MILITÂNCIA CRISTÃ NA GRANDE VITÓRIA E SUA CONTEXTUALIZAÇÃO ECLESIAL Renato C. Gama(*) Resumo Os militantes cristãos, ao falarem da sua experiência e enfrentamento no mundo à luz de uma espiritualidade específica, situam essa experiência num determinado contexto eclesial. Aqui, trato desta contextualização em dois blocos: no primeiro, procuro caracterizar brevemente a época em que eles atuaram numa Igreja que buscava maior identificação com os empobrecidos e excluídos, no rastro do aggiornamento conciliar, vis-à-vis ao fortalecimento da Teologia da Libertação. No último, através das suas histórias de vida, os entrevistados falam (sobre) e avaliam seu próprio contexto. Palavras-chave: Militância cristã, CEBs, Igreja de Vitória (ES), espiritualidade. Abstract When the Christian militants speak of their experience and confrontation in the world, from a specific spirituality, they have a certain eclesial context. In this article I present this idea in two sections: in the first section, I look for a briefly characterization of the time the Christian militants lived. At that time the Church searched for more identification with the poor and excluding people, in the same away of the counciliar aggiornamento, vis-à-vis with the Theology of the Liberation’s strengthening. In the last section, through their life’s histories, the Christian militants speak and evaluate their own life context. Key-words — Christian militancy, ecclesial communities, Church of Vitória (ES), spirituality. 1 Apresentação O presente escrito prepara um segundo, que deverá ser publicado no próximo número da Redes. O objetivo de ambos é apresentar ao leitor algumas características do que se poderia chamar de uma espiritualidade da militância. Ou seja, de uma espiritualidade que militantes cristãos (de tradição católica, atuando nos vários espaços da Grande Vitória, ES) desenvolvem em seu cotidiano, como “suporte” transcendental para os grandes desafios postos em sua prática e missão no mundo. Como o próprio título indica, neste artigo procurei contextualizar os entrevistados em seu ambiente eclesial. Inicialmente, através de uma rápida caracterização do trajeto efetuado pela Igreja particular de Vitória (ES), focando, sobretudo, o que chamo de auge do movimento de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que surgiu no rastro do processo de aggiornamento promovido pelo Concílio Vaticano II. Seria quase desnecessário chamar a (*) (PUC-SP). Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 2 atenção do leitor para o fato de que normalmente os militantes cristãos vêm de uma forte experiência cebiana. Depois, nos itens 2 e 3, deixo que os próprios militantes falem do seu contexto. Para a sua elaboração, utilizei a metodologia da história de vida ou história oral, que consiste basicamente em escolher pessoas que melhor representam o fenômeno a ser estudado. A partir daí, parte-se para campo com um roteiro de entrevista, mas sempre deixando que a pessoa fale o mais livremente possível, só intervindo quando estritamente necessário. Com as entrevistas devidamente registradas em fitas de áudio, parte-se então para a redação do copião, texto que procura respeitar ao máximo o pensamento do entrevistado. Por fim, tais textos servirão como fonte primária de informações e interpretações sobre o objeto de estudo. Os dois questionários constantes nas “Referências” serviram como pré-teste e, mesmo assim, foram utilizados. Buscando preservar o anonimato dos entrevistados, utilizei nomes fictícios. 2 As CEBs na Arquidiocese de Vitória, Espírito Santo1 A Arquidiocese de Vitória foi instituída em 1958 pelo Papa Pio XII. D. João Batista da Motta e Albuquerque foi nomeado arcebispo de Vitória aos 26 de maio de 1958. Portanto, o nascimento e o desenvolvimento desta Igreja particular confundem-se com parte da história de D. João, cujo ministério episcopal teve como principais características: zelo no campo da evangelização, renovação litúrgica e formação do clero / laicato. Nos primeiros anos de seu pastoreio, D. João dedicou-se especialmente ao homem do campo. Tal enfoque tem uma razão: da metade dos anos 50 até meados da década seguinte, o estado praticamente ainda não havia conhecido qualquer fenômeno na direção de uma urbanização acelerada como conseqüência do crescimento econômico, sobretudo no que diz respeito a um processo de industrialização tardio, que só teve início com os “grandes projetos de impacto econômico”, como eram conhecidos na época; isto a partir de meados da década de 70. Mesmo que ainda se visse diante de um quadro de preponderância das atividades econômicas que se davam no âmbito rural frente àquelas que se reproduziam no urbano, D. João já se preocupava com o operariado urbano, dando ênfase à Juventude Operária Católica (JOC). Sensível à problemática da justiça, bem como à situação dos empobrecidos, o primeiro arcebispo de Vitória preparava terreno para os ventos conciliares que começariam a soprar a partir da segunda metade dos anos 60. Em dezembro de 1965 D. Luís Gonzaga Fernandes era consagrado seu bispo auxiliar, que se estabeleceria no estado no início de 1966, com a incumbência de aplicar em 1 Esta breve caracterização baseia-se em minha experiência empírica (além dos documentos citados), pois no período 1975-1980 vivi intensamente as várias dimensões do que se pode chamar de um militante cristão leigo. Objetivando uma maior consistência, o texto foi passado, para crítica, a algumas pessoas de referência que também viveram aquele processo. 3 Vitória o Plano de Pastoral de Conjunto. Saindo a campo imediatamente, D. Luís passa a liderar um intenso trabalho de mentalização conciliar, que se dá, sobretudo no interior, através dos “concilinhos”. Assim, as comunidades nascentes vão introjetando os principais valores do aggiornamento conciliar. Também nesta época, a Igreja de Vitória inicia sua organização pastoral: secretariado, coordenação de pastoral, divisão em zonais, criação do Conselho Presbiteral, além da fundação do Instituto de Pastoral da Arquidiocese de Vitória (Ipav). Portanto, do final da década de 60 ao início dos anos 70 surgem as primeiras Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Uma semente de vital importância para este nascimento foi a organização dos círculos bíblicos, que eram constituídos de um pequeno número de pessoas — normalmente vizinhos —, para, a partir da leitura e reflexão bíblicas, começarem a perceber a realidade à sua volta, realidade esta vista a partir da ótica da fé, iluminada pela Palavra revelada, e, através da dinâmica ligação fé e vida, os cristãos já eram convidados a transformar seu mundo em vista de um outro, mais justo, fraterno e humano, cujo combustível mais importante era a utopia evangélica. Neste momento inicial do movimento de CEBs, duas idéias-força estavam presentes: a visão de Igreja como Povo de Deus e a valorização do protagonismo laico na Igreja e no mundo, tudo no contexto da Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano de Medellín, Colômbia, que se realizou em 1968. Os bispos reunidos naquela cidade já apontavam para uma grande preocupação com as condições socioeconômicas do povo, visando à sua transformação. Como conseqüência de uma integração pastoral crescente, institui-se, em 1973, o Conselho Pastoral da Arquidiocese de Vitória (Copav). Mas foi a partir de 1974 que vários segmentos pastorais da Arquidiocese passaram a clamar por um plano arquidiocesano de pastoral. Logo depois, mesmo que não tenha surgido um plano propriamente dito, veio à luz o importante documento Pistas Pastorais, que tinha como objetivo geral: “Ajudar o homem a ser cada vez mais homem na comunhão com Deus e na vivência fraterna com os outros, colaborando na construção de uma sociedade nova e do homem novo”. Outros elementos eram destacados: a) “Opção pelo povo”; b) “Pequenas Comunidades do Povo de Deus”; c) “Carismas e funções do Povo de Deus”; d) “Pedagogia pastoral”. As Pistas Pastorais foram traduzidas em linguagem popular, gerando, em 1975, o documento A Igreja que a gente quer 2, que teve ampla divulgação não somente em âmbito arquidiocesano, mas também nacional. No bojo desta intensa dinâmica pastoral (renovadora), são realizados em Vitória os dois primeiros encontros intereclesiais (janeiro de 1975 e julho de 1976). Contrastando com o início desta caminhada fortemente cebiana, já na primeira metade dos anos 70, mesmo que ainda de forma frágil e embrionária, aparecem os Os itens do documento — Uma Igreja povo de Deus. Uma Igreja popular. Uma Igreja minoria. Uma Igreja comunidade. Uma Igreja cristocêntrica. Uma Igreja dos leigos. Uma Igreja personalizante. Uma Igreja carismática. Uma Igreja pluralista. Uma Igreja particular. Uma Igreja pobre. Uma Igreja peregrina. Uma Igreja missionária. Uma Igreja ecumênica. Uma Igreja dinâmica. Uma Igreja encarnada. Uma Igreja vida. Uma Igreja serviço. Uma Igreja fermento do Reino de Deus. Uma Igreja profética. Uma Igreja libertadora. 