Privatização da Guerra Perante a redução das atribuições do

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Privatização da Guerra Perante a
Redução das Atribuições do Estado
Na Hora da Globalização
João Amorim Esteves
Doutor em Ciência Politica e Administração
Professor da Universidade Lusíada do Porto
Privatização da Guerra perante a redução das atribuições do Estado - Na hora ..., pp. 45-74
RESUMO
A atividade mercenária tem estado presente em todas as guerras, ao longo da
História. Já no final do século V a. C. ‘os soldados da fortuna’ serviram em Atenas
e mais tarde nas Guerras Púnicas. Na Idade Média, em Espanha e na Guerra dos
Cem Anos para submeter o reino da França. Na Idade Moderna, assiste-se à lenta
construção do Estado, convencionalmente a partir do século XVII, se aceitarmos
que a ordenação internacional assenta no primado dos Estados soberanos, em
que o ‘Estado faz a guerra’. Ao contrário, na Renascença, os condottieri fazem
e desfazem os príncipes italianos. É nesta altura que o papel dos mercenários
se torna crucial. Mercenários alemães constituem-se as forças principais dos
Habsburgo na Guerra dos Trinta Anos. Exilados irlandeses colocam-se ao
serviço de Luís XV. Nas monarquias do Antigo Regime, os regimentos são,
habitualmente, privativos dos nobres. Contudo, desde o início do século XVIII,
Carlos XII, da Suécia, manifesta o desejo e força o debate sobre a criação de forças
armadas nacionais. Esse debate intensifica-se sobretudo em França, na época do
Iluminismo. Verdadeiramente esta inflexão, só ocorre com a Revolução Francesa,
com a desvalorização da imagem do mercenário. Quando a Assembleia Nacional
decide dissolver todos os corpos mercenários, em Julho de 1791, são, contudo,
preservados alguns. Os historiadores, de uma forma geral, estabelecem uma
distinção entre ‘voluntários estrangeiros’ e os ‘mercenários clássicos’. O termo
rapidamente assumiu o significado de um ‘prestador de serviços’ que se coloca à
disposição de um empregador. Foi, deste modo, que os ‘combatentes não nacionais’
se foram espalhando por todo o mundo com a globalização dos conflitos. Por
essa razão, adotaram o lema Orbs patria nostra – ‘O mundo é a nossa pátria’. Esta
definição não lhe retira, contudo, a ambiguidade sempre presente. Após 1945, a
situação evolui, dada a criação de certas legiões, mas é a partir de 1960, com as
guerras de descolonização, que a comunidade internacional se sente na obrigação
de estabelecer uma definição legal da atividade. Para a Organização das Nações
Unidas (ONU), o termo refere-se «a toda a pessoa especialmente recrutada no país
ou no exterior para combater num conflito armado». O mercenário pode assumir
uma participação direta ou indireta nos combates, mediante uma remuneração,
não tem nacionalidade, não reside em nenhuma das nações em conflito, nem é
membro das suas forças armadas. Embora desacreditados desde a era da “nação
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em armas”, continuaram a ser utilizados em operações paralelas durante todo o
século XX, principalmente durante a Guerra Fria. Além disso, a ‘terceirização’
das ações armadas encontra-se no cerne dos conflitos no início do século XXI,
como acontece no Iraque e Afeganistão. Resta debater e aprofundar a discussão,
em que as OI, em obediência aos princípios universalmente aceites na Declaração
Universal dos Direitos do Homem, da Convenção de Genebra de 1949 e da ONU,
devem acordar sobre o regresso dos ‘soldados da fortuna’ e a sua inscrição nas
regras do Direito Internacional.
PALAVRAS-CHAVE
Mercenário; Voluntário; ‘Soldado da fortuna’; ‘Combatente não nacional’;
Guerra.
ABSTRACT
The mercenary activity has been present in all wars throughout history. At
the end of the fifth century b. C. the ‘soldiers of fortune ‘ served in Athens and
later in the Punic Wars. In the Middle Age, in Spain and in the Hundred Years
War to bring back the kingdom of France. In the Modern Age, we are witnessing
the slow state building , conventionally from the seventeenth century , if we
accept that international order based on the rule of sovereign states, in which the
‘State makes war’. On the contrary, during the Renaissance, the condottieri make
and break down the Italian princes. It is in this time that the role of mercenaries
becomes crucial. German mercenaries constitute themselves the main forces of
the Habsburgs in the Thirty Years War. Irish exiles put themselves at the service
of Louis XV. In monarchies of the Old Regime, the regiments are usually private
of the noble people. However, since the early eighteenth century, Sweden of
Charles XII shows the desire and force the debate on the creation of the national
armed forces. This debate intensifies particularly in France, at the time of the
Enlightenment. Truly this inflection occurs only with the French Revolution, with
the devaluation of the image of the mercenary. When the National Assembly
decides to dissolve all bodies of mercenaries, in July 1791, some are preserved,
however. In general, historians, distinguish between ‘foreign volunteers’ and
‘classics mercenaries’. Quickly the term took on the meaning of a ‘renderer of
services’ who is available to an employer. It was thus that the ‘non-national
combatants’ were spreading across the world with the globalization of conflicts.
This is the reason why they adopted the motto Orbs patria nostra - ‘The world
is our homeland’. This definition does not detract, however, its ambiguity
always present. After 1945, the situation evolves, on account of the creation of
some legions, but it is since 1960, with the decolonization wars, the international
community feels obliged to establish a legal definition of the activity. For the
United Nations (UN), the term refers to “the whole person specially recruited
in the country or abroad to fight in an armed conflict”. The mercenary may
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assume a direct or indirect participation in fighting, through a payment, without
nationality, does not reside in any of the nations in conflict, or to be a member
of its armed forces. Although discredited since the era of the “nation in arms”,
continued to be used in parallel operations throughout the twentieth century,
especially during the Cold War. Furthermore, the ‘outsourcing’ of armed actions
is at the heart of the conflict at the beginning of this century, as it happens in Iraq
and Afghanistan. It remains to discuss and deepen the debate, in which the IO, in
obedience to the universally accepted principles in the Universal Declaration of
Human Rights, the Geneva Convention of 1949 and the UN, should agree on the
return of ‘soldiers of fortune’ and affiliation the rules of international law.
KEY-WORD
Mercenary; Volunteer; ‘Soldier of Fortune’; ‘non-national Combatant’; War.
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ÍNDICE
Resumo
Abstract
Introdução
1. Das Origens à Conceção
2. Na Passagem do Século XIX
3. Na Hora Da Globalização
4. O Período das Ideologias
5. As Empresas de Guerra
6. A Privatização da Guerra e a Redução Das Atribuições do Estado
7. Conclusão
INTRODUÇÃO
Com o fim da Guerra Fria assiste-se a uma clara diminuição de guerras
entre Estados e ao aumento de guerras civis e de atos de terrorismo, de que o 11
de Setembro de 2001 é o paradigma, juntamente com o crime organizado, a nível
global.
No contexto da Nova Ordem Mundial, os conceitos de Defesa têm evoluído
para conceitos mais amplos, que vão mais no sentido da Segurança Internacional.
Lentamente, os conceitos estratégicos de defesa começam a designar-se de
estratégia de segurança, – ‘Estratégia de Segurança Nacional’, nos EUA e
de ‘Estratégia Europeia de Segurança’, na UE. Esta inflexão não é puramente
semântica, pois requer a adaptação de todo o aparelho militar, tanto para a área
da defesa, como da segurança, concretamente, para missões de intervenção,
pacificação/imposição e construção da paz.
A instabilidade global sentida, após o final do século passado, tornou as
Forças Armadas convencionais insuficientes para responderem a tantos conflitos
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assimétricos globais, o que vem dar uma maior liberdade de ação a forças não
estatais, atores internacionais, agentes de conflitos e do tipo de guerras do século
XXI, de que é paradigmático o caso da Al-Qaeda, mesmo decapitada. De um
relativo apagamento dos Estados, assiste-se a um ascendente das empresas
militares privadas de segurança, cuja contratação é muito solicitada por ser
considerada inevitável nos conflitos recentes, nas áreas da consultoria, segurança
interna, inteligência militar, mas, fundamentalmente, devido a aspetos financeiros
associados a custos insuportáveis de alguns serviços, se forem prestados dentro
das forças armadas. Resta debater e aprofundar a discussão, não podendo as OI
competentes, ignorar as questões éticas subjacentes.
Para abordar este tema interessa identificar, neste contexto, as principais
questões inerentes ao debate, o que passa por analisar «A atividade dos ‘soldados
de fortuna’, ao longo dos tempos, as questões que se mantêm e outras que se
levantam, de acordo com as diferentes expectativas dos vários atores da cena
internacional, que equilíbrios e tipo de soluções poderão ser adotadas».
Nesse sentido, serão confrontadas as seguintes questões, atenta a ordem
lógica da sua apresentação, e a ‘Conclusão Final’:
- Das Origens à Conceção - Na Passagem do Século XIX - Na Hora da
Globalização - O Período das Ideologias - As Empresas de Guerra - A
privatização da guerra e a redução das atribuições do Estado.
1. DAS ORIGENS À CONCEÇÃO
É com a Revolução Francesa que a atividade mercenária é desvalorizada
pela Grande Nação ao desejar substituí-la pelo alistamento militar, como princípio
fundamental para a organização das forças armadas de um Estado1, o que já
explicava, no final do século XVIII, o sentimento negativo que recaía sobre essa
corporação, […a segunda profissão mais antiga do mundo]2. Desde essa data,
que eles se confundem com homens sem fé nem lei, que se põem ao serviço de
quem pagar mais. Curiosamente, têm constituído, ao longo dos tempos, forças
presentes em todas as guerras. Já no final do século V a. C. serviram em Atenas
e mais tarde nas Guerras Púnicas. Na Idade Média, em Espanha e na Guerra dos
Cem Anos para submeter o reino da França.
