O farmacêutico no PSF: trabalhando com um problema

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O farmacêutico no PSF: trabalhando com um problema (in)visível
Jesiane Pereira Lucas
Ms. Ciências Farmacêuticas – UFMG
Especialista em Saúde Pública – UFMG
e-mail: [email protected]
Maio de 2010, sexta-feira à tarde, aproximadamente 13:10h, estamos saindo para mais uma
tarde de visitas domiciliares. Somos 5 pessoas, eu e mais 4 estagiários do curso de farmácia do
UNIPAM. Levamos conosco: aparelho de aferição de pressão arterial, fichas de entrevista
farmacoterapêutica, um Handbook, alguns folhetos. Passamos pelo Centro de Saúde e lá são
recolhidos os nomes das pessoas a serem visitas para avaliação farmacoterapêutica. Na verdade,
essa estória começou a ser construída em 2007, quando dentro de uma proposta da coordenação do
referido curso de farmácia, iniciamos o estágio no Programa Saúde da Família. Dentro dessa
proposta, realizamos um levantamento do “perfil de utilização dos medicamentos entre usuários do
Programa Saúde da família”. Iniciávamos a participação do farmacêutico no Programa saúde da
família em Patos de Minas como o importante apoio da Secretária Municipal de saúde.
Em 2007, num levantamento inicial sobre os medicamentos de pessoas atendidas no PSF,
realizamos 250 entrevistas durante visitas domiciliares. Observou-se inicialmente que 90% dos
entrevistados se autodefiniam como informados sobre os medicamentos, embora 51%
apresentassem problemas quanto ao uso (interações fármaco-alimento, não-adesão,
desconhecimento do uso terapêutico, interação fármaco-fármaco, posologia inadequada) conforme
figura 1.
100
91,6
90
80
70
pacientes informados
60
%
50,8
46,3
50
40
uso irracional de
medicamentos
interação fármacoalimento
30
20
10
0
pacientes
informados
uso irracional
de
medicamentos
interação
fármacoalimento
Figura 1: Frequência de pacientes que se diziam informados,
de uso irracional de medicamentos, interação fármaco-alimento.
Nesse trabalho, os estudantes de farmácia realizaram orientação farmacêutica em 68% das
entrevistas, porcentagem essa que seria mais elevada se alunos não estivessem no quinto período
do curso. Eram abordadas questões farmacológicas, não-farmacológicas (dieta, atividade física,
participação em grupos de hipertensos, ...), existência de genéricos, tipos de serviços oferecidos no
SUS (forma de obtenção dos medicamentos de alto custo, fisioterapeuta no NASF do município, ...).
Nesse mesmo estudo, inicialmente o paciente relatava praticamente o médico e o enfermeiro como
os únicos profissionais que os orientavam sobre os seus medicamentos dentro do Sistema de Saúde.
Em outro trabalho realizado entre os 30 idosos de uma das equipes de saúde da família,
observamos que todos apresentavam algum PRM (Problema relacionado ao medicamento). Esses
dois estudos resultaram em 4 trabalhos de TCC (Trabalho de Conclusão de Curso). Recentemente,
foi-nos encaminhada uma paciente pela enfermeira de uma ESF (Equipe Saúde da Família)na
seguinte situação: mulher, 38 anos, hipertensa, diabética, IMC>40,
utilizando 20 (VINTE)
medicamentos. Foram realizadas visitas domiciliares, entrevista farmacoterapêutica, estudo de
prontuário, revisão de literatura, levantamento de PRMs (Problemas Relacionados aos
Medicamentos), avaliação do caso clínico (Figura 3). Por fim, as propostas de intervenções foram
encaminhadas por escrito e discutidas com a enfermeira e médica da ESF. Nesse caso, tratava-se de
uma paciente atendida por duas especialidades médicas além do médico do PSF e daqueles de
Unidade de Pronto Atendimento (UPA), na qual comparece com freqüência.
Ao longo desses anos, muitas são as descobertas, desafios e aprendizagens. Por exemplo,
observam-se como pontos bastante positivos com a presença do farmacêutico na Estratégia Saúde
da Família: a satisfação do usuário ao receber o profissional em sua casa, a confiança no
farmacêutico, a acolhida por parte da ESF que sofre com o grande número de pessoas com
problemas com medicação e a riqueza da discussão dos casos clínicos, com os quais há uma
importante aprendizagem (Figura 2).
Figura 2: Acadêmicos do curso de farmácia
apresentando casos clínicos no Centro de Saúde
Há ainda uma percepção gradual e crescente por parte dos funcionários do Centro de saúde
e dos Agentes de saúde sobre a importância do farmacêutico naquele contexto. Antes, era pergunta
freqüente: “O que um farmacêutico está fazendo aqui no Centro de Saúde?” Hoje, já encontramos na
unidade a lista de usuários para a visita do farmacêutico. Por outro lado, essa percepção do papel do
farmacêutico no Saúde da Família tem acontecido também entre outros profissionais durante
reuniões científicas, nas quais, apresentamos nossos trabalhos: Simpósio de Promoção à saúde
(UFTM), Congresso Mineiro de Ciências da saúde (UNIPAM) e Congresso Brasileiro de Geriatria e
Gerontologia (Quadro 1). Tem-se observado uma boa receptividade inclusive com a sugestão de
maior divulgação dos nossos resultados.
