um olhar sobre o Palco do - portal-rp

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
BACHARELADO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL
ARACELLI OLÍVIA MACÊDO SANTOS
O SURGIMENTO DE UMA COMUNIDADE EMOCIONAL EM TORNO DA
MÚSICA: UM OLHAR SOBRE O PALCO DO ROCK
SALVADOR
2012
ARACELLI OLÍVIA MACÊDO SANTOS
O SURGIMENTO DE UMA COMUNIDADE EMOCIONAL EM TORNO DA
MÚSICA: UM OLHAR SOBRE O PALCO DO ROCK
Trabalho de conclusão de curso apresentado à
Universidade do Estado da Bahia, como parte
dos requisitos para obtenção do grau de
Bacharel em Comunicação Social com
habilitação em Relações Públicas.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria do Carmo
Araújo
SALVADOR
2012
FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB
Santos, Aracelli Olívia Macêdo
O surgimento de uma comunidade emocional em torno da música: um olhar sobre o
Palco do Rock /Aracelli Olívia Macedo Santos . – Salvador, 2012.
62f.
Orientadora: Profª. Drª. Maria do Carmo Araújo.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Universidade do Estado da Bahia.
Departamento de Ciências Humanas. Colegiado de Comunicação Social. Campus I.
Contém referências e anexos.
1. Rock. 2. Fãs de rock. 3. Grupos de rock. 4. Cultura. I. Araújo, Maria do Carmo.
II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas.
CDD: 784.54
ARACELLI OLÍVIA MACÊDO SANTOS
O SURGIMENTO DE UMA COMUNIDADE EMOCIONAL EM TORNO DA
MÚSICA: UM OLHAR SOBRE O PALCO DO ROCK
Monografia apresentada à Universidade do
Estado da Bahia para obtenção do grau de
Bacharel em Comunicação Social com
habilitação em Relações Públicas.
Aprovada em:____/____/____
Banca examinadora
______________________________________________
Prof. Drª. Maria do Carmo Araújo (orientadora)
UNEB
______________________________________________
Prof. Dr. Antônio Dias
UNEB
Dedico este trabalho aos rockeiros baianos que compreendem a importância de se
construir uma cena cultural alternativa unificada e militam por isso.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos que contribuíram para o desenvolvimento deste trabalho, seja através de
sugestões e críticas construtivas, seja fornecendo fontes de informação importantes, ou com
simples palavras de incentivo.
Em especial, agradeço ao pessoal do São Caetano pela confiança e solicitude para conversar,
em diversas ocasiões, sobre o tema tratado, e pela receptividade que tornou o exercício desta
pesquisa mais que um trabalho acadêmico, mas o nascimento de um vínculo afetivo.
Quando você se pegar do lado da maioria, é tempo de parar e refletir.
(Jim Morrison citando Mark Twain, 1967)
RESUMO
O objeto de estudo do presente trabalho é o Festival Alternativo Palco do Rock, que há
dezoito anos é produzido em Salvador durante o Carnaval, atuando como uma opção de lazer
e entretenimento para os roqueiros soteropolitanos que não querem ou não têm como sair da
cidade durante esse período e atraindo também muitos roqueiros do interior do Estado, que
veem no Palco do Rock o maior representante da cena rock na Bahia. O ponto de partida desta
pesquisa é a problemática da busca pela identidade cultural no mundo contemporâneo ou pósmoderno, ocasionada pela mudança da condição do sujeito social no sistema de globalização
que gerou, por sua vez, crises de identidade. É dado ao Palco do Rock este enfoque porque, a
priori, o evento parece buscar a viabilização de uma proposta de agregação comunitária, em
prol da diversão e valorização do diferente, ao reunir seguidores de várias vertentes do gênero
musical rock (as ―tribos‖) na época de maior movimento da indústria cultural brasileira: o
Carnaval, evidenciando um caráter de diversidade cultural.
Palavras-chave: Rock. Identidade cultural. Tribos. Palco do Rock.