Na Idade Moderna, assiste-se à lenta construção do Estado, em que «a
guerra faz o Estado e o Estado faz a guerra», nas palavras de Charles Tily3. Ao
contrário, na Renascença, os condottieri fazem e desfazem os príncipes italianos
– que os empregam mediante um contrato, a condotta. É nesta altura que o
1 É graças à vitória na batalha de Valmy que a Revolução Francesa marca o «início de uma nova era
para o mundo», segundo Goethe.
2 Nas palavras de Bob Denard, um dos ‘Cães de Guerra’ mais conhecidos da Guerra Fria.
3THOMPSON, J. (1994): Mercenaries, Pirates and Sovereigns, State –Building and Extraterritorial Violence
in Early Modern Europe, Princeton University Press, 1994.
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papel dos mercenários se torna crucial. Lansquetes e retres4 alemães são as forças
principais dos Habsburgo na Guerra dos Trinta Anos. Exilados irlandeses, os
“Gansos Selvagens”, colocam-se ao serviço de Luís XV. Nos conflitos entre a
França e a Inglaterra os ‘corsários’ diferenciam-se dos ‘piratas’, porque lhes eram
concedidas cartas de corso assinadas pelo rei, que lhes permitia lutar em todos os
oceanos contra o inimigo inglês, angariando fortunas pessoais.
Nas monarquias do Antigo Regime, os regimentos são, de modo geral,
privativos dos nobres a quem cabe organizar o recrutamento de pessoal. Os
cadetes da mais alta aristocracia também podem servir regimes estrangeiros com
as suas forças, como exemplo do príncipe Eugénio de Saboia, no reinado de Luís
XIV e Maurício da Saxónia no tempo de Luís XV, durante a campanha de sucessão
da Áustria, de 1745 a 1748. Contudo, desde o início do século XVIII, a Suécia de
Carlos XII constitui-se no exemplo mais precoce do desejo de um Estado de criar
um exército nacional. A derrota na batalha de Poltava, em 1709, força o debate
sobre a organização das forças armadas. Esse debate intensifica-se sobretudo em
França, na época do Iluminismo. A supressão da venalidade no Exército e o fim
da possibilidade de os coronéis serem proprietários do seu próprio regimento, dá
início a uma inflexão, em 1762, que só ocorre verdadeiramente com a Revolução,
com a desvalorização da imagem do mercenário. Com a queda da Monarquia, em
1792, parece assistir-se ao desaparecimento dos ‘soldados da fortuna’5. Quando
a Assembleia Nacional decide dissolver todos os corpos mercenários, em Julho
de 1791, são, contudo, preservados alguns, como os helvéticos, que serviam a
monarquia há 350 anos, mas que acabaram por cair com ela. Para além daqueles,
foram preservados ainda outros, como os “Gansos Selvagens” irlandeses, a que se
juntam mais tarde, escoceses, prussianos e polacos6, que serviram nos exércitos de
Napoleão. É, assim, que a partir da proclamação da República, os historiadores,
de uma forma geral, estabelecem uma distinção entre ‘voluntários estrangeiros’
e os ‘mercenários clássicos’7. O termo rapidamente assumiu o significado de um
‘prestador de serviços’ que, independentemente das causas, acontecimentos e
motivações, coloca uma força armada à disposição de um empregador (publico
ou privado). Foi, deste modo, que os combatentes não nacionais se foram
espalhando por todo o mundo com a globalização dos conflitos. Por essa razão,
adotaram o lema Orbs patria nostra – ‘O mundo é a nossa pátria’.
4 Lansquete era o nome dado aos soldados de infantaria, mercenários alemães, nos séculos XV e XVI.
Retre, termo que designava os cavaleiros alemães mercenários, ao serviço da França, na Idade
Média.
5 A nação francesa deseja criar o seu exército de ‘soldados-cidadãos’ para defender o seu território,
daí, o sentido que é atribuído à declaração da “pátria em perigo”, de 1792.
6 Ao lado dos mamelucos (escravos comprados), os polacos recebem a honra de constituir a
Guarda pessoal de Napoleão, durante o seu exílio na Ilha de Elba, como prova da sua lealdade
ao Imperador. Mergulhados na miséria, depois da Restauração (1815), acabaram por partir para
terras otomanas, em 23 de Junho de 1817 (Apud J. Savant (1949): Les Mamelouks de Napoléon, Paris,
Calmann-Lévy p.102).
7 Do latim, mercenarius. Mercenário - ’soldado contratado mediante dinheiro’ ou ‘doméstico que se
paga’ - in GAFFIOT, J. (1934): Dictionnaire latin-français e français-latin, Paris, Hachette.
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Esta definição não lhe retira, contudo, a ambiguidade sempre presente.
Após 1945, a situação evolui, dada a criação de certas legiões, como a ‘Legião
Francesa’8, dos voluntários enviados para o front russo pela Alemanha nazista.
É a partir dos anos 1960, com a multiplicação de combatentes estrangeiros nas
guerras de descolonização, que a comunidade internacional se sente na obrigação
de estabelecer uma definição legal da atividade.
Para a Organização das Nações Unidas (ONU), o termo refere-se «a toda a
pessoa especialmente recrutada no país ou no exterior para combater num conflito
armado». O mercenário pode assumir uma participação direta ou indireta9 nos
combates, mediante uma remuneração elevada, não tem nacionalidade, não
reside em nenhuma das nações em conflito, nem é membro das suas forças
armadas. Deve, assim, a comunidade internacional criminalizar essa atividade
em nome dos princípios correntes desde 1789? Embora desacreditados desde a
era da “nação em armas”, continuaram a ser utilizados em operações paralelas
durante todo o século XX, ‘Os ‘Cães de Guerra’, na altura da Guerra Fria. Além
disso, a ‘terceirização’ das ações armadas encontra-se no cerne dos conflitos
no início do século XXI, como acontece no Iraque e Afeganistão. Daí, a grande
questão que se coloca é de saber se é possível prever o retorno dos conflitos
privados ou se apenas se está a assistir a uma maior transparência na utilização
dos ‘soldados da fortuna’, mediante uma delimitação da nebulosa mercenária, e
à consequente inscrição nas regras do Direito Internacional10.
2. NA PASSAGEM DO SÉCULO XIX
Após a queda de Napoleão, os monárquicos passam a perseguidores. Em
todo o sul da França os miquelets, corpos francos dos Pirenéus, ou os verdets,
ultramonárquicos, sedentos de vingança, perseguem os partidários do Império.
Muitos oficiais optam pelo exílio, aliás, não lhes resta outra saída, dado que,
a lei de 24 de Julho de 1815 proscreve as figuras mais marcantes dos ‘Cem
Dias’. Mesmo depois de passado o ‘Terror Branco’11, a decadência leva muitos
a optar pelo destino de ‘soldado de fortuna’ fora da Europa. As humilhações
multiplicavam-se para os ex-combatentes do ‘Grande Exército’. As reintegrações
são raras e sistematicamente no posto inferior. No Piemonte, proíbe-se até, que
os veteranos exibam a ‘Legião de Honra’12.
As ‘diásporas militares’ são particularmente graves em certos países como
é o caso da Polónia, que tinha sido riscada do mapa e dividida entre a Prússia,
8 A LEF foi criada em 7 de Junho de 1792.
9 Normalmente em missões de enquadramento ou consultoria.
10 Apud OSTELLS, Walter Bruyère (2012): História dos Mercenários: de 1789 aos nossos dias, Tradução
Patrícia Reuillard – São Paulo, Contexto.
11 Nome dado às represálias dos imperialistas, em 1815, contra os bonapartistas e os republicanos.
12 Ordem criada por Napoleão Bonaparte para recompensar os serviços civis e militares.
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a Áustria e a Rússia, e o caso dos irlandeses em que, a partir do século XVIII,
a Irlanda se torna numa terra de emigração sem precedentes. Após as guerras
napoleónicas, um milhão de irlandeses atravessa o Atlântico com destino aos
EUA e Canadá, entre 1815 e 1845. Por seu lado, a ‘Grande Fome’, entre 1845
e 1854, provoca a saída de mais de 2,3 milhões de pessoas, tendo 80% desses
emigrantes como destino a América do Norte13. Uns tornaram-se fazendeiros
e trabalhadores nas cidades da Costa Leste, mas outros deixam-se tentar pelas
armas. No campo sulista, durante a Guerra da Secessão, cerca de cento e cinquenta
mil irlandeses estão disponíveis, apesar de a maioria optar pelo seu recrutamento
no exército do norte, temendo as migrações de escravos. A outra grande diáspora
militar é suíça. Existem, em 1816, regimentos ao serviço da França, dos PaísesBaixos, da Prússia, da Inglaterra, da Espanha, do Piemonte e de Nápoles, num
total aproximado de trinta mil ‘soldados de fortuna’14. A tradição helvética de
neutralidade e de atividade mercenária chega ao fim no século XIX, exceto a
‘Guarda Pontifícia’, devido às evoluções do direito internacional, em relação à
posição de neutralidade de um Estado.
Mas as ‘diásporas’ colhem ainda outras causas, nomeadamente as guerras
de independência na América do Sul, que tinham começado mesmo antes da
Revolução Francesa, como no caso do fim das Guerras da Independência dos
EUA, em 1776, ou seja, antes da queda do Império em 1815. Utilizando como
pretexto a usurpação do trono espanhol por José Bonaparte, as colónias recusamse a obedecer à metrópole e lutam pela separação. É o caso de Nova Granada,
atual Venezuela, em que a luta é liderada por Simon Bolívar, que depois de alguns
revezes, conta, a partir de 1817, com um agente em Londres15 para recrutamento
de europeus que procuram a sua fortuna noutras paragens. Bolivar, além de
querer organizar um recrutamento mais sistemático de mercenários, deseja,
sobretudo, fortalecer a sua autoridade face aos patriotas que o apoiam, razão
pela qual lhes escolhe o lema – “Sempre fiéis à autoridade suprema”, ou seja, a
si próprio. Na ponta mais a sul da América do Sul o recrutamento de soldados
experientes também é significativo, nomeadamente, no caso da independência
chilena (Províncias Unidas do Rio da Prata), de 1816 a 1828.