2 4 primeiros movimentos apostólicos, destacando-se o Movimento dos Cursilhos de Cristandade (MCC) e a Renovação Carismática Católica (RCC). A partir de 1976 iniciam-se as assembléias arquidiocesanas, que vão, cada vez mais, ganhando corpo na nova dinâmica pastoral da Igreja particular. Tais assembléias, que se realizavam a cada dois anos, traziam uma grande novidade: a participação leiga junto com o clero local e religiosos(as). A cada ano, mais representatividade ganhava o segmento leigo da Arquidiocese. Na primeira metade dos anos 80 dá-se início a um novo processo na Arquidiocese. Em setembro de 1981, D. Luís G. Fernandes3 é transferido para Campina Grande (PB), onde passa a exercer a função de bispo diocesano, e em abril de 1984 a Arquidiocese perde seu primeiro e grande pastor, D. João Batista da M. e Albuquerque. Com o falecimento do prelado, D. Silvestre L. Scandian passa a comandar os destinos desta Igreja. A saída de D. Luís significou um grande impacto para a linha de CEBs em Vitória. Com ele, vários dos que eram colaboradores da Igreja particular (padres, religiosos, religiosas e leigos) também deixaram Vitória. Assim, houve uma espécie de “vazio”, que parecia difícil ou praticamente impossível de ser preenchido, tendo em vista que D. João e D. Luís, mais do que bispos, eram pessoas emblemáticas desta linha pastoral nutrida teoricamente pela Teologia da Libertação (TdL) e viabilizada nas CEBs. Penso que o auge das CEBs tenha acontecido em Vitória no período 1975-1982. Mas não seria equivocado estender o período até 1985, não mais como “auge”, mas como forte presença desta linha pastoral.4 D. Silvestre L. Scandian, o novo arcebispo, depois de se inteirar da situação concreta da Igreja que assumia, percebeu claramente que havia muitos problemas a serem Duarte {1984, p. 38-43}, no quarto capítulo de seu livro, apresenta trechos de uma entrevista realizada com D. Luís, quando este já era bispo diocesano de Campina Grande. A seguir, os principais pontos do que ele expressa naquele momento: o surgimento das CEBs em Vitória deu-se muito mais “por obra e graça do Espírito Santo” {p. 38} do que propriamente por influência dos ventos renovadores do Concílio Vaticano II. Os treinamentos, “concilinhos”, normalmente com duração de uma semana, foram fundamentais para aquela (nova) mentalização conciliar. Tais encontros visavam especialmente à dimensão do serviço na Igreja. D. Luís perguntava-se: “Até que ponto nossa Igreja está a serviço do povo?” {ibidem}. Para ele, a expressão comunhão, tão cara ao Concílio, significava, antes de mais nada, o protagonismo dos leigos. Também a Palavra revelada era um grande destaque, pois os pequenos grupos organizados em círculos bíblicos “devolveram a Bíblia ao povo” {p. 40}. As pequenas capelas do interior foram fundamentais para a gênese das primeiras comunidades de base, partindo estas sempre de um núcleo religioso, e não político (a perspectiva política viria depois). O desenvolvimento interno das CEBs levava seus participantes “a se estruturar em equipes de serviço (catequese, liturgia, cantos)” {p. 43}. 3 Tenho clareza dos problemas metodológicos que envolvem qualquer periodização histórica. Ainda mais quando o discurso (a análise) não está embasado em farto material documental da época, bem como de depoimentos de outras pessoas que viveram o mesmo processo. Portanto, tal periodização pode ser questionada, sendo utilizada apenas como indicativo temporal básico. 4 5 enfrentados. Seus primeiros anos de episcopado foram marcados pela extrema prudência e cuidado, procurando ouvir as partes envolvidas. Outro fator importante para tal procedimento foi o desenvolvimento, na Arquidiocese, da Renovação Carismática Católica5, além de outros movimentos, na primeira metade da década de 80. Entretanto, por mais significativo (e explosivo) que tenha sido o movimento de CEBs, ele trazia em seu bojo uma série de contradições. No que se refere ao clero local, havia uma nítida cisão: aqueles (padres) que apoiavam a linha pastoral fundada no movimento de CEBs e os que a rejeitavam. Estes, por estarem “remando contra a maré”, eram naturalmente excluídos do processo. Do ponto de vista da hierarquia (progressista), mesmo havendo uma preocupação de restaurar o que estava cindido, de unir o que estava desunido, de reintegrar o que estava fragmentado, não houve muito sucesso em tal empresa, surgindo daí muitos problemas emocionais e rejeições de ambos os lados. Diante, portanto, de um clero fragmentado, cumpriu a D. João Batista, com seu carisma especial, a tarefa de tentar aparar as arestas — em minha avaliação, por maior que tenha sido seu empenho, os problemas não eram resolvidos; pelo contrário, agudizavam-se. Havia também um vazio no campo da espiritualidade; a questão era tão contundente, que alguns, os mais sensíveis, se perguntavam: “Existe uma espiritualidade genuína das CEBs?”6 Mesmo com o forte discurso — uma Igreja que nasce do povo —, percebia-se, entretanto, que as CEBs ainda reuniam uma minoria do povo católico, uma elite; no que diz respeito às lideranças e dirigentes, uma elite da elite. Em decorrência, a massa católica ficava de fora de tais movimentos renovadores (eram comuns, na época, questionamentos do tipo: “O que fazer com a massa? e a pastoral de massas? como fazer ressurgir grandes celebrações de massa?...”). Por outro lado, mesmo que o discurso das lideranças fosse coerente com a consciência crítica que possuíam, na postura de uma fé encarnada, poucos fiéis participavam efetivamente dos movimentos sociais. 5 Implantada oficialmente em 1977. Depois que D. Luís Fernandes já havia assumido sua nova missão em Campina Grande (PB), numa de suas vindas a Vitória foi organizado um encontro do ex-bispo-auxiliar de Vitória com um grupo de leigos (35-40 pessoas) que viveram intensamente aquele processo de surgimento e desenvolvimento das CEBs. Depois de uma fala inicial sua, abriu-se para o debate. Fiz o seguinte questionamento: “D. Luís, o Sr. não acha que sempre houve um grave problema nas CEBs relativo ao desenvolvimento e aprofundamento da espiritualidade?” Ele negou a existência desse problema e fez um discurso afirmando o contrário (fato ocorrido em 1988, no Centro de Treinamento D. João Batista, Ponta Formosa, Vitória, ES). Entretanto, é importante lembrar que esta foi uma tecla na qual não somente D. Luís, mas também padres, religiosos e religiosas que aqui estavam sempre bateram. Há indicativos de que no início do processo as pessoas de frente buscavam mais os caminhos da espiritualidade do que propriamente os do engajamento sociopolítico. Depois, caiu-se numa frenética busca das questões sociais, políticas e ideológicas, que foram substituindo a busca inicial. 6 6 Quanto à relação hierarquia–CEBs (leia-se principalmente padres–CEBs), apesar do forte processo de laicização, normalmente as comunidades dependiam significativamente do ministro ordenado — constatações da época: “Os cultos são bons; mas bom mesmo é quando o padre vem celebrar a missa: a capela fica abarrotada de gente!” Ou ainda: “O pessoal decidiu [referindo-se ao conselho da comunidade], mas é o padre quem dará a última palavra [...]”. No campo litúrgico, tentou-se uma grande “amarração”, cujo signo máximo era o boletim Caminhada. Muitos faziam afirmativas como esta: “Quem é verdadeiramente de CEB tem que usar o Caminhada!” Quando, em algumas paróquias, partia-se para o uso de O Domingo (semanário litúrgico-catequético publicado na época pelas Edições Paulinas), tais segmentos eclesiais eram criticados veementemente. Pode-se deduzir daí que esta camisade-força acabou por impedir uma maior liberdade no interior das comunidades. Criatividade que não passava apenas pela esfera do litúrgico, mas também no que diz respeito ao campo simbólico em geral, em formas alternativas de expressão da fé, etc. Quanto ao processo de hierarquização no interior das CEBs, constatavam-se muitos casos em que os principais dirigentes — ministros da eucaristia, do culto, do batismo, do matrimônio, membros do conselho comunitário, as várias equipes de serviço — detinham em suas mãos um certo poder, defendendo, às vezes, seus privilégios de unhas e dentes, repetindo, assim, a antiga relação de subordinação padres / leigos. No campo da organização pastoral, havia sérios problemas de articulação entre as CEBs em vista da formação dos conselhos de área, dos setores pastorais e, por fim, das representações nas assembléias arquidiocesanas. Como se verá adiante — e este é um ponto crucial —, a maior parte das práticas espirituais que foram trazidas pelas pessoas do interior quando “invadiram” a metrópole em formação, era vista com muito preconceito tanto pelo clero mais engajado, quanto pelos leigos das CEBs; significavam, em última instância, “práticas ultrapassadas e alienadas”. Por fim, com a instalação da RCC no espaço arquidiocesano, surgiu e começou a avolumar-se a tensão CEBs versus RCC, presente na maior parte das Igrejas particulares do Brasil e existente até hoje na Arquidiocese de Vitória. D. Silvestre inaugurou um novo momento pastoral na Arquidiocese, com as seguintes características mais marcantes: sem tentar propriamente destruir o que havia sido construído nos últimos 10-15 anos — como aconteceu em várias dioceses brasileiras, sendo um dos exemplos mais conhecidos o da Arquidiocese de Olinda–Recife (PE) —, o arcebispo permitiu que vicejassem novos movimentos e grupos de Igreja, além da RCC. Abandonava-se uma linha fundada quase que exclusivamente nas CEBs, assumindo uma perspectiva pastoral mais aberta, multifacetada. O que se comentava na época era mais ou menos isso: “Cada pessoa, cada grupo, cada movimento pode fazer o que bem entender; mas a última palavra é sempre do arcebispo.” Por outro lado, demonstrando perspicácia eclesiástica e afinação em relação aos novos tempos, D. Silvestre buscou promover grandes movimentos de massa: a passagem 7 de João Paulo II por Vitória, quando da realização do 13.