MATRIX E CRISTIANISMO – Um “link” possível

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CURSO DE PSICOLOGIA 2004.1
ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA
PROFESSORA: SYLVIA LEÃO
MATRIX E CRISTIANISMO – Um “link” possível
Aluno:
Antonio José S. Souza
FORTALEZA – MAIO DE 2004
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INTRODUÇÃO
A Filosofia, em suas mais variadas vertentes, é constantemente utilizada para dar
sustentação e tornar possível através da Arte, da Religião, da Ciência e da Música e,
enfim, de toda e qualquer expressão de comunicação que vise representar nossas
percepções do mundo e de nós mesmos. Tendo em vista este fato, procuraremos, através
deste ensaio, analisar os elementos da filosofia cristã, inseridos – explícita ou
veladamente – na primeira parte da trilogia cinematográfica “THE MATRIX”, dos
irmãos Andy e Larry WACHOWSKI.
Entretanto, é imprescindível destacar os pressupostos ou fundamentos que
antecedem a filosofia cristã e que a possibilitaram e, sem os quais, não se poderia
empreender esta tarefa que agora nos ocupa: a Filosofia Grega. Portanto, a filosofia
cristã surge a partir da elaboração conceitual e do avanço em um terreno já cultivado
pelos gregos. Estes, por sinal, representados muito bem pelo ilustre ateniense Platão
(428-7 a.C. – 348-7 a.C.), concebiam o Homem como sendo um ser capaz de conhecer e
chegar à verdade por si mesmo, pelo correto encadeamento do pensamento lógico.
Todavia, enquanto este despertar não acontecia, os homens viviam iludidos pelos
sentidos, enclausurados numa caverna de onde só poderiam ver as sombras dos objetos
e dos seres. Assim, Platão acreditava que o mundo onde vivemos é um mundo de
aparências, uma cópia de um mundo perfeito, o mundo das idéias puras localizado além
deste que conhecemos. Tal pensamento está expresso e ilustrado na Alegoria da
Caverna. Assim, para explicar a origem de si e do mundo, os gregos acreditavam em
vários deuses e reconheciam que o seu fim último era o conhecimento pleno da verdade,
numa vida de igualdade na polis. Igualdade entre os iguais, diga-se de passagem, e não
igualdade entre todos... A plenitude do Homem, portanto, no pensar grego é alcançar o
Conhecimento pleno, a contemplação da totalidade das coisas... O mal é conseqüência
da ignorância do Bem...
Desse modo, os princípios da Filosofia Cristã são bastante diferentes da
concepção grega em vários aspectos, a saber: só há um Deus, criador de todas as coisas;
só Ele conhece a Verdade (Ele é a própria Verdade); o Homem, pela Fé é capaz de
conhecer a verdade que Deus lhe revela; o indivíduo sozinho é capaz de chegar a
verdade, desde que tenha fé, mas é preciso fazer o bem a todos; a Plenitude é estar na
presença de Deus, contemplando a sua perfeição; o Mal existente no mundo presente é
castigo ao homem pela negação ou distanciamento de Deus; Deus, porém, é
misericordioso e empreende ações impensáveis para resgatar o gênero humano: envia
um salvador, um Messias; à vida presente se seguirá uma outra na qual o Homem
gozará das delícias eternas da presença de Deus ou, ao contrário, o sofrimento perpétuo
(o inferno), se não tiver aderido ao projeto de amor que Deus lhe propôs.
Assim, percebemos que a Filosofia Cristã não é uma simples repetição da
filosofia grega, mas propõe muitos aspectos novos e peculiares. A centralidade do
sentido da vida e do mundo não é mais intuída ou descoberta pelo homem, mas revelada
pelo próprio Deus. O sofrimento é atribuído ao próprio homem e este só poderá libertarse com a ajuda de Deus. O mundo é uma realidade criada por Deus para todos, e, por
isso mesmo, não deve haver desigualdades: todos são iguais diante de Deus.