Na Europa, em 1821, os gregos levantam-se contra os otomanos, a quem
estão submetidos, desde o século XV. Os soberanos do mundo cristão europeu
assumem a sua preocupação com o levantamento grego, pois o ‘sultão’ representa
a legitimidade, princípio que defendem. Intransigentemente, desde a ‘usurpação’
do trono francês por Napoleão Bonaparte. Em consequência, os insurgentes
gregos só podem contar com voluntários europeus. A causa helénica acaba por
13 GUIFFAN, J. (2006): L’ Irlande contemporaine de A a Z, Paris, Armeline, 2006, p. 253.
14 BORY, J. R. (1966): Les Suisses au servisse étranger du XV siècle au XIX siècle, in Histoire Universelle
des Armées, Paris, Robert Laffont, p. 4v, apud OSTELLS, Walter Bruyère (2012): História dos
Mercenários: de 1789 aos nossos dias, Tradução Patrícia Reuillard – São Paulo: Contexto.
15 HABSBROUCK A. (1928): Foreign Legionaries in the Liberation of Spanish South America, New York,
1928, p. 470.
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conquistar forte adesão pública no espaço atlântico, da Europa aos EUA, o que
deu origem ao movimento de interesse e simpatia por parte dos patriotas que
lutavam contra os turcos – filelenismo16.
É quando termina a guerra da independência grega, que os voluntários
se revelam dispostos a lutar pelas causas liberais europeias, um novo campo
de batalha. É nesse contexto que também Portugal, no tempo de D. João VI,
que reina até 1826, se abre aos mercenários. Seu filho, D. Pedro, sobe ao trono
imperial da ex-colónia do Brasil, em 1822, data da sua independência. Nessas
circunstâncias, D. Maria II, filha de D. Pedro é proclamada rainha, mas como
ainda é criança, seu tio Miguel assume a regência do país. D. Miguel governa
de forma autoritária e muito conservadora. Acaba por se apoderar do trono em
desfavor de sua sobrinha, em 1828, o que provoca um movimento de resistência
liberal a partir da Ilha Terceira, nos Açores. Em 1831, D. Pedro abdica do trono
brasileiro em nome de seu filho D. Pedro II e, no ano seguinte, assume o comando
do movimento liberal. Nesse sentido, D. Pedro lança um apelo à Europa para
constituir uma tropa capaz de enfrentar os oitenta mil homens de seu irmão
D. Miguel. Recruta combatentes em Paris e em Londres, embora o seu corpo
expedicionário seja maioritariamente constituído por portugueses que aderiram
à sua causa. Desembarca nas imediações da cidade do Porto (Praia do Mindelo),
em 1832. Sitiado rapidamente pelos absolutistas na cidade do Porto, as tropas
comandadas por Solignac, ex-General do ‘Grande Exército’ que serviu em
Portugal sob as ordens do Marechal Soult, então ministro da guerra, conhece
bem o terreno, sendo seguido por britânicos, ex- companheiros de Wellington,
que lutou do lado contrário, aquando das invasões francesas, entre 1807 e 1811.
Apesar de substituído, os liberais resistem ao cerco durante todo o ano de 1833,
enquanto outras forças partidárias de D. Pedro desembarcam no Algarve e aliviam
a pressão sobre a cidade do Porto. Em 1834, D. Miguel renuncia definitivamente
ao trono, os liberais impõem D. Maria pela Convenção de Évora Monte, de 26 de
Maio de 1834, sendo D. Miguel forçado ao exílio17.
Contudo, o mercenário mais célebre da primeira metade do século XIX é,
sem dúvida, Giuseppe Garibaldi18, que imbuído de ideal republicano, ingressa
na Giovine Itália, em 1833, e participa, no ano seguinte, na insurreição de Génova.
Condenado à morte, consegue fugir e refugiar-se na América do Sul. Começa por
integrar o exército da República do Rio Grande do Sul, que tinha proclamado a
sua independência, negando a autoridade ao Imperador do Brasil. A partir de
1842, o futuro herói da construção italiana passa a servir o Uruguai, república
fundada em 1830, que se tinha separado da Argentina, após uma longa guerra de
16 Defendido pelos intelectuais, ganha popularidade através de figuras como o poeta Lord Byron
que se torna o porta-bandeira dos filelenos combatentes. Morrendo em Missolonghi, o líder dos
românticos ingleses acaba por dignificar o voluntariado das causas liberais que implodiam por
toda a Europa.
17 SARAIVA, J.H. (1983): «O triunfo liberal», História de Portugal, Lisboa, Publicações Alfa, pp. 29 – 40.
18 GARIBALDI, G. (2004): Memoire, Udine, Paolo Gaspari Editore.
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libertação, ao lado da sua esposa Anita, apoiando a sacrossanta causa dos povos,
prosseguindo essa vida aventureira19. Durante a defesa de Montevideu, de 1834
a 1851, os ecos de glória de Garibaldi chegam à Europa, e o chefe dos ‘camisas
vermelhas’ recebe a alcunha de “herói dos dois mundos”, comparação elogiosa
com La Fayette.
A glória alcançada nas suas aventuras sul-americanas permite-lhe imporse como chefe militar dos republicanos italianos no decorrer do Risorgimento.
Em 1867, é derrotado pelos franceses que defendiam o Papa, retirando-se até
ao anúncio da queda do Segundo Império, em 187020. A situação catastrófica
que se vive em França, após a proclamação da ‘Terceira República’, mobilizam
novamente o ‘voluntário’ Garibaldi. Participa na organização da defesa nacional
e combate com uma nova legião italiana os inimigos da República, fazendo recuar
as forças prussianas em várias posições, como em Châtillon-sur-Seine e Dijon,
porém, a rendição de Paris obriga à assinatura do armistício. Eleito deputado por
seis departamentos franceses, o velho camisa vermelha prefere retirar-se para a
Ilha de Caprera pondo fim à sua luta.
Mas foi na construção nacional italiana que Garibaldi se tornou um
personagem lendário, graças à expedição dos ‘Mil Contra o Reino de Nápoles’
e depois contra os Estados pontifícios. É derrotado em Mantena, em 1867, pelo
Exército da Santa Sé e seus ‘zuavos pontificais’. Na Suíça, a longa tradição da
atividade mercenária tinha sido proibida desde 1849, com exceção do apoio ao
soberano pontífice. O movimento em prol da unidade italiana empreendida por
Vítor-Emanuel II, rei de Piemonte-Sardenha, inquieta Roma, que se vê forçada
a reorganizar e modernizar o exército pontifício. Para isso, é lançado um apelo
a todos os católicos da Europa em defesa do trono de S. Pedro. Dezenas de
milhares de jovens vêm alistar-se nas fileiras de Cristo, – ‘Os mercenários de S.
Pedro’. O exército do Piemonte avança sobre os estados pontifícios, ao encontro
de Garibaldi que tinha tomado Nápoles. Nos confrontos, o exército pontifício é
derrotado, embora o Piemonte se tenha comprometido a não atacar o papado.
Mas, nas costas, Vítor Emanuel II incita Garibaldi a tomar a cidade, o que não
conseguiu, perante uma forte resistência do exército da Santa Sé, apesar do seu
forte desejo de “deitar abaixo o barracão pontifical”. Começando por apoiar Vítor
Emanuel II, o Imperador Napoleão III mostra-se preocupado por não conseguir
afastar os católicos franceses, o que o leva a oferecer apoio militar à Santa Sé. É
um exército franco-pontifício que derrota as tropas de Garibaldi em Mentana, em
19 Idem, op. cit, p. 257.
20 MILZA, Pierre (2007): As relações Internacionais de 1871 a 1914, Edições 70, Lda., Armand Colin
Éditeur, 1995, Tradução de Rosa Carreira, pp. 6 – 14. Em 1866, a Alemanha derrota a Áustria na
batalha de Sadova e, em 1870, humilha a França na batalha de Sédan, em que, o próprio Imperador
Napoleão III é feito prisioneiro com os seus 140 mil homens e obrigado a assinar a Paz, na Sala dos
Espelhos do Palácio de Versalhes. Os príncipes alemães ofereciam ao rei da Prússia, Guilherme
I, a coroa imperial, consumando assim a unidade política da Alemanha, ao mesmo tempo que se
implantava a sua supremacia no continente europeu.
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Novembro de 1867, a que já nos referimos21.
Porém, com a queda do ‘Segundo Império’, no verão de 1870, sem o apoio
do Imperador Napoleão III, o rei do Piemonte-Sardenha, Vítor Emanuel tem
o caminho aberto e, com os seus setenta mil homens, avança sobre Roma. Os
zuavos nada puderam fazer e o Santo Padre pede a rendição.
3. NA HORA DA GLOBALIZAÇÃO
Após o Congresso de Viena de 1815, as guerras vão-se desvanecendo na
Europa, onde se reforça a ideia de que a guerra nacional apoiada num exército de
cidadãos triunfou, segundo os princípios da Revolução Francesa. Mas a atividade
mercenária continua, e vai à procura de paragens mais distantes, desviandose para as colónias das potências europeias. Estão em construção os impérios
coloniais que muitas vezes se constroem a partir de iniciativas privadas, como
a Companhia das Índias Orientais, que apela ao recrutamento de ‘soldados de
fortuna’ locais, como os gurkhas na Índia.
