Revisão: Ácido úrico e hipertensão arterial sistêmica –evidências e

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J Bras Nefrol 2002;24(3):147-52
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Revisão: Ácido úrico e hipertensão arterial sistêmica –evidências e
controvérsias
Uric acid and systemic arterial hypertension – evidences and controversies
Carlos Alberto Balda, Frida Liane Plavnik e Agostinho Tavares
Universidade FFederal
ederal de São PPaulo.
aulo. São PPaulo,
aulo, SP
SP,, Brasil
Ácido úrico. Hipertensão. Doenças cardiovasculares.
Uric acid. Hypertension.
Cardiovascular diseases.
Resumo
Diversos estudos conduzidos nas últimas seis décadas têm tentado correlacionar níveis
séricos elevados de ácido úrico a uma maior incidência de eventos cardiovasculares.
Estudos recentes concluíram que, em população portadora de hipertensão arterial, o
nível sérico de ácido úrico correlacionou-se à maior freqüência de eventos
cardiovasculares, fato validado também para a população geral. A literatura, assim, tem
consistentemente demonstrado forte associação entre nível de ácido úrico, como fator
independente, e mortalidade cardiovascular. Estudos utilizando drogas que podem, de
forma direta ou indireta, reduzir os níveis séricos do ácido úrico devem ser realizados
na tentativa de comprovar o efeito benéfico desse tratamento sobre a taxa de ocorrência
de eventos cardiovasculares.
Abstract
Many studies have been done in the last decades in attempt to correlate abnormal levels of
serum uric acid with a greater incidence of cardiovascular events. Recent studies concluded
that there is a correlation in subjects with essential hypertension. The same is probably valid
in a normal population as evidenced in many others studies. The reduction of serum uric acid
levels should be assessed since this treatment can be useful to reduce cardiovascular events.
I n t r o d u ç ã o
Diversos estudos conduzidos nas últimas seis décadas têm tentado correlacionar níveis séricos elevados de ácido úrico à maior incidência de eventos cardiovasculares, como angina, infarto, acidente vascular
cerebral e insuficiência arterial periférica.1,2 Tal fato
objetivou algumas pesquisas no sentido de comprovar o envolvimento do ácido úrico na fisiopatogenia
de alterações cardiovasculares. Contudo, essa correlação tem sido difícil de ser demonstrada devido à associação de níveis elevados do ácido úrico a fatores de
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risco já estabelecidos, como obesidade, hiperinsulinemia,3,4 hipertensão5 e associações dos mesmos.6,7
O aumento do conhecimento a respeito dessas associações e de prováveis participações do ácido úrico
no mecanismo de atividade endotelial e plaquetária
poderá indicar um valor terapêutico específico no tratamento da hiperuricemia, proporcionando diminuição nas taxas de eventos cardiovasculares.
A síntese do ácido úrico
O catabolismo de ácidos nucléicos determina a
geração de purinas, sendo estas degradadas, o que
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ocasiona a formação do ácido úrico, reação que envolve a enzima xantina oxidase. Essa enzima é inibida
quando se utiliza a droga alopurinol, ocasionando
menor formação de ácido úrico e excreção urinária
aumentada de hipoxantina e xantina, ambos precursores do ácido úrico.8
Grandes quantidades de purina na dieta do indivíduo podem alterar de maneira importante o nível sérico de ácido úrico. A quantidade de purinas nos alimentos é demonstrada no Tabela.
De maneira simplista, é chamado de ácido úrico o
que, na verdade, deveria ser denominado urato, pois
a molécula predominante no pH fisiológico encontrase na forma de urato de sódio e em algumas partes do
sistema urinário. Quando há pH inferior a 5,7, a molécula predominante é a de ácido úrico. O ácido úrico é
um ácido fraco, encontra-se distribuído no fluido extracelular e é excretado pelos rins. Para uma função
renal normal, o clearance de ácido úrico varia de 4
ml/min a 14 ml/min, de forma que a diminuição progressiva da filtração glomerular compromete de maneira importante a excreção do ácido úrico.