Para entendermos melhor o que isso significa, é necessário salientar o efeito inovador
inserido pelo cristianismo em vários aspectos da concepção vigente à época. Em
primeiro lugar, o cristianismo era de cunho eminentemente religioso e tinha como líder
e fundador um jovem que se apresentara como o Messias, defensor dos marginalizados,
dos excluídos e sem voz na sociedade da época. E mais: vivia e pregava o amor a todos,
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inclusive aos adversários e inimigos. De todos os modos, o Jovem Galileu subvertia a
ordem das coisas, era um escândalo para todos que o viam, menos àqueles a quem
defendia, claro. Por outro lado, o cristianismo primitivo também enfrentava grandes
dificuldades para superar as barreiras impostas pelo pensar filosófico da época, isto é, as
idéias gregas que explicavam a realidade das coisas e do próprio homem. A modificação
e a adequação dos conceitos, a inserção de novos elementos. O longo e exaustivo
caminho de sedimentação foi fomentado por grandes pensadores ao longo de dois
milênios, até aos nossos dias.
Destarte, os irmãos WACHOWSKI certamente conhecem bem essas formas de
interpretação e representação do mundo. É isso que se conclui ao assistir a obra que
produziram. O universo simbólico, a caracterização dos personagens, o ambiente e as
próprias referências diretas às dúvidas quanto à verdade da realidade são indicativos de
que eles queriam recolocar tais questões no panorama do discurso contemporâneo.
Portanto, em “The Matrix” percebemos claramente a alusão à imagem platônica da
Alegoria da Caverna e o enredo da luta entre os humanos e as máquinas é referência
explícita à luta constante entre o Bem e o Mal, própria da concepção do cristianismo e
outras religiões. A espera de um salvador (Predestinado) que vencerá as máquinas e
acabará a guerra (Neo) é a representação do Messias cristão, Jesus Cristo.
Apesar de termos dito que os irmãos WACHOWSKI utilizaram elementos da
filosofia grega e de algumas religiões para dar corpo e sustentação ao seu
empreendimento cinematográfico, é também necessário destacar que não sabemos ao
certo as suas reais intenções, os seus objetivos e pretensões. A princípio não se percebe
interesses apologéticos, nem proselitismos. Na verdade eles fizeram uma grande colcha
de retalhos, uma “salada” composta de inúmeros elementos da filosofia grega, cristã e
budista, tudo muito bem amarrado pela mais avançada e surpreendente tecnologia de
efeitos especiais. Ou seja, conseguiram a proeza de juntar as mais antigas indagações
humanas (a questão da verdade acerca da realidade apreendida por nossos sentidos...) às
mais impressionantes e atuais possibilidades de simulação e de recriação da realidade
que a tecnologia permite em nossos dias. Apesar disso, porém, permanecemos com as
mesmas dúvidas ao fim do espetáculo...
Vejamos então as semelhanças ou pontos de interseção entre o Cristianismo e
The Matrix1.
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Será necessário também nos referirmos invariavelmente à filosofia grega, posto que
todo o filme parece ser uma versão contemporânea da Alegoria da caverna.
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A idéia central de “The Matrix” é fundamentalmente a mesma da Alegoria da
caverna: há uma realidade aparente, na qual os seres humanos representam papeis e não
detêm a capacidade de decidir o próprio destino; tudo é “programado” por uma força
externa (a Matrix). Apesar disso, porém, há alguns indivíduos que conseguiram libertarse dessa cadeia de escravidão e empreendem uma verdadeira guerra para resistir e
encontrar aquele que será capaz de superar definitivamente o domínio opressor. Aqui,
portanto, encontramos o primeiro elemento da filosofia cristã: o Messias, o Cristo do
cristianismo é aquele que resgatará toda a humanidade e estabelecerá um tempo de paz e
plenitude para todos. Em Matrix, esse messias é Neo, aquele que vencerá as máquinas e
acabará com a guerra. Nesse particular é interessante a comparação entre Neo e Jesus:
ambos são jovens, não se sentem de modo algum revestidos de poderes especiais até
que chega um dia em que algum acontecimento desencadeia a transformação definitiva
em suas vidas.
Nas primeiras cenas o personagem principal é Trinity (“trindade”, em inglês),
alguém que já se libertou e que se aliou na busca pelo salvador e na guerra contra o
poder opressor. É uma daquelas que prepara o terreno para a chegada do messias. Isso
tem tudo a ver com o cristianismo: antes da chegada do Cristo, muitos profetas
enfrentaram os governos e disseminaram no meio do povo a semente da verdade que
Ele viria instaurar.