Contudo, o modelo mais original é, sem dúvida, o português. Em África,
Portugal apodera-se da Guiné (Guiné Bissau), de Angola e da Zambézia
(norte de Moçambique e nordeste de Zimbábue, atualmente). Portugal muito
enfraquecido pelas invasões francesas, perdeu a sua joia da coroa, o Brasil, em
1822, e está envolvido em guerras civis recorrentes, a caminho do liberalismo.
Vive graves problemas financeiros e, consequentemente, económicos e sociais.
O exército colonial está subequipado e sem quadros. A dominação portuguesa é
feita por soldados apoiados por exércitos privados dos grandes concessionários22.
Nos confins da Zambézia oriental, ao lado das terras suaílis, os senhores Alves
da Silva possuem uma enorme propriedade, o ‘prazo de Majanta da Costa’ e
defendem-se do seu poderoso vizinho, ‘Mussa Quanto’, sultão suaíli, conhecido
como “Napoleão de Angoche”, enriquecido pelo tráfico negreiro, que trava uma
guerra santa, o jihad, contra os portugueses. Para o enfrentar os irmãos Alves
da Silva recrutam milhares de combatentes, a maioria caçadores indígenas
(zambezianos), tendo até tomado Angoche, em 27 de Setembro de 1861, sob o
comando de João Bonifácio Alves da Silva, que é nomeado coronel de 2ª. Linha
e governador da província, cuja anexação é oficializada pelo Estado português.
Também, Manuel António de Sousa23 ganha renome ao fundar uma
grande concessão em Moçambique, no ‘Monte Gorongosa’, submetendo grupos
ngúnis, à custa do recrutamento de mercenários. Os seus serviços são de tal
21 Rapport sur le combat de Mentana, in Journal historique et littéraire, Paris, Dillet Libraire, 1867-1868,
tomo XXIV.
22 PÉLISSIER, R. (2004): Les Campagnes coloniales du Portugal 1844-1941, Paris, Pygmalion, p. 344.
23 Nascido em Goa, em 1835, torna-se o homem mais forte da Zambézia até 1890, à frente de mais
de cinco mil mercenários e seiscentos caçadores de elefantes. A própria administração portuguesa
recorre aos seus serviços, como em 1882-1884 para reprimir a ‘revolta de Massingire’. O homem
transforma-se numa lenda com os seus rituais.
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modo reconhecidos pela administração portuguesa que, depois de uma grande
campanha em 1887, é recebido e condecorado pelo rei em Lisboa. A capital festeja
o seu herói da colonização portuguesa. Acaba por ser feito prisioneiro de outro
exército privado, o ‘British South Africa Company’. É levado para o Cabo, onde
acaba por falecer, em 1892. Pode afirmar-se que a sua morte marca o recuo da
influência portuguesa no sul da Zambézia perante os britânicos. Como conclusão,
pode avaliar-se até que ponto as aventuras dos proprietários portuguesas dessas
terras e a sua reconstrução, estão completamente imbrincadas.
O percurso dos ‘soldados da fortuna’ ao serviço dos concessionários das
potências coloniais, marca a luta entre as potências, mas, sobretudo, a sua
responsabilidade, segundo alguns autores, pela marginalização da África no
contexto da globalização, apesar do inegável papel que esses concessionários e
seus mercenários tiveram no destino mundial, durante a Idade Moderna24 pese,
embora, o anonimato a que foram votados. Na verdade, é na primeira metade
do século XX, que o rápido desenvolvimento da administração colonial tende a
eclipsar os mercenários, em favor dos exércitos regulares.
No período da descolonização, porém, eles regressam, entregues aos
apetites económicos das potências e das guerras. Depois da exploração da terra e
dos produtos agrícolas, segue-se a exploração de diamantes e de minas de ouro,
no Transval, em 1867, o que explica o interesse dos britânicos pelo ‘Cabo’. Mas as
motivações políticas também não estão ausentes. Conhece-se bem a importância
do nacionalismo francês, após o caso de Fachoda25 e também não se pode ignorar
que, o ‘Segundo Império Português’ é um meio de adolar o orgulho nacional,
humilhado, desde o século XVIII, por um lento mas inexorável declínio. Também
a Alemanha, alimentada de um forte pangermanismo, sonha suplantar a GrãBretanha que agora domina os mares, a nível global.
Cerca de cinquenta milhões de europeus vão tentar a aventura em terras
distantes, entre 1850 e 191426. Entre 1876 e 1914, cerca de um quarto da superfície
do globo é dividida em colónias entre meia-dúzia de Estados. A Grã-Bretanha
cresce cerca de dez milhões de quilómetros27, considerando não só a África, mas
24 Considera-se, que a ‘Época Moderna’ nasce com as ‘Grandes Descobertas’ e corresponde ao período
durante o qual se construíram impérios coloniais (principalmente o português e o espanhol), como
primeiro tempo da globalização.
25 Fachoda fica situada na interseção de ferrovias construídas pela França e Grã-Bretanha para fazer
a ligação das suas colónias africanas, entre 1898 e 1899, o que originou um confronto entre as duas
potências. A França acaba por recuar, na contenda, perante as ameaças britânicas. Durante muito
tempo, a opinião pública vai guardar um grande um grande ressentimento e até humilhação, em
relação à Grã-Bretanha – a “afronta de Fachoda” que, para desgosto de Guilherme II, foi evitado.
A França tinha acabado por tomar conhecimento do tratado secreto entre a Grã-Bretanha e a
Alemanha. Apesar dos tratados que ligam Portugal a Inglaterra, pela Convenção de 30 de Agosto
de 1898, a Inglaterra aceita o princípio da divisão das colónias portuguesas em África, no caso em
que «não fosse infelizmente possível manter a integridade das possessões africanas de Portugal».
A Inglaterra ficaria com Moçambique e a Alemanha com Angola. Ver MILZA, Pierre (2007): As
Relações Internacionais de 1871 a 1914, Edições 70, Lisboa, pp. 106 – 110.
26 BENICHI, R. (2008): Histoire de la mondialisation, Paris, Vuibert, p. 375.
27 BENICHI, R. (2008): Histoire de la mondialisation, op. cit.
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também a Ásia e a Oceânia. O desenvolvimento dos transportes, caminho-deferro e navios mercantes, reduzem as distâncias de forma brutal. É nessa altura,
que se abrem os canais do Suez, em 1869, e do Panamá, em 1914. Finalmente, o
avanço tecnológico da Europa industrializada ajuda a explicar o equipamento
dos exércitos ocidentais contra os quais não é possível resistir. Dos primeiros
exemplos desta evolução é de referir o Japão da Era Meiji, que de um país feudal,
na metade do século XIX, se transformou rapidamente num país desenvolvido,
graças à sua abertura ao mundo ocidental, de quem adota as mais modernas
técnicas. Mas este avanço tecnológico reflete-se, igualmente, em todo o espaço
atlântico, de tal modo que, os Estados Unidos são já a segunda ou terceira
potência mundial, no início do século XX, de maneira que o Velho Mundo e o
Novo Mundo devem ser vistos como um mesmo conjunto cultural no século
XIX. E assim podemos afirmar que «o mercenário americano corresponde ao
arquétipo do inglês James Brooke ou dos senhores portugueses»28.
4. O PERÍODO DAS IDEOLOGIAS
Para além do conflito entre o Japão e a China, um conflito importante se
passa na Europa, a Guerra Civil Espanhola, de Julho de 1936 a Abril de 1939, que
opõe os nacionalistas comandados pelo general Franco aos republicanos. A vitória
eleitoral da Frente Popular, na primavera de 1936, dá origem a um levantamento
que conduz a um confronto muito violento, que vai atrair muitos ‘soldados de
fortuna’ principalmente para o lado republicano. No dia 22 de Outubro, um
decreto cria oficialmente as ‘brigadas internacionais’ que compreenderão cerca
de trinta mil voluntários de cinquenta e três países de todos os continentes29. O
seu quartel-general fica em Albacete. Aí recebem instrução militar e formação
ideológica – “porque lutamos”. As forças nacionalistas são apoiadas pela
‘legião Condor’. As confrontações são terríveis, a Guerra Civil torna-se palco de
experimentação da blitzkrieg30. Em 8 de Fevereiro de 1937, Málaga cai nas mãos
dos franquistas e, em Março, Guadalajara torna-se a última defesa possível da
capital, onde os ‘voluntários estrangeiros’ mais uma vez provam o seu valor
ao deterem a progressão das forças italianas31. As Brigadas Internacionais
assumem uma importância determinante nas contraofensivas republicanas,
particularmente, na tomada das cidades de Belchite e Teruel. Mas o poder militar
do campo nacionalista vai fazendo a diferença. A situação vai ficando cada vez
28 Mercenário inglês que, segundo as suas motivações, valoriza mais o desejo de aventura do
que a sua sede de fortuna e glória. Este destino sublima a “mística da aventura”, que anima os
mercenários dos anos de 1830 a 1914. Ver VENAYRE, S. (2002): La gloire de l’aventure. Genèse d‘une
mystique moderne, 1850-1940, Paris, Aubier, Coletânea Historique, p. 350.
29 BEEVOR A. (2006): La guerre d’Espagne, Calmy-Lévy, p. 681.
30 Guerra relâmpago.
31 Para Ernest Hemingway, recém-chegado a Espanha, este é um sucesso digno de figurar ao lado
das batalhas decisivas da história militar.
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mais difícil para os republicanos. A Sociedade das Nações (SDN) exprime a sua
preocupação perante o recrutamento de tantos estrangeiros e a sua manipulação
por potências exteriores a Espanha. Assim, reclama a dissolução das legiões
estrangeiras dos dois campos. As Brigadas Internacionais são oficialmente
dissolvidas, em 21 de Setembro de 1938. Em 28 de Outubro, trezentas mil pessoas
homenageiam, em Barcelona, esses soldados irregulares vindos em auxílio do
governo republicano32.