Assim, individualmente, o nível de ácido úrico depende de fatores metabólicos determinados geneticamente, como atividade enzimática, fatores nutricionais
e também pela eficiência de sua excreção renal.9
Ácido úrico como fator de risco cardiovascular
Uma correlação entre níveis elevados de ácido úrico e aumento no risco de evento cardiovascular vem
sendo identificada em diversos trabalhos.1,10,11
É sabido que a hiperuricemia está associada a outros importantes fatores de risco para eventos cardiovasculares, como hiperinsulinemia, dislipidemia e insuficiência renal, o que promove algumas dificuldades
nas análises estatísticas, principalmente quanto à caracterização do ácido úrico como fator de risco independente para evento cardiovascular. Em alguns estudos, após ajustes estatísticos para tais fatores
associados, não se demonstrou que o ácido úrico seja
um fator independente de risco para evento cardiovascular.12-14 A conclusão desses estudos é a de que o
ácido úrico seria somente um marcador de obesidade, hiperinsulinemia, dislipidemia ou doença renal.
Outro problema que se apresenta é o uso concomitante de diuréticos15 e salicilatos que têm como efeito
colateral o aumento do nível sérico do ácido úrico.
Essas variáveis também devem ser analisadas ao se
avaliar o risco cardiovascular isolado da elevação dos
níveis de ácido úrico.9
Contudo, em trabalhos recentes, a determinação
do ácido úrico como fator de risco independente para
eventos cardiovasculares foi comprovada, inicialmente, para grupos com características específicas, como a
população diabética,16 mulheres em faixa etária avançada17,18 e, principalmente, na população portadora de
hipertensão arterial sistêmica. Nesse caso, aproximadamente um quarto dos indivíduos apresenta níveis
aumentados de ácido úrico. Além disso, outro fato interessante é que o ácido úrico elevado pode também
predizer o desenvolvimento de hipertensão arterial,
independentemente de alteração na função renal.19
Alderman et al concluíram que, em população de
hipertensos, o nível sérico de ácido úrico correlacionou-se à maior freqüência de eventos cardiovasculares, especialmente no grupo com maiores concentrações séricas de ácido úrico, fato validado para todas
as raças, porém com maior significância em indivíduos
pertencentes à raça não-branca. A população pertencente ao maior quartil de dosagem do ácido úrico apresentou chance 50% maior de ocorrência de evento cardiovascular quando comparada à população de quartil
mais baixo. Outro dado interessante é que a correlação estatística entre nível sérico de ácido úrico e evento cardiovascular foi ainda maior nos indivíduos com
tratamento adequado para a hipertensão arterial, fato
não justificado pelo uso de diuréticos.20
Verdecchia et al também demonstraram associação
Tabela
Quantidade de purina dos alimentos
Alimentos com pequena quantidade:
Alimentos com grande quantidade:
Produtos cereais: pães, bolos
Carnes, peixes e frutos do mar
Ovos e laticínios
Cogumelos
Doces e gelatinas
Cerveja e outras bebidas alcoólicas
Manteiga, margarina e outras gorduras
Frutas, tomate e vegetais (exceto os citados ao lado)
Feijão, lentilha, espinafre, couve-flor, aspargos
Fonte: Emmerson BT. N Engl J Med, 1996 vol 334,:pg 448.
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de níveis séricos de ácido úrico e evento cardiovascular. Contudo, nesse estudo a significância foi determinada somente para o quartil de ácido úrico mais elevado (acima de 6,2 mg/dL para homens e de 4,6 mg/
dL para mulheres), e tais indivíduos apresentavam hipertensão arterial não tratada.21
Os trabalhos acima citados esclareceram algumas
dúvidas a respeito do viés demonstrado em estudos
anteriores para a população de pacientes portadores
de hipertensão arterial tratados com diuréticos tiazídicos. Excluindo-se tal grupo das análises, desapareceu
a significância entre nível de ácido úrico e probabilidade de aparecimento de evento cardiovascular.13
Assim, para uma população específica de indivíduos portadores de hipertensão arterial, níveis elevados de ácido úrico podem indicar maior probabilidade de ocorrência de evento cardiovascular,
principalmente em indivíduos com dosagens mais elevadas.22 O próximo passo será discutir o ácido úrico
como fator de risco para a população geral.