º Congresso Eucarístico Nacional, em julho de 1996, presidindo o Bispo de Roma uma celebração eucarística que reuniu milhares de pessoas; além das celebrações massivas anuais; abertura da Campanha da Fraternidade em ginásio coberto; participação no Grito dos Excluídos por ocasião da festa cívica de 7 de setembro; passeata Contra a Violência e a Favor da Vida em 1999, reunindo aproximadamente 6 mil pessoas em dia chuvoso; Carnaval com Cristo (celebração eucarística final), promovido pela RCC. Sempre que havia um grande evento da Renovação, D. Silvestre se empenhava em presidir sua celebração de encerramento. Apoiou, igualmente, os grandes congressos estaduais de CEBs que são realizados periodicamente, com centenas de representantes. * * * * * Das seis pessoas que participaram da pesquisa, quatro fazem referência à Comunidade de Taizé, que esteve presente na Arquidiocese de Vitória nos anos 70. Como se verá nos relatos, os que formavam aquela comunidade — principalmente por suas liturgias e atividades — marcaram significativamente os militantes, que eram jovens naquela época. Daí a necessidade de uma breve caracterização da espiritualidade desenvolvida pela Comunidade (ecumênica internacional) de Taizé.7 A espiritualidade de Taizé, com toda sua simplicidade, possui as seguintes características fundamentais: a) Os cânticos têm uma importância crucial em suas liturgias. Montados em frases melódicas simples (diatônicas), normalmente são curtos e repetitivos, expressando “uma realidade essencial, rapidamente captada pela inteligência, que pouco a pouco é interiorizada pela totalidade da pessoa”. b) Segundo Irmão Roger, seu fundador, são realidades fundamentais da vida interior: “a compaixão, a simplicidade de coração e de vida, a confiança humilde em Deus, a alegria serena [...].” Igualmente, as dimensões do perdão e da alegria no Espírito Santo. c) A oração coletiva, sempre apoiada nos cânticos, que ajuda o desenvolvimento da oração individual. d) Por outro lado, a busca do “silêncio do coração”, que é a tentativa do abandono das palavras no processo orante. A espera da contemplação pode ser ajudada pela música de fundo, tanto nas orações coletivas, quando na solidão do quarto. e) Uma grande abertura à mística ortodoxa, sobretudo à contemplação através dos ícones. f) Ainda na época do “socialismo real”, quando os irmãos fizeram várias incursões à antiga Europa Oriental, mantiveram contato com a mística e espiritualidade ortodoxas. A partir daí, começaram a utilizar os ícones. Na igreja da Reconciliação, em Taizé, há um grande ícone representando a Virgem Maria com o Menino, que foi bento pelo Metropolita Nikodim de São Petersburgo em 1962, quando fazia uma visita à sede da comunidade. Qual o significado dos ícones na espiritualidade de Taizé? [...] participam na beleza da oração. Eles são como janelas que se abrem às realidades do Reino de Deus e as tornam presentes em nossa oração sobre a terra. São um apelo à nossa própria transfiguração. Apesar de o ícone ser uma imagem, não é uma ilustração pura, nem 7 Disponível em <http://www.taize.fr> e <http://www.jornada.wxs.org/>, além do documento Taizé..., 1991. 8 decoração. É sinal da encarnação, é presença que oferece aos olhos a mensagem espiritual que a Palavra dirige aos ouvidos.8 g) Considerando que um simples desejo de Deus já é o início do desenvolvimento de uma certa espiritualidade (leia-se “fé”)9, normalmente a vida interior desenvolve-se lentamente, passo a passo; ou seja, a vida de fé (de oração) é construída por etapas. h) As “horas joaninas” consistem em reservar uma hora durante o dia para ler em silêncio o texto bíblico sugerido, acompanhado de um breve comentário e de algumas perguntas. Em seguida, formam-se pequenos grupos de três a dez pessoas para uma breve partilha do que cada um descobriu, integrando eventualmente um tempo de oração. i) Pressupondo a fusão do processo orante com o sentimento e prática concreta da solidariedade, as liturgias na Comunidade, além do seu despojamento, possuem outros elementos importantes. Citem-se entre estes o uso das velas e a cuidadosa arrumação do altar, sempre com o ícone de Jesus crucificado em seu centro, além da presença das flores e outros símbolos, dependendo do que se quer celebrar. Os irmãos estão presentes no Brasil desde 1966. Depois de uma passagem pelo Nordeste, vieram para Vitória em meados da década de 70 e em 1978 partiram para Alagoinhas, BA, pequena cidade situada a 109 km de Salvador. 3 Os militantes falam do seu contexto 10 3.1 Antecedentes religiosos Para uma das entrevistadas, na estrutura básica da personalidade humana já está presente a dimensão do Transcendental; esta se vai transformando, depois, numa forma de espiritualidade que pode ser mais viva, mais forte ou não, dependendo da sensibilidade de cada um. Afirmando ser “uma pessoa naturalmente religiosa”, irá expressar a memória das suas recordações infantis, já tocadas por esta forte dimensão do Sagrado: “O monge russo Andrei Rublev, num período de grande sofrimento para a Rússia, transformou o ícone da «hospitalidade de Abraão» para fazer dele o célebre ícone da Trindade. Nesta imagem, que mostra os três mensageiros celestes à volta de uma mesa, o espaço da frente está aberto para a pessoa que contempla o ícone. Assim, um relato que fala de pessoas humanas que acolhem estrangeiros, e, por causa disso, acolhem Deus sem o saber (cf. Hb 13,2), torna-se uma meditação sobre Deus que quer acolher as pessoas, convidando-as a entrar em sua comunhão.” 8 “Sempre estavas presente e, no entanto, eu não te procurava; depois de descobrir-te, facilmente te esqueço. Mas tu, ó Cristo, continuas a me amar. Por isso, subindo do fundo do meu ser, um fogo ardia em mim” {IRMÃO ROGER. Carta das Fontes. Taizé, 1991, p. 26}. 9 Neste bloco apresento as falas dos entrevistados praticamente em sua originalidade. Com a preocupação da fidelidade às idéias apresentadas, apenas tentei lapidar o texto. Mesmo assim, é natural que já haja aqui uma primeira “filtragem” dos relatos. 10 9 Relembro fases da minha catequese infantil — fiz a primeira comunhão com seis anos —, mas me lembro de grilos, insights que eu já tinha, mesmo naquele grande templo de C., coisas que me tocavam, cenas que eu via na igreja, das pessoas pobres, da maneira como as pessoas rezavam, do que o padre falava, do Sermão das Sete Palavras, aquilo ficava assim, uma inquietude, uma forma de lidar com isso que já me encantava. Quer dizer, a coisa da espiritualidade, da mística, do religioso (sempre) me encantou muito {RITA, 2001, p. 2}.11 Todos os militantes, sem exceção, forjaram sua fé a partir dos valores religiosos clássicos, tradicionais e devocionais. A seguir, apresentamos os pontos mais significativos. A participação nos sacramentos era muito importante, especialmente a realização da primeira comunhão, da crisma e as celebrações eucarísticas dominicais.12 Especificamente sobre as missas dominicais, havia uma dificuldade extra, quando ainda no período préconciliar, pois os fiéis não entendiam praticamente nada do que dizia o celebrante (em latim), além deste ficar de costas para o povo. Se isto acontecia com pessoas que tiveram a oportunidade de ter acesso à educação formal, muito mais difícil ainda para os fiéis que, como Lindaura, não tiveram esse privilégio {cf. p. 6}. Assim, apelava-se naturalmente para as orações vocais repetitivas, como o pai-nosso, a ave-maria e a salve-rainha. No caso da citada militante, que tinha uma ascendência indígena, para as crianças eram passadas formas de oração que vinham dos ancestrais mais remotos {cf. ibidem: (minha avó) “nos ensinou a rezar e tinha muita fé. Enrolava uma linha no nosso pescoço com uma oração para espantar o mal, e todos acreditavam muito; tínhamos muita fé naquilo”}.13 Depois de, na infância, participarem do catecismo (alguns militantes conheceram o Primeiro catecismo da doutrina cristã), muitos tornaram-se, na adolescência, formadores em equipes paroquiais de catequese.14 Tendo em vista que as entrevistas foram realizadas em 2001, para que o texto não fique repetitivo, as próximas citações serão feitas apenas com o nome (fictício) da pessoa, seguido da página do documento, separada por vírgula. As notas serão feitas sempre entre chaves { }. 11 Os militantes que vinham do interior, inclusive da zona rural de estados vizinhos, muitas vezes passavam por dificuldades extremas, quando buscavam um espaço para celebrar sua fé, como nos relata Lindaura {p. 4}: “A capela ficava a duas léguas dali, e íamos andando até a igrejinha na outra fazenda. Essa missa era de três em três meses, e andávamos essa distância. Todo povo fazia aquela festa! Tínhamos que passar por dentro de uma mata.” 12 Continua Lindaura {p. 7}: “Ela nos ensinava dizendo que era [...] jaculatória. Depois aprendemos a rezar o terço, a salve-rainha, e mais [...] Ela também tinha a mania de pedir a bênção para meu pai, bênção para minha mãe, e, depois que dava a bênção, tínhamos que repetir três vezes a bênção ao pai, incluindo o Pai do céu. Todas as orações eram repetidas três vezes. A oração feita na hora de deitar era assim: ‘Nesta casa tem quatro cantos, / Nesses quatro cantos tem quatro santos, / São Pedro, São Paulo, São João Batista seja a minha vista. / Nesta casa tem quatro cantos, / Nesses quatro cantos tem quatro santos, / São Pedro, São Paulo, São João Batista seja a minha vista (mais duas vezes).’ Essa é a jaculatória que fazíamos depois da reza do terço, dos pedidos e agradecimentos [...].” 13 Carlos {p. 1} faz um excelente resumo de sua experiência de Deus nessas duas fases fundamentais da vida, infância e adolescência, apontando para sua relação com Ele, e que concepção tinha desse Deus, além da onipresença do pecado enquanto ingrediente necessário na 14 10 No que diz respeito a uma espiritualidade mariana, além das procissões e ladainhas (sobretudo a de Nossa Senhora), destacava-se a tradição da constante reza do terço.15 Eram comuns as visitas ao Convento da Penha, além do envolvimento com a Congregação Mariana e a Legião de Maria. Uma outra importante marca era a participação fervorosa nas liturgias da Semana Santa. Fernando recorda a oração (“muita reza”) de parentes e amigos, que pediam a Deus a cura de um grave problema de saúde que se abateu sobre ele em sua adolescência {cf. p. 3}. [Um dos entrevistados {HENRIQUE, p. 1} passou pelo seminário, entrando na instituição ainda muito jovem, e lá já teve a experiência de retiros espirituais, mas a partir de um modelo extremamente superficial e sem qualquer tipo de acompanhamento mais sistemático, no que diz respeito ao aprofundamento da espiritualidade {p. 4}. Assim, “não havia evolução, acompanhamento, como ainda não há hoje” {ibidem}. Isso trouxe como conseqüência uma espécie de “atrofiamento” da fé: “Ficamos com a religião daquele tamanho, como foi ensinada” {ibidem}. Do ponto de vista de um engajamento socioeclesial, segundo o mesmo militante, a experiência no seminário já fazia com que a pessoa assumisse uma persona diferente, levando-a à ação. Mas é importante frisar que isso acontecia em meio a tensões e conflitos {“traumas”, cf. ibidem}.]16 formação das crianças e jovens: “Na infância, minha oração consistia em repetir as fórmulas do painosso, ave-maria e salve-rainha. Minha visão era de um Deus mau, que castigava se eu errasse. Na minha adolescência continuaram as fórmulas repetidas, e Deus já era visto por mim como um amigo, muito mais meu do que de outros. Deus era alguém presente que me entendia, me aceitava do jeito que eu era, e não me exigia muito, apenas que eu não pecasse (sendo que pecar, na minha visão, consistia em não desobedecer a meus pais, não brigar, etc.).” Esta era — e ainda é — uma forte tradição na Igreja que remonta à Idade Média {cf. GABRIEL, 1976, p. 12-22}. Um dos entrevistados revela: “[...] Aos dez anos [...] comecei a ver as coisas de forma mais mariana. Rezava o terço todos os dias em pé [...]” {FERNANDO, p. 1}. Por ser litânica, a oração não levava à reflexão {cf. idem, p. 3}. O mesmo era vivenciado por Cilene {p. 1} ainda com mais intensidade: “[...] durante dois anos rezei o terço três vezes ao dia.” A mesma militante, já na adolescência, acaba abandonando a tradição da infância, devido ao racionalismo presente nas atividades de CEBs: “[...] Nessa época questionava muito a oração do terço por considerá-la de repetição, monótona e individualista” {ibidem}. 