Menos conhecidos do que os seus adversários das Brigadas Internacionais são
os voluntários franquistas. Para além dos marroquinos do exército nacionalista,
os franquistas dispõem de uma força de dez mil portugueses – os ‘Viriatos’, de
romenos, russos brancos – moncheviques 33 e de hispano-americanos. Porém, o
grupo mais famoso é a brigada irlandesa, formada em Cáceres, em Outubro de
1936, que acaba por não desempenhar o papel decisivo que deles se esperava.
Os voluntários italianos e alemães constituem um caso distinto dos
outros recrutamentos franquistas, dado que a sua participação na Guerra Civil
é subentendida pelo papel indireto que desempenharam os regimes fascista
e nazista. Os Italianos começam a chegar a Espanha a partir de 1936. Esses
camisas negras organizados num corpo de tropas voluntárias, em obediência
às decisões do ‘Comité Internacional de Não Intervenção’, assumem um papel
determinante na queda de Málaga, em 1937. Dos confrontos, sentem necessidade
de reorganização, formando uma brigada dos ‘Flechas Negros’ e unidades de
elite34, os arditi. Ficam célebres na tomada de Bilbao e de Santander. Mais de
setenta mil voluntários italianos passam por Espanha, na Guerra Civil.
Igualmente os voluntários da Alemanha nazista se colocaram ao lado de
Franco. A Luftwaffe35 é agrupada na ‘Legião Condor’, em 1937. Marcando bem
a sua presença em todas as grandes batalhas da Guerra Civil, a ação da ‘Legião
Condor’ permanece muito associada à lembrança do ataque contra Guernica36.
A verdadeira amplitude dessas legiões de voluntários verifica-se durante a
Segunda Guerra Mundial. A Alemanha invade a URSS, em 22 de Junho de 1941.
Os combates mais terríveis do conflito vão-se desenrolar na Europa, nessa front.
O Partido Popular Francês (PPF) lidera os partidos colaboracionistas franceses,
32 De entre os voluntários estrangeiros, contam-se alguns intelectuais recrutados para a defesa da
República espanhola, como os escritores ingleses Ralph Fox e Julian Bell, o americano Georges
Orwell, o poeta chileno Pablo Neruda e o romancista francês André Malraux, que se junta às forças
republicanas, em 1936. Criador da ‘esquadrilha España’, assume o posto de coronel. Efetua as suas
últimas operações para proteger a fuga dos republicanos, após a queda de Málaga.
33 Aqueles que se opuseram à Revolução de Outubro de 1917, lutando contra os bolcheviques, na
Guerra Civil.
34 Vocábulo fascista clássico.
35 Desde Julho de 1936, que a Alemanha desloca mais de 6,5 mil homens e mais de 600 aparelhos, caças
e bombardeiros, como os Stukas e os Messerschemitts para Marrocos, base do exército franquista.
36 Na primavera de 1937 (26 de Abril), os nacionalistas decidem lançar um ataque contra uma
cidadezinha do país basco, Guernica, com 33 aparelhos alemães e caças italianos. São lançadas
50 toneladas de bombas incendiárias, fazendo mais de mil e seiscentos mortos e 800 feridos. A
tragédia foi imortalizada por Picasso. A campanha aérea alemã termina em Abril de 1939.
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desejosos de ajudar a Alemanha a derrotar os bolchevistas. Hitler aceita e o
General Pétain prepara um contingente de cerca de treze mil voluntários, seis mil
dos quais por critérios de arianismo, a ‘Legião dos Voluntários Franceses’ (LVF).
Incorporados no exército alemão juram fidelidade ao Führer. Depois de alguns
desaires, nomeadamente, em Brest-Litovsk, Moscovo e em Estalinegrado, apesar
de uma resistência obstinada, batem em retirada com o resto do exército alemão,
tomando conhecimento da sua dissolução e da sua incorporação na unidade
‘Waffen-SS’.
Nas derradeiras horas do nazismo, a ‘Waffen-SS Charlemagne’, associada
à organização SS, constituída por ‘soldados políticos em guerra’, fica célebre
pela negativa, como modelo de fanatismo37. Apesar do fracasso alemão, os seus
homens aparecem entre as poucas unidades, a combater nas ruas de Berlim.
Figuram como dos últimos a resistir ao exército russo, antes do depor das armas,
em 2 de Maio de 1945. O Führer tinha-se suicidado dois dias antes.
As grandes causas ideológicas para os ‘soldados de fortuna’ não se
interrompe em 1945. Na linha das Brigadas Internacionais elas continuam com
a explosão das guerrilhas comunistas da América Latina. Essa última geração
é encarnada por Ernesto Che Guevara, seguidores de Garibaldi. Quando, em
1954, a Agência Central de Inteligência (CIA), apoia golpes militares em toda a
América Latina, Che Guevara assiste à queda do Presidente Arbenz, derrubado
pelo golpe de Estado de Carlos Castillo Armas. Refugiando-se no México,
encontra os irmãos Castro, decidindo-se pela sua causa, liderada por Fidel, que
desembarca em Cuba, em Novembro de 1956, com o objetivo de derrubar o
ditador Fulgêncio Batista. Surpreendido pelas tropas de Batista, Che Guevara
e seus companheiros passam pelo batismo de fogo38. Refugiado nas montanhas
da Sierra Maestra, figura ao lado dos quatro não cubanos que combatem ao
lado de Fidel. Em 1958, o argentino assume o comando da escola militar que
forma os recrutas castristas em Minas del Frio. Depois de vários recontros,
verifica-se a queda de Batista, em Janeiro de 1959. Che Guevara começa, a partir
desse ano, a organizar expedicionários destinados a combater no Panamá e na
República Dominicana. Em 1965, decide continuar noutras paragens, como na
África Subsariana, no Congo-Kinshasa (ex-Congo Belga, futuro Zaire e República
Democrática do Congo – RDC) para combater ao lado da guerrilha marxista de
Laurent Désiré Kabila. Reconhecendo o fracasso, deixa e Congo e parte para a
Bolívia, em 7 de Novembro 1966, onde assume o comando de um pequeno grupo
de guerrilheiros. Cercados e dizimados, Che Guevara encontra a morte com seu
grupo, sendo executado a 9 de Outubro de 1967. Acaba por se tornar num ícone
da esquerda revolucionária do mundo inteiro, como aconteceu, um século antes
37 Estudos recentes têm mostrado que os recrutamentos SS (soldados políticos em guerra) eram
coercivos de entre os recrutas Volkdeutshe e, posteriormente, já no final da guerra, com os soldados
dos países ocupados da Europa Central e Oriental. Ver LELEU, J.-L (2007): La Waffen ss, Paris,
Perrin, pp. 275-276 e p. 1237.
38 GUEVARA, E. (1969): Pasajes da la Guerra revolucionaria, Mexico, Era, p. 259.
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com Giuseppe Garibaldi, sem escapar, porém, à propaganda maciça que lhe é
dirigida pelos aspetos mais sombrios da sua epopeia, como […um mercenário
que prestava serviços ao comunismo internacional…].
Este movimento de recrutamento de civis levanta o problema do seu status.
Com efeito, nenhuma lei proíbe o voluntariado nem tenta definir melhor a
atividade mercenária. É certo que a codificação internacional da guerra progrediu,
desde a primeira Convenção de Genebra, em 186439. A convenção de Haia de
1989 e de 1970, não emite nenhum julgamento negativo sobre os ‘soldados de
fortuna’, pelo contrário, decreta que os ‘supletivos’ devem ser considerados
beligerantes e beneficiar dos mesmos direitos que os soldados dos exércitos
regulares. Para além disso, a tradição dos Estados neutros vai no sentido de
condenar juridicamente os alistamentos em exércitos estrangeiros, razão pela
qual os nazistas decidem conceder a nacionalidade alemã a todos os voluntários
de ‘países germânicos’, mesmo correndo o risco de fragilizar a sua própria teoria
da raça pura. Contudo, inflexões sobre o emprego de legiões de voluntários
podem ser percebidas, desde a primeira metade do século XX. As ‘Convenções
de Londres’, por seu lado, condenam o apoio a bandos armados, que formados
no seu próprio território, tiverem invadido o território de outro Estado, texto de
1933, que é assinado apenas por Estados secundários, mas de onde constam a
URSS, Estados da Europa Central e do Báltico. Na linha do ‘Pacto Briand-Kellog’,
que proíbe a guerra, poderia ter sido considerado um tratado inaplicável mas, ao
contrário, marca uma etapa no Direito Internacional.
A guerra Civil espanhola vem levantar aos governos francês, italiano
e alemão, uma questão delicada, perante a tomada de decisão de apoio à
guerra, o que, na maioria dos casos, vem dar origem a emendas, a medidas de
diversão, ou mesmo ao desrespeito pelos acordos internacionais. Em suma, o
que o ‘voluntariado internacional’ reclama é um reconhecimento jurídico que
pretende distingui-lo do mercenário, como a eles se refere a Convenção de
Genebra, relativa ao ‘Tratamento dos Prisioneiros de Guerra’, de 1949, quando
esclarece que eles poderão ser reconhecidos como prisioneiros de guerra,
embora mediante limites estabelecidos40. Certo é que é vulgar ver, no século
XXI, combatentes do mundo inteiro, na defesa de uma identidade cultural e
religiosa, como acontece com o Iraque e o Afeganistão, atualmente. Embora não
haja lugar a essa discussão, neste trabalho, no plano legal, poder-se-á concluir
que a atividade voluntária não pode ser absolutamente colada à mercenária. Mas
a intervenção de voluntários chineses na Guerra da Coreia, num dos maiores
conflitos da Guerra Fria, dá oportunidade à ONU de se debruçar novamente
39 Observando os horrores no campo de batalha de Solferino, em 1859, Henri Dunant, suíço, funda a
Cruz Vermelha para socorrer os feridos. Com o apoio de Napoleão III, milita por uma codificação
da guerra, principalmente par melhorar a organização do socorro às vítimas dos conflitos. A sua
ação culmina com a redação da Primeira Convenção de Genebra, em 1864.