Neo (“novo”, em grego), por sua vez, não parece satisfeito com a sua realidade e
tem afinidade pela infração das normas estabelecidas. Ele é um racker de computador,
ou seja, alguém que vive na marginalidade, mas que é, desde o início, reconhecido
como o “messias”: “aleluia! Você é o meu salvador, cara. O meu Jesus Cristo pessoal”,
diz Choi, (ao receber um programa pirateado por Neo) no início do filme. Mas, também
está a procura de algo mais. Ele está procurando aquele que enfrenta o perigo, que
enfrenta o sistema, que questiona a realidade: Morfeu (“deus dos sonhos”. Juntamente
com Trinity faz o papel de João, o precursor de Jesus).
A forma como Neo é abordado também é “sui generis”: através da tela do
computador, virtualmente. Um estranho lhe dá instruções, indica o que fazer. No
cristianismo, por sua vez, o anúncio da chegada do Messias é feito por um anjo a uma
jovem sem grandes perspectivas (Lc 1.26-38)... Ela também não conhece aquele
emissário, mas acredita em sua palavra. Neo, por sua vez, apesar de hesitar um pouco,
acaba por seguir o coelho, o sinal que lhe fora indicado.
Ao encontrar-se com Trinity na boate, Neo é informado que tem sido observado
e que precisa tomar uma decisão, pois corre perigo... Ela sabe que ele busca uma
resposta porque também já a procurou. No cristianismo, por sua vez, acontece um
encontro semelhante: Maria visita sua parenta Isabel e esta reconhece no ventre daquela
a presença do Messias. Também ela expressa sua alegria em ver diante de seus olhos a
resposta para as perguntas de seu povo (Lc 1.39-45).
No escritório, enquanto vive sua outra vida e é advertido pelo patrão a respeito
de seu atraso, Neo parece confuso e distante. Ao fundo, operários limpam as janelas...
Puro simbolismo: a limpeza das janelas significará também o descortinar de uma nova
visão de Neo sobre a realidade que logo invadirá sua vida.
Ao ser preso, Neo é acusado de viver duas vidas paralelas: uma como uma
pessoa normal, cumpridora de suas obrigações e outra como um contraventor, alguém
que infringe as normas. Também é acusado de ter mantido contato com alguém mais
importante (Morfeu), alguém que é procurado mas que não consegue se esconder
completamente. Nesse ponto, é fácil lembrar que Jesus fora acusado de se dizer filho de
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Deus e falar com Ele (Lc 22.66-71; Jo 8, 13-26). No cristianismo, a busca empreendida
por Neo teria paralelo na busca da verdade e da comunhão com Deus, própria dos
cristãos.
No interrogatório, o agente tenta convencer Neo de que este deve escolher a vida
correta diante da lei e, acima de tudo, deve contribuir para a captura e aniquilação de
Morfeu, aquele que é prejudicial ao sistema estabelecido. Isso também aconteceu com
Jesus. Muitos tentaram convencê-lo de que deveria calar-se, aceitando a ordem vigente
em seu tempo (dominação romana).
Ao recusar o acordo proposto pelos agentes, Neo é “engravidado” por um objeto
estranho, passando a levar consigo uma escuta e uma semente daquilo de que não gosta.
Ou seja, o suposto controle externo da Matrix sobre sua vida... Mas tudo parece ser um
sonho. Entretanto, ao acordar, o telefonema de Morfeu indica que nem tudo foi de fato
um sonho, é necessário um encontro.
As cenas seguintes tratam dos preparativos para o encontro de Neo com Morfeu.
Este lhe dá orientações claras a respeito de um lugar para o encontro: a ponte da rua
Adams. Pontes, como sabemos, são lugar de passagem, de acesso a outros lugares. A
imagem da ponte é de um simbolismo impressionante. Parece mesmo um túnel que se
fecha por uma cortina d’água. Neo deverá ultrapassar o véu tênue de sua segurança
atual para confiar em pessoas desconhecidas... Não é de se estranhar que Jesus tenha
chamado seus primeiros discípulos numa paisagem também dominada pela água... (Mt
4.18-22).