15 Ainda segundo este militante {ibidem, p. 2}, os jovens tinham uma prática sistemática de oração vocal, três vezes ao dia, “[...] relendo o breviário, que era em latim, e a gente nem sabia o que estava fazendo”. Entretanto, naquele passado remoto, já se plantava a semente de uma fé crítica e engajada. Neste sentido, pode-se afirmar que Henrique viveu um privilégio não partilhado pelos demais militantes, contemporâneos dele. Assim relata o processo que se deu no seminário franciscano de Petrópolis, RJ {ibidem}: “Quando tive a oportunidade de pegar um pouquinho, não foi muito, algumas aulas com Leonardo Boff, que tinha chegado da Alemanha naquele ano. Aquelas aulas dele eram muito concorridas (inclusive eram dadas numa sala maior, o Mangueirão, onde cabia todo mundo). A gente corria para assistir às aulas porque estavam fora de qualquer script do nosso currículo. Ele empolgava a turma, falava dos desafios, dos confrontos com seus superiores da Europa (questão da tese). A gente passou a absorver mais o que ele estava ensinando, porque ele fazia alguns questionamentos muito sérios. Quando começou a traduzir aquela apostila, Jesus Cristo Libertador, ele foi aprofundando mais a espiritualidade dos seminaristas dali. Foi desafiando o 16 11 Mais tarde, quando começam a ser incluídos no processo de organização pastoral da Arquidiocese, sentem-se atraídos pela reflexão bíblica através da criação e acompanhamento de círculos bíblicos, visitando as pessoas em suas casas. Praticamente todos os entrevistados foram influenciados pelo rico devocionário presente na alma católica, sobretudo as pessoas interioranas, mesmo que depois este conteúdo fosse racionalizado por uma fé mais “teologizada”. Referindo-se ao período da adolescência, Fernando {p. 3-7} relata alguns pontos que mostram claramente a visão que o jovem católico tinha naquele momento — primeira metade dos anos 70: uma tia lhe trouxe, certa vez, um medicamento preparado por um espírita e ele “dizia que não ia tomar remédio de feiticeiro [...]” {p. 3}. Esta passagem de sua vida indica claramente o preconceito que havia em relação a qualquer outra prática religiosa que não fosse a católica. Nos momentos em que ficava só, acamado, na tentativa de restabelecimento, suas orações eram e ao mesmo tempo não eram perpassadas por qualquer emoção — há aqui uma contradição em sua fala.17 Naquele período de recolhimento forçado, ao longo de três anos e meio, seu grande amigo era o rádio, que servia de elo com o mundo exterior. Ouvia, sobretudo, transmissões religiosas: ora do Convento da Penha, às vezes de Aparecida. Como o tempo era longo — “[...] tinha todo o tempo do mundo [...]” {p. 4} —, aprendeu não somente a ouvir o rádio, mas também as pessoas com suas características próprias e histórias das mais diversificadas. Fernando afirma que aquele tempo foi extremamente fecundo para este aprendizado: acolher o outro, ouvindo-o. Do ponto de vista do exercício da sexualidade, a compreensão daquela época era a mais tradicional possível, em que o pecado estava presente em tudo: “masturbação era o pecado mais grave do mundo [...]” {p. 5}. Há, entretanto, um fato na vida de Fernando que é profundamente marcante. Assim nos relata {p. 7}: Num dado dia, após a reflexão [feita pelo padre que atuava em sua paróquia], ele chamou as pessoas para dar testemunho e eu comecei a falar. Foi um dia marcante. Falei muito, mas não me lembro de quê. Dei um testemunho de vida ali. Minha mãe chorou muito nesse dia, provavelmente percebendo que eu tinha ressuscitado mesmo naquela hora, depois de tantos anos de agonia em casa. Ela, como sempre muito religiosa, empolgada pelo fato de eu estar voltando à Igreja. Esse cursinho de uma semana terminou com a tarefa posterior de círculos bíblicos. Nessa altura, já tinha os livrinhos de Carlos Mesters. Então virei pessoal a se engajar, como eles viam o Cristo. Com ele ninguém podia ficar em cima do muro. Não havia muro para ele. Ou é ou deixa de ser logo, o que foi muito importante para nós.” Minha interpretação: a emoção que sentia devia estar ligada ao seu estado especial, prostrado numa cama, impedido de andar e de viver uma vida normal; talvez um sentimento de impotência diante da vida. Quanto à ausência da emoção, o próprio militante haverá de se referir a ela ao longo de todo o seu relato. Portanto, tendo havido qualquer densidade emocional naquela sua experiência do passado, tal situação nada ou pouco teve a ver com qualquer experiência espiritual mais forte. 17 12 coordenador de um dos dez círculos bíblicos. Estava com 23 anos, mas, na verdade, sentiame com a idade de meu irmão, cinco anos mais novo. Aquele foi um momento profundamente simbólico de sua existência, “percebendo que havia ressuscitado” {ibidem}, no sentido de colocar sua vida a serviço dos outros. A partir daí, nunca mais parou: seu processo de engajamento socioeclesial e político deu-se num crescendo até os dias de hoje. Como se verá à frente, esta forma de compromisso é uma condição sine qua non para a vivência da sua fé, além do desenvolvimento da sua espiritualidade. Para um leigo que vinha de uma realidade eclesial interiorana, ainda fortemente marcada pelos valores da cristandade, a participação laica na vida da comunidade constituía algo quase desconcertante; o impossível começava agora a se materializar na vida das pessoas. Rita {p. 5} refere-se a esta descoberta: “Aquilo para mim foi um negócio! Pensei: ‘Gente, o que é isso? Quer dizer que um leigo pode participar da Igreja?’” Este fato ocorreu em setembro de 1972. A inserção no grupo de jovens da paróquia também significou uma importante marca na adolescência dos militantes, pois através dela a pessoa tinha a oportunidade de sair (começar a questionar) dos limitados horizontes familiares, jogando-se no oceano de novas perspectivas, novos relacionamentos, novo espaço de socialização, novas experiências litúrgicas e de expressão da fé.18 Ainda referindo-se ao conteúdo da sua marcante homilia, Rita o classifica como “bem emocional”, na base do “Deus, Deus nos ama!” {p. 3} Mais que tudo, um novo mundo se apresentava para o jovem que se envolvia com o grupo, pois naquele momento — segunda metade dos anos 60, início dos 70 — o processo de aggiornamento conciliar já estava em curso. Rita assim se refere a este novo vento que batia à porta da sua compreensão da fé: “Quando começou aquele negócio da renovação da Igreja, lembro-me que foi uma coisa fantástica no interior” (grifo meu); “lembrome muito bem disso” {RITA, p. 2}. Portanto, é curioso notar que o velho (na linha da religiosidade popular, fortemente fundada em expressões devocionais da fé) convivia com o novo (este ainda nascendo, como um embrião, pois naquele momento os fiéis ainda não conseguiam identificá-lo como uma rede complexa de fenômenos, que ficará mais clara nos anos que se seguirão). A Comunidade de Taizé teve um papel significativo na formação desses militantes de primeira hora {cf. RITA, p. 14}. Ela é citada por quatro militantes. Tendo montado sua casa num dos bairros de classe média baixa de Vitória, os irmãos de Taizé atingiram aquelas pessoas porque na época eram jovens, e um dos carismas da comunidade sempre foi o de trabalhar com a juventude de todo o mundo. Além do mais, a força testemunhal de um “Mas começou a ter uma tal de missa dos jovens no sábado à noite – quase toda a cidade do interior tinha nessa época – e a novidade era muito mais na liturgia, porque aí se cantava na missa, cantavam-se os hinos do Padre Zezinho, assim por diante. Lembro-me disso como uma coisa marcante: fiz uma homilia, num sábado à noite, e foi um deslumbramento! Imagine, corria o ano de 1970! Suponho que, como era a missa do sábado, dos jovens, apesar de eu ter uma ligação, não era propriamente do grupo” {RITA, p. 3}. 