ADRIANA PISCITELLI IHSÂ"07/11EIR,O.S 7,0 71.47~414: 9ê em e ~taco. ' Novo Dicionário Aurélio cia Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986. Algumas questões que retomo aqui foram, além de discutidas no Grupo de Estudos do PAGU, do qual participaram, em diferentes momentos, Carla Bassanezi, Karla Bessa, Mariza Corrêa e Suely Kofes, apresentadas no Grupo de Trabalho Relações de Gênero do XX Encontro ANPOCS, Caxambu, 1996. Agradeço às participantes e debatedoras desses encontros pelas diversas sugestões. Verbete: natural' (Do lat. naturale.) Adj. 2 g. De, ou referente à natureza. Produzido pela natureza. Em que não há trabalho ou intervenção do homem. Que segue a ordem regular das coisas; lógico. Inato, ingênito, congênito. Próprio do instinto; instintivo. Próprio, peculiar. Não estudado ou calculado; sem artifício; desafetado, espontâneo. Provável, presumível. Nascido; originário, procedente, oriundo. Diz-se da trompa e da trombeta sem pistons. S. m. V. nativo (7). Aquele que pertence a uma certa localidade. Aquilo que é conforme a natureza. Tendência natural; índole, caráter. A realidade; o original. Sorte, destino. Mat. Número natural. Bras., N.E. Pop. Terra do nascimento; terra natal. Ao natural. Diz-se de alimento que se serve como foi colhido, sem qualquer alteração. Discussão feminista, parentesco, gênero Neste texto proponho explorar a contribuição das perspectivas feministas para pensar a relação gênero/ parentesco nas sociedades contemporâneas'. Refletir sobre essa relação nas sociedades contemporâneas levanta, pelo menos, dois conjuntos de questões. O parentesco é considerado uma instituição central nas HOWELL. Signe e MELHUUS, Marit. The Study of Kjnship; the Study of Person; a Study of Gender? ln: DEL VALLE. Gendered Anthropology. Nova Iorque: Routledge, 1993, p. 39-53. sociedades "primitivas" e problemática, em termos de conceitualização teórica, nas sociedades contemporâneas. A dificuldade consiste em dar-lhe uma magnitude apropriada comparando-o com aqueles sistemas de outras culturas nas quais as categorias de parentesco aparecem como uma linguagem através da qual a sociedade é organizada e regulada. Nas sociedades ditas primitivas, o parentesco aparece como um marco significativo para a organização da sociedade, dos interesses políticos e econômicos. Nas sociedades modernas, onde há uma separação de domínios sociais que entre os "primitivos" estão imbricados uns nos outros, o parentesco não deveria ser considerado como domínio englobador de todas as relações sociais. O parentesco, portanto, não poderia ser tratado como o é nos grupos "primitivos". Uma vez que o parentesco parece "reduzir-se", nas sociedades modernas, às "relações familiares" e à vida doméstica, que sentido faria, nesses casos, pensar em termos de parentesco? A antropologia outorga grande importância ao parentesco - que assume um lugar fundamental na compreensão das sociedades primitivas -, pois considera as relações de parentesco estruturantes da vida social, no sentido em que estrutura a sociedade cosmologia, economia, organização política, institucional. Entretanto, o sentido do conhecimento antropológico não se limita à compreensão dos "primitivos". Trata-se de colocar em perspectiva diversas culturas, as "outras" e, supostamente, a do antropólogo, com o objetivo de alcançar uma compreensão universal do social. Nesse sentido, justifica-se o trabalho com parentesco, à maneira de instrumento que possibilite traçar essa perspectiva. A relação entre parentesco e gênero coloca outras questões. Na medida em que as teorias de parentesco tratam das relações estabelecidas entre homens e mulheres, elas são inerentemente marcadas pelo gênero (gendered). Entretanto, algumas feministas/ antropólogas chamam a atenção para o paradoxo presente nessas teorias. Essas autoras consideram que a maneira como as teorias de parentesco tratam das relações entre homens e mulheres diz pouco sobre o gênero nas sociedades que descrevem. Isto é, os valores inerentes à masculinidade e à feminilidade nas ideologias matrimoniais e nas práticas de parentesco teriam sido pouco investigadas'. Para elas, a questão seria desenvolver um trabalho com parentesco que incorporasse essa perspectiva de gênero. Aproximar-me dessas questões exige prestar atenção aos argumentos de algumas autoras que participam do debate feminista. Minha intenção é 4 Vale a pena lembrar que, na perspectiva de Dumont, há duas teorias de parentesco que não devem ser confundidas: a teoria da "descendência" e a teoria da aliança. Segundo o autor, a primeira se basearia na descendência, conceito que difere nos diversos teóricos da escola inglesa. Em Rivers, por exemplo, o termo descendência se referiria à transmissão da qualidade de membro de um grupo. Em RadcliffeBrown, a idéia de descendência seria um pouco diferente: o importante são os direitos e sua transmissão, que devem ser definidos de maneira que garantam a permanência da sociedade independentemente da contínua renovação dos indivíduos. A teoria da aliança matrimonial, em seu aspecto restringido, se referiria às sociedades que possuem regras positivas relativas à escolha de cônjuge desde o ponto de vista do parentesco. Essa teoria integrar-se-ia numa teoria geral do parentesco, centrada numa interpretação estrutural da proibição do incesto. DUMONT, Louis. Introducción a dos Teorias de la Antropologia Social. Barcelona: Editorial Anagrama, 1975. 5 É o caso de Gayle Rubin, cuja formulação dos sistemas sexo/gênero inspirou as versões dos conceitos de gênero que perpassaram os escritos feministas, em diversas disciplinas, até a beirada dos anos 90. RUBIN, Gayle. The Traffic in Women. Notes on the "Political Economy" of Sex. In: REITER, Rayna (ed.): Toward an Anthropology of Women. Nova Iorque: Monthly Review Press, 1975. apenas considerar alguns textos de autoras anglo-saxãs, publicados entre as décadas de 1970 e 1990, que me parecem relevantes na medida em que sintetizam tendências diferenciadas que marcaram, em diferentes momentos, a discussão. Devo deixar claro, entretanto, que, embora meu percurso seja mais ou menos cronológico, não pretendo sugerir que haja fases ou etapas na produção feminista. Esses textos provocaram-me inquietações sobre as quais farei alguns comentários. As autoras compartilham a obsessão feminista pela "desnaturalização". Tratam de compreender como os processos de construção de identidades e de laços sociais aparecem como se ancorados na natureza, na biologia ou em alguma instância divina. Entretanto, as diferenças que as autoras apresentam nas maneiras de pensar em sexo, gênero e parentesco levantam alguns pontos sobre as fronteiras do "natural". As autoras escolhidas estabeleceram diálogos, em momentos diferentes, com diversas perspectivas teóricas. Lévi-Strauss, Radcliffe-Brown, Fortes, Schneider são autores fundamentais com os quais elas discutem e nos quais se inspiram. Na verdade, o diálogo se estabelece basicamente com as duas teorias do parentesco e com uma perspectiva desconstrutivista dessas teorias'. Refletir sobre os argumentos dessas autoras, no marco das preocupações enunciadas, exige, é claro, contextualizar essa produção, concedendo atenção