40 Devem ter um comandante, usar armas de forma clara, ter um sinal distintivo dos civis (uniforme
ou outro) e respeitar as leis da guerra.
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sobre este fenómeno tão delicado. De 1950 a 1970, a ONU tem publicado textos
a lembrar que organizar ou apoiar legiões de voluntários “que se dedicam a
atos de força armada contra um Estado” é condenado no plano internacional41.
Porém, a ambiguidade acontece na legislação internacional, de acordo com os
pontos de vista dos blocos, durante a Guerra Fria. Os países ocidentais seguem
as regras internacionais que buscam um equilíbrio no “concerto das nações”, os
países de Leste insistem que a legitimidade da causa pode levar um país a não
se opor à constituição dessa legiões voluntárias. Por isso, pode concluir-se que o
problema das legiões não está claramente regulamentado, pelo que devem ser as
legislações nacionais a definir, como nos casos da África do Sul (leis de 1998 e de
2007) e da França, que adotou legislação própria, em 2003.
É o que acontece com os denominados ‘Cães de Guerra’, na altura da Guerra
Fria, em que a neutralização das duas superpotências perante o risco de um conflito
atómico favorece o retorno dos soldados irregulares, principalmente ao serviço de
uma estratégia indireta por parte de ambas as potências. Os teatros de operações
(TO) começam nas ex-colónias mas acabam por chegar à Velha Europa. Damos
como exemplo o caso do Congo belga, em 1960, aquando da eleição presidencial
que devia preparar a independência. A vitória pertence a Patrice Lumumba que
acaba por ceder o seu lugar a Joseph Kasavubu, tornando-se primeiro-ministro,
num clima de grande violência. Entretanto, perante o degradar da situação criada,
Moisés Tshombé funda, em 11 de Julho de 1960, o Estado do Katanga contra
o apoio oficial da Bélgica, o que vem dar origem à reação de Lumumba, que
reivindica o retorno da província à Republica congolesa. Tshombé, que dispõe
de forças muito embrionárias recorre a mercenários, ex-militares europeus
presentes na região, que são apelidados de ‘Terríveis’42, enquanto a Bélgica envia
oficialmente para o Congo, sob o disfarce de cooperação, militares do seu exército.
Entretanto, a pedido do governo congolês, a ONU obriga a Bélgica a retirar os
seus militares e ordena ao Katanga submeter-se à autoridade de Leopoldville.
No âmbito da operação ‘Rumpuch’, os capacetes azuis, deslocados para a zona,
tentam capturar os mercenários estrangeiros que lideram a ‘Guarda Katanguesa’
dos quais, cerca de uma centena, escapa às forças da ONU. Segue-se uma série de
confrontos, até que Tshombé opta por assinar uma trégua, no dia 21 de Dezembro,
tendo os capacetes azuis retomado o controle de Elisabethville, e a maioria dos
mercenários fugido para a Rodésia do Norte. Contudo, em 1962, os ‘Terríveis’
estão de volta, perante a recusa do presidente catanguês em capitular, que num
ato de desespero, apela a uma guerra total. Perante as evidências, é obrigado a
render-se, em 18 de Janeiro e os últimos ‘Terríveis’ refugiam-se em Angola. Esta
epopeia no ex-Congo belga tem uma terrível repercussão em África e na Europa.
41 E. DAVID, Mercenaires et volontaires internationaux en droit des gens, apud, OSTELLS, Walter Bruyère
(2012): História dos Mercenários: de 1789 aos nossos dias, Tradução Patrícia Reuillard – São Paulo,
Contexto.
42 PASTEGER, R. (2005): Le Visage des Affreux du Katanga (1960-1964), Bruxelles, Editions Labor, p.
229.
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Situações semelhantes passam-se no Biafra e no Gabão, na Rodésia do Sul de Ian
Smith, em que as elites brancas tinham proclamado a independência, da GrãBretanha, em 1965, também, na África do Sul, em que o regime parecia muito
estável em relação aos seus vizinhos da Rodésia e de Angola, e hoje, na Costa do
Marfim, na Libéria ou na Serra Leoa.
Na Europa, eclode o conflito na ex-Jugoslávia que mobiliza soldados
irregulares, que oscilam entre mercenários e o voluntariado internacional, nas
diversas tropas em presença. No caso da Croácia, assiste-se ao recrutamento
de ‘soldados da fortuna’ franceses, a partir do final de 1991, e de outras
nacionalidades, nomeadamente russos, tendo muitos fugido para a Bósnia, em
consequência da atmosfera de violências interétnicas e dos excessos cometidos
pelos combatentes locais. A dimensão do envolvimento ideológico dos
estrangeiros que combateram nas diversas tropas presentes, pode ser analisada
e discutida, mas o certo é que alguns são mesmo mercenários, são empresários
de guerra, como os contractors43 da Dyn Corp, na Bósnia-Kosovo e, nos contratos
de missões de logística, assinados pelos EUA (Kello Brown & Root e ITT) e pelo
Canadá (AtcoFrontex). Essas estruturas empresariais pretendem ser uma garantia
contra os excessos dos mercenários, mas têm-se visto envolvidas em escândalos,
provenientes do tráfego de adolescentes e do contrabando de armamento.
5. AS EMPRESAS DE GUERRA
Das ideologias emigramos, como vimos, para as empresas de guerra. Os
‘Terríveis’ possuem agora empresas que oferecem serviços militares, de modo
mais ou menos informal, como é o caso da ‘Executive Outcomes’44. No final
da sua carreira, Barlow, fundador da ‘Outcomes’ regressa ao setor privado,
começando por oferecer os seus serviços à União Nacional para a Independência
de Angola (UNITA), ex-colónia portuguesa que obteve a sua independência
em 1975. Depois da guerra colonial, Angola fica nas mãos do partido que havia
conduzido uma guerrilha marxista, o Movimento Popular de Libertação de
Angola (MPLA). No poder, o movimento entra em rutura com o partido da
oposição, a UNITA, o que faz mergulhar o país numa guerra civil, acompanhada
dos problemas internacionais ligados à Guerra Fria. O MPLA é apoiado pela
URSS e a UNITA pelos EUA e pela África do Sul, a nível regional. O MPLA
é financiado pelo petróleo de Cabinda e a UNITA pelos diamantes das minas
do Sul de Angola. Na Primavera de 1993, após uma operação bem-sucedida, os
mercenários da ‘Outcomes’ que já tinham estado ao lado da UNITA, impõem-lhe
43 Mercenários de empresas privadas que atuam em regiões de conflitos com a missão de proteger
locais-chave e pessoas importantes, além de comboios de reabastecimento.
44 Fundada em 1989 por Eeben Barlow, nascido na Rodésia do Norte (atual Zâmbia), emigra para a
África do Sul, incorporando-se numa unidade de choque, passando pelos serviços secretos.
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agora uma série de derrotas45 e Jonas Savimbi é obrigado a assinar um acordo de
paz em Lusaka, em Novembro de 1994. A guerra civil recomeça no ano seguinte,
porém a ‘Executive Outcomes’ é obrigada a retirar-se por pressão dos EUA e da
ONU. Daí parte para a Serra Leoa e, posteriormente, para a Indonésia, acabando
por se dissolver em 1998.
Mas apareceram outros sucessores nos conflitos contemporâneos em que
tem participado os EUA. Com efeito, o esforço militar da hiperpotência não seria
possível sem a complementaridade das empresas militares privadas, dado o
considerável número de efetivos que seria necessário empenhar. Assim, a lógica
da ‘terceirização’ permite responder a uma procura de pessoal e material, ou
seja, da logística à segurança pessoal de membros da ONU, ONGs, empresários,
estando presentes em todos os segmentos ‘não-combatentes’ da guerra46.
Um nome que não pode deixar de ser referido é o da empresa militar
privada ‘Blackwater’47, que tem estado presente no Iraque e no Afeganistão e, por
isso, prosperado no rastro do exército americano. A partir do início da Guerra do
Iraque, em 2003, a empresa celebra grandes contratos de segurança privada, a
começar pelo administrador Paul Bremer. Com o seu rápido crescimento, articulase em várias empresas especializadas, que vão da instrução e formação, dispondo
de vários campos de treino, às diferentes especializações, com veículos blindados
para transportes de tropas, helicópteros e aviões de combate. Recruta em todos
os grandes ‘reservatórios’, mercenários americanos e de outras nacionalidades,
chegando a atingir 23 mil homens, em 2006, posicionados em 9 países e 21 mil
reservistas48. Tinha-se tornado, também, omnipresente no mercado de segurança
nos EUA e nos mercados instáveis onde o país tinha interesses. Participou
no apoio e reconstrução de Nova Orleães, depois das destruições do furacão
‘Caterina’. Foi igualmente encarregada de proteger o estratégico oleoduto ‘BTC’
que liga as jazidas do Mar Cáspio à Turquia, atravessando o Cáucaso, desde
Baku (Azerbaijão), passando por Tbilissi (Geórgia), a Ceyhan (Turquia). Oferece
ainda missões de formação em Taiwan e no Quénia.