ABSTRACT
The study object of this work is the Alternative Festival Stage of Rock, which for eighteen
years has been produced in Salvador during Carnival, working as an option for leisure and
entertainment for rockers who live in Salvador and don‘t want or can‘t afford to leave the city
during this period and also attracts many rock musicians in the state who see the Stage of the
Rock the greatest representative of the rock scene in Bahia. The starting point of this research
is the issue of the search for cultural identity in the contemporary world or post-modern
condition caused by the change of the social system of globalization that created, in turn, an
identity crisis. It is given to the Stage of the Rock this conception because the event seems to
seek the viability of a proposition type community, for the purpose of enjoyment and
appreciation of excluded, putting together followers of several aspects of rock music style
("tribes") in the busiest time of the Brazilian cultural industry: Carnival, showing a character
of cultural diversity.
Keywords: Rock. Cultural identity. Tribes. Stage of the Rock.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Capa do disco da Tropicália....................................................................................20
Figura 2 – Chico Science..........................................................................................................26
Figura 3 – Manifestação hippie.................................................................................................30
Figura 4 – Slogan do Palco do Rock 2012................................................................................38
Figura 5 – Festival O Começo do Fim do Mundo....................................................................46
Figura 6 – Fotografia do Musiarte............................................................................................51
Figura 7 – Cartaz do Radiola Alternativa.................................................................................52
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO……………………………………………………………………............10
2 QUANDO A MÚSICA AGREGA PESSOAS...................................................................11
2.2 REVISITANDO A ESSÊNCIA..........................................................................................13
3 O ROCK NO BRASIL.........................................................................................................15
3.1 ANOS 50-60.......................................................................................................................15
3.2 ANOS 70-80.......................................................................................................................21
3.3 ANOS 90-2000...................................................................................................................25
4 O PALCO DO ROCK.........................................................................................................34
4.1 PENSANDO O PALCO DO ROCK..................................................................................38
4.2 CURADORIA PÚBLICA...................................................................................................38
4.3 OFICINA PALCO DO ROCK...........................................................................................39
4.4 ROCK E RESPONSABILIDADE SOCIAL......................................................................39
4.5 ESPAÇO PARA OS PEQUENOS ROQUEIROS..............................................................40
4.6 PRÊMIO PALCO DO ROCK.............................................................................................40
4.7 QUATRO DIAS DE ROCK – A POLÊMICA...................................................................40
5 UM GÊNERO, VÁRIAS TRIBOS.....................................................................................44
5.1 TRIBALISMO E TECNOLOGIA......................................................................................48
5.2 OUTROS PALCOS............................................................................................................50
6 CONCLUSÃO......................................................................................................................54
REFERÊNCIAS......................................................................................................................55
APÊNDICE A..........................................................................................................................56
APÊNDICE B..........................................................................................................................56
APÊNDICE C..........................................................................................................................59
APÊNDICE D..........................................................................................................................61
10
1 INTRODUÇÃO
Por se compreender que é válido lançar um olhar analítico sobre determinadas
manifestações musicais da atualidade que visam à reunião de pessoas que procuram integrar
suas afinidades e, de certa forma, tentam conduzir à legitimação de uma identidade em meio à
diversidade cultural que constitui uma sociedade, o Palco do Rock desperta a curiosidade para
descobrir o que representa para os roqueiros baianos, da capital e do interior, a ponto de leválos a se deslocar e até mesmo acampar no local onde acontece o evento, durante o período de
Carnaval.
Para tanto, foi feito um apanhado histórico-cultural do rock em seu país de origem
(EUA), no Brasil e em Salvador a fim de entender a representatividade desse gênero para as
juventudes de diferentes épocas e lugares, bem como compreender a forma como se deu a
incorporação desse gênero musical nessas culturas (RAMOS, CALADO). Também foi
realizada leitura teórica sobre o tema da identidade cultural na pós-modernidade (HALL) e
sobre novas configurações grupais nos espaços urbanos (MAFFESOLI), buscando relacionar
o papel do rock para os jovens da atualidade. Por fim, as entrevistas abertas com os
empresários do Palco do Rock foram de fundamental importância para perceber o
funcionamento do Festival – embora nem todas as informações relevantes puderam ser
obtidas – e com jovens que compõem o cenário roqueiro de Salvador para avaliar o nível de
importância que atribuem ao evento.