Nos instantes seguintes, Neo é levado a tomar uma série de decisões: entrar no
carro ou não, seguir as orientações de uma estranha que lhe aponta uma arma... Enfim,
permanecer no carro ou tomar outro rumo. Nesse sentido, os seguidores de Jesus
parecem ter experimentado as mesmas experiências: deixar sua vida cotidiana de
pescadores e seguir um estranho com uma proposta totalmente inusitada e incomum.
Em ambos os casos, todos optam pelo desconhecido, pelo novo, embora não tenham
certeza dos resultados a que chegarão.
Assim, é de se supor que o cristianismo tenha aproveitado exatamente essa
tendência que o ser humano tem de buscar um significado diferente para a realidade
insatisfatória de sua vida. Todos nós buscamos algo diferente, uma nova possibilidade,
um jeito novo de encarar as coisas. O cristianismo acena para a possibilidade de uma
sociedade justa e igual para todos. Este é também o sonho daqueles que resistem à
Matrix.
Ao chegar a Morfeu, Neo é recebido com grande atenção e reverência. Ele que
considerava Morfeu alguém importante é tratado por este como mais importante. A
mesma cena se repete no encontro de Jesus com o profeta João, no momento de seu
batismo (Mt 3. 13-17). Mas não só neste momento: os profetas que vieram antes e que
anunciavam a vida do Messias eram tidos por importantes, mas insistiam em deixar
claro que haveria de vir alguém mais importante.
Morfeu traz à tona a questão da verdade – que não é possível dizer (expressar)
em palavras, mas é possível senti-la. Jesus também propõe as mesmas questões a seus
seguidores, afirmando que a sua doutrina é muito mais para ser vivida e praticada do
que propriamente expressa por discursos. Para aqueles que querem conhecer isso ele
convida para passar o dia com ele (Jo 1,38-39). Morfeu, por sua vez, oferece a opção
entre uma pílula azul e uma vermelha. A azul não traz novidade, tudo permanece como
está. A vermelha, por outro lado, levará ao mundo da verdade, à realidade como ela é de
fato. Esta escolha, porém, não permite retorno, não há como evitar as conseqüências. O
mesmo acontece no cristianismo: quem aceita a proposta de Jesus deve deixar tudo e
estar pronto a abdicar da própria vida para ser fiel ao compromisso assumido. A fé é a
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pílula vermelha do cristão, a qual lhe permite encarar tudo com um outro sentido,
inclusive aceitar que a vida presente não é o mais importante. Assim como Jesus,
Morfeu diz ao seu seguidor que só pode mostrar a porta, porém, só o outro é quem pode
decidir atravessá-la. O indivíduo é responsável, a ele compete a adesão ou a recusa.
Depois que escolhe prosseguir, Neo é levado para um ambiente diferente, a nave
aonde receberá as instruções que lhe permitirão despertar para a sua verdadeira
identidade e missão. Outra vez é possível estabelecer um paralelo com a experiência
vivida por Jesus no deserto, durante quarenta dias, ao final dos quais iniciou sua ação
pública.
O “renascimento” de Neo é algo extremamente simbólico e denota que a partir
de agora ele já não é mais o mesmo de antes, é alguém que pode ver a realidade como
ela é. O mesmo aconteceu com Jesus, após o retorno do deserto e o batismo. Só depois
desse renascimento é que Neo é apresentado à tripulação2 e conhece a nave, num tempo
muito à frente daquele em que se encontrava até a poucos instantes...
Da nave Morfeu emite um sinal pirata para dentro da Matrix... O cristianismo
primitivo emite também um sinal pirata para o interior da filosofia dos gregos...
apresenta uma nova lógica, na qual a ação do indivíduo passa a ter significado,
rompendo assim, com a concepção grega de não dar importância ao sujeito
isoladamente, mas somente ao conjunto de todos na polis.
A seqüência posterior apresenta o treinamento de Neo, baseado
fundamentalmente no aprendizado de lutas violentas e no desenvolvimento de
habilidades que possibilitem o enfrentamento dos agentes da Matrix. Também nesse
aspecto é importante notar que há agora uma analogia com a experiência de Jesus.