à discussão feminista em sentido amplo. A discussão teórica feminista é, necessariamente, interdisciplinar. Um dos seus maiores atrativos reside, precisamente, no esforço conjunto que, atravessando fronteiras, é realizado por autoras que trabalham no âmbito de horizontes disciplinares diversos. O interesse no parentesco, entretanto, está presente, sobretudo, na produção de antropólogas. Refletir sobre a contribuição dessas autoras levanta diversas questões, algumas das quais mostram tensões presentes na discussão feminista. É possível perceber que diversas antropólogas e, sobretudo, aquelas interessadas no parentesco, exerceram, na década de 1970, uma influência marcante nesse debates. As primeiras formulações do conceito de gênero das perspectivas feministas contemporâneas devem muito à antropologia feminista. Entretanto, nos anos 90, a produção das antropólogas tende a ser (respeitosamente) evitada. Essa tendência é intrigante, levando em consideração que as elaborações recentes dessas autoras, formadas numa disciplina constituída prestando atenção à diferença, tão cara às feministas, oferecem perspectivas promissoras para o trabalho desconstrutivo da "naturalização das desigualdades". A contribuição das antropólogas inspiradas no feminismo para pensar na relação aqui proposta é importante sob diversos aspectos. Prestar atenção a essa produção abre caminhos para refletir sobre temas fundamentais não apenas para a antropologia, ,mas para diversas perspectivas disciplinares. Ao mesmo tempo, possibilita refletir sobre a particular inserção das antropólogas na discussão feminista em sentido amplo. Sistemas de sexo/gênero 6 RUBIN. Op. cit., p. 179. Vide, além de REITER, op. cit., ROSALDO, Michelle e LAMPHERE, Louise. Woman, Culture and Society. Stanford University Press, 1974; HARRIS, Olivia e YOUNG, Kate (orgs.). Antropologia e Feminismo. Barcelona: Anagrama 1979, p. 19-20. Esta última coletânea reproduz diversos textos publicados no livro de Rosaldo e Lamphere, incorporando, além disso, outros textos. 'Embora o termo gênero Já fosse utilizado, a partir da conceitualização de Rubin começou a difundir-se com uma força inusitada. O termo foi aplicado à diferença sexual pela primeira vez em linhas de pesquisa desenvolvidas por psicólogos estadounidenses. O termo identidade de gênero foi introduzido pelo psicanalista Robert Stoller em 1963, no Congresso Psicanalítico de Estocolmo. Stoller formulava o conceito da seguinte maneira: o sexo está relacionado com a biologia (hormônios, genes, sistema nervoso, morfologia) e o gênero com a cultura (psicologia, sociologia). O produto do trabalho da cultura sobre a biologia era a pessoa "acabada` gendered, homem ou mulher. HARAWAY, Donna. Gender for a Marxist Dictionary In: Symians Cyborgs and Women. The Reinvention of Nature. Nova Iorque: Routledge, 1991. "Os sistemas de parentesco... transformam machos e fêmeas em homens e mulheres, cada um, uma metade incompleta que só adquire completude quando unida com a outra"6. Gayle Rubin trabalhou, na década de 1970, com a relação gênero/parentesco no marco das preocupações feministas que se expressavam, na época, numa questão que foi amplamente debatida: a subordinação universal das mulheres. Este problema inspirou uma série de artigos reunidos em coletâneas que se tornaram clássicos da antropologia feminista da época. Nesses textos, as autoras criticam diversas tradições do pensamento antropológico, considerando-as incapazes de incluir, de maneira adequada, as mulheres na análise social'. As autoras pensam que essas perspectivas apresentam as mulheres apenas como seres marginais ou intermediadores numa sociedade concebida como exclusivamente masculina. Introduzindo sistematicamente a dimensão política na relação entre os sexos e questionando tanto perspectivas estruturalistas como funcionalistas, diversas autoras inseridas no debate olham criticamente para os "universais" presentes nas análises antropológicas, reivindicando outorgar especial importância à observação das diferenças reais entre as sociedades. Essas diferenças adquiririam particular relevância uma vez que, para elas, olhar apenas para os universais jogaria as mulheres numa esfera a-histórica impermeável à observação de mudanças. Ao mesmo tempo, essa produção permite perceber que, de maneira contraditória, uma série de universais, tais como a oposição natureza/cultura, aos quais se associam as preocupações com as relações de poder entre os sexos, perpassam os textos. A subordinação das mulheres passa a ser pensada também como um universal, passível de ser explicado pela associação das mulheres à natureza e dos homens à cultura. O texto de Rubin, O Tráfico das Mulheres, marcou, na época, a discussão das académicas feministas,. Nas palavras da autora, "a passagem de fêmea, como se fosse matéria prima, à mulher domesticada". II, Esta interpretação do intercâmbio de mulheres tem sido questionada, entre outros, pelo próprio LéviStrauss. Vide as críticas colocadas por Heilborn e por Viveiros de Castro. Heilborn questiona a leitura da autora de uma visão da sociedade na qual a troca é um pressuposto da organização social opressora de parcelas da humanidade ou da sexualidade. Heilborn cita a crítica de Viveiros de Castro sobre a concepção de intercâmbio de mulheres como "troca de pessoas", pois o que efetivamente se trocaria nos sistemas culturalmente determinados de aliança são'propriedades simbólicas, direitos, signos, valores, por meio de pessoas. HEILBORN. Maria Luiza. Gênero e Hierarquia. A costela de Adão revisitada In: Revista Estudos Feministas. " Nesse sentido, as críticas que a autora formula ao conceito patriarcado são extremamente pertinentes. Ela chama a atenção pára a necessidade de manter a distinção entre a capacidade e necessidade de criar um mundo sexuado e as formas empiricamente opressivas através das quais esse mundo se organiza. Essa distinção seria obscurecida pelas formulações do patriarcado. Os "sistemas sexo e gênero", ao contrário, mostrariam as relações sociais que os organizam. RUBIN. Op. cit., p. 168. Rubin, pensando dentro do quadro da diferenciação natureza/cultura, se perguntava quais seriam as relações sociais que convertiam as "fêmeas" em "mulheres (domesticadas)". Ela procurou a resposta numa leitura crítica de autores - sobretudo Lévi-Strauss e Freud - que, prestando atenção à diferença sexual, discutem como se produz a passagem da natureza à cultura9. A autora localiza o sistema de sexo/gênero, "um conjunto de arranjos através dos quais a matéria prima biológica do sexo humano e da procriação é modelada pela intervenção social humana", precisamente no trânsito entre natureza e cultura e no espaço da sexualidade e da procriação. Embora questionando aspectos dos trabalhos dos autores acima mencionados, Rubin utiliza as ferramentas conceituais que eles oferecem. Sua intenção é utilizá-las para desenvolver, de maneira mais apropriada, a definição do sistema sexo/gênero. Assim, seria possível descrever a parte da vida social que seria o locus da opressão das mulheres, das minorias sexuais e de alguns aspectos da personalidade humana nos indivíduos. Rubin pensa o intercâmbio de mulheres levistraussiano - um dos princípios fundamentais do parentesco, na teoria desse autor - como conceito que situa e "explica" a opressão das mulheres dentro dos sistemas sociais. Explica, no sentido em que, para ela, o intercâmbio de mulheres não seria uma definição de cultura, nem um sistema em si mesmo, mas a percepção de certos aspectos das relações sociais de sexo e gênero cujo resultado é a ausência de plenos direitos para as mulheres. Para Rubin, o intercâmbio de mulheres seria um primeiro passo para a construção de conceitos através dos quais pensar a subordinação das mulheres, na medida em que mostraria essa subordinação como produto das relações através das quais sexo e gênero são organizados e produzidos. Isto leva a autora a pensar na necessidade de estudar cada sociedade para determinar os mecanismos através dos quais as convenções da sexualidade se produzem e se mantêm. A leitura que Rubin faz do intercâmbio de mulheres tem recebido inúmeras críticas que não repetirei aqui 10. No contexto da discussão feminista, talvez o maior mérito desse ensaio resida em que, discutindo como operam os sistemas de sexo e gênero, Rubin mostra um deslocamento importante dentro da discussão desenvolvida na época. O conceito (sistema sexo/ gênero), oferecido como categoria alternativa ao patriarcado, ao exigir compreender realidades empíricas diversas, os contextos específicos nos quais esse sistema opera, se contrapõe ao suposto de uma opressão estática". 13 Ibid, p. 169. 13 RUBIN, Gayle. Op. cit., p. 179. Tradução minha. 13 LÉVI-STRAUSS, Claude. A Familia, Origem e Evolução. Porto Alegre: Editorial Villa Marta, 1980. Interessa-me reter alguns aspectos do trabalho de Rubin. Eles são importantes na medida em que permitem perceber os pontos de ruptura que outras autoras, trabalhando com a relação gênero/parentesco, terão com ela. A leitura que Rubin faz dos autores com os quais trabalha não a afasta dos pressupostos teóricometodológicos desses autores. Ao contrário, para "desnaturalizar" a subordinação das mulheres, ela propõe, explicitamente, "imitá-los", "nos métodos, não nos resultados" 12, A autora pensa em termos de universais e opera com uma série de dualismos - sexo/gênero, natureza/cultura -, que se tornarão alvo das críticas feministas posteriores. Este aspecto, assim como o fato de discutir aspectos da teoria da aliança, diferencia a autora de outras teóricas anglo-saxãs que, nas décadas seguintes, se ocupam do tema. Rubin não reduz o parentesco à "reprodução biológica", nem supõe que as teorias do parentesco o façam. Ao contrário, destina páginas inteiras a mostrar como o status socialmente definidos pelo parentesco tem precedência sobre o biológico. Para ela, os sistemas de parentesco estão feitos de e reproduzem formas concretas da sexualidade socialmente organizada, mas eles são e fazem muitas outras coisas. Da mesma maneira, no que se refere à diferença sexual, a cultura se sobrepõe à natureza. Na perspectiva da autora, se a natureza fornece dados, esses dados mostrariam que a diferença é, sobretudo, cultural. Isso é claramente expressado na seguinte frase: "Homens e mulheres são, é claro, diferentes. Mas nem tão diferentes como o dia e a noite, a terra e o céu, yin e yang, vida e morte. De fato, do ponto de vista da natureza, homens e mulheres estão mais próximos entre si do que de qualquer outra coisa - por exemplo, montanhas, cangurus ou coqueiros. A idéia de que homens e mulheres diferem mais entre si do que em relação a qualquer outra coisa deve vir de algum outro lugar que não (seja) a natureza... longe de ser a expressão de diferenças naturais, a identidade de gênero é a supressão de similaridades naturais13. Para Rubin, o parentesco criaria gênero. Seguindo, até certo ponto, os argumentos de Lévi-Strauss 14 no que se refere às pré-condições necessárias para a operação dos sistemas de casamento, ela considera .que o parentesco instaura a diferença, a oposição, exacerbando, no plano da cultura, as diferenças biológicas entre os sexos. Os sistemas de parentesco, formas empíricas e observáveis de sistemas sexo/ gênero, cujas formas específicas variariam através das culturas e, historicamente, envolveriam a criação social de dois gêneros dicotômicos, a partir do sexo biológico, ''Rubin é freqüentemente citada na produção feminista, sobretudo, pela distinção sexo/gênero. Sem dúvida, há exceções. Judith Butler, resgatando um dos melhores insights de Rubin, é uma delas. Sua formulação crítica da "matriz heterossexual" deve muito a essa autora assim como a outras pensadoras feministas (Wittig, por exemplo) que utilizaram essa noção. BUTLER. Gender Trouble. Feminism and the Subversion of Identity. Nova Iorque: Routledge, 1990. 16 Chamo a atenção para essa indagação porque me parece significativa na medida em que anuncia uma das questões que se tornaram centrais nos estudos de gênero posteriormente desenvolvidos. As perspectivas das feministas "brancas" sobre o papel das mulheres "negras" na família, consideradas como "racistas", foram objeto de intenso debate. Vide AMOS, Valerie e PARMAR, Pratibha. Challenging Imperial Feminism, Feminist Review, n° 17, July, 1984, p. 3-32; BARRETT, Michèle e MCINTOSH, Mary. Ethnocentrism and SocialistFeminist Theory, Feminist Review, n°. 20, June 1985, p. 23-49 e BHAVNANI, Kum Kum e COULSON, Margareth. Transforming SocialistFeminism: the challenge of racism, Feminist Review, n° 23, June, 1986. uma particular divisão sexual do trabalho, provocando a interdependência entre homens e mulheres, e a regulação social da sexualidade, prescrevendo ou reprimindo arranjos divergentes dos heterossexuais. Desta maneira poder-se-ia dizer que, para a autora, o gênero é um imperativo da cultura, que opõe homens e mulheres através do parentesco. No que se refere à importância dos sistemas sexo/ gênero nas sociedades contemporâneas, Rubin mostra algumas ambivalências. Por um lado, a autora afirma que a organização de sexo e gênero, no passado, organizava a sociedade e hoje, esvaziada das funções do passado, apenas se reproduz a si mesma. Mas Rubin também afirma que parentesco e casamento, parte de sistemas totais, fazem sempre parte de relações inseridas em "arranjos" políticos e econõmicos. O programa de pesquisa proposto pela autora, incluindo nele as sociedades contemporâneas, é a compreensão da relação dos sistemas sexuais com os diversos aspectos do social. Em termos do debate antropológico, as formulações de Rubin foram rapidamente rebatidas. No âmbito da discussão feminista, Rubin tornou-se inspiradora de diversas linhas de trabalho, orientadas pela distinção sexo/gênero, não necessariamente centradas no parentesco15. À medida que se difundia o trabalho com gênero, a produção feminista preocupada com a reprodução das convenções de sexo e género desenvolveu uma linha importante de crítica à famfiia, fervilhante no final da década de 1970, para a qual convergiram sociólogas, historiadoras, psicólogas e antropólogas. Essa produção mostra que o sistema de sexo e gênero formulado por Rubin, plenamente incorporado, operava como fórmula orientadora. A questão básica colocada naquele momento era dar conta das experiências de subordinação. A idéia era, através de diversos