Os mercenários, vítimas da Revolução?

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Os mercenários, vítimas da Revolução?
“O quê?! Essas cortes estrangeiras
Ditariam sua lei em nossos lares!
O quê?! Essas falanges mercenárias
Abateriam nossos intrépidos guerreiros!”
E
sta terceira estrofe do hino nacional francês, A Marselhesa, mostra claramente a ruptura representada pela Revolução Francesa
na longa história da atividade mercenária, associada à prática
guerreira desde a mais alta Antiguidade. Como dizia Bob Denard, um dos
mais célebres Cães de Guerra da Guerra Fria, a “atividade mercenária é a
segunda profissão mais antiga no mundo”. Porém, no final do século xviii,
essa corporação é desvalorizada pela Grande Nação. A Revolução Francesa
deseja substituí-la pelo alistamento militar como princípio básico da organização das forças armadas de um Estado.
A concretização dessa importante mudança explica o ponto de vista
habitualmente negativo que recai sobre os mercenários. Desde 1789, eles
são percebidos como homens sem fé nem lei, que se vendem a quem pagar
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História dos mercenários
mais. No entanto, constituíram por muito tempo a espinha dorsal dos exércitos europeus. A partir de 1453, os soberanos franceses e os cantões suíços
assinam “capitulações” para o recrutamento dos mercenários a serviço da
Coroa. Na verdade, a Monarquia francesa apenas segue a longa tradição
guerreira ocidental desde a Antiguidade. Já no final do século v a.C., o ateniense Xenofonte narra as campanhas que liderou à frente de seus “dez mil
mercenários”. Mais tarde, Cartago emprega inúmeros soldados da fortuna
(mercenários) para enfrentar Roma na Primeira Guerra Púnica, a ponto,
aliás, de arcar com o peso de um novo conflito, a “Guerra dos Mercenários”
(241-238 a.C.), para reprimir essas forças suplementares descontentes com
sua desmobilização! Na Idade Média, o condestável* Bertrand Du Guesclin
assume esse papel na Espanha, levando os célebres e experientes soldados
ao campo de batalha castelhano: o capitão francês consegue entronizar
Henrique de Trastâmara ao depor seu irmão Pedro i de Castela, o Cruel.
Aragoneses ou castelhanos, brabanteses ou alemães, esses guerreiros livres
formam “grandes companhias”. Até irem para a Espanha, elas serviam-se da
Guerra dos Cem Anos para submeter a sangue e fogo o reino da França a
seus próprios interesses. Assim, suas façanhas sangrentas valeram a alguns
de seus chefes o codinome de “carniceiros”.
A Época Moderna é marcada, em seguida, pela lenta construção do
Estado. Progressivamente, os reis impõem seu monopólio de fazer a guerra:
“A guerra faz o Estado e o Estado faz a guerra”, dizia Charles de Tilly. Todavia,
as forças que os soberanos utilizam estão ainda longe de ser totalmente controladas ou estatizadas.1 Na Renascença, ao contrário, os condottieri fazem e
desfazem os príncipes italianos – que os empregam por meio de um contrato,
a condotta – e acabam por comandar os principados mais poderosos, a exemplo dos Sforza. Filho de camponeses, Muzio Attendolo torna-se condottiere
e ganha rapidamente o codinome de Sforza devido à sua força excepcional.
Seu filho, Francesco, lidera seus mercenários e, antes de mudar de lado, combate pelos Visconti de Milão contra o papa. Casado com uma filha ilegítima
do duque de Milão, ele sitia a cidade por sua conta em 1450 e é reconhecido
duque pela população. Sua dinastia governa o principado lombardo até 1532.
* N. T.: Título honorífico de alguns dos maiores senhores da corte (infantes, duques, marqueses), que assumiam
funções militares.