Entretanto, há aqui uma grande diferença: Jesus era radicalmente contra a violência.
Num dos treinamentos, Neo é exposto às armadilhas da Matrix e acaba por
surpreender-se ao confiar nos sentidos que o impelem a olhar uma bela mulher (de
vermelho) no meio da multidão. (Jesus também passara pela tentação no deserto, onde
tudo que um homem comum pode desejar lhe foi oferecido, com a condição de que Ele
se negasse a assumir a missão a que era destinado). Morfeu o adverte que os sentidos o
enganam e que a Matrix se utiliza desse recurso para apanhá-los. Novamente são os
gregos que estão sendo invocados aqui. Platão já havia demonstrado que o
conhecimento adquirido através dos sentidos é imperfeito, pois estes são facilmente
ludibriados pelas aparências. Também Jesus prevenira seus seguidores a respeito do
perigo de se deixar levar pelas aparências: a oferta da viúva tinha muito mais valor do
que as grandes somas depositadas pelos ricos, a sabedoria dos mestres da lei e dos
fariseus era insignificante diante da Sabedoria revelada aos pobres e pequeninos...
Ainda durante o treinamento de Neo, Morfeu explica que os agentes sempre
vencem porque seguem um padrão regido por regras. Para mudar isso é necessário
subverter tais regras. Jesus também vem trazer uma nova regra, a regra do amor e da
justiça.
A tripulação da nave é constituída por personagens de perfil muito simbólico: há
dois que são irmãos e um que não acredita completamente na proposta e na fé de
Morfeu. Seu nome é Cypher e ele será o traidor, aquele que entregará seus
companheiros aos agentes da Matrix. Isso faz lembrar Judas Iscariotes, aquele que traiu
Jesus, vendendo sua fidelidade por algumas moedas de prata. Cypher, assim como
Judas, sabe que está fazendo uma coisa errada, entretanto, reconhece que não quer a
verdade, prefere a realidade que os sentidos garantem. A sensação de degustar um bife é
melhor para ele do que a consciência de uma realidade que não consegue entender.
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Nesse ponto há uma referência explícita a elementos do Budismo: a nave é tripulada por
07 indivíduos e mais o comandante. Para o budismo, um Mestre precisa ter 07 discípulos.
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Assim como Judas, Cypher prefere garantias para a vida presente. Quer ser alguém
importante, um artista talvez. E, acima de tudo não quer lembrar do que está fazendo,
não quer sentir remorso.
Também Mouse, um outro tripulante da Nabucodonosor, defende a prevalência
dos sentidos da vida presente sobre qualquer outra realidade diferente disso: “negar os
nossos impulsos é negar aquilo que faz de nós humanos”. Isso corrobora a tese de
muitos estudiosos a respeito de que Judas teria se decepcionado com Jesus porque
imaginara inicialmente que Jesus viesse restaurar o reino terreno de Israel. Muitos
esperavam um Rei com grande poderio bélico e disposto a aniquilar os inimigos pela
força... Os tripulantes da nave, especialmente Cypher, parecem decepcionar-se ao ver
Neo hesitar e mesmo não ser capaz de superar pequenos desafios do próprio
treinamento. Ele parece humano demais, não parece ser o Predestinado, o Messias
esperado (Neo falha ao saltar de um prédio a outro. Mas não é o primeiro, muitos outros
falharam antes. Do mesmo modo, muitos profetas já haviam aparecido antes de Jesus,
Judas tinha boas razões para duvidar dele...). Isso justifica, portanto, que ele seja
entregue aos agentes, assim se saberá se de fato ele consegue demonstrar sua força. É
certo que o mesmo acontecera com alguns discípulos de Jesus, inclusive e
principalmente com Judas. A diferença talvez esteja no fato de que Cypher mantinha
uma paixão secreta por Trinity, além de detestar aquela realidade de privação na
clandestinidade. A inveja de Morfeu o corroia por dentro. Ele não hesita em tentar
eliminar o grupo enquanto eles estão indefesos... Parando por aí as semelhanças com
Judas. Todavia, é necessário destacar ainda o fato de que Cypher parece acreditar que se
Neo for mesmo o escolhido, algo acontecerá para salvá-lo daquele fim estúpido. E de
fato o inesperado acontece: um daqueles que ele acreditava ter eliminado reúne forças o
suficiente para imobilizá-lo e salvar parte do grupo, ficando apenas Morfeu como
prisioneiro.