A relevância deste trabalho consiste em tentar explicar o que mobiliza jovens a se
reunirem em torno de um festival de rock realizado em pleno período carnavalesco em
Salvador – tida como a ―capital do Carnaval‖ –, contribuindo, desta forma, para ampliação do
entendimento sobre as configurações comunitárias alternativas que têm se formado nas
sociedades, principalmente nas dos espaços urbanos, no que diz respeito às modificações e/ ou
conservação de valores sociais no decorrer do tempo (BAUMAN) que podem motivar a
agregação de grupos sociais distintos. Vale ressaltar que esta pesquisa torna-se pioneira ao
tomar como objeto central o Palco do Rock para maior elucidação sobre as tribos que
compõem o espaço soteropolitano, já que este festival tem sido apenas citado em algumas
pesquisas sobre o papel do rock no cenário cultural baiano1.
1
Cf. Apêndice A.
11
2 QUANDO A MÚSICA AGREGA PESSOAS
A contemporaneidade, ou pós-modernidade, quando analisada sob o ponto de vista
sociológico, está marcada por um grande antagonismo: ao mesmo tempo em que as constantes
inovações tecnológicas propiciam aos indivíduos sociais diferentes formas de se comunicar,
ultrapassando as fronteiras geográficas com a compressão espaço-tempo, a comunicação não
parece fluir de forma plenamente satisfatória para esses mesmos indivíduos – pelo menos no
que diz respeito à sensação de fazer parte de um sólido grupo. Limites de localidade são
transpostos, mas parece crescer o sentimento de vazio. Inúmeras comunidades virtuais são
criadas diariamente no espaço cibernético, como prováveis tentativas de aproximação pessoal,
porém a necessidade de pertencimento a uma comunidade nos moldes tradicionais não se
mostra suplantada.
A pós-modernidade possui como sua maior característica a compressão tempo-espaço
que seria a principal causadora da fragmentação do sujeito social, especialmente nas
sociedades ocidentais, marcadas por grande individualismo. Essa fragmentação corresponde a
uma certa crise de existência, à perda de uma identidade cultural que, em outros tempos,
pareceria sólida, por isso mesmo facilmente identificável. Como afirma Stuart Hall:
O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está
se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades,
algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. Correspondentemente, as
identidades, que compunham as paisagens sociais ‗lá fora‘ e que asseguravam nossa
conformidade subjetiva com as ‗necessidades‘ objetivas da cultura, estão entrando
em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais (HALL, 2006,
p.12).
Diante disto, o sujeito pós-moderno procura maneiras de se situar culturalmente, isto
é, de encontrar o seu lugar no mundo, não necessariamente um espaço físico determinado,
mas um grupo com o qual possa compartilhar ideais, perspectivas, sonhos. Esta busca torna-se
ainda mais valiosa quando a pessoa parece não se enquadrar num padrão de comportamento
típico do local onde vive ou, melhor seria dizer, nos padrões, porque dificilmente alguma
sociedade contemporânea será considerada uniforme.
Esta busca por uma identidade cultural duradoura é um reflexo da necessidade do
indivíduo, mesmo que inconsciente, de dar um freio ao imediatismo cotidiano no qual tudo
parece se tornar facilmente descartável – até mesmo as pessoas, quando estas não são capazes
de se adaptar às demandas comportamentais desse novo tempo.
12
Você tem que criar a sua própria identidade. Você não a herda. Não apenas você
precisa fazer isso a partir do zero, mas você tem que passar sua vida, de fato,
redefinindo sua identidade. Porque os estilos de vida, o que é considerado ser bom
para você e ruim para você, as formas da vida atraentes e tentadoras mudam tantas
vezes na sua vida. (Bauman, 2011).
São muitos os fatores que podem aproximar pessoas, dentre eles a música.
Curiosamente, essa ferramenta comunicacional – uma das mais antigas e que também
acompanha o desenvolvimento da tecnologia – ainda atua fortemente como um elo entre esses
sujeitos fragmentados, insinuando uma nova forma de vida em sociedade, sem o apego
àqueles valores sociais rígidos contra os quais lutaram a juventude da Contracultura.
