia médica trouxe para as academias os conflitos resultantes das relações profissionais com os dois sistemas de saberes: o mítico e o cientifico. Ao contrário das afirmações de Flexner e Parsons, o controle das doenças sempre esteve além do social (LE GOFF, Jacques; SOURNIA, Jean-Charles. Les maladies ont une histoire. Paris. L’Histoire-Seuil. 1984): A doença não pertence somente à história superficial do progresso científico e tecnológico, mas à história profunda dos saberes e práticas ligados às estruturas sociais, às instituições, às representações, às mentalidades. É insuficiente entender a doença apenas como uma consequência das agruras sociais. As evidências apontam para a doença como dependente do social e do genético para que os indivíduos possam fugir da dor-pessoal, transpor a dor-histórica e procurar o prazer. Cada pessoa possui incontáveis padrões específicos para identificar qualquer ameaça de dor. As respostas biológicas frente às sensações dolorosas foram acumuladas durante o processo de humanização, contidas nos circuitos específicos dos sistemas nervosos central e periférico e em cada segmento microscópico do corpo, todos moldados no genoma. A herança genética é a responsável pela recombinação desses incontáveis padrões e garante a transmissão aos descendentes na reprodução sexuada ou na inseminação artificial. Muitas dúvidas quanto à possibilidade de o social causar alterações genéticas, transmitidas à prole, desapareceram após os estudos das mutações genéticas e dos trabalhos do cientista Susumi Tonegawa, o Nobel de 1987, esclarecendo como se dá a variação na ordem dos aminoácidos dos anticorpos produzidos nos linfócitos B. O pesquisador demonstrou que, quando o linfócito B se desenvolve, segmentos do seu material genético são selecionados e misturados para formar novos genes, dando origem a milhões de sequências variadas de aminoácidos, capazes de efetuar com competência a defesa do corpo humano contra as agressões micro e macroscópica do exterior. Como consequência imediata dessas pesquisas, é possível afirmar que pelo menos parte da estrutura genética do homem é móvel, competente de desenvolver, durante a vida, infinidade de combinações gênicas adaptadas às necessidades vividas. Com essa certeza, é possível articular o sólido elo entre a herança genética e a vida social. A doença e a dor, por serem entidades abstratas e não existindo sozinhas em si mesmas, recebem nomes e classificações do homem, que as teme quando sente a possibilidade da dor fora de controle ou a proximidade da morte prematura. Como resposta constrói e reconstrói sistemas cognitivos dos saberes e símbolos míticos e empíricos, oriundos de tempos muito distantes, com poderes suficientes para mudar comportamentos com o objetivo de moldar a sociedade. Esses circuitos natos – as memórias-sóciogenéticas – localizadas no genoma respondem pelas correntes que ligam o ser ao social e à genética, impulsionando as pessoas contra as ameaças da dor e as aproximando de condições prazerosas. Como a forma anatômica antecede qualquer manifestação do ser vivente, isto é, para que possa construir linguagens-culturas é indispensável existir um ou mais segmentos na forma do corpo, nas dimensões macro e microscópica, que sejam os responsáveis pela função. Esse elo, indispensável à vida, preserva a multiplicidade das sensações corpóreas objetivas e subjetivas, nas linguagens-culturas orais e escritas de todos os matizes e alcançam a libido, fome, sede, medo, amor, raiva, choro, sono e outras sensações corpóreas. Considerando o ser como produto de longo processo da evolução, possui obrigatoriamente nas cadeias do ADN muitos segmentos de combinações que o religam de modo permanente ao passado recente e ao muito distante. Uma vez que o processo de mudança da forma e da função do corpo deu-se lentamente, adaptando a espécie humana à sobrevivência e forçando a fuga da dor, mantém no genoma as memórias-sócio-genéticas, adquiridas e armazenadas na ontogênese. Sob essa perspectiva teórica, os símbolos e metamorfoses das linguagens-culturas que ligam as memorias-sócio-genéticas aos limites da cura são partes do conjunto biológico que dependem do social e do genético.