procedimentos, obter elementos para desafiar a fixidez da família, uma entidade que aparecia, no debate público, como sempre similar em forma e conteúdo e, desnaturalizando-a, mostrá-la como entidade organizada através de estruturas hierárquicas de sexo, gênero e geração. Ao mesmo tempo, indagaram-se sobre as relações que o gênero poderia estabelecer com idade, classe e raça'''. Considerando o gênero como uma categoria básica de análise, as feministas procuraram submeter a família a análises históricas e sociais. As críticas formuladas atacaram aspectos das teorias sociais que, para as autoras, conferiam esse halo de imutabilidade à família. Questionaram-se não apenas os pressupostos sobre a naturalidade da família, em termos " Vide os textos das Conferências de Stanford, em 1979, publicados em: THORNE, Barrie e YALOM, Marilyn. Rethinking the Family. Some Feminist Questions. Nova Iorque: Longman, 1986, particularmente YANAGISAKO, Sylvia, ROSALDO, MIchelle e COLLIER, Jean. Is There a Family? New Anthropological Views. biológicos, mas também argumentos funcionalistas sobre a família", considerando que essas análises particularmente as de Parsons - "congelavam" um ideal de família na linguagem dos papéis, transmitindo idéias fixas e dicotômicas, obscurecendo o conflito e as diferenças de poder. As críticas levantaram outro ponto, particularmente relevante: consideraram que um dos recursos utilizados para dar à família essa forma monolítica e singular era subsumir nesse termo diversos elementos. O parentesco, os núcleos domésticos e as concepções sobre domesticidade propriamente dita, desapareceriam sob a denominação de família. Como parte do processo de desnaturalização da família, algumas antropólogas procuraram re-direcionar as análises, pensando-a no contexto das relações de parentesco. Esta síntese dos questionamentos levantados pelas feministas antropólogas permite perceber que o que estava sendo pensado como naturalizador não eram apenas os argumentos biologizantes. As perspectivas teóricas - no momento, tratava-se do funcionalismo vistas como incapazes de dar conta de mudanças e transformações, aquelas que apresentassem diversos aspectos associados ao gênero como estáticos, também eram consideradas naturalizantes. Entretanto, a distinção natureza/cultura ainda se sustentava: o sistema sexo/gênero continuava sendo pensado como desnaturalizador. É interessante perceber que o interesse feminista no parentesco foi retomado na segunda metade da década de 1980, no contexto dos sérios questionamentos que se foram alinhavando em torno dos supostos que embasaram a distinção sexo/gênero. Desnaturalizando o parentesco COLLIER, Jane e YANAGISAKO, Sylvia. Gender and Kinship. Essays toward a unified analysis. Stanford: Stanford University Press, 1987. "„.gênero e parentesco constroem-se mutuamente. Nenhum pode ser tratado como analiticamente anterior ao outro porque são percebidos (are realized) conjuntamente em sistemas culturais, econômicos e políticos particulares"'8. Algumas das autoras presentes na discussão feminista intervieram intensamente no debate, durante quase duas décadas, com uma produção particularmente sugestiva, que permite refletir sobre deslocamentos significativos nas perspectivas teóricas feministas. Os trabalhos de Sylvia Yanagisako e de Marilyn Strathern mostram esses deslocamentos no que concerne à discussão sobre gênero e parentesco. Na segunda metade da década de 1980, Yanagisako e Collier publicaram Gender and Kinship. Op. cit.. Vide MOORE, Henrietta. A Passion for Difference. Indiana University Press, 1994, p. 12-14; STOLCKE, Verena. Is Sex to Gender as Race to Ethnicity? In: DEL VALLE, Teresa. Op. cit., p. 22-24 e HOWELL Signe e MELHUUS, Marit. The Study of Kinship; the Study of Person; a Study of Gender? In: DEL VALLE. Op. cit., p. 39-53. 20 00LLIER, Jane e YANAGISAKO, Sylvia. Op. cit., p. 2-5. 21 SCHNEIDER, David. A Critique of the Study of Kinship. The University of Michigan Press, 1984. Essays toward a unified analysis, uma coletãnea extremamente citada na literatura feminista que trata do gênero"). Nesse livro, Yanagisako e Collier confrontam abertamente supostos presentes tanto nas teorias de parentesco como muitas das formulações teóricas feministas. Num caminho oposto ao de Rubin, que elaborou sua formulação dos sistemas sexo/gênero a partir das teorias de parentesco, as autoras questionam essas teorias a partir de reflexões estimuladas pela percepção da maneira como o gênero opera em diversas sociedades2°. A proposta das autoras é revitalizar o estudo do parentesco e situar o estudo do gênero no centro teórico da antropologia, questionando a fronteira entre parentesco e gênero, enquanto dois campos de estudo. Yanagisako e Collier afirmam que, embora intimamente ligados, gênero e parentesco não constituiriam dois domínios de análise. Comentarei em seguida os problemas envolvidos nessas afirmações. Antes disso quero completar seus argumentos, detendo-me primeiro no autor no qual essas antropólogas procuram inspiração, David Schneider, quem, na opinião delas, teria assentado as bases para desnaturalizar o parentesco. Schneider afirma que o saber antropológico sobre o parentesco - e engloba aqui tanto os teóricos da descendência como os da aliança - deriva intimamente das próprias noções culturais das sociedades nas quais se formaram os antropólogos. Perguntando-se o motivo pelo qual a reprodução assume um lugar central entre as instituições privilegiadas para o estudo da sociedade, o autor chega à conclusão de que o problema reside na maneira como os cientistas europeus utilizaram sua própria cultura nativa como fonte nas maneiras de formular e compreender o mundo. Na cultura ocidental, os laços de sangue assumem um lugar fundamental. A questão seria perguntar-se até que ponto isso acontece em todas as culturas. A maneira de descobri-lo seria compreender os símbolos e significados que configuram culturas particulares, evitando a contaminação dos próprios supostos nativos dos antropólogos. Como saída, Schneider propõe tomar o parentesco como uma questão empírica, não como um fato universal, partindo de uma hipótese de trabalho que indague sobre de que trata o parentesco. Não se poderia mais assumir que a cadeia genealógica é universal ou que tem o mesmo valor e significado em todas as culturas21. Yanagisako e Colher seguem vários dos caminhos apontados por Schneider, incorporando uma preocupação específica pelo gênero. Revisam criticamente as dicotomias analíticas que informaram os estudos de 22 0p. cit., p. 29. parentesco e os estudos de gênero. A análise das oposições estabelecidas entre natureza/cultura, doméstico/público e produção/reprodução leva-as a concluir que esses dualismos, assim como os conceitos que informam as teorias de parentesco, assentam-se num mesmo suposto. Este seria o de que a diferença biológica na reprodução sexual seria universalmente central nas relações entre homens e mulheres. As autoras consideram que gênero e parentesco, conceitualizados como dois campos distintos de estudo, constituiriam, de fato, um único campo, na medida em que foram definidos por uma única concepção nativa dos antropólogos: os fatos biológicos