Que a música é uma linguagem universal, não resta dúvida. Talvez a única que possa,
de fato, ser considerada como tal. Através da música, um compositor pode transmitir ao
mundo o sentimento que quer passar sem ser necessário executar a tarefa de falar todas as
línguas do mundo, aliás, algo humanamente impossível. E que a música tem a capacidade de
unir pessoas de diferentes gerações, de diferentes costumes, por vezes de diferentes lugares,
em prol de um objetivo comum também não é novidade alguma – vide as canções de protesto
que se tornaram verdadeiros hinos em épocas distintas.
O que mais chama atenção no papel da música é a sua capacidade de se reconfigurar
com as necessidades do tempo. Ora ela surge como algo totalmente novo, como os manifestos
na Internet feitos por fãs que reivindicam o show de um grupo ou artista em seu país até que
ele apareça, ora ela reacende velhas formas de resistência cultural, como se pode constatar nas
manifestações independentes organizadas pelas diferentes juventudes.
O gosto pelo mesmo tipo de som pode dar origem a grupos com características tão
peculiares que, com o passar do tempo, firmam sua própria imagem na sociedade, por
exemplo, os forrozeiros, os regueiros, os roqueiros, etc. No caso do rock, especificamente
tratado neste trabalho, a imagem que se consolidou aqui no Brasil é carregada de conotações
negativas, levando seus adeptos a travarem uma luta constante contra o preconceito social, o
que de início significa desfazer o estereótipo de rebelde sem causa, para obter respeito.
Essa rebeldia musical juvenil pode ser encontrada em todas as classes sociais. A
história do rock está cheia de personagens que começaram com pequenas apresentações,
muitas vezes em lugares totalmente inadequados, para protestar ou simplesmente se divertir,
assim como outras não encontraram muitas dificuldades para alcançar o mainstream, a título
13
de ilustração: muitas das bandas de Brasília que fizeram sucesso nos anos 80 foram criadas
por jovens de classe média, como Legião Urbana e Capital Inicial, enquanto que outras, nessa
mesma época, mal tinham como fazer suas gravações, como Cólera e Inocentes.
Mas antes de adentrar na história do rock no Brasil, é importante conhecer o rock em
seus primórdios para compreender por que esse gênero musical, em muitas sociedades, está à
margem do culturalmente aceitável.
2. 1 REVISITANDO A ESSÊNCIA2
A origem
O rock‟n‟roll nasceu da fusão de dois gêneros musicais da década de 40, que, apesar
de populares, ocupavam segmentos marginais do mercado americano, então dominado por
grandes bandas e cantores como Bing Crosby e Frank Sinatra. Esses dois gêneros, vivos ainda
hoje, são o rhythm‟n‟blues (R&B) e o country & western (C&W). O primeiro tem raiz no
blues, estilo de canção dos negros do sul dos EUA. O segundo vem do folclore dos britânicos
que colonizaram a região e seus descendentes hillbillies (caipiras das montanhas).
A alcunha
O nome rock‟n‟roll vem da gíria dos negros estadunidenses do começo do século 20,
que a usavam para se referir ao ato sexual. O primeiro registro musicado dessa junção erótica
dos verbos to rock (balançar) e to roll (rolar) está num blues gravado por Trixie Smith em
1922: “My Daddy Rocks Me (With One Steady Roll)”, algo como Meu Papai Me Balança
(Com Um Rolar Ritmado). Ela era comum nas letras de rhythm‘n‘blues, febre dançante dos
anos 40 que foi se reformulando com o tempo até chegar ao rock‘n‘roll da década seguinte.
Quem popularizou o novo ritmo com o nome de rock‘n‘roll foi o DJ Alan Freed por meio de
um programa de rádio: Rock’n’Roll Party (Festa do Rock‘n‘Roll).
O primeiro disco
O primeiro disco de rock‘n‘roll de todos os tempos, para os especialistas, é ―Rocket
88‖, nome de um dos maiores sucessos de R&B de 1951, gravado por Jackie Brenston com
os Delta Cats. ―Rocket 88‖ foi produzido por Sam Phillips, o mesmo que, três anos depois,
2
Informações retiradas do volume 4 da Coleção 100 respostas da Revista Mundo Estranho (2004).