Acusada, entretanto, de todo o tipo de abusos pelos opositores da
privatização da guerra, desde operações secretas em nome dos serviços secretos
americanos, como em Cuba e no Irão, a missões de desestabilização de regimes
condenados pelos EUA, a empresa, dada a sua má reputação, acabou por perder
45 BARLOW, E. (2008): Executive Outcomes: Against All Odds, Alberton, Galago, p. 552.
46 Os contratos chegam a 85 mil milhões de dólares só no período de 2003 a 2007. Em setembro
de 2007, uma investigação de um jornalista do Le Monde estima em 177 o número de empresas
militares privadas presentes no Iraque, calculando que empregassem cerca de 50 mil homens, in
‘Pistoleros à Bagdad’, no Le Monde, de 23 de Setembro de 2007’.
47 É criada em 1997, na Carolina do Norte, por Erik Prince, começando a sua atividade com contratos
de formação para escolas de polícia. A partir de 2001, a empresa amplia a gama de prestação
de serviços, nomeadamente, em consultoria em segurança e logística, apoio tático, formação para
operações aéreas.
48 SCHAILL, J. (2008): Blackwater, l´ascension de l´armée privée la plus puissante du monde, Arles, Actes
Sud, coletânea Questions de société, p. 430, apud OSTELLS, Walter Bruyère (2012): História dos
Mercenários: de 1789 aos nossos dias, Tradução Patrícia Reuillard – São Paulo, Contexto.
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Privatização da Guerra perante a redução das atribuições do Estado - Na hora ..., pp. 45-74
vários contratos no Iraque, em 2009.
Porém, outras empresas souberam escapar a essa imagem tão sombria,
como a ‘Military Professional Ressources Inc.’ (MPRI) uma das mais importantes
e das mais antigas, fundada em 1987, por oito ex-oficiais generais do exército
americano. Presta um apoio muito importante às Forças Armadas americanas e
às agências governamentais como a CIA, o FBI, a Guarda Costeira, entre outras,
tendo sido comprada pela empresa L-3, em 2000. Tem feito o acompanhamento
de missões humanitárias e envio de pessoal médico para as repúblicas da exURSS, tem-se envolvido em missões no Koweit, na Croácia, Bósnia, Arábia
Saudita, na Colômbia e no Iraque. No caso do Iraque, a MRPI tem uma dúzia de
contratos e conta com cerca de quinhentos contractors. Atua também no continente
africano, na Nigéria, África do Sul, Mali e Zaire. No total, atua em mais de 40
países, sempre muito próxima da administração governamental49. Esta fórmula
facilita a ação do governo, proporcionando-lhe mais autonomia e capacidade de
orçamentação. Como conclusão, a estruturação do meio mercenário em empresas
militares privadas no mercado da privatização da guerra é um facto, que tem nos
EUA um maior peso, para além de outras, como as francesas mas, sobretudo,
as britânicas, principalmente em países em que fazem parte de alianças ou que
constituem áreas de interesse ou de influência do seu interesse nacional.
6. A PRIVATIZAÇÃO DA GUERRA E A REDUÇÃO DAS ATRIBUIÇÕES DO
ESTADO
Com o fim da Guerra Fria assiste-se, por um lado, a uma clara diminuição
de guerras entre Estados, mas por outro, ao aumento de guerras civis e de atos de
terrorismo, de que o 11 de Setembro de 2001 é o paradigma, a par da amplitude
que atingiu o crime organizado, a nível global.
Neste contexto, os conceitos de Defesa evoluíram para um conceito mais
amplo, mais no sentido da Segurança. Os conceitos estratégicos nacionais
passaram a chamar-se, em alguns casos, de estratégia de segurança, – ‘Estratégia
de Segurança Nacional’, nos EUA e de ‘Estratégia Europeia de Segurança’, na
UE50. Esta inflexão não é puramente semântica, pois requer a adaptação de todo o
49 Os contratos que assina são todos aprovados pelo Pentágono, e os mais importantes, acima de
cinquenta milhões de dólares necessitam do aval do Congresso.
50 As Forças Armadas Francesas publicaram, em 2008, o seu último texto programático, intitulado
Livre blanc pour la defense et la sécurité.
Em Portugal, o último conceito estratégico de defesa nacional datava de 2003 (Resolução do
Conselho de Ministros nº. 6/2203, de 20 de Janeiro). O atual conceito estratégico de defesa nacional,
foi aprovado pela resolução do Conselho de Ministros nº. 19/2013, de 5 de Abril, onde, atentos os
considerandos constantes da sua Introdução, se conclui, […Nesse sentido o conceito estratégico
de defesa nacional define os aspetos fundamentais da estratégia global a adotar pelo Estado
para a consecução dos objetivos da política de segurança e defesa nacional].
Lusíada. Direito. Porto Nº. 7 e 8 (2013)
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João Amorim Esteves
aparelho militar, tanto para a área da defesa, como da segurança, nomeadamente
para missões de intervenção, pacificação/imposição e construção da paz.
Porém, a instabilidade global sentida, após os anos 2000, torna as Forças
Armadas convencionais insuficientes para responderem a tantos conflitos
assimétricos globais, o que vem dar uma maior liberdade de ação a forças não
estatais, atores internacionais, agentes de conflitos e do tipo de guerras do
século XXI, de que é paradigmático o exemplo da Al-Qaeda, mesmo depois de
decapitada. De um relativo apagamento dos Estados, assiste-se a um ascendente
das empresas militares de segurança, muito solicitadas para consultoria,
questões de segurança interna, de inteligência militar e de serviços, como em
ações logísticas. Já aqui foram referidas, a este propósito, empresas como a
Executive Outcomes, a Blackwater, a MPRI, que nasceram num contexto de enorme
procura de segurança, quando os Estados reduzem e reorganizam as suas Forças
Armadas. A partir de 1970, verificou-se uma transferência de inúmeras atribuições
públicas para o setor privado, em áreas como a segurança de instalações privadas
e públicas, de redes de fornecimento de águas, comunicações e transportes, e
mesmo em relação à sua utilização nos conflitos armados, principalmente ao
nível do apoio de serviços. Embora na ausência de estatísticas, estima-se que só
no Iraque, o número de contractors poderia ser superior a 120 mil. Este setor gera,
por seu lado, um volume de negócios calculado em cem mil milhões de dólares51.
Claro está que se, por um lado, a utilização deste modelo resolve imensos
problemas às potências, a nível político e, sobretudo, militar, principalmente
ao nível do recrutamento, da formação e vínculo dos seus quadros, por outro,
levantam vários outros, como a excessiva procura de outsourcing52, que, no caso
dos EUA, obrigou a um recrutamento maciço que privilegia a quantidade, em
detrimento da qualidade, dos soldados em missão. Ainda, decorrente desse
fator, a ocorrência de escândalos ligados à falta de observância das leis da guerra,
como os maus-tratos infligidos a prisioneiros, como aconteceu na prisão de Abu
Ghraib, no Iraque, ou os abusos praticados por membros dessas empresas, como
a Blackwater, utilizando métodos arrogantes e meios brutais, que provocam
um sentimento de grande humilhação e atraem o ódio das populações, na sua
passagem53. De carater mais estrutural, são as críticas feitas à eficiência militar
das ações dos mercenários que, por vezes, prejudicam seriamente a estratégia de
contrarrevolução, como aconteceu, também, no Iraque. No caso da Afeganistão,
51 A sociedade francesa Géos movimentou, em 2005, cerca de 18 milhões de euros, no mesmo ano, as
empresas britânicas Aegis, 93 milhões d euros, a Armor Group, 105 milhões, apud OSTELLS, Walter
Bruyère (2012): História dos Mercenários: de 1789 aos nossos dias, Tradução Patrícia Reuillard – São
Paulo, Contexto.
52 O outsourcing refere-se ao uso estratégico de recursos externos para as ‘atividades-fim’, diferente
da terceirização, que indica a transferência para outra empresa das suas atividades-meio.
53 Vários destes elementos, emboscados, têm sido abatidos, os seus cadáveres entregues às
populações que os têm exibido como troféus, como aconteceu em Fallujah, no Iraque. Referem-se
ainda os casos provocados pelo excesso de bebidas alcoólicas, que dão origem a comportamentos
impróprios, como o assédio e o abuso sexual (humilhação).
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Privatização da Guerra perante a redução das atribuições do Estado - Na hora ..., pp. 45-74
a ‘terceirização’ tem incitado a transações financeiras com líderes locais que
reforçam os jogos de clientelismo e da corrupção, constituindo, inclusivamente,
“uma fonte significativa de financiamento potencial ao movimento talibã”. O
próprio presidente Hamid Karsai manifestou o desejo de combater a proliferação
das empresas militares privadas porque, além do mais, os seus recrutamentos
prejudicam o alistamento nas forças oficiais de segurança, constituindo um
obstáculo à estabilização do país.
Esta realidade levanta um problema que se pode chamar de ‘conflito de
interesses’ nos teatros de operações (TO). Os Estatutos das forças armadas
nacionais fazem-se acompanhar da ideia de que os seus militares dispõem de
um know-how particular, inculcado ao longo de uma formação muito rigorosa.
A “nação em armas” não se adapta aos conflitos contemporâneos, pois seria
impossível para o ‘conscrito’ ser eficaz em operações, cada vez mais exigentes,
baseadas em tecnologias de ponta, projetadas a milhares de quilómetros. As
forças armadas americanas e inglesas são apontadas como modelo. As Forças
Armadas francesas optaram por uma solução que previa que a participação de
recrutas era proibida, salvo para voluntários com um contrato longo e unidades
de elite, como a Legião Estrangeira, forças de paraquedistas e infantaria de
Marinha. Com essa profissionalização permitiu-se dispor de especialistas em
guerra, difíceis de reconverter à vida civil, tornando-se potenciais recrutas para
a atividade mercenária, de voluntários que hoje são técnicos da força armada,
prontos a atuar em qualquer cenário, em qualquer parte do mundo. Essa
profissionalização contrapõe a qualidade à quantidade, ao recrutamento maciço.