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Durante toda a Época Moderna, o papel dos mercenários permanece crucial. Lansquenetes e retres* alemães são as principais forças dos imperadores
Habsburgos na Guerra dos Trinta Anos. Por sua vez, exilados irlandeses, chamados de “Gansos Selvagens”, servem fielmente ao rei Luís xv e destacam-se
na Batalha de Fontenoy, em 1745. Nos conflitos entre a França e a Inglaterra,
os corsários diferenciam-se dos vulgares piratas e bucaneiros. Por meio das
cartas de corso (origem do nome) assinadas pelo rei, eles realizam missões em
todos os oceanos contra o inimigo inglês e angariam fortunas pessoais mais
do que confortáveis. Alguns, como Jean Bart, tornam-se lendas da Marinha
francesa: encarregado por Luís xiv de travar uma luta sem misericórdia contra as frotas inglesa e holandesa, o corsário de Dunquerque ataca várias vezes as costas da Grã-Bretanha e quase captura o soberano inglês Guilherme
d’Orange. Com um título de nobreza e condecorado com a ordem de São
Luís, Jean Bart termina a carreira como chefe de esquadra.
De modo geral, nas monarquias do Antigo Regime, os regimentos são
privatizados de fato, já que cabe aos nobres que os comandam organizar o
recrutamento das tropas. Assim, eles apelam regularmente para mercenários. Os cadetes da mais alta aristocracia também podem servir a regimes
estrangeiros com sua tropa, a exemplo do príncipe Eugênio de Saboia no
reinado de Luís xiv. No de Luís xv, Maurício da Saxônia, filho natural
de um Eleitor da Saxônia,** torna-se um mercenário de grande envergadura. Jovem e afortunado, Maurício leva uma vida desregrada, entre intrigas
amorosas e duelos de honra. Expulso pelo pai, ele orgulha Luís xv durante
a campanha de sucessão da Áustria, de 1745 a 1748. No entanto, desde
o início do século xviii, a Suécia de Carlos xii constitui uma exceção: é o
exemplo mais precoce do desejo de um Estado de criar um exército nacional. Brutalmente interrompida pela derrota na Batalha de Poltava, em
1709, essa experiência abre o debate sobre a reorganização das forças armadas. As controvérsias são particularmente intensas na França na época do
* N. E.: Lansquenetes eram os soldados de infantaria mercenários alemães que atuaram entre os séculos xv e
xvi. Retre é o termo que designa especificamente os cavaleiros alemães mercenários que serviam à França na
Idade Média.
**N. E.: Título dado aos príncipes alemães que participavam da eleição do imperador do Sacro Império
Romano Germânico.
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História dos mercenários
Iluminismo. A supressão da venalidade no Exército e o fim da possibilidade de os coronéis serem proprietários de seu regimento, instituída por Luís
xv, inicia uma inflexão em 1762. Mas as transformações efetivas das tropas
francesas só ocorrem com a Revolução.
Por fim, a imagem desvalorizada do mercenário é uma construção
mental muito recente, induzida pela Revolução Francesa. A queda da
Monarquia em 1792 parece coincidir com o desaparecimento de seus soldados da fortuna. Quando a Assembleia Nacional decide dissolver todos os
corpos mercenários a serviço da França em julho de 1791, ela preserva, contudo, a helvética, que serve à Monarquia há mais de 350 anos. Enquanto
os demais membros são licenciados, os guardas suíços constituem o núcleo
da Casa Militar do rei, mas caem com a Monarquia, na tomada do Palácio
das Tulherias, em 10 de agosto de 1792. A família real vai buscar a proteção
da Assembleia Nacional, e 950 mercenários helvéticos defendem o palácio
contra cerca de 12 mil sans-culottes. Quando um punhado de revolucionários descobre uma porta aberta e entra no palácio, os guardas suíços do rei
abrem fogo e repelem os sitiantes. A revolta parece em seguida voltar-se para
o pátio Caroussel, mas, por volta das dez horas, um grupo de voluntários
marselheses, esperando pelo exército, consegue novamente penetrar nas
Tulherias. Os homens, que ficaram no palácio, são mortos pela multidão,
ainda que a retirada da guarda real seja ordenada. Luís xvi determina que
os suíços deponham as armas e, quando se dirigem aos seus quartéis, são
atacados pelos revolucionários. Cerca de sessenta guardas são massacrados
no Hôtel de Ville, para onde foram levados. Outros serão assassinados nas
prisões, durante os massacres de setembro, alguns dias mais tarde.