Um pouco antes do desfecho das cenas às quais acabamos de nos referirmos, há
o encontro de Neo com o Oráculo, aquela que há muito previu a chegada de um
Salvador e que se encarregava de averiguar a veracidade daqueles que se apresentavam
como tal. Enquanto se dirigem ao oráculo, Morfeu adverte Neo quanto à necessidade de
deixar de usar as categorias de certo ou errado, o que também ocorre quando Jesus
ensina a seus discípulos que é necessário viver de outro modo, superando a lei comum a
que estavam submetidos.
A aparência do lugar é peculiar: é um tanto sujo, pichado. Há um banco com três
lugares e no assento do meio há um velho cego3 sentado. Muito estranhamente, Morfeu
faz um gesto de cabeça, em silêncio, e, mais estranho ainda, o cego corresponde à sua
saudação. O que isso significaria, na visão dos irmãos Wachowski? Certamente uma
alusão ao fato de que o verdadeiro conhecimento, o olhar verdadeiro, o olhar do sábio
independe dos sentidos físicos...
Para chegar ao Oráculo há um longo corredor, o qual pode significar o longo
caminho que devemos percorrer para aproximarmo-nos da verdade. O caminho do
discípulo também é longo.
Na ante-sala do oráculo há um grupo de crianças que realizam ações incomuns,
que fogem à esfera daquilo que tomamos por normalidade: objetos flutuam, crianças
lêem muito atentamente e um garotinho-monge exibe sua habilidade de retorcer
colheres. O interessante é que Neo não parece surpreso, mas também não demonstra
estar entendendo tudo aquilo. Do mesmo modo se sentiam os discípulos ao
testemunharem os milagres que Jesus fazia. A fala do pequeno monge é surpreendente:
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Concluímos que ele é cego porque usa uma bengala branca, exatamente como os cegos
costumam fazer.
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Neo precisa abandonar seus pressupostos. A colher não existe de fato, é a mente que a
cria. Assim, mudando a concepção de si mesmo, perceberá que a colher tomará a forma
que ele a atribuir. Outra vez somos reportados à idéia de que as coisas se apresentam da
forma como nós as pensamos. Jesus também instruíra seus discípulos a respeito da
necessidade de refazem suas concepções sobre tudo o que viviam e sabiam, precisavam
estabelecer um modo de vida baseado em um novo paradigma: o amor incondicional a
Deus, ao próximo e a si mesmo. Todos deveriam aprender a ir muito além do
cumprimento das leis sociais.
No interrogatório de Morfeu, o agente explica que a primeira Matrix não deu
certo porque os seres humanos não aceitaram o “programa”, muito embora ele tivesse
sido feito para que ninguém sofresse ou fosse infeliz. Outra vez nos reportamos ao
cristianismo. Segundo a tradição, Deus criou o paraíso, um lugar onde tudo era perfeito
e sem nenhum sofrimento e que aí colocou o Homem. Acontece que o homem fora
criado livre e optou por uma coisa diferente (pecou) e acabou sendo castigado, tendo
que viver de acordo com o próprio esforço e enfrentando a fragilidade e a extinção pela
morte (Gênesis). Assim, se os primeiros humanos rejeitaram o programa da Matrix, é
sinal de que foram criados com a capacidade de escolha, eram livres. Isso se assemelha
à idéia cristã: o homem usou sua liberdade e escolheu a vida segundo os seus sentidos e
desejos. Assim, sua rebeldia contra o Criador teve conseqüências drásticas e o condenou
a uma vida inteira de busca de reconquistar a vida que perdera.
