PREFÁCIO Não se pode verdadeiramente dizer que as Histórias da filosofia antiga sejam numerosas. São pouquíssimas. Nos últimos anos, uma espécie de desconfiança na filosofia, sobre tudo na filosofia classicamente entendida, parece ter-se apoderado de muitos estudiosos, a ponto de se levantar a interrogação, vinda de diver sas partes, sobre se a filosofia classicamente entendida não terá chegado às colunas de Hércules e não estará definitivamente concluída e acaba da, talvez para sempre. Vivemos num momento em que se inseriu na crise da filosofia uma espécie de filosofia da crise da filosofia, vale dizer, uma filosofia que teoriza o fim da filosofia. E à crise da filosofia juntou-se a crise da teologia, esta também agora, cm algumas de suas frentes mais avançadas, tão persuadida da crise dos valores filosóficos, que chega a não considerar como válido tudo quanto o pensamento cristão, ao se estruturar, extraiu da filosofia, particularmente, da filosofia antiga. Assim compreende-se que dessas correntes se proclame em alta voz a necessidade da des-helenização do cristianismo, como se o cris tianismo, ao subsumir determinadas categorias especulativas da filosofia clássica, tenha-se tornado seu prisioneiro, a ponto de se desnaturar, vindo a se tornar, de algum modo, ele mesmo helênico. Pois bem, em todas essas tendências se esconde, na realidade, um autêntico enfraquecimento do sentido e do alcance da dimensão especu lativa, isto é, da dimensão mais propriamente filosófica: teoriza-se o fim da filosofia porque se está perdendo o sentido da filosofia. A mentali dade técnico-científica habituou-nos a crer que só é válido o que é verificável, acertável, controlável pela experiência e pelo cálculo e o que é fecundo de resultados tangíveis. Ao mesmo tempo, a nova mentalida 2 PREFÁCIO PREFÁCIO 3 de política nos habituou a crer que só tem relevância aquilo que faz mudas as coisas: não a teoria, mas a práxis — diz-se — é o que conta; de nada adiasita contemplar a realidade, mas nela mergulhar ativamente. E, assim, de um lado, à filosofia se quer impor um método extraído das ciências, que a faz cair inexoravelmente no cientismo; de outro, quer-se impor à filosofia um condicionamento de tipo ativista que a faz degenerar no praxismo. Tanto num como noutro caso, pretende-se ab surdamente fazer filosofia, matando a filosofia. Esclareçamos melhor este ponto, a nosso ver determinante. Vere mos amplamente no curso da nossa exposição que o problema filosófico nasceu e se desenvolveu como tentativa de apreender e explicar o todo, ou seja, a totalidade das coisas ou, pelo menos, como problemática da totalidade. E a filosofia só permanece tal se e enquanto tenta medir-se com o todo e busca projetar para si mesma o sentido da totalidade. Ao contrário, as ciências nasceram como consideração racional restrita a partes ou a setores do real e elaboraram metodologias e técnicas de pesquisa que, moduladas em função das estruturas dessas partes, só podem valer para elas, e não podem, de modo algum, valer para o todo. A precisão dos métodos científicos supõe necessariamente restri ções de âmbitos e simplificações estruturais. Conseqüentemente, a apli cação ou a pretensão de aplicar os métodos das ciências à filosofia (isto é, ao todo, pois a filosofia é sempre e somente, como dissemos, consi deração do todo) produz o monstrum que chamamos de cientismo. E assim, quando a filosofia renuncia a contemplar para agir, renun cia, mais uma vez, a si mesma. Com efeito, o empenho prático leva-a a ser, fatalmente, mais que desinteressada visão e consideração do ver dadeiro, elaboração interessada de idéias submetidas a escopos pragmá ticos e, por conseqüência, de filosofia, ela se transforma em ideologia. Quanto às novas correntes da vanguarda teológica, deve-se salien tar que o seu erro é, em certo sentido, mais dramático. Elas arriscam-se, querendo renuncias indiscriminadamente ao lógos grego, a renun ciar ao lógos como tal. E verdade que, em parte, o pensamento cristão subsumiu conceitos estreitamente ligados à cultura helênica e, portanto, historicamente condicionados; mas é também verdade que, junto com eles, subsumiu outros que, além de serem helênicos, são conceitos ra cionais universalmente válidos, fruto da razão enquanto razão e não enquanto razão grega. E sob o processo de des-helenização da teologia se esconde um neo-irracionalismo, quando não se esconde até mesmo determinada filosofia (antitética à grega), que não é reconhecida como tal, pelo fato de ser sub-repticiamente acolhida. Ora, contra essas tendências, a presente História da filosofia antiga quer contribuir para recuperar, de um lado, o sentido do especulativo e, de outro, mostrar como algumas das categorias elaboradas pelo pensa mento grego permanecem estruturalmente indispensáveis para explicitar qualquer problemática teológica, embora, como veremos, a visão grega do mundo e da vida se mantenha essencialmente distinta da visão cristã. Com efeito, não são certamente as categorias próprias da ciência e da ideologia que podem, de algum modo, lançar luz sobre o problema do todo e menos ainda sobre o problema teológico. Em substância, hoje, muitos filósofos ou cultores da filosofia, ou os que se dizem tais, apresentam-se, para dizer com uma imagem da moda, em larga medida como personagens mascarados, isto é, inautênticos, incapazes de assumir a fundo a própria responsabilidade; personagens que não se decidem por renunciar nem à ambição filosófica nem às vantagens empiricamente mais apreciáveis e concretas da ciência e da política. E