da reprodução sexual. Yanagisako e Colher afirmam que as teorias sobre parentesco são, ao mesmo tempo, teorias nativas - dos antropólogos - da reprodução biológica e estariam marcadas por supostos sobre o gênero. Ao mesmo tempo, as formulações sobre gênero, inclusive as feministas, se baseariam na definição de homens e mulheres a partir de sua função na reprodução biológica. Uma questão central na reflexão das autoras é, portanto, a necessidade de atacar - e desmontar - os pressupostos que fazem com que as unidades fundamentais do gênero, homens e mulheres, e as do parentesco, cadeia genealógica, sejam vistos como existindo fora da cultura; a diferença como dada e tratada como fato pré-social22. A estratégia analítica centra-se em impedir que male e female sejam pensados como duas categorias naturais de seres humanos cujas relações se estruturam, em todo lugar, pela sua diferença biológica. A idéia é que, reconhecendo que essas categorias se definem de formas diferentes em sociedades específicas, elas não poderiam continuar sendo consideradas, a priori, como categorias universais sobre as quais se constroem relações particulares de hierarquia de gênero. Como conseqüência, a análise se deslocaria para os processos sociais e simbólicos, através dos quais essas categorias são construídas. Esse tipo de análise, voltado para a cultura a que pertencem os antropólogos, mostraria como esses processos fazem com que gênero e parentesco apareçam como auto-evidentes e como campos de atividade "natural". No que se refere ao gênero, a pergunta a ser colocada seria: como as sociedades particulares definem a diferença? No que se refere ao parentesco, seria necessário perguntar-se: como as sociedades específicas reconhecem direitos e alocam responsabilidades? Há vários aspectos problemáticos nas afirmações das autoras. Yanagisako e Colher referem-se a diversos teóricos do parentesco. Entretanto, forçam e simplificam seus argumentos, ignoram as diferenças importantes " As autoras, contrapondose à idéia (estruturalfuncionalista) de sociedade composta por uma série de domínios análogos na função, embora não necessariamente à forma, às instituições de nossa sociedade, questionam a idéia de parentesco como domínio específico. 24 É importante lembrar aqui que em Gender and Kinship..., e apesar de diversas ambigüidades, Yanagisako e Collier questionaram as teorias clássicas do parentesco, mas o fizeram mantendo-se nos termos do debate "moderno". Suas propostas eram formuladas em termos de totalidades sociais, propunham modelos sistêmicos e consideravam inevitável a análise comparativa. 25 Recurso que oferece resultados extremamente interessantes para desvendar pressupostos e relações entre conceitos. Penso concretamente na maneira como Strathern pensa no gênero, em The Gender of the Gift - "o gênero refere-se à apreensão da diferença entre os sexos, que assume invariavelmente uma forma categórica, tanto se o sexing no corpo ou na psique de uma pessoa for considerada inata como se não for" (Whether or not the sexing of a person's body or psyche is regarded as innate, the apprehension of difference between "the sexes" invariably takes a categorical form, and it is this to which gender refers) -, ou no parentesco euroamericano, em Necessidade de Pais... - a maneira como os euroamericanos pensam sobre a formação de relacionamentos íntimos baseados na procriação. Parece-me que ambas concepções mantêm o entre suas perspectivas - e nisto seguem, sem dúvida, David Schneider -, e deixam de lado, em particular, as perspectivas da teoria da aliança. Isto torna-se evidente nas passagens nas quais as autoras explicitam o que entendem por parentesco - sistema de direitos e deveres para a reprodução organizada da vida humana. A argumentação interna ao texto remete a outros problemas. Um deles reside nas ambigüidades presentes na concepção de gênero e parentesco como um único campo (field) de estudo. Na minha opinião, isto não se justifica sobre a base dos argumentos levantados pelas autoras, ou seja, por ambos estarem tingidos por um mesmo pressuposto ou pela necessidade de criticar a concepção de domínios funcionais que tendem a separar o estudo do parentesco23. Yanagisako e Collier optam, à maneira de Schneider, pela idéia de domínio cultural. Pensando em termos dos significados atribuídos às relações e ações de parentesco, consideram que o parentesco não seria isolável, uma vez que esses significados perpassariam uma série de domínios culturais - religiosidade, nacionalidade, gênero, classe. Parece-me que, em termos de significados, o parentesco e, sobretudo, o gênero não são isoláveis. Mas, numa perspectiva que procura trabalhar com o parentesco como empírico para não atribuir aos "outros" os significados presentes na cultura ocidental, é contraditório resolver aprioristicamente as relações entre domínios. Minha última inquietação refere-se precisamente à formulação das questões antropológicas em termos empíricos. Compreendo as preocupações que levam as autoras a procurar trabalhar com o máximo de cautela e nos termos mais neutros possíveis. Mas, perguntar-se sobre como as sociedades definem a diferença remeteria ao gênero? Perguntar-se sobre como as sociedades reconhecem direitos e obrigações remeteria ao parentesco? Uma proposta que proponha pôr em perspectiva, através do conhecimento de outras culturas, a cultura do antropólogo - e os supostos que a embasam -, como me parece que é a das autoras, exige elementos para criar essa perspectiva". Nesse sentido, é necessário operar com alguns conceitos básicos, embora abrindo possibilidades para que adquiram outros alcances analíticos. No que se refere a pensar o parentesco, ou o gênero, como empíricos, há estratégias utilizadas por Strathern mais apropriadas para conseguir esse objetivo. Penso no recurso de utilizar as concepções nativas do antropólogo, sabendo que disso se trata, iluminando-as a partir de outras concepções nativas. Nesse sentido, perguntar-se apenas sobre a diferença não permitiria pôr "em perspectiva" a partir do gênero nem sobre "direitos e obrigações" a partir do parentesco25. referencial nativo do antropólogo mas são trabalhadas a partir da perspectiva oferecida pela análise de outras concepções. STRATHERN, Marilyn. Necessidade de Pais, Necessidade de Mães, Revista Estudos Feministas, p. 303, n° 2/95. 26 HOWELL e MELHUUS. Op. cit., p. 44-46. 