Publicação e apresentação de trabalhos
sobre as possibilidades de atuação do
farmacêutico no PSF
• UFTM – I Simpósio de Promoção à saude, 2010 – 1
trabalho apresentado
• Congresso Brasileiro de Geriatria e Gerontologia – 2010
- 4 trabalhos apresentados
• UNIPAM – Congresso Mineiro de Ciências da saúde
(2009) – 2 trabalhos apresentados
• UNIPAM - XI Semana de farmácia (2009) – 2 trabalhos
apresentados
• Artigos para revistas – 5 para encaminhamento
• Trabalhos de pesquisa: andamento - 3
concluídos - 4
Curso de farmácia do UNIPAM no Estratégia
Saúde da Família
Quadro 1 – Relação de eventos científicos onde
Apresentamos trabalhos referentes ao farmacêutico no PSF
Por outro lado, além dos muros acadêmicos, há ainda um campo pouco valorizado embora
bastante estratégico para a conscientização da importância do profissional farmacêutico no
NASF/PSF, as conferências e conselhos de saúde. Assim, tivemos presentes, agora em 2010, na
Conferência de Saúde Mental do município. Lá uma proposta apresentada foi a inserção do
farmacêutico no NASF, o que nos surpreendeu e, obviamente, agradou-nos. Outro espaço importante
para a nossa atuação farmacêutica refere-se à conscientização dos profissionais sobre a questão dos
medicamentos. Assim, dentro de uma proposta de encerramento de estágio e à convite da Secretaria
Municipal da Saúde, realizamos um mini-curso para os agentes de saúde sobre o uso racional de
medicamentos em 2009. (Figura 3).
Figura 3 – Curso sobre uso racional de medicamentos para agentes de saúde
Por último, uma questão fundamental e título dessa reportagem: o desconhecimento por
quase todas as partes do Sistema de Saúde da magnitude do uso irracional de medicamento,
obviamente há algumas exceções. Talvez esse seja um dos motivos mais importantes para a
resistência de alguns gestores quanto à inclusão do farmacêutico no NASF relata por alguns exalunos. Na verdade, o farmacêutico seria um profissional para um problema de saúde invisível, o uso
irracional de medicamentos, então por que inseri-lo? Esclarecendo melhor: pacientes obesos ou
desnutridos são uma realidade perceptível para a inclusão do nutricionista, pacientes acamados
demandando um fisioterapeuta. Mas e nós? Qual a situação prática referente ao medicamento requer
o farmacêutico? Apenas promover o acesso? E o uso racional ? Muitas vezes, promover o acesso ao
medicamento parece ser o único papel desse profissional e a única necessidade do paciente quanto
a esse recurso terapêutico. Porém o acesso ao medicamento é a ponta do iceberg, há a parte
submersa, a informação, fator determinante para o uso correto da medicação e invisível aos olhos do
poder público por questões principalmente históricas. Certamente, o acesso ao medicamento é um
dos problemas a ser resolvido, mas tê-lo disponível não é uma garantia de uso correto e pode
ocasionar aumento de internações sejam por reações adversas, não controle de doenças, e
obviamente mais gastos públicos na saúde. Nesse contexto, vou relatar outro caso recente. Durante
a supervisão de estágio em uma farmácia municipal, uma mãe trazia uma prescrição de sulfato
ferroso, amoxicilina e soro fisiológico para o filho de 1 ano e 1 mês, que ainda não caminhava e
apresentava quadro de infecção respiratória. Ao observar aquela criança, percebia-se um
desenvolvimento psicomotor inadequado. A mãe relatou-me que a pediatra havia dito que o “exame
de sangue” continuava indicando anemia, embora a criança adquirisse o sulfato ferroso há quase 6
meses na farmácia municipal. Ao abordar a mãe sobre a forma de administração de sulfato ferros ao
filho, ela me disse ser sempre com café, pois o gosto desagradável do medicamento causava recusa
na criança. A mãe foi orientada e esse fato foi registrado no livro de casos clínicos e intervenções
farmacêuticas mantido no estágio. Certamente, essa administração incorreta pode ser um dos fatores
para o insucesso no tratamento dessa criança que estava demandando mais consultas, mais exames
e mais medicamentos. Essa situação dessa mãe e filho ilustra bem a necessidade do acesso não só
ao medicamento mas também à informação cuja importância é frequentemente negligenciada pelo
Sistema de Saúde público e privado. Entretanto, para afirmar a existência de um problema é preciso
registrá-lo ou a sua resolução, se isso não ocorre o problema continua invisível. Afinal, quantas
intervenções o farmacêutico realiza no cotidiano e registra? Assim, não se visibiliza para o sistema de
saúde a sua importância profissional e a existência do uso irracional.
Enfim, esse relato de experiências, ora feito em pessoa do singular ora do plural já que a
proposta envolve muitos, é uma tentativa de propor alguns cuidados importantes para reforçar a
importância do farmacêutico no NASF: necessidade de mais estudos sobre o mau uso de
medicamentos no âmbito da Estratégia saúde da Família, registro das intervenções farmacêuticas e
das percepções dos usuários e dos membros da ESF sobre o trabalho farmacêutico. Percebe-se que
a credibilidade e respeito vão crescendo junto às ESF, à população, ao gestor na medida em que os
números, relatos e intervenções são mostrados e registrados e assim mais responsabilidades vão
nos sendo confiadas. Enfim, essa estória vai sendo tecido, talvez com personagens e cores
diferentes, mas sempre com mesmo enredo e sonhos farmacêuticos,
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