O agente explica a Morfeu que não consegue entender porque os seres humanos
rejeitaram a Matrix e as razões que nos fazem definir a realidade através da desgraça e
do sofrimento. Não dá para entender a razão de nosso cérebro primitivo ter tentado
despertar. Outra vez é possível estabelecer ligações com o cristianismo: Jesus disse
certa vez a Nicodemos que é preciso nascer de novo, é preciso nascer pelo Espírito para
poder ver o que realmente é importante (Jo 3,1-8).
Por mais estranho que possa parecer, o agente Smith confessa a Morfeu que
também não suporta a Matrix, que também deseja se libertar. Não é difícil constatar que
alguns homens importantes chegaram a reconhecer em Jesus alguém importante e a
admirar sua proposta inovadora (o centurião e Pilatos - o procurador romano).
Para a libertação de Morfeu, Trinity e Neo utilizam a violência, o que difere
completamente do cristianismo, que jamais admite a violência.
Daí para a frente as cenas se encaminham para o desfecho do filme: a hora do
confronto de Neo com os agentes é iminente. Todavia, ele continua sem acreditar que
seja o Predestinado. Quando é finalmente atingido mortalmente pelas balas do agente,
Neo parece não acreditar. Todos ficam atônitos, não podem acreditar que tudo tenha
terminado. Trinity, por sua vez, mantém a esperança e a certeza. Seu amor não a
engana. Nesse aspecto há outra grande semelhança com o cristianismo: Jesus diz que o
amor do Pai é capaz de superar tudo e que quem acreditar nele, ainda que esteja morto,
viverá. Portanto, o amor de Trinity, expresso num beijo, “ressuscita” Neo, fazendo-o
perceber que ele é mesmo aquele que Morfeu e os outros acreditavam. Agora ele está
imune à ação dos agentes, supera todas as adversidades do mundo físico. Depois que
retorna da morte, Neo é visto primeiro por Trinity, sua amada. Jesus, por sua vez, foi
visto também por uma mulher após a ressurreição (Mc 16, 9-11).
No final do filme, uma voz constata: “sei que está com medo de nós, com medo
das mudanças. Eu não conheço o futuro. Eu não vim aqui te dizer como isso vai acabar.
Eu vim dizer como vai começar. Vou mostrar às pessoas um mundo sem você. Um
mundo sem regras e controle, sem limites e fronteiras. Um mundo onde tudo é possível.
Para onde vamos daqui é uma escolha que deixo pra você”.
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Neo desliga um telefone e voa para o céu. Jesus também sobe aos céus depois da
ressurreição. Tanto um como o outro saem do chão, superam a realidade concreta e se
elevam a uma dimensão superior, literalmente. Em outras palavras, Neo e Jesus atingem
um novo estágio de desenvolvimento, superam os limites do mundo físico.
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Conclusão
Como se pode notar, o filme Matrix tem muitos aspectos que retratam elementos
tanto da filosofia grega quanto do cristianismo. Todo o universo simbólico retrata o
imaginário e a concepção com que os gregos e os cristãos interpretam o mundo e sua
própria história na terra. Todo o enredo gira em torno de uma busca constante para
superar a dicotomia entre dois mundos, o mundo real e o mundo das aparências. Tudo
isso é semelhante à idéia contida na Alegoria da Caverna de Platão, como já foi dito.
Representa também a eterna luta do bem contra o mal, constantemente presente no
pensamento cristão.
O cristianismo adota a concepção de que Deus é Uno, mas também é trino: Pai,
Filho e Espírito Santo. No filme não é difícil encontrar também uma trindade: Morfeu
(pai) que de algum modo gera e desperta Neo (o filho que salvará a todos), e Trinity
(espírito, seu amor é que reanima Neo nos momentos difíceis). No cristianismo a
realidade do mundo é aparente, transitória e não representa aquilo que de fato os
homens precisam e desejam. É necessário que o homem supere sua tendência de apegarse a coisas insignificantes para encontrar a verdade de Deus. Em Matrix acontece o
mesmo. E, em ambos os casos, há a esperança e a certeza de que virá alguém que
restabelecerá a unidade entre a vida presente e a perfeição que há de vir depois. Todos
esperam um tempo de paz e harmonia, onde não haja mais sofrimento nem dor.