27 Outras reações à proposta de Yanagisako e Colher parecem, ao contrário, exigir uma maior radicalização. Stolcke, por exemplo, questiona o estatuto que o biológico assume na proposta das autoras. Ela considera que deixaram de questionar que a biologia e a fisiologia e, portanto, a natureza como tal, são conceitualizações sociopolíticas. Isto resultaria evidente à luz das revisões da história da biologia, da embriologia e das imagens do corpo. Vide STOLCKE, Verena. Is Sex to Gender as Roce to Ethnicity? In: DEL VALLE, Teresa. Gendered Anthropology. Nova Iorque: Routledge, 1993, p. 22. A proposta das autoras em relação ao gênero marcou, no momento da publicação do texto, o debate feminista. O impacto, nesse sentido, foi maior que aquele decorrente das críticas às teorias de parentesco. Isto talvez se deva, como afirma Stolcke, ao fato de que os antropólogos, na atualidade, tendem a reconhecer que as teorias sobre a concepção e sobre o parentesco são muito mais culturais que biológicas. Entretanto, as autoras enfrentaram reações adversas também no que se refere ao gênero. Entre elas, algumas mostram ambigüidades no que se refere a aceitar uma separação total do sexo. Howell e Melhuus exemplificam essas reações. Estas autoras, que também se preocupam com a relação entre sexo e gênero nas teorias de parentesco, afirmam: "Embora as teorias sobre a procriação indubitavelmente variem de maneira muito dramática, isto não significa que as diferenças fisiológicas entre homens e mulheres não sejam universalmente reconhecidas. Em termos antropológicos, o que interessa é de que maneira esse fato é utilizado para criar significados e valores. (.,.) O que devemos evitar é, impensadamente, manter os limites de nossas próprias dicotomias quando confrontamos outras (alien) construções"26. De fato, Yanagisako e Collier propõem pensar em gênero de uma maneira tão aberta que parecem eliminar a diferença sexual como referência para o gênero. Nesse caso, compartilho o desconforto, pois acho que, perdendo-se o que é percebido como diferença sexual - parafraseando a Strathern, seja ela pensada como inata ou não - perde-se também o gênero27. A discussão dos mesmos supostos que conduziram a contestar as raízes biológicas do gênero foram deslocando o debate das feministas antropólogas sobre parentesco. O questionamento às explicações universais, a extrema valorização das categorias nativas e a escrupulosa insistência em desvendar os pressupostos que informam as teorias antropológicas encaminharam a discussão para outros caminhos. Nesse percurso, as reelaborações das teóricas feministas, aprofundando-se nos supostos que embasam as teorias clássicas, se deslocam das formulações concretas das teorias de parentesco para as formulações sobre cultura e as (novas) maneiras como é pensada a natureza. Nesse processo, também se desloca a polêmica centralidade que o gênero assumiu nos textos da década de 1980. As fronteiras do natural Nos anos 90, a discussão das feministas antropólogas anglo-saxãs sobre parentesco volta-se, recorrente- " Na primeira metade da década de 1990, Marilyn Strathern publicou dois livros nos quais analisa o parentesco euro-americano. Num deles, After Nature..., no qual reconhece ter-se inspirado em Schneider, a autora escreveu um "relato cultural" do parentesco inglês. Nesse livro, Strathern entrelaça uma diversidade de materiais produzidos entre 1860 e 1960 - páginas de romances, anúncios de jornal etc. - e as análises sobre o parentesco produzidas por antropólogos ingleses. Isto porque ela considera que o estudo antropológico do parentesco, assim como os modelos nativos dos não antropólogos (das mesmas classes sociais ás quais os antropólogos pertenciam) apóiam-se fortemente na idéia de que os sistemas de parentesco foram construídos sobre certos fatos bem conhecidos da natureza. O conjunto do material iluminaria "as idéias inglesas sobre o parentesco". Strathern explora o que os ingleses considerariam os fatos do parentesco: a individualidade das pessoas, a diversidade etc.. STRATHERN, Marilyn. After Nature. English kinship in the late twentieth century. Cambrige: Cambridge University Press, 1992. 29YANAGISAKO, Sylvia e DELANEY, Carol (ed.). Naturalizing Power, Essays in Feminist Cultural Analysis. Nova Iorque: Routledge, 1995, p. 14. Este livro foi dedicado à memória de David Schneider. 30 As autoras comentam as associações entre a natureza e o sobrenatural presentes nos mitos sagrados da Criação e como algumas delas, tais como a associação entre natural/dado por Deus, natural/ordem hierárquica da criação e natural/submetido a uma mente, para a análise da cultura euroamericana, indagando como natureza e cultura entram em relação, provocando efeitos de naturalização". Os temas que estimulam a discussão sobre parentesco são diferentes: trata-se de compreender a naturalização das "identidades fragmentadas e em conflito", resultantes da crescente circulação global das pessoas. Questões tais como o parentesco homossexual e as novas tecnologias reprodutivas provocam intensa reflexão e indagações sobre o futuro da relação entre natureza e cultura. A análise procura ir além do desvendamento dos processos sociais e simbólicos que fazem com que género e parentesco apareçam como produtos naturais na sociedade euro-americana. O leque de identidades e instituições aparentemente naturais a serem analisadas abre-se: nacionalidade, etnicidade, religião e sexualidade somam-se a gênero e parentesco. Os textos publicados em Naturalizing Power, Essays in Feminist Cultural Analysis, na metade da década de 1990, mostram duas perspectivas. A maior parte dos artigos, através de diversos recortes empíricos, focaliza a naturalização de uma diversidade de hierarquias interrelacionadas. Nesse sentido, a centralidade que outras perspectivas outorgavam à categoria gênero é deslocada nos artigos. Sylvia Yanagisako e Carol Delaney, na introdução à coletânea, parecem antecipar-se a possíveis questionamentos feministas quando, comentando o nexo de união entre os artigos que compõem o livro, afirmam: "Estes (...) ensaios constituem um gênero (gene) de leitura que atravessa domínios culturais... O que os torna um gênero de análise cultural feminista é que o estímulo para desafiar os limites dos domínios e suas afirmações de conhecimento emergiram de uma crítica feminista das verdades fixas do gênero"29. É verdade, no entanto, que Yanagisako e Delaney priorizam analiticamente o gênero quando dirigem suas reflexões para as bases dos quadros explicativos que essencializariam as identidades. Elas exploram as narrativas de origem euroamericanas, refletindo sobre como essas narrativas, religiosas e científicas, naturalizaram a visão de mundo dessa sociedade. Yanagisako e Delaney prestam atenção aos significados outorgados à natureza nesses mitos, particularmente nos científicos, que assumiriam o lugar do sagrado para os humanistas liberais30. Para as autoras, ao mostrar as definições de gênero e os valores inerentes às teorias da procriação, a assignação do sexo e da reprodução à categoria da biologia teria sido desafiada. O fato de demonstrar que os significados de male e female não se baseiam em diferenças naturais impulsionaria a exploração das ordem superior, foram incorporadas nas explicações científicas euroamericanas do século XIX. Op. cit., p. 2-9. 31 STRATHERN, Marilyn. Reproducing the Future. Essays on Anthropology, Kinship and the New Reproductive Technologies. Nova Iorque: Routledge, 1992. 33 Essa questão é colocada no contexto das grandes questões da antropologia. Strathern se indaga sobre as implicações, para a antropologia, da incerteza sobre o termo que se contrapõe ao indivíduo (a sociedade) e sobre o antônimo paralelo, natureza/cultura. 