14
lançaria aquele que ficaria conhecido como ―o rei do rock‖: Elvis Presley. Seu predecessor,
Bill Haley, ainda era um obscuro cantor e guitarrista de country & western – até ser obrigado
pelo patrão a gravar uma versão de Rocket 88, tornando-se assim o primeiro cantor branco de
rhythm‘n‘blues.
O primeiro hit
A primeira canção de rock‘n‘roll a se transformar num hit internacional foi “(We‟re
Gonna) Rock Around The Clock” do grupo Bill Haley & His Comets. Ela alcançou o
primeiro posto da parada pop da revista Billboard em 09 de julho de 1955, permanecendo
nesta colocação por dois meses. O interessante é que a gravação tinha sido feita um ano e
meio antes, mas só foi estourar depois de entrar na trilha sonora de Blackboard Jungle (no
Brasil, Sementes da Violência), filme polêmico sobre a delinquência juvenil numa escola
pública. Em muitas cidades dos EUA, os rádios eram desligados bem na hora da canção
porque os adolescentes quase sempre destruíam o auditório da escola dançando sobre as
cadeiras. Devido a essa sensação cinematográfica, Rock Around The Clock espalhou o novo
som por vários países em menos de um ano. Porém, o rock‘n‘roll só voltaria a ocupar o topo
da parada em 21 de abril de 1956, com o primeiro hit de Elvis Presley: a canção “Heartbreak
Hotel”.
15
3 O ROCK NO BRASIL
3.1 ANOS 50-60
A introdução do rock no Brasil foi conturbada e polêmica, sendo alvo de rejeição por
boa parte dos brasileiros, durante muito tempo. Para entender esse preconceito no Brasil
contra o rock é necessário analisar o contexto histórico em que esse gênero musical surgiu no
país. Ainda na década de 1950, época em que o ritmo foi criado nos EUA, a cantora Nora Ney
gravou uma versão em português para ―Rock around the clock‖ do grupo Bill Halley & His
Comets – o primeiro hit rock‘n‘roll. A canção, assim como outras versões gravadas por outros
artistas, obteve repercussão somente em meio aos jovens da classe média urbana; é que,
diferentemente dos EUA, a maioria dos jovens daqui não se identificava com as letras das
músicas desse novo gênero, que geralmente falavam de farras, rachas e namoricos – o que
contribuiu para que os roqueiros obtivessem logo de cara a fama de ―rebeldes sem causa‖ 3.
Esses assuntos tratados nas canções de rock refletiam, em parte, a nova situação econômica
pela qual os EUA passavam (de desenvolvimento e consumismo), fator que também
colaborou para que o rock fosse visto na América Latina como um produto do imperialismo
norte-americano, ao passo que o Brasil experimentava uma onda de nacionalismo com o
advento da bossa-nova, ritmo ―genuinamente‖ brasileiro (Ramos, 2009).
Mas é importante fazer uma ressalva aqui: há uma pequena diferença do preconceito
contra o rock em suas origens nos EUA e no Brasil. Enquanto aqui esse gênero adentrou por
meio de discos gravados pela classe média branca, já sendo visto como um produto de
alienação norte-americano, nos EUA o rock era tachado de ―música negra‖, já que foi criado
por negros moradores de guetos, ou seja, o racismo foi o primeiro agravante na aceitação do
novo gênero musical. Ironicamente, a opressão do racismo acabou servindo de inspiração para
o músico Little Richard compor seu maior sucesso: Tutti-Frutti. No começo da carreira, no
fim dos anos 40, quando não conseguia se sustentar só com suas apresentações, ele trabalhava
lavando pratos na lanchonete da rodoviária de sua cidade, Macon, na Geórgia. Seu patrão,
branco, o tratava mal, xingando-o com frequência. Em resposta, o futuro ídolo do rock
inventou o “a-wop-bop-a-loo-bop-a-lop-bam-boom”, uma espécie de grito de guerra, que
nada significava, mas servia para liberar a raiva e acabou entrando como introdução de TuttiFrutti4.
3
4
Aliás, os maiores sucessos da Jovem Guarda foram versões de hits de artistas dos EUA.
Revista Mundo Estranho, 2004.
16
Uma ironia ainda maior envolve esta canção: ela só foi fazer sucesso após ser gravada
por Elvis Presley, pois é fato