Por outro lado, permite aos seus responsáveis estarem em contacto com os mais
altos escalões, tanto ao nível militar como ao nível politico, podendo, como no
caso do propugnado modelo francês, cooperar, de forma muito estreita, com
as forças militares, e sobre compromisso de nunca atuarem contra o interesse
nacional. É sabido que as empresas anglo-saxónicas têm o monopólio quase total
dos combatentes privados. Os franceses colocam-se bem atrás desse mercado,
mas não desejam alinhar-se com o mundo anglo-saxão. Antes defendem a ideia
de um profundo debate sobre o funcionamento do Exército francês, assim como
um esclarecimento sobre um enquadramento jurídico que permita a criação de
empresas militares privadas, capazes de concorrer com as empresas inglesas ou
americanas, sem faltar com a ética defendida pela França. Além disso, ao constituir
uma vantagem para as instituições nacionais, tal medida conduz à “implantação
de um dispositivo eficaz de acompanhamento e de reconversão dos militares, a
partir de um acordo com as empresas envolvidas”. O Estado francês tem recorrido
também a certas formas de outsourcing, o que era uma prática corrente do Exército
da Revolução, até às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Contudo, as tarefas
a que tem recorrido não têm uma relação direta com a atividade principal do
militar, apesar de certas formações poderem ser delegadas a empresas privadas.
No entanto, o Livre blanc de 2008 que orienta a política militar da França não
aponta para uma inflexão de maior utilização de outsourcing.
Lusíada. Direito. Porto Nº. 7 e 8 (2013)
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A contratação de empresas militares privadas é, porém inevitável nos conflitos
recentes, fundamentalmente, devido a aspetos financeiros, aos custos insuportáveis
de alguns serviços, se forem prestados dentro das forças armadas. Resta debater e
aprofundar a discussão. O modelo francês não deixa de ser, de certo modo, original
ao apontar mais para a criação de empresas que devem ser providas de uma ‘carta
ética’, que indique o seu intuito de atuar de acordo com a Declaração Universal
dos Direitos do Homem, a Convenção de Genebra de 1949 e da ONU, contra o
recrutamento de mercenários. De acordo com este modelo, as empresas militares
francesas ficariam mais ligadas à Defesa Nacional e valorizariam, segundo alguns,
o combatente francês, que respeita mais a cultura e os usos locais, relativamente
aos seus concorrentes. Além disso, a nível interno, funcionaria como uma garantia
e serviria de argumento para convencer os jovens franceses que sofrem para se
recolocar na vida civil, após três, cinco ou dez anos de carreira militar.
Por iniciativa da Suíça e do Comité Internacional da Cruz Vermelha, em 2008,
o ‘documento Montreux’ parece ser um bom ponto de partida para essa discussão.
O seu texto define uma ‘carta ética’ e normas de procedimento para os Estados
que se servem desse tipo de empresas. Já foi ratificado por 35 Estados, dos quais
constam a própria França, mas também os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, entre
outros, para além de contar com o apoio de certas empresas francesas, como a
Secopex e a Aegis54. Os concorrentes a contrator, provenientes das Forças Armadas
francesas teriam, à partida, um percurso mais seguro. Esse modelo poderá seduzir,
mais rapidamente, em detrimento das empresas anglo-saxónicas, cujas práticas
parecem ultraliberais.
A questão que se coloca é de saber se esse contra modelo francês, que estabelece
uma postura de “patriotismo económico”, na distribuição dos mercados franceses
de segurança, será viável no atual contexto da globalização. O que se pode concluir
é que o país da “nação em armas” continua muito agarrado ao vínculo existente
entre o Exército e o Estado centralizador, e o modelo parece representar a relação
dos franceses com a atividade mercenária desde 1789, tal como afirmamos no
início do nosso trabalho.
CONCLUSÃO
A atividade mercenária tem estado presente em todas as guerras, desde
os primórdios da Antiguidade Oriental. Na Idade Moderna, com a Revolução
Francesa, essa atividade é desvalorizada pela Grande Nação que deseja substituíla pelo ‘alistamento militar’, princípio que defendia, como fundamental, para a
organização de forças armadas nacionais, que deveriam constituir um dos pilares
da organização interna e da ordenação internacional. Por outro lado, exigia-se pôr
fim à privatização da força armada, prática secular que tinha arrastado consigo um
54 Ver site da Secopex: www.secopex.com e da Aegis – www.aegisworld.com
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Lusíada. Direito. Porto Nº. 7 e 8 (2013)
Privatização da Guerra perante a redução das atribuições do Estado - Na hora ..., pp. 45-74
sentimento profundamente negativo e desestruturante em relação à nova figura
política, – o Estado. Quando, em 1791, a Assembleia Nacional Francesa decide
dissolver todos os corpos mercenários, alguns são preservados, o que os historiadores,
tendencialmente, pretendem justificar ao distinguir entre ‘voluntários estrangeiros’
e ‘mercenários clássicos’. Entretanto, o termo foi assumindo o significado de um
‘prestador de serviços’ à disposição de um empregador. Com o tempo, esses
‘combatentes não nacionais’ acabariam por se espalhar por todo o mundo, com
a globalização dos conflitos. Essa é a razão, do seu lema Orbs patria nostra – ‘O
mundo é a nossa pátria’. Esta tentativa de definição não lhe retira, contudo, a sua
ambiguidade. A situação evolui, após 1945, dada a criação de certas legiões, mas é a
partir de 1960, com as guerras da descolonização, que a comunidade internacional
se sente obrigada a estabelecer uma definição legal da atividade. A Organização das
Nações Unidas (ONU) tenta clarificar a situação, mas, ficando-se por uma tentativa
de clarificação, a atividade continua, principalmente, no período da Guerra Fria. E
está em prática, no início do século XXI, numa altura em que se assiste a um relativo
apagamento da figura do Estado, mediante a ‘terceirização’ das ações armadas
em conflitos como os do Iraque e Afeganistão. Ao que se continua a assistir é,
em certa medida, à privatização da guerra, mediante a contratação de empresas
militares privadas, procedimento considerado inevitável, fundamentalmente,
devido aos custos insuportáveis de alguns serviços, se prestados dentro das forças
armadas, apesar de todos os inconvenientes, sobretudo, os estruturais, resultantes
da sua utilização. É sabido que as empresas americanas e anglo-saxónicas têm o
monopólio quase total dos combatentes privados. Os franceses colocam-se bem
atrás desse mercado, simplesmente defendem a ideia de um profundo debate sobre
o funcionamento do seu exército e de um esclarecimento sobre o enquadramento
jurídico dos ‘soldados não nacionais’, reconhecendo a necessidade de não faltar
com a ética por si defendida. O modelo francês, continua muito agarrado ao
vínculo existente entre o Exército e o Estado, o que parece representar a relação dos
franceses com a atividade mercenária desde 1789, que não se sabe se será viável no
atual contexto da globalização. Resta debater e aprofundar a discussão, em que as
OI, em obediência aos princípios universalmente aceites na Declaração Universal
dos Direitos do Homem, da Convenção de Genebra de 1949 e da ONU, devem
acordar sobre o regresso dos ‘soldados da fortuna’ e a sua inscrição nas regras do
Direito Internacional.
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Convenção IV de Genebra, 1949 - GDDC | Direitos Humanos ...
www.gddc.pt/direitos-humanos/textos.../dih-conv-IV-12-08-1949.html‎
As Convenções de Genebra de 1949 e seus Protocolos Adicionais ...
www.icrc.org/por/war-and-law/treaties-customary.../geneva.../index.jsp‎
Convenção de Genebra - 1951
www.fd.uc.pt/CI/CEE/pm/Tratados/.../conv-genebra-1951.htm‎
Convenção de Genebra 1864 História dos Direitos Humanos no ...
www.dhnet.org.br/educar/redeedh/anthist/gen1864.htm‎
III Convenção de Genebra Relativa ao Tratamento dos Prisioneiros ...
www.direitoshumanos.usp.br/.../iii-convencao-de-genebra
Convenção de Genebra Relativa ao Tratamento dos Prisioneiros de
Guerra de 12 de Agosto de 1949. Adoptada a 12 de Agosto de 1949 pela
Conferência ...
Convenções de Genebra de 1949 e Protocolos Adicionais
www.cruzvermelha.pt/movimento/.../435-convencoes-genebra-1949.htm..
Documento de Montreux
Documento de Montreux sobre Companhias Particulares Militares e ...
www.icrc.org/por/resources/.../misc/montreux-document-170908.htm‎
Documento de Montreux sobre las obligaciones jurídicas ... - ICRC
www.icrc.org/spa/.../montreux-document-spa.pdf‎
Business & Human Rights : Montreux Document
www.business-humanrights.org/
Novo Livro Branco de Defesa da França.
www.forte.jor.br/.../novo-livro-branco-de-defesa-da-franca
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João Amorim Esteves
Secopex
www.secopex.com
Aegis
www.aegisworld.com
Empresas militares privadas
www.warprofiteers.com
Conceitos Estratégicos em Portugal
- Conceito Estratégico de Defesa Nacional de 2003 (Resolução do Conselho
de Ministros nº. 6/2203, de 20 de Janeiro).
Publicado em www.portugal.gov.pt/pt/20130405-publicacao-cedn.aspx
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Ministros nº. 19/2013, de 5 de Abril)
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Mercenarios Blog | Facebook
https://pt-pt.facebook.com/mercenariosblog‎
Mercenários - quem eram? - InfoEscola
www.infoescola.com › Profissões‎
A privatização da guerra - CICV - ICRC
www.icrc.org/por/war-and-law/contemporary-challenges.../index.jsp
Blog de Eeben Barlow
Eebenbarlowsmilitaryandsecurityblogspot.com
Blog de Jean-Dominique Merchet da Revista Marianne sobre as questões
de defesa
http://www.mariane2.fr/blogsecretdefense/
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