33 Para que os argumentos de Strathern fiquem mais claros é necessário ter presente como eia conceitualiza a cultura: trata-se de conexões entre conceitos, conceitos que, por sua vez estendem ou deslocam seus significados através de concatenações de idéias. Dito de outro modo, trata-se das maneiras como as pessoas estabelecem analogias entre distintos domínios de seus mundos. Na forma de conexão ou contraste, um conjunto de idéias pode ser utilizado para representar outros. Perguntar-se sobre os efeitos das inovações no campo reprodutivo é perguntar-se sobre todo tipo de relações. Novas combinações não só estenderiam os significados dos domínios que se justapõem, mas poderiam ter o efeito de provocar mudança de direção, ou seja, poderiam provocar deslocamentos - em ênfases, dissoluções e antecipações "rebotes" de uma área da vida para outra. O parentesco seria um desses temas que mostram associações. maneiras em que esses significados articulam-se com outras desigualdades supostamente estruturadas por outras diferenças. A questão seria perguntar-se não só como essas desigualdades são naturalizadas, mas como sua distinção do gênero também é naturalizada e isto levaria ao exame crítico das fronteiras entre o gênero e outras categorias de diferença. Uma outra perspectiva é apresentada por Strathern, também sobre a base do parentesco euro-americano, particularmente sobre a maneira como os ingleses concebem o parentesco. A autora tenta compreender, a partir da discussão desse parentesco, como natureza e cultura são colocados em novas e complexas relações. A preocupação pelo futuro desse par é explicitada com clareza por Strathern no contexto de suas reflexões sobre a cultura. Embora a autora discuta sobre parentesco, concretamente sobre as implicações das leis inglesas associadas às novas tecnologias reprodutivas, sua intenção não é contribuir diretamente para o debate sobre o parentesco, mas para a reflexão sobre como opera a cultura31 . Para Strathern, os novos tratamentos de fecundidade desestabilizariam o conceito de natureza e isto teria impacto sobre outras idéias de parentesco32. A Idéia é que a maneira como são conceitualizadas as mudanças no campo das novas tecnologias reprodutivas afetariam outras idéias sobre o parentesco e afetariam também outras relações33. Segundo a autora, para os ingleses, o parentesco conectaria o domínio da cultura com o domínio da natureza. Por parentesco, Strathern entende não só as maneiras como os parentes interagem senão também como pensam que essas relações se constituem" Os ingleses suporiam que formas particulares de arranjos de parentesco são específicos de sociedades particulares, e, nesse sentido, artificiais, mas considerariam como dado que tratam dos fatos naturais da vida. Esses fatos naturais, fazer sexo, transmitir genes, dar à luz, pensados, em termos amplos, como biológicos e, mais estritamente, como genéticos, constituiriam a base das relações de parentesco do modelo reprodutivo na cultura euroamericana35. Essas Idéias de parentesco ofereceriam uma teoria sobre a relação da sociedade humana com o mundo natural. Ao pensar que o parentesco é a construção social dos fatos naturais, os domínios dos assuntos sociais se combinariam com o mundo natural. Entretanto, também se separariam, afirmando-se assim a diferença entre ambos. Em que sentido a reprodução "artificial" provocaria efeitos sobre o parentesco e, decorrentemente, sobre a noção de natural, alterando o equilíbrio do par natureza/cultura? Segundo Strathern, a idéia do paren- Reproducing the Future... Esse texto dá a impressão de outorgar pouca importância ao gênero. Entretanto, o gênero recebe atenção, em situações específicas. Ele integra as descrições de como melanésios e ingleses imaginam diversos aspectos de sua socialidade. Entretanto, quando o foco das reflexões da autora se desloca para as conexões que põem em relação domínios, o gênero não está presente. Isso acontece (acho) porque a análise opera em outro plano. "Op. cit., p. 3. 36 A questão é sintetizada quando a autora reflete sobre as modificações na concepção de paternidade natural. "Na cultura do século XX, a natureza tem sido crescentemente entendida como biologia... isto significou que a idéia de parentesco natural foi biologizada. O que é considerado como natural adquiriu significados específicos. E um desafio colocado pelas novas tecnologias reprodutivas é como elas afetarão esses significados no futuro. Na fala corrente, já Introduziram a distinção entre pais sociais e biológicos. Entretanto, a paternidade biológica não reproduz com exatidão o velho conceito de parentesco natural; reproduz a idéia, mas introduzindo novas diferenças. Há uma nova ambigüidade no que se refere ao que conta como natural. O pai "natural" foi uma vez o genitor de um filho extramatrimonial, a mãe "natural", genitora de um filho entregue para a adoção. Idealmente, o pai/ mãe (parent) social ideal combinava os dois tipos de credenciais.(...) As possibilidades contemporâneas da procriação artificial introduzem um novo contraste entre o processo tesco como baseado biologicamente na procriação integrava os repertórios culturais nativos da Europa. Nas relações de parentesco, a natureza representava algo imutável, intrínseco às pessoas e às coisas, qualidades sem as quais elas não seriam o que eram. Não se tratava apenas de que as relações de parentesco fossem consideradas como construídas de materiais naturais: a conexão entre o parentesco e os fatos naturais da vida simbolizavam a imutabilidade nas relações sociais. Nesse contexto, pensar na pater/ maternidade como a implementação de uma opção e no make up genético como resultado da preferência cultural provocaria efeitos. Esses efeitos preocupam Strathern que se indaga sobre como tudo isso operará como analogia (em cadeia) para outras relações'''. Para a autora, a antítese entre natureza/cultura, da maneira como modelou a vida social inglesa no passado, ficaria achatada. Com a irrupção da "artificialidade" na Natureza, um dos termos (Cultura) parece consumir o outro (Natureza) como se a cultura excedesse a si própria. Finalizando Encerro agora este percurso procurando retomar as questões formuladas no início do texto. É interessante prestar atenção à crítica que Joan Scott, historiadora, uma das autoras feministas mais citadas no Brasil, faz às antropólogas. Scott afirma que elas restringem o gênero ao parentesco, focalizando o núcleo doméstico e a família como base para a organização socia137. Certamente inspirada em Rubin, a autora sustenta que faz pouco sentido reconduzir forçadamente essas instituições à sua utilidade funcional no sistema de parentesco, ou discutir que as relações entre homens e mulheres são artefatos de sistemas de parentesco (mais antigos) baseados no intercâmbio de mulheres. A crítica de Scott centra-se na idéia de que é necessário trabalhar com uma visão mais ampla sobre o gênero, que inclua não apenas o parentesco, mas também, particularmente no caso das sociedades complexas modernas, o mercado de trabalho, a educação, a política. Retomando agora as críticas de Scott, considero que, embora essa crítica possa ser compreendida, em parte, pelas ambivalências apresentadas no trabalho de Rubin, a argumentação de Scott apresenta diversos problemas nos quais vale a pena pensar pois podem dar indícios da dificuldade de inserção da produção das antropólogas na discussão feminista em sentido amplo. Scott parece