18 13 outro carisma da comunidade, que é a acolhida enquanto valor evangélico. Suas liturgias sóbrias, porém belas, eram marcadas pela presença das velas, das orações litânicas e da posição carmelita de se ajoelhar.19 Por outro lado, os irmãos não somente estimulavam os jovens militantes no que diz respeito à descoberta de uma oração mais vivencial, a partir de símbolos e gestos litúrgicos fortes. Ampliavam, igualmente, sua consciência crítica e social, passando sempre pelos desafios a serem enfrentados pelos jovens brasileiros e do resto do mundo. Assim relata Fernando {p. 9-11}: Era um encontro a portas fechadas, já refletindo a América Latina. Eles explicando o que era o concílio de jovens, anunciando um possível encontro que aconteceria na Paraíba em fevereiro de 1974. Eu me animei, pois nunca tinha feito uma viagem grande. Os irmãos me animaram e me estimularam muito em relação a isso. O concílio de jovens ajudou a forjar a mística do jovem engajado no mundo e na mudança do mundo a partir da fé, em Deus libertador, em Deus Javé ou em Deus de Moisés. A mística da América Latina precisa ser transformada, libertada, a opressão precisa ser eliminada, a mística, multidões de jovens no mundo inteiro buscando a paz, a oração e a ação. No encontro da Paraíba tudo isso foi muito forte. (Uma palavra de Dom Hélder, a emoção imensa de estar vivendo tudo aquilo.) Em última análise, as orações na capela da Comunidade de Taizé constituíam uma espécie de “refúgio” para aqueles militantes ainda em processo de formação, como se saíssem da aridez e da dureza do racionalismo existente no interior das CEBs, deixando-se levar por um movimento espiritual mais leve, ainda que profundo, em que predominava a emoção ao invés da razão, o discurso mais solto e subjetivo substituindo a “obrigatoriedade” de uma fala engajada, libertadora e revolucionária. Mas o contraponto feito pelos irmãos de Taizé não ficou imune a críticas: havia certa tensão em todo esse processo.20 No início do processo de engajamento dos militantes praticamente não havia preocupação com o cultivo de uma espiritualidade, mesmo que esta supusesse uma fé crítica e engajada, o compromisso concreto com o povo, sobretudo com os mais empobrecidos, com a denúncia dos males sociais e o anúncio de um mundo novo, inspirado na utopia evangélica. Mais que nebuloso, tudo ainda era praticamente desconhecido, e esses cristãos não davam maior importância à questão. Assim expressará Rita {p. 5}: “[...] não tinha altas coisas de espiritualidade, não. Tinha um deslumbramento com a vida cotidiana da Igreja. Encantava-me com essa coisa do leigo. Não era nada “As liturgias de Taizé me encantavam muito, e até hoje sei de cor os cantos” {RITA, p. 15}. Henrique {p. 3} também se refere à participação na Comunidade de Taizé como algo marcante e positivo em sua vida: “Foi uma época muito boa, que marcou não só a mim, mas a muitos. Foi o que segurou a gente para esse trabalho de comunidade.” Para Fernando {p. 8}, acontece algo semelhante: “[...] e como eles tinham as dimensões da contemplação e ação, as orações eram mais contemplativas, as liturgias mais voltadas para momentos de oração. Tivemos momentos fortes de oração e liturgia [...].” 19 “Havia uma tensão crítica entre o B. e a Comunidade de Taizé. Eu nunca consegui entender qual era o problema. Ainda não tinha aprofundamento político, sociológico e nem religioso para isso. Aquilo me incomodava; nosso grupo [...], o mais politizado, criticava Taizé” {ibidem}. 20 14 teórico, era uma coisa concreta e a gente experimentava isso.” Quando muito, partia-se para uma espiritualidade coletiva e extremamente racional, como atesta a fala de Cilene {p. 1}, chegando ao limite do abandono de uma espiritualidade mais pessoal, na esteira do fortalecimento do trabalho cebiano: “Nas CEBs aprendi a rezar somente pela coletividade e abandonei completamente a oração individual. Foram poucas as vezes em que pedi a Deus alguma graça para mim ou para minha família.” Sobre este ponto, Henrique {p. 12} faz uma abordagem diferente — sobretudo da de Rita —, apontando para o embrião de uma espiritualidade própria do militante, prática de meditação e reflexão, que o impulsionava à ação: Acho que o tempo mais forte que eu tive de vida de Igreja, religiosa, foi na época de Dom Luís, que estava aqui com os irmãos de Taizé. A gente tinha um espaço que não era propriamente para conversar, mas para meditar, refletir, e, a partir daí, a gente ia para a ação, formava os grupos e ia para as comunidades. Aquilo tinha um incentivo muito grande. A experiência de Deus dava-se no cotidiano, no novo papel que os leigos eram convidados a assumir e na concretude das coisas simples da vida — mais do que em quaisquer elucubrações teológicas ou preocupação com qualquer tipo de experiência genuinamente mística. Para Rita {p. 8}, naquele momento ainda não havia “uma experiência profunda de Deus”.21 Havia, sim, uma “experiência eminentemente eclesial de pertença à Igreja”. E tudo passando por um processo de “sublimação total”.22 A metade dos entrevistados deixou claro que, em determinado momento da sua vida, sentiu um apelo a uma entrega mais radical à construção do Reino através da vida religiosa ou do ministério ordenado. Nota-se, entretanto, que naquele momento tanto as religiosas quanto os ministros ordenados passavam por uma certa crise vocacional. Esta possibilidade deixou de ser explorada exatamente devido às dificuldades vividas pelas pessoas que se colocavam no âmago da instituição eclesial. Deparando com tudo aquilo ou mesmo sendo incentivados ao aprofundamento do seu compromisso eminentemente laico, era natural que os militantes desistissem daquela alternativa {cf. RITA, p. 9; HENRIQUE, p. 1-2}.23 Contrastando com a visão de Rita, parece que para Lindaura {p. 7} já havia, sim, uma profunda experiência de Deus, talvez devido à sua visão de mundo, mais simples e não capturada por um certo racionalismo intelectualizado, onde não há muita separação entre o sagrado e o profano, entre as coisas da fé e as da vida, entre oração e ação. Referindo-se a um retiro ocorrido no interior do estado ainda na primeira metade dos anos 70, para ela é claro que “todos os momentos eram de oração”, quer através dos cânticos litúrgicos ou das leituras bíblicas. Segundo ela também se fazia silêncio (físico) “e ficávamos rezando [...], o retiro era apenas de oração” {p. 8}. 21 Considerando que, na sua trajetória de vida, o militante vai assumindo cada vez mais compromissos, mais e mais frentes de trabalho, era natural que sua vida pessoal fosse deixada de lado. Diante desta tensão (contradição), a única forma de a pessoa canalizar seus desejos, de suspender temporariamente seus projetos mais caros era através da sublimação e redirecionamento de suas pulsões sexuais e psíquicas. 22 Recordando aquele momento da sua vida, Rita afirmará: “Eu também teria sido muito feliz com uma opção dessa, pois sinto-me uma pessoa que estaria muito bem numa atividade missionária” {ibidem}. 23 15 3.2 Contextualização mais geral No ano em que Rita veio para a Grande Vitória (1971), vivia-se em pleno “milagre econômico”. Com o crescimento das atividades econômicas, aumentava, como decorrência, o nível de emprego, e assim logo encontrou emprego, trabalhando numa instituição bancária por sete anos {cf. p. 4}. Não somente no caso desta militante, mas no da maioria dos entrevistados, a vinda para o espaço metropolitano expressava um movimento normal (e necessário) de que as pessoas participavam. Para ela, a cidade interiorana representava o atraso e a alienação: “[...] de não ficar muito ali naquela coisa (limitada) de C. Ali era o que poderia haver de pior” {p. 5}. Para ela {cf. p. 6}, seu trabalho de agente pastoral começa a se aprofundar a partir de 1973, sobretudo através da formação de lideranças; da organização e animação de CEBs; de reuniões e assembléias de conselhos, incluindo as assembléias arquidiocesanas; de círculos bíblicos; de novenas de Natal; de visitas às comunidades; da elaboração de cartilhas, boletins e outros, especialmente o Caminhada, além da participação em equipes de animação litúrgica {cf. também FERNANDO, p. 14}.24 Mais à frente, no início de 1974, Rita começa a fazer parte do Conselho de Pastoral da Arquidiocese de Vitória (Copav), sendo um dos seus membros fundadores. Enquanto seu engajamento ia-se aprofundando num ritmo cada vez mais veloz e intenso, já se desenhava certa tensão em sua comunidade de origem, no bairro, confrontando-se com um modelo tradicional que ainda predominava mesmo com o aggiornamento trazido pelos ventos conciliares, através de uma forma devocional de celebração da fé. Apesar das tensões e conflitos, reconhece que havia uma riqueza nesta passagem de um modelo de Igreja mais tradicional para outro, de cunho mais crítico e engajado: “Era uma Igreja tradicional, havia os rezadores, os italianos, tínhamos que fazer todo um jogo […]. Havia tensões, conflitos, mas também uma coisa que era muito rica” {RITA, p. 7}. Para Fernando {p. 12}, um dos marcos fundamentais da sua trajetória enquanto agente pastoral, já como militante, foi, em 1975, a preparação do concílio de jovens em um dos municípios da Grande Vitória, destacando-se: as tarefas que eram impostas pelo trabalho; a recepção de pessoas de todo o Brasil e as trocas que se estabeleciam a partir dos contatos; a necessidade de um maior conhecimento da realidade local, regional e nacional; o contato intenso com as diversas comunidades e a dimensão da festa que esteve presente — “[...] aqueles três dias de carnaval [...]” {ibidem}. Na concepção de Henrique {cf. p. 3}, o início das CEBs na Arquidiocese de Vitória obedeceu a todo um processo de criação e desenvolvimento do trabalho, que previu uma importante formação dos leigos que tomaram a frente no sentido de dar assessoria às comunidades nascentes. Na medida em que o trabalho ia-se desenvolvendo, crescia também, no mesmo ritmo, a demanda por assessorias e, em contrapartida, o envolvimento das lideranças médias. Segundo ele, dezenas, centenas de comunidades nasceram em pouco 24 Para este militante a periodização vai de 1976 a 1980. 