com isso não se diz nada nem contra a ciência nem contra a política. Pelo contrário, afirma-se que tanto a ciência como a política são, de longe, mais necessárias que a filosofia, mas não são alternativa à filosofia, têm outros escopos, outra natureza, outras categorias: são um momento do todo, enquanto a filosofia permanece estruturalmente liga da ao todo. Mas, para que serve filosofar, hoje, num mundo onde ciência, téc nica e política parecem dividir entre si os poderes, num mundo onde cientistas, técnicos, políticos, transformados em novos magos, movem todos os fios? O propósito, a nosso ver, continua sendo o mesmo que a filosofia teve desde a origem: desmitizar. Os antigos mitos eram os da poesia, da fantasia, da imaginação; os novos mitos são os da ciência, da técnica e das ideologias, vale dizer, os mitos do poder. E certo que se trata de uma desmitização muito mais dificil do que a antiga. Com efeito, nas origens, bastou que a filosofia contrapusesse o lógos à fantasia para destruir os mitos da poesia; ao invés, os novos mitos de hoje são construídos com a própria razão, pelo menos em grande parte. Ciência e técnica se apresentam como o triunfo da razão. 4 PREFÁCIO PREFÁCIO 5 Mas trata-se de uma razão que, uma vez perdido o sentido da totalidade, uma vez que se elevem as partes” ao lugar do “todo”, periga fazer sucumbir o sentido de si mesma. E, então, a tarefa da filosofia será, hoje, contestar o “cientismo” que inspira as ciências e a maioria dos cientistas (e que só a epistemologia contemporânea procura, em parte, redimensionar). Da matriz da filoso fia ocidental, como bem se sabe, nasceram as várias ciências ocidentais; mas, depois, muito amiúde essas ciências pretenderam tomar o lugar da mãe: não souberam ser elas mesmas, única e exclusivamente elas mes mas, ou seja, compreensão limitada (e limitante) de determinado setor da realidade, e muitas vezes quiseram estender além do seu âmbito suas categorias, de valor delimitado e determinado, à totalidade das coisas e ao sentido último da vida. E pior ainda se comportou a mentalidade politicista, a qual muitas vezes considerou a verdade ad libitum mani pulável, com a finalidade de tornar a realidade das coisas o mais plástica possível, para submetê-la aos objetivos que ela estabelecia. Ora, com isso está afirmado não só o sentido que pode ter o filo sofar hoje, que é o de recuperar o sentido do todo para poder situar as coisas nele, em seu justo lugar: mas afirmase também a urgência pre mente dessa recuperação. Como dizíamos acima, só uma recuperação do sentido do especu lativo puro pode dissolver as muitas ambigüidades das quais padece mos, e pode fazer compreender que existem ou podem existir no céu e sobre a terra (parafraseando o célebre mote shakespeariano) muito mais coisas do que as ciências, as técnicas e certas ideologias políticas per mitem crer. Nessa recuperação, podem os gregos, melhor que todos, nos guiar, eles que, por primeiro, ensinaram ao mundo como se filosofa. Portanto, demos a esta História da filosofia antiga uma entonação prevalentemen te centrada sobre os problemas, vistos no seu nascimento, desenvolvi mento e dissolução. Tentamos ao máximo dizer não o quê, mas o por quê das afirmações dos filósofos. Muito amiúde as várias histórias da filosofia limitam-se a dizernos que tal filósofo pensou isto ou aquilo e não nos dizem por que o pensou, que relação tem aquele pensamento com o que precede, que função de solicitação exerce quanto ao pensa mento que segue. Não fazendo isto, as noções permanecem desvincu ladas dos problemas que as geraram e, a partir de noções desconexas, é quase fatal a queda no nocionismo, contra o qual de tantos lados hoje justamente se polemiza. Evitamos, portanto, ao máximo questões de erudição e, em geral, as insistências sobre partes e pormenores que podem fazer perder a visão das linhas mestras. Ao invés, fornecemos sempre o documento ou a referência ao documento. Ao traçar a síntese, constantemente nos preocupamos em nunca cair no genérico ou no aproximativo: a verda deira síntese supõe acuradas análises e a sua percuciência depende sem pre da exatidão com que foram previamente conduzidas. Mas para voltar à questão teórica geral acima citada e para concluir o discurso, acrescentaremos, por honestidade para com o leitor, que a nossa posição teórica pessoal é neoclássica, não já enquanto nos reco nhecemos nas doutrinas deste ou daquele pensador clássico, mas en quanto nos parece que a dimensão metafísica da filosofia proclamada pelos clássicos, como dissemos acima, é a única a dar sentido ao filo sofar (alguns, a partir das nossas obras precedentes, acreditaram, erro neamente, que a nossa posição fosse aristotélico-tomista, enquanto as nossas simpatias dirigem-se antes a Platão, a Plotino e a Agostinho, e, em todo caso, ao modo como estes filósofos põem e resolvem os pro blemas e não às suas soluções particulares). Portanto, esta História da filosofia antiga não será uma asséptica reconstrução, que trata os antigos como peças de museu, as quais, sub mersas pela poeira dos séculos, não têm mais nada a dizer. E aos que afirmam (e hoje não são poucos) que a filosofia antiga não passa de museu e os filósofos antigos de peças desse museu, queremos recordar a esplêndida epígrafe ditada por Paul Valéry, que se lê sobre e entrada do “Museu do Homem” em Paris, a qual, com poucas palavras, toca o fundo do problema e o resolve: 11 dépend de celui qui passe que je sois tombe ou trésor que je parle ou me taise ccci ne tient qu’à toi arni n’entre pas sans désir.