Como fator de risco na população geral
Estudos observacionais demonstraram níveis elevados de ácido úrico em indivíduos com doença coronariana, quando comparados a indivíduos sadios.23
Estudos mais recentes tentam evitar grupos com
características muito individualizadas, com a finalidade de compor um grupo que represente a população como um todo e sem peculiaridades, como as citadas acima.
Importantes estudos populacionais, como Nhanes I (US National Health and Nutrition Survey), falharam em demonstrar correlação entre nível sérico
de ácido úrico e eventos cardiovasculares na população geral, sendo tal correlação identificada somente entre mulheres.24
Em outro importante estudo, gerado a partir dos
dados de Framingham, concluiu-se que não haveria
correlação entre o nível sérico de ácido úrico e a ocorrência de eventos cardiovasculares, sendo o risco relativo encontrado na população com nível elevado de
ácido úrico determinado por fatores associados, como,
por exemplo, uso de diuréticos.25
Uma análise mais cuidadosa do próprio estudo
Nhanes em sua evolução identificou o ácido úrico como
fator de risco isolado para eventos cardiovasculares,
independentemente de sexo e raça dos indivíduos.
Porém, há relação presente para os indivíduos com
idade acima de 45 anos. Outra importante observação
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com relação à raça foi a de que indivíduos negros apresentaram níveis séricos de ácido úrico consistentemente
superiores aos dos brancos, sendo também o risco relativo entre nível sérico do ácido úrico e a ocorrência
de eventos cardiovasculares muito maior na população negra. Outra conclusão interessante do estudo é
que, mesmo para populações com baixo risco cardiovascular – indivíduos não-diabéticos, com pressão arterial normal e nível de colesterol normal –, o ácido
úrico permaneceu como fator de risco para eventos
cardiovasculares.26
Ajustado para idade e independentemente do sexo,
o estudo Nhanes III demonstrou que os eventos de
infarto agudo do miocárdio e acidente vascular cerebral apresentaram taxas mais elevadas de ocorrência
quanto maior o nível sérico de ácido úrico.27
Alguns detalhes devem ser levados em consideração na comparação entre os estudos Framingham e
Nhanes. Primeiro, a população de Framingham é predominantemente branca. Já o Nhanes conta com uma
população muito mais heterogênea. Outro ponto é que
a mortalidade por causas cardiovasculares e não-cardiovasculares diferiram muito entre os estudos, sendo
que, no Nhanes, a mortalidade cardiovascular foi duas
vezes maior do que a demonstrada no estudo Framingham. Portanto, as diferenças entre as duas populações podem justificar as disparidades nas conclusões
a respeito do ácido úrico como fator independente de
risco para eventos cardiovasculares.
Em suma, a literatura tem consistentemente demonstrado forte associação entre nível de ácido úrico,
como fator independente, e mortalidade cardiovascular. Tal associação é mais forte em mulheres do que
em homens e mais predominante em indivíduos da
raça negra do que nos da raça branca. Os mecanismos
de correlação entre o ácido úrico e o evento cardiovascular, entretanto, continuam muito obscuros.
O impacto direto do ácido úrico na função vascular
Alguns estudos têm demonstrado o envolvimento
do ácido úrico em alterações no metabolismo de lipídios, assim como na fisiologia endotelial e plaquetária. Estudos in vitro demonstraram que o ácido úrico
promove um aumento na oxidação de lipoproteínas
de baixa densidade (LDL), sendo este um passo determinante na progressão da aterosclerose.28
Com relação à atividade endotelial, estudo recente constatou correlação entre níveis elevados de
ácido úrico e menor resposta vasodilatadora medi-
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da na artéria braquial, fato que pode ser justificado
por uma menor atividade de fatores vasodilatadores
como o óxido nítrico.29
Quanto à função plaquetária, há estudos propondo o envolvimento do ácido úrico no aumento de agregação e adesão plaquetárias, fato que aumenta a probabilidade de alterações vasculares.30
Esses fatores podem, assim, comprovar a participação do ácido úrico na fisiopatogenia de alterações
cardiovasculares.31
Tratamento
Na literatura, é consenso o tratamento do ácido
úrico na população portadora de gota,9 porém, para
a população sem patologia gotosa ainda há grande
discussão. A partir dos dados expostos, talvez seja
possível propor o tratamento da hiperuricemia nos
hipertensos, assim como também na população sem
hipertensão, mas com nível sérico de ácido úrico elevado. Isto porque as observações citadas indicam
que o ácido úrico é um fator de risco isolado para a
ocorrência de evento cardiovascular entre os hipertensos e, provavelmente também, entre indivíduos
sãos. Estudos prospectivos são necessários para responder se o tratamento da hiperuricemia é capaz de
diminuir os eventos cardiovasculares comparado a
população não tratada.