Os cristãos dão o nome de Céu ao lugar aonde todos viverão eternamente na
presença de Deus; em Matrix esse lugar é Zaion, ou Sião – numa referência direta a
Sião, um outro nome do país de Israel, lugar da bonança prometido aos Judeus
primitivos.
Assim, conclui-se que os irmãos Wachowski atualizaram, a seu modo, todas as
questões centrais que o homem vem se colocando deste os primórdios da história: o que
é a verdade? Como distingui-la na realidade apreendida pelos sentidos? Qual o sentido
da vida e do sofrimento? Será que o homem é capaz de desenvolver-se sozinho, ou
precisa de um ser superior a ele?
A tudo isso, porém, o cristianismo responde de forma clara: a verdade é o
próprio Deus e é Ele quem a revela ao mundo através de seu filho Jesus; o homem é
uma unidade constituída de um corpo físico e uma alma (espírito). O corpo físico é
perecível, a alma não. Mesmo que o corpo físico deixe de existir, o espírito do homem
permanece eternamente, é indestrutível.
Portanto, o cristianismo supera em muito a filosofia grega, especialmente no que
concerne à concepção de um Deus Uno e Bom, criador de todas as coisas; o homem
como uma unidade natural de corpo e alma (individual), e, finalmente, a idéia do
homem naturalmente decaído pelo pecado e à procura de elevação a um estado de
perfeição superior. O que para os gregos não tinha esse significado, pois bastava que o
homem percorresse retamente o caminho do conhecimento para atingir a perfeição e a
plenitude, isto é, atingisse o seu fim último.
Desse modo, não é difícil intuir que os autores do filme “The Matrix” conheçam
bem o universo da filosofia grega e do cristianismo, o que, aliás, é desnecessário citar
posto que o pensamento ocidental é constituído fundamentalmente pelo mesmo pano de
fundo dos mesmos. Entretanto, não obstante a isso, é necessário destacar que os irmãos
Wachowski decidem representar a luta entre os humanos e a força superior que os
oprime com o uso de força, armas e muita violência. O que não é nem de longe a idéia
defendida pelo cristianismo. O bom cristão é aquele que dá a sua própria vida para não
gerar atritos com o outro. O que vale é o amor.
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Em Matrix a condição do homem é de escravidão. Todos foram subjugados
pelas máquinas. No cristianismo, a escravidão é resultado da ação do próprio homem.
Foi o uso indevido da liberdade que o fez pecar e afastar-se da Perfeição, Deus. A
salvação, porém, depende de Deus. É Ele quem toma a iniciativa de salvar o Homem4.
Em Matrix, pelo contrário, a salvação depende do próprio homem; se Neo falhar, se ele
não for o Predestinado, nada poderá ser feito. Tudo estará terminado, até que o Eleito
apareça.
Além de todos os pontos de contato apontados, há ainda uma questão inerente ao
cristianismo e que também aparece em Matrix. Entretanto, não tendo a pretensão de
exaurir a temática aqui, nos limitamos a citá-la. Referimo-nos à questão de fundo
subjacente no cristianismo e no filme em questão. Vamos a ela: se Deus é Bom e
Perfeito, como é possível que nos tenha criado a nós humanos imperfeitos e maus? Por
outro lado, por que as máquinas (Matrix) escolheram escravizar os humanos? Não
poderiam retirar energia de bois ou cavalos? Responder a essas questões não é tarefa
simples, mas reconhecemos que elas se apresentam como provocações de nosso espírito
a fim de nos fazer refletir sobre a verdade acerca de nossa idéia de Deus e de nós
mesmos.
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O cristianismo de hoje, claro, especialmente na concepção da Teologia da
Libertação (TL) dá ao homem uma grande parte na responsabilidade pela
libertação: o céu já começa aqui, com a justiça social e a vida digna para
todos. Portanto, não adianta ficar esperando só pela ação de Deus, o homem
precisa agir, construir a sua libertação.
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Referências:
Werner Home Vídeo. The Matrix I. EUA, (2003).
GILSON, Etienne, BOEHNER, Philotheus. História da Filosofia Cristã. 6ª Ed.
Petrópolis: Vozes, 1995, 570-572.
Bíblia de Jerusalém. Edições Paulinas. São Paulo, 1981.
*Discussões em sala de aula.
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