16 tempo (entre um e dois anos). O Copav surgiu a partir desta dinâmica. Igualmente a Grande Avaliação25, depois de aproximadamente 15 anos de trabalho na linha da renovação pós-conciliar. Se por um lado caminhava-se para o “pipocamento” das comunidades, que surgiam numa velocidade muito grande, por outro, as lideranças eram praticamente obrigadas a fazer sua opção: muitas deixaram sua comunidade de origem e práticas estritamente religiosas — participação nos sacramentos, especialmente nas celebrações eucarísticas, nos cultos e liturgias populares, nas assessorias aos inúmeros grupos eclesiais que surgiam, etc. —, partindo para atividades no campo da “transformação socioeconômica, que era uma das demandas mais urgentes que se tinha na Grande Vitória, no Espírito Santo, no Brasil todo, que, saindo do regime ditatorial, que era preparar o povo para discutir a ligação fé e vida” {ibidem}. Hoje, Henrique {p. 12-13} vê uma prática muito fragmentada na Igreja local, como se fosse um reflexo da globalização que se faz onipresente em toda a sociedade. De acordo com sua experiência, há um excesso de estruturação e de aparelhos eletrônicos; ou seja, uma certa “modernização” que impede as pessoas de ter um contato mais tête-à-tête; tudo passa a ser resolvido através de agenda, ninguém tem tempo para mais nada. Para se falar com os bispos, só com hora marcada, e olhe lá... Antigamente (na época do auge das CEBs), lembra ele, tudo era diferente, pois vivia-se outra realidade. Na sua visão, a Igreja cresce não a partir de novos fiéis convertidos ou engajados, mas em atividades. Diante de um corpo eclesial cada dia mais complexo e exigente, o militante sente-se na obrigação de se especializar em todos os níveis, inclusive no da(s) assessoria(s) que presta às comunidades. Outrora, numa Igreja mais simples e menos diversificada, com uma linha pastoral mais rigidamente definida, tínhamos a presença do militante (leia-se, p. ex., assessor) do tipo generalista. 25Este foi um amplo trabalho realizado nesta Igreja particular, com as principais características: a) acontece no período de 1984 a 1987; b) vários grupos organizados responderam a dez questionários sobre vários temas, envolvendo aproximadamente 70 mil pessoas; c) de 34.107 que são convidadas a dar sua opinião, 93% apoiavam o movimento de CEBs; d) 82,5% dos que opinaram consideravam que era possível conciliar os trabalhos pastorais com uma ação políticopartidária, desde que obedecidos certos critérios; e) 89% concordavam com o apoio da Igreja às lutas populares, sindicais e outras; f) naquele momento, havia na Arquidiocese mais de 1.200 CEBs; g) a Grande Avaliação mostrava a “preocupação das comunidades com sua espiritualidade. Elas reclamam [reclamavam] por mais e melhores momentos de oração” (n. 64); h) reconhece a existência de tensões — entre o movimento de CEBs e os apostólicos, sobretudo a RCC: “A Grande Avaliação tornou clara a existência dessas tensões, mas não aprofundou suas causas. Elas não podem ser ignoradas ou suprimidas por simples decreto” (n. 68). Mais à frente a questão será melhor explicitada, mas claramente não enfrentada: “Uma tensão que hoje se manifesta de maneira bastante forte é aquela existente entre CEBs e movimentos apostólicos. Os dados disponíveis da Grande Avaliação não são suficientes para uma apreciação satisfatória dessa tensão” (n. 72). Apesar de a questão não ser devidamente enfrentada, nos nos 137 a 142 há uma melhor explicitação dos pontos de conflito; i) destaca a importância da “espiritualidade do seguimento, inspiradora da luta pela libertação” (n. 130); j) na perspectiva do “Agir”, o n. 163 recomenda: “Criar oportunidades para o aprofundamento da espiritualidade libertadora, que decorre das nossas opções fundamentais, tanto para os padres como para os leigos.” {Além dos números já citados, ARQUIDIOCESE DE VITÓRIA - ES, 1987, nos 2, 5, 23, 47-48 e 60; p. 9-10, 15, 20, 23-26, 41-43 e 50.} 17 Do ponto de vista de um engajamento estritamente político {cf. RITA, p. 10}, além de outros, um documento digno de nota é o Exigências cristãs...26, que era lido, refletido e partilhado com os cristãos de base, organizados em setores; e esse engajamento político advinha do sentido de missão que os militantes traziam em sua vida {cf. p. 19}. Entretanto, observa que nos idos de 1976, refletindo uma experiência sua, ainda não havia, para o conjunto dos agentes pastorais, uma elaboração política mais profunda, de caráter libertador e transformador {cf. p. 11}. Ela própria — que depois haveria de se transformar em um expoente da militância cristã engajada da Grande Vitória — confessa que naquele ano acabou votando no PDS (sic), partido representante e um dos sustentáculos da ditadura militar no país. Se assim era, supõe-se que a maioria dos militantes da época não tinha noção do que acontecia fora do Brasil, tanto em relação ao que se chamava de “socialismo real”, quanto à história das lutas revolucionárias ao longo do séc. XX. Ainda em 1976, Rita {p. 13} refere-se a uma das maiores descobertas da sua vida, que ocorreu em um dos encontros promovidos pela Arquidiocese de Vitória. O fato para ela foi tão marcante e profundo, que ela acabou chorando copiosamente, perguntando-se, como se estivesse diante de uma impossibilidade quase absoluta, mas que se fazia concretude: “O quê? Existe isso? Socialismo? Existe um país onde as pessoas são iguais? Isso é possível?” {ibidem}27 Uma outra questão que também emperrava a práxis política dos militantes cristãos era sua formação de cunho eclesial, sendo esta superficial, generalista, não permitindo às pessoas um maior aprofundamento teórico, na perspectiva do enfrentamento das dinâmicas próprias da sociedade que precisava ser transformada {cf. RITA, p. 26, 29}. Ao longo do depoimento de Fernando {especialmente às p. 18 e 19}, sente-se claramente sua percepção de uma extrema aridez e dureza nos embates partidários. Para ele, vai-se perdendo, aos poucos, a dimensão da oração, inclusive a de caráter vocal / comunitário; perde-se também o sentido estético e emotivo dos cânticos, dos hinos, do celebrativo. Assim, resta somente a disputa e o confronto, que, em última instância, gera uma agonia permanente na vida do militante. Revivendo seu passado de agente pastoral, afirma que o trabalho no âmbito de CEBs era muito mais prazeroso, pois tudo tendia à conciliação natural da perspectiva cristã. Mesmo na tensão com o movimento carismático ou nas disputas e discussões com padres tradicionalistas, buscava-se sempre uma solução amigável. Já na estrutura partidária, o confronto é com os inimigos, que personificam a figura do mal — direita, corrupção, crime organizado, etc. 26 CNBB. Exigências cristãs de uma ordem política. 5 ed. S. Paulo: Ed. Paulinas, 1977, 22 p. Por seu depoimento podemos avaliar o nível de profundidade que aquele momento significou em sua vida: “Lembro-me que chorava, e T. estava até do meu lado segurando minha mão, e acho que sem entender o motivo das minhas lágrimas. Não sou muito de me manifestar. Havia percebido uma outra possibilidade de organização política, que não era só o capitalismo, aquela que conhecia, mas o encantamento de uma sociedade igualitária. O nosso sonho: isso é possível e eu posso participar disso, tem gente que participa. Mas também a ditadura e o medo... Foi tudo fantástico pra mim!” {ibidem}. 27 18 A partir dos anos 90, Rita {p. 30-31} passou a ver a necessidade de trazer elementos novos que pudessem enriquecer a discussão em vista da práxis transformadora, quais sejam: o gênero e a etnia. A entrevistada vê claramente a importância das mulheres no grupo de discípulos de Jesus28, este sempre dando atenção a elas e colocando-as no mesmo lugar dos homens, pois, como se sabe, eram seres totalmente marginalizados em seu tempo. Hoje não se pode mais desconhecer o discurso da subjetividade que nos foi trazido pela pós-modernidade. Rita considera todos esses elementos positivos em vista de um tempo de desafios novos, pois não podemos mais ficar presos ao hermetismo e extremo racionalismo (marxista) do séc. XX. Tudo isso imerso num veio psicanalítico, além das organizações articuladas em redes. Também na visão de Henrique {cf. p. 5-6}, o atual trabalho de CEBs está passando por um grande momento de transformação, que é caracterizado pela falta de material específico de conscientização, o que não acontecia no passado; já não se dá tanta importância à dimensão política; fato que se verifica sobretudo entre as camadas mais jovens dos leigos engajados ou que participam dos eventos eclesiais — tal influência se dá a partir da grande força que possui a RCC ou mesmo a Canção Nova, com suas emissoras de TV cobrindo todo o território nacional;29 devido ao envelhecimento das pessoas, estas acabam indo para outras instâncias pastorais / eclesiais, ou deixam de participar; práticas eminentemente devocionais que são vistas hoje (adoração ao SSmo. Sacramento, orações da manhã no templo, procissões e várias formas de penitência) acabam emperrando o trabalho de cunho mais libertador e político. O lançar-se ao trabalho era algo tão crucial na vida dos militantes, que eram capazes de abandonar tudo por amor à causa, inclusive as necessidades mais vitais de um(a) jovem, que é o relacionamento afetivo. O trabalho se dava num ritmo alucinante — “Era isso, sábado, domingo, todos os dias.” —, e, mesmo assim, não gerava sofrimento e estresse provenientes do cansaço. Pelo contrário, uma grande realização e alegria: “E para mim era uma profunda felicidade. Eu não sentia falta de mais nada” {RITA, p. 8}.30 No caso concreto desta militante, o nível de exigência chegou a tal ponto, que mesmo sua filha, ainda na infância, era “vítima” do avassalador compromisso: “Era aquela correria, largava [...] com a mamãe, sempre do meu lado (aí a presença de Deus). Era aquele sacrifício, eu chegava às 23h00, cansada, pegava minha filha com quatro anos, ela vinha no meu ombro” {ibidem, p. 23}. Cf. Mt 8,14; 9,20-22; 15,22-28; 19,11s; 26,7-13; 27,55s; 27,55s.61; Mc 16,1-11; Lc 7,3550; 8,1-3; 10,38-42; 13,11-13; 23,55s; Jo 4,1-42; 8,3-11; 11,1-40; 20,1s e 20,11-18. 28 Refere-se aqui à Rede Vida e à Canção Nova, respectivamente. É curioso notar que há hoje no seio da militância progressista um reclamo, segundo o qual a primeira emissora deveria representar todos os segmentos da ação espiritual e pastoral da Igreja católica no Brasil, mas hoje encontra-se controlada fundamentalmente pela Renovação Carismática, além da presença constante dos seus ícones, os chamados “padres cantores”, sobretudo a figura de Marcelo Rossi. 29 Fernando {p. 15} irá corroborar a afirmação de Rita: “A militância preenchia tudo. Deus estava presente aqui, nessas coisas todas.” 