operar com a noção implícita de antropologia como sinônimo do estudo das sociedades natural e o artificial: a reprodução assistida cria o pai biológico como categoria separada. Através do mesmo processo, o pai social é marcado como potencialmente deficiente em credenciais biológicas. (...) O efeito é o deslocamento dos usos anteriores. Assim, o pai - natural- do futuro (...) bem poderá ser aquele que não exija técnicas especiais e para o qual não se precise de legislação específica. Nesse caso, o pai natural combinará atributos biológicos e sociais. (...) Há uma dupla Intervenção no parentesco: avanços tecnológicos e médicos intervêm nos fatos naturais da procriação e a legislação o faz nos fatos sociais do reconhecimento de parentesco." Op. cit., p. 19-20. SCOTT, Joan Wallach. Gender and the Politics of History. Nova Iorque: Columbia University Press, 1988, p. 43-44. "Idem. " O paper que deu origem ao capitulo Gender: a useful category of historical analysis, no qual a critica é formulada, foi preparado para ser apresentado, pela primeira vez. em 1985. A Conferência de Bellagio, o encontro sobre o tema que talvez tenha provocado o maior impacto na antropologia feminista, foi realizada, em 1982, na Itália. Vide resenha do encontro em TSING, Anna e YANAGISAKO, Sylvia. Feminism and Kinship Theory, Current Anthropologist, vol. 24, n° 4, August-October 1983, p. 511516 e o livro resultante dele, referência recorrente nos textos das antropólogas. COLLIER. Jane e YANAGISAKO, Sylvia. Gender and Kinship. Essays toward a unifled analysis. Stanford: Stanford University Press, 1987. primitivas. Isto implica ignorar o sentido do conhecimento antropológico e não compreender as implicações de uma teoria do parentesco como aquela com a qual Rubin dialoga, para a antropologia. Isto tem conseqüências que Scott parece não perceber quando afirma que os antropólogos limitam o gênero ao parentesco. Essas conseqüências tornam-se evidentes na discussão das feministas/antropólogas quando, no trabalho desenvolvido a partir do gênero, olham criticamente para a maneira em que os supostos do conhecimento ocidental embasam as maneiras de pensar a família e as teorias de parentesco38. Talvez precisamente por isso, ao escrever aquela avaliação, a autora ignorasse a linha de trabalhos desenvolvida por feministas-antropólogas aqui apresentadas, entre as que alguns tratam especificamente da sociedade ocidental contemporânea'''. Cito Scott apenas como exemplo, pois a "evitação" em relação à produção das antropólogas inspiradas pelo feminismo é recorrente4°. E essa relação é paradoxal pois o contrário, o estímulo provocado na produção dessas antropólogas pela discussão feminista em sentido amplo, é evidente. Isso manifesta-se nos textos comentados. Todos tratam de gênero e parentesco. Todos afirmam a importância de trabalhar com parentesco (e gênero) nas sociedades contemporâneas'". As autoras comentadas compartilham a obsessão feminista por desnaturalizar as hierarquias de diferença através das quais se estabelecem relações de poder. Há alguns acordos no que se refere ao conteúdo dessa desnaturalização. Trata-se de compreender como os processos de construção de identidades e de laços sociais aparecem ancorados na natureza, na biologia ou em alguma instância divina. Entretanto, há divergências em tornà dos limites do que pode ser pensado como construído e o que não. Acho que essas divergências estabelecem a diferença entre as maneiras de pensar na relação entre gênero e parentesco. Nesse sentido, na medida em que natureza e cultura são colocadas em relações diferentes, não seria possível pensar que, nas formulações dessas autoras, a relação entre gênero e parentesco é a mesma. Algumas formulações dessa relação são elaboradas a partir da análise de gênero e parentesco como empíricos. Porém, que sentido tem esse tipo de análise, numa perspectiva antropológica? Tenho claras as restrições que muitos antropólogos fazem às formulações de Schneider. Isto é, a tendência a dissolver por completo o parentesco ao tratá-lo a partir da oposição sociedade/cultura. O parentesco seria pensado como fenõmeno cultural puro, sem qualquer relação com a estrutura social. Essa posição impossibilitaria as tentativas de definir universais no âmbito do parentesco42. 4° Essa "dinómica", detectável na produção das teóricas feministas, se reproduz com conotações talvez mais sérias, à minha volta, no Brasil. Alunos/as interessados/as no debate feminista, muitos matriculados em programas de antropologia, lêem com avidez e decodificam pacientemente a produção de filósofas, historiadoras da ciência e psicanalistas, cuja retórica está longe de ser simples. Entretanto, quando se trata dos escritos de antropólogas, a dificuldade/ rejeição é evidente. Dificuldades análogas suscitadas pela preferência dos jovens antropólogos por outras disciplinas têm se manifestado em outras situações. Vide, por exemplo, os comentários de Eduardo Viveiros de Castro. CASTRO, Eduardo Viveiros de. Sobre a Antropologia Hoje: te(i)ma para discussão. In: O Ensino da Antropologia no Brasil. Temas para uma discussão. ABA. Associação Brasileira de Antropologia. Mime°, 1995, p. 5-9. 4' Assinalei que, apesar das ambigüidades, Rubin afirma este ponto. Yanagisako e Colher insistem na necessidade de fazê-lo. Contrapondose às perspectivas funcionalistas que imperaram em alguns estudos de família, nos quais o parentesco foi reduzido à sua função primária de reprodução e à unidade reprodutiva primária, a família nuclear, consideram que trabalhar com parentesco permitiria desnaturalizar esse tipo de perspectiva. Isto porque permitira introduzir um leque de relações e práticas na análise da família, ignorados nesses estudos. COLLIER e YANAGISAKO. Op. cit., p. 3. 42 FILHO. Op. cit., p. 30; CASTRO. Op. cit.. Parece-me que, na maneira como o parentesco é trabalhado por algumas destas autoras, na medida em que se centram na ação social, não se trata de "pura" cultura. Isto não elimina, é claro, o problema dos universais. Mas a questão é perguntar-se: a tensão entre universal e particular deve ser necessariamente resolvida a partir dos universais? Quero dizer que trabalhar com parentesco ou gênero como empíricos não implica, necessariamente, a limitação ao particular, nem a renúncia a uma visão global sobre o social, embora signifique o abandono da tentativa de alcançar essa visão a partir do parentesco entendido como construção analítica. Pode ser apenas (mais) um dos caminhos para procurar a perspectiva que é, sim, requisito antropológico. estudos históricos é uma revista semestral cujos números são dedicados a temas específicos. Os próximos números tratarão de Arquivos pessoais e Polícias. SOLICITAÇÃO D ASSINATURA NOVA DE ESTUDOS HISTÓRICOS D RENOVAÇÃO DE ASSINATURA (LIGUE DDG: (0800) 21 77 77) O ALTERAÇÃO DE DADOS CADASTRAIS OPÇÃO DE PAGAMENTO E:1 CHEQUE NOMINAL À FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS I:1 DEPÓSITO BANCÁRIO NA CONTA N° 112.715-2 DO BANCO DO BRASIL, AGÊNCIA 0287-9 (ENVIAR CÓPIA DO COMPROVANTE À FGV) CARTÃO DE CRÉDITO O VISA CARTÃO O AMERICAN EXPRESS N° O CREDICARD VALIDADE NOME CONTATO ENDEREÇO CEP CIDADE DDD TELEFONE DATA ASSINATURA ESTADO FAX