A partir da proclamação da República, os historiadores estabeleceram
com frequência uma distinção entre os voluntários estrangeiros (geralmente
agrupados em legiões) e os mercenários “clássicos”. No entanto, nem sempre
essa diferenciação é evidente. No sentido estrito, o termo latino mercenarius
designa um “soldado contratado mediante dinheiro” ou um “doméstico que
se paga”.2 Logo adquiriu o sentido de militar que serve a uma organização ou
a um governo estrangeiro mediante remuneração. Poderíamos definir o mercenário como um prestador de serviços que, independentemente das causas,
motivações, acontecimentos, meios de recrutamento e de retribuição, coloca
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uma força armada à disposição de um empregador (público ou privado). Esses combatentes não nacionais foram-se espalhando pelo mundo juntamente
com a globalização do comércio e dos conflitos. Por essa razão, adotaram o
lema Orbs patria nostra (“O mundo é nossa pátria”).
A definição ampla que acabamos de formular não permite uma distinção clara entre um voluntário estrangeiro e um mercenário. Todo prestador
de serviços detentor de uma força armada empregado por estrangeiros seria
um mercenário? Como classificar, então, os conselheiros militares? Os agentes de segurança? Os estrangeiros que servem em corpos francos? Apoiado
nos princípios enunciados pela Revolução Francesa, o século xix não se
questiona muito. A situação evolui após 1945 como também as ambiguidades de certas legiões (por exemplo, a Legião Francesa dos voluntários
enviada ao front russo pela Alemanha nazista). Além disso, a partir dos anos
1960 e da multiplicação dos combatentes estrangeiros nas guerras da descolonização, a comunidade internacional sente a necessidade de estabelecer
uma definição legal e precisa da atividade mercenária.
Para a onu, o termo refere-se a toda pessoa especialmente recrutada no
país ou no exterior para combater em um conflito armado. O mercenário
assume uma participação direta ou indireta3 nos combates, mediante uma
remuneração elevada ou com vistas a obter um ganho pessoal. Além disso,
ele não tem a nacionalidade, não reside em nenhuma das nações em conflito, nem é membro de uma das forças armadas. Tampouco foi oficialmente
enviado por outro Estado. Feito esse esclarecimento sobre a posição do
soldado da fortuna, a comunidade internacional choca-se com um segundo
obstáculo. Deve-se criminalizar essa atividade em nome dos princípios correntes desde 1789? Veremos que essa questão é ainda mais pertinente no
final do século xx, devido às mudanças no mundo dos soldados da fortuna.
Desacreditados na era da “nação em armas”, destinados às operações
paralelas no século xx, eles têm má reputação no mundo contemporâneo.
Na realidade, quase sempre houve contestações. Já na Renascença, nos textos de Maquiavel, A arte da guerra ou O príncipe, por exemplo, a escalada do
sentimento patriótico é acompanhada do desejo de construir um verdadeiro exército nacional. Porém, a Revolução Francesa constitui realmente uma
ruptura essencial, pois, desde a Batalha de Valmy, ela parece traduzir-se pelo
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triunfo do povo em armas contra os mercenários do Antigo Regime. Essa
organização das forças militares dos Estados, contudo, parece estar recuando hoje em dia; a terceirização das ações armadas encontra-se no cerne
dos conflitos do início do século xxi (Iraque, Afeganistão). Pode-se prever
o retorno de conflitos privados? Nossa época estaria fechando o ciclo dos
Estados-nações, como leva a pensar o desaparecimento da mobilização de
alistados? Ou, ao contrário, assiste-se atualmente a uma maior transparência na utilização de soldados da fortuna desde 1789? A uma delimitação da
nebulosa mercenária e à sua inscrição nas regras do Direito internacional?
Notas
1
2
3
J. Thompson, Mercenaries, Pirates and Sovereigns, State-Building and Extraterritorial Violence in Early Modern Europe,
Princeton University Press, 1994.
F. Gaffiot, Dictionnaire latin-français et français-latin, Paris, Hachette, 1934.
Missões contemporâneas de enquadramento e de consultoria.
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