30 19 O nível de compromisso e doação era tão desmedido, que as pessoas praticamente esqueciam seus projetos pessoais e muitas tentaram viver a dimensão da pobreza evangélica, mesmo no estado matrimonial. Fernando {p. 15-16} nos relata que o seu sonho, juntamente com sua esposa, era morar em bairros periféricos, pobres, num casalejo de tábuas, a exemplo do que várias pessoas faziam na época. Entretanto, sempre havia contestações (até mesmo por parte dos seus pares) a este tipo de busca mais extremada. O argumento era de que a opção se tornaria algo superficial, pois todos vinham da classe média. Como deixar seus valores e visão de mundo, de classe, e, de uma hora para outra, fazer parte da multidão dos empobrecidos, que tinham uma cultura própria e modo particular de entender e viver os valores da fé? Assim, o centro da vida não estava na vivência e nos valores familiares, mas comunitários: “Tudo era na comunidade. [...] Era sempre na Igreja, na comunidade, lá no templo. E agora, na minha família [...]: o estímulo é a comunidade e não [o que acontece] dentro de casa” {ibidem, p. 16}. Ainda hoje (2001) o trabalho é massacrante31, pois o militante, quando chega a determinado nível de experiência ou representatividade na coletividade, sempre é convidado a ministrar assessorias, inclusive no campo estritamente eclesial, como o litúrgico. Segundo Rita {p. 40}, as equipes se multiplicam enormemente, e a realidade de hoje “é pior que na nossa época” {ibidem}. Além dos inúmeros grupos de oração (refere-se à RCC), há, segundo ela, um discurso e reflexão de fundo intra-eclesiais, impedindo que tais pessoas tenham uma visão mais crítica e para além dos horizontes da instituição eclesiástica. De acordo com o entendimento de Fernando {p. 13-14}, apesar da força do processo de aggiornamento do passado, considerando que este vinha da hierarquia, as camadas populares sempre mantiveram sua perspectiva devocional, chamada pelo entrevistado de formas de resistência. Em linhas gerais, assim descreve o processo: as pessoas nunca deixaram de incluir em sua vivência de fé práticas devocionais (visitas ao Convento da Penha, inclusive para o “pagamento” de promessas, participação em festas do santo padroeiro, coroação de Nossa Senhora), mesmo os “mais ferrenhos de comunidade”. Mas este povo, em suas manifestações populares da fé, foi praticamente abandonado pelo corpo eclesial, pois o que interessava, na verdade, era a qualidade, e não a quantidade (grifo meu). Uma “Igreja que queremos”32 pressupunha uma minoria em seus quadros, e não a maioria. Por outro lado, os militantes que formavam os “quadros” da Arquidiocese, mesmo tendo em suas origens tais práticas devocionais, alimentavam “um grande preconceito em relação às devoções tradicionais”. Fernando deixará claro que a tentativa era sempre de “enquadrar” ou “transformar” as expressões de fé e a religiosidade do povo simples: [...] e queríamos sempre colocar um conteúdo libertador nas devoções; por exemplo, na Festa da Penha. Preparavam-se longas celebrações, mas a procissão dos homens era o quente, e nessa não tinha jeito de introduzir a Pastoral Operária, mesmo que esta tentasse [se fazer presente] naquela multidão de homens indo para a Festa da Penha, uma devoção 31 Fernando {cf. p. 22} reclama que o excesso de trabalho deixa a pessoa praticamente sem tempo para nada, a não ser para as coisas que dizem respeito à sua militância. No seu caso concreto, a criação artística, poética acaba ficando em enésimo plano, a não ser em momentos especiais, ou, mesmo, quando sua própria inserção política o leva a esse tipo de atividade. 32 Refere-se aqui ao documento citado, A Igreja que a gente quer. 20 sem muita explicação racional. Por que tantos homens vão em procissão para a Festa da Penha?33 E por que a procissão das mães leva tantas mulheres? Nunca entendemos direito isso (grifo meu) {p. 14}. Fernando conclui que este foi um dos pontos significativos, apontando para a fraqueza do movimento de CEBs; em outras palavras, a falta de uma espiritualidade mais profunda, que respeitasse as tradições seculares dos fiéis. Na visão de Rita {p. 7}, aquelas manifestações devocionais da fé do povo mais simples das comunidades estão de volta, mesmo que com nova roupagem. Comparando o que acontecia em 2001 com sua prática de 1973, destaca que nos anos 70 havia toda uma dinâmica reflexiva que hoje se perdeu. Reflexões essas sempre fundadas na Bíblia — “[...] 1973 intenso, Bíblia, círculos bíblicos” {ibidem} —, com um forte caráter educativo. Assim, a militante constata que o conteúdo devocional daquela época foi quebrado por uma atividade eminentemente racional, reflexiva.34 E que o “novo devocional” de hoje significa um retrocesso em relação ao passado: “Novenas de Natal, círculos bíblicos viraram devoção na Igreja. Ou melhor, voltaram a ser devoção. Eu vejo que a minha mãe, que faz círculo bíblico até hoje, mas não é estudo, não é aprofundamento bíblico, é devoção” {ibidem}. Mais à frente Rita entra em contradição com o que disse, pois afirma que havia um certo respeito à devoção popular: “[...][a questão da] devoção popular, do respeito às formas de devoção popular, do trazer isso para o Evangelho e voltar para a vida” {p. 10}. O depoimento a seguir mostra claramente a dificuldade que o militante da velha guarda ainda tem ao lidar com a forma devocional pela qual o povo manifesta sua espiritualidade hoje: se você chega para o pessoal de pouco conhecimento, fala com ele que a Bíblia diz que só tem Deus [...], Jesus Cristo e bater nessa tecla, e Nossa Senhora não pode entrar na história, como uma prática de idolatria, para um povo de pouca formação, chega um evangélico e começa a falar isso, ele absorve. Então, falta para nós, Igreja, trabalhar. Esse negócio de ficar só na oração, naquele ritual da Igreja [...] Falta um espaço para trabalhar a formação do pessoal para conhecer melhor a nossa religião {HENRIQUE, p. 6}. Se observarmos as entrelinhas da fala, vemos certo desprezo pelo pouco conhecimento do povo. É como se o militante afirmasse: “Nós que conhecemos teologia não pensamos ou agimos como o povo que não conhece.” A solução para este estado de “ignorância em “A tradicional caminhada da Catedral até o campinho do Convento da Penha começou com Dom José Joaquim Gonçalves em meados da década de 50. Mulheres e homens participavam. Em 1958, com o objetivo de fortalecer a participação do homem na vida da Igreja, Dom João Batista da Motta e Albuquerque transformou a caminhada no que conhecemos hoje por Romaria Noturna dos Homens, ou apenas Romaria dos Homens. Desde então, no sábado que antecede o dia da festa, milhares de homens de diversos lugares do Espírito Santo saem em caminhada na direção do Santuário de Nossa Senhora da Penha, padroeira do Estado, percorrendo cerca de 14 quilômetros em quatro horas [...].” {Festa da Penha 2002. Vitória (Jornal da Arquidiocese de Vitória): mar. 2002, p. 8}. 33 Mas, por outro lado, reconhece os limites do excesso de racionalismo na caminhada de fé: “Não só eu, mas quero dizer que havia aquelas pessoas, aquelas celebrações racionais, coisas pesadas, puxava-se muito pelo racional” {RITA, p. 10}. 34 21 relação às coisas da fé” só pode vir através de um trabalho de conscientização teológicopastoral; portanto, de cunho eminentemente racional. E aquele ficar só na oração do povo inculto acaba tornando-se um empecilho para o aprofundamento da fé. Mais à frente o mesmo militante reafirmará seu preconceito: “[...] a formação que esse pessoal tinha lá do interior, lá de baixo [...] não evoluiu” {p. 7}. Pelo menos para as Igrejas particulares que caminharam fundo na via das CEBs, como é o caso da de Vitória, quando surgiu nova proposta eclesial / pastoral que ia em direção oposta ao que se vivia naquele momento (primeira metade dos anos 80), gerou-se uma forte tensão e uma série de conflitos que até os dias de hoje ainda não estão totalmente superados. Rita {p. 25} reconhece essa tensão, mas frisa que não há uma dificuldade extrema de relacionamento — pelo menos a partir da sua visão. Segundo ela, algumas dinâmicas de oração que hoje são utilizadas pelos movimentos já existiam no alvorecer das CEBs. Mas em última instância admite que haja um processo de radicalização em certos segmentos, pois “os de cá são só de cá e os de lá, só de lá” {ibidem}. Para ela, a principal contradição trazida pelos movimentos é a seguinte: [eles] trabalham muito bem essa espiritualidade, que é uma experiência de Deus, o contato com o Sagrado, com o Pai, mas não conseguem trazer, e aí nós dizemos isso, de forma intensa, a questão do protagonismo do leigo frente à instituição. A autonomia que se tem de ter até para relativizar a instituição que é perversa, que é humana, que é pecadora na história {ibidem}. Henrique reafirma com todas as letras como ainda estão vivos conflitos e tensões entre CEBs e RCC, comentando um determinado processo de sua realidade paroquial: Isso aconteceu fortemente aqui em nossa paróquia com algumas pessoas que assumiram a liderança, religiosa inclusive. Promovemos até seminários para estudar essa questão, trouxemos [Fulano] para falar sobre isso, mas não se conseguiu avançar. Depois foi elaborada uma carta das dez paróquias [...], de como estava se dando essa questão da penetração da RCC dentro das paróquias. Algumas conseguiram contornar a situação, como a Paróquia [...], que conseguiu juntar esse povo para fazer uma reflexão. Foi criado um espaço, com a condição de que o grupo estivesse engajado na vida de Igreja, que não significava ficar apenas rezando. Eram 28 pastorais da paróquia, questionando-se em qual delas haveria o engajamento. Houve um questionamento para colocar a religiosidade na prática. Foi necessária uma reviravolta, dar os anéis para não perder os dedos. [Conseguiu-se alguma coisa] e hoje é uma das paróquias da Arquidiocese que foi classificada como entre as que mais cresceram (CNBB), justamente pela capacidade de refletir essa questão, aproveitando a força do adversário para dar o tombo (grifos meus). Apesar de não serem os melhores, esse pessoal, hoje, é um dos mais engajados num trabalho de parceria, numa convivência até mais harmoniosa. Eu acho que até certo ponto a RCC veio preencher uma grande lacuna dentro da Igreja {p. 7-8}. Em primeiro lugar