Até o momento, as alternativas terapêuticas para o
tratamento da hiperuricemia são escassas. Na realidade, poucos são os medicamentos disponíveis; o alopurinol (Zyloric) e alguns uricosúricos como o probenecid e a benzobromarona (Narcaricina) são raros
10
Losartan(100mg)
+
HCTZ (25mg)
Losartan
(100mg)
HCTZ
(25mg)
*
8
*
1000
*
*
800
600
*
400
*
50mg (n=07)
100mg (n= 06)
*p <0,05 vs Basal
200
0
60
180
120
240
300
360
Tempo/minutos
Figura 2 – Efeito agudo do Losartan na excreção renal de ácido úrico.
50 mg (n=7)
100mg (n=6)
7
**
*
6
*
*
exemplos.8 Entretanto, existem dados interessantes a
respeito de efeitos uricosúricos indiretos de medicamentos utilizados na terapia da hipertensão arterial.
Um exemplo claro desse fato é o losartan, um bloqueador de receptor da angiotensina II.
Dados do serviço em que este estudo foi realizado
demonstraram efeitos importantes do losartan sobre o
metabolismo do ácido úrico.32 Foi constatada diminuição significante do nível sérico de ácido úrico nos pacientes em uso de losartan – ou da associação losartan
mais hidroclorotiazida – quando comparados a indivíduos sem medicação ou àqueles em uso apenas de
hidroclorotiazida (Figura 1).
Os dados do presente estudo também demonstraram um efeito agudo de aumento na excreção renal de
ácido úrico, sendo este mais precoce e mais intenso
quando utilizadas 100 mg de losartan. Contudo, o
mesmo efeito esteve presente com dose de 50 mg por
via oral (Figura 2).
Além disso, também foi demonstrado que a admi-
Ácido úrico (mg/g creatinina)
150
6
*
5
4
4
2
0
Diurético
Basal
Semana2 Semana4
Semana6
Semana8
*p<0,05 vs Diurético; p< 0,05 vs Basal ; **p <0,0063 vs Diurético
Figura 1 – Efeito crônico do Losartan sobre os níveis séricos de ácido
úrico. (n=14)
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150
3
Antes
Após
Antes
(6 horas)
*p<0,05 vs Basal
Após
(6 horas)
Figura 3 – Efeito agudo do Losartan sobre os níveis séricos do ácido úrico.
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nistração de 50 mg de losartan determinou queda significante de nível sérico de ácido úrico, sendo tal efeito ainda maior com dose de 100 mg (Figura 3).
Tais dados levam a crer num efeito colateral benéfico de redução dos níveis de ácido úrico que algumas
drogas, como o losartan, podem apresentar.
C o n c l u s ã o
Diversos estudos demonstraram que, na população de hipertensos, o ácido úrico é fator de risco isolado para ocorrência de eventos cardiovasculares; tal
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observação provavelmente seja válida também para a
população geral.
O tratamento da hiperuricemia com drogas uricosúricas e os inibidores da xantina oxidase têm seu
papel bem definido na população de gotosos, porém nenhum dado atual confirma que o tratamento
de indivíduos com níveis elevados de ácido úrico
diminui a ocorrência de eventos cardiovasculares
nessa população.
Estudos utilizando drogas que possam, de forma
direta ou indireta, reduzir os níveis séricos do ácido
úrico devem ser realizados na tentativa de comprovar
o efeito benéfico desse tratamento.
R e f e r ê n c i a s
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Recebido em 21/1/2002. Aceito em 26/2/2002.
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Agostino T
avares
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Universidade Federal de São Paulo
Disciplina de Nefrologia
Rua Botucatu 740
04023-900 São Paulo, SP
E-mail: [email protected]
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