nota-se, uma vez mais, o processo de enquadramento: em última análise, “vocês só podem continuar com sua prática orante desde que tenham um engajamento pastoral dentro do nosso modelo (que é o correto)”.35 Depois, expressões Mais à frente {cf. p. 9}, Henrique detalhará ainda mais este processo: o vigário local passa a controlar tudo (leia-se: a ação dos membros da RCC), respaldado pelo conselho presbiteral; assim, argumenta o militante, não se trata da vontade do vigário, mas de um respaldo que é dado 35 22 como dar os anéis para não perder os dedos, aproveitando a força do adversário para dar o tombo e apesar de não serem os melhores denotam fortemente o clima da disputa (de poder), além de desclassificar o adversário, mesmo que no final o entrevistado reconheça que a RCC, por mais “alienada” que seja, acabou trazendo algum benefício espiritual à Igreja. Enfim, por maiores que sejam os problemas no âmbito de uma possível integração, a visão do militante é otimista, crendo numa “nova Igreja” — a ser construída pelos que ficarem —, “mais consciente, empenhada e comprometida” {ibidem}. Diante do vazio espiritual existente no auge da militância, Rita {p. 14, 18} lembra que ela, juntamente com aquele grupo, mesmo afirmando e reafirmando a necessidade da objetividade, da racionalidade, eram, na verdade, pessoas extremamente subjetivas — necessitando trabalhar sua subjetividade, seu mundo interior. E trabalhar o mundo interior não significava, essencialmente, sede de espiritualidade, mas, como afirma Rita, a necessidade de as pessoas se refazerem (interiormente), de terem mais tempo para atividades que estivessem para além do campo estrito da militância, objetivando esta a transformação social {cf. p. 20}. Algumas experiências de oração coletiva chegaram a ser encetadas, mas não tiveram solução de continuidade: Em 1978 tivemos algumas experiências de oração, não me lembro bem, ... na casa de Z., que não iam para frente. Já sentíamos a necessidade, mas não sei quando é que o grupo começa a falar na importância desse tipo de oração. Chegamos a ter uns dois ou três momentos. [...] Sinto que ali o grupo começava a falar disso {ibidem}. O problema chegou a tal ponto, que uma pessoa de grande importância e responsabilidade na direção da caminhada da Igreja local interpela o grupo: “Gente, precisamos ter mais garra na oração!” {p. 19} Rita {cf. p. 20} avalia que tal experiência não foi adiante — mesmo tendo o grupo permanecido unido durante aproximadamente um ano e meio — pelas seguintes razões: falta de priorização por parte dos participantes; excesso de racionalidade no processo orante; falta de coragem (melhor dizendo, vergonha de rezar);36 liturgias pesadas e excessivamente puxadas pela razão; falta de alegria no relacionamento humano; grande enfoque na dimensão do sofrimento, da cruz, da abnegação, da luta a todo momento, sem descanso.37 pela Igreja local; uso da “repressão” (sic), através da retirada do SSmo. Sacramento de certas comunidades ou ameaça de fechamento de templos; necessidade de haver intervenção, custe o que custar; um dos fatores que mais irritam as pessoas de CEBs é o fato de os carismáticos contribuírem financeiramente para instituições forâneas (Rede Vida e Canção Nova, p. ex.) e não se disporem a colaborar com o dízimo em âmbito paroquial. 36 Rita afirma que ainda hoje (2001) este é um obstáculo para a maior parte dos militantes cristãos {cf. ibidem}. Na visão de Fernando {p. 16}, “era a oração na ação, era agindo que você estava orando, não era preciso ter terço, ladainha, retiro [...]. Isso foi muito marcante, dar a vida, dedicar-se à causa, jogar-se, esquecendo-se até do corpo, esquecendo-se de si”. 37 23 Por outro lado, um fator que contribuía para emperrar o processo era a dimensão “utilitarista” da ação, numa perspectiva de missão, a partir da qual os militantes sempre se perguntavam: “O que serve para o povo?” {ibidem} Imaginando-se uma “espiritualidade do militante” que é formatada quando tais pessoas já são adultas (jovens adultos {cf. HENRIQUE, p. 4}), praticamente não havia qualquer prática de oração nos encontros de planejamento, em preparação aos grandes eventos.38 Por outro lado, Rita {ibidem} reconhece que, mesmo com tal vazio, “havia muito canto, muita energia positiva”. Mas aquele vazio gerava nela uma angústia, certo sofrimento (“Sentia uma agonia [...]” p. 11), pois até nos momentos de reflexão havia disputa {cf. ibidem}. Rita, talvez mais que os outros militantes, irá sentir o drama da ausência do aprofundamento espiritual ao se perguntar: “Por que Fulano [religioso que atuava em Vitória na época] não passava para nós, nos encontros, nas possibilidades que tinha, essa questão da mística, que hoje sei que ele vivia em sua vida?” Segundo ela, “passava-se uma idéia de que era só racionalidade”. Recentemente, refletindo sobre aquele momento e seu vazio, questiona um membro da hierarquia da época: “Por que passavam pra nós uma coisa tão racional?” No final, acaba se consolando, pois se tratava, em última instância, de defender a causa que mobilizava todos: “Sinto que era um momento da Igreja, pois era a Igreja dos pobres. Isso acabava ficando na periferia, ou era simplesmente ignorado” {citações à p. 11}. Já Fernando é enfático ao afirmar: “Para nós, da liderança, havia um certo desprezo em relação às expressões de espiritualidade de caráter mais individual e contemplativo” {p. 13}. Mesmo a Comunidade de Taizé, segundo Fernando, “o forte deles eram as liturgias comunitárias. Eles não promoviam retiros, o referencial era o grande templo deles em Taizé, com os cinco mil jovens [...]” {p. 17}. Este vazio gerava uma sobrecarga, uma fome de alimento espiritual em alguns. No limite, muitos militantes deixam a prática eclesial, afirmando: “[...] a Igreja não me dá mais” (nada) {RITA, p. 24}. Questionada sobre a Grande Avaliação, se aquele processo estava verdadeiramente preocupado com o problema da espiritualidade, admite que não, pois a grande preocupação era “reafirmar o modelo eclesial formatado até ali” {ibidem}. Fernando {p. 18} tem praticamente a mesma avaliação de Rita, acrescentando que naquele momento explicitou-se com mais vigor a forte tensão entre o movimento de CEBs e a RCC. Mesmo que naquela época houvesse a vontade de resolver as tensões e conflitos existentes, na verdade tais contradições permanecem até hoje, apesar de admitir que agora este confronto encontra-se mais atenuado. E tudo num clima de extrema racionalidade: “As votações foram de caráter muito racional, [com o objetivo de] reafirmar a importância das CEBs” {ibidem}. Para Rita, apesar dos limites que se colocavam naquela época, havia entretanto uma espiritualidade, que ela identifica como sendo “do seguimento, da militância, da missão” {ibidem}. Nesta perspectiva, não existia portanto somente a dimensão do racional, ou da tentativa de racionalização da fé. Havia também uma “consciência mística” que se manifestava na “presença da ação de Deus na história” {p. 19}. 38 “Planejávamos a assembléia da periferia sem nenhum momento de oração [...]” {p. 10}. 24 Mais recentemente, em meados dos anos 90, inicia-se um processo de descoberta da “mística”.39 Segundo ainda Rita {p. 25}, “passa a ser chique falar nos nossos encontros de mística. Aí descobrimos que (Fulano) tinha uma mística sim, a mística dos místicos medievais […] Eu acho que isso vai-se incorporando”. O depoimento de Henrique {p. 5} praticamente confirma o que disse a militante. Segundo ele, hoje algumas pastorais priorizam esse tipo de trabalho, embora de uma “forma um pouco dispersa”, pois o problema é o de sempre: “Que momentos o nosso militante tem disponíveis, tentando conciliar a prática (espiritual) com a labuta do dia-adia?” {ibidem} Apesar dos limites, ainda segundo Henrique {p. 6}, há hoje uma forma mais pedagógica de levar as pessoas à busca de uma espiritualidade mais profunda. Para ele, como isso não foi feito no auge das CEBs, muitos cristãos católicos, diante de um vazio sem respostas, buscaram no pentecostalismo sua saída, inclusive no neopentecostalismo evangélico. Outro problema apontado por Henrique {p. 10} é a grande dificuldade que às vezes se estabelece entre o campo da militância (exigência da fé) e o da atividade profissional, em que a pessoa, às vezes, é obrigada a fazer certas concessões e acaba caindo numa espécie de “armadilha ética”: “Tento elaborar o correto, explicar a legislação, mas deixo a decisão para o cliente. E fico com uma crise de consciência muito grande, quando depois vou condenar a corrupção no Governo.” 4 Referências 4 Referências ARQUIDIOCESE DE VITÓRIA–ES. A Igreja que a gente quer. Vitória: mimeo, 1975, 7 p. ____. Opções e diretrizes pastorais da Igreja de Vitória. S. Paulo: Ed. Paulinas, 1987, 61 p. DUARTE, L. M. S. Isto não se aprende na escola (A educação do povo nas CEBs.). 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 29-51 ENTREVISTA com Fernando Mendonça, realizada no dia 15 de julho de 2001. Vitória: s. n. t. Nov. 2001, 37 p. ENTREVISTA com Henrique J. Moreschi, realizada no dia 23 de julho de 2001. Vitória: s. n. t. Dez. 2001, 28 p. ENTREVISTA com Lindaura F. Nunes, realizada no dia 18 de julho de 2001. Vitória: s. n. t. Nov. 2001, 31 p. 39 mística. No próximo artigo veremos qual a concepção que os militantes possuem do termo 25 ENTREVISTA com Rita de Cássia Pierozzi, realizada no dia 20 de julho de 2001. Vitória: s. n. t. Nov. 2001, 60 p. GABRIEL, J. P. Rosário bíblico. 11 ed. S. Paulo: Ed. Paulinas, 1976, 83 p. QUESTIONÁRIO respondido por Carlos D. Moraes no primeiro semestre de 2000. Vitória: s. n. t. 2000, 9 p. QUESTIONÁRIO respondido por Cilene C. Trindade no primeiro semestre de 2000. Vitória: s. n. t. 2000, 5 p. SCANDIAN, D. S. L.; ROCHA, D. G. L. Carta pastoral sobre avaliação, aprofundamento e reflexão da pastoral da Igreja de Vitória. Vitória: Arquidiocese de Vitória, 1984, 19 p. TAIZÉ — Uma peregrinação de confiança na terra. Taizé: Les Presses de Taizé, 1991, 45 p. Endereços do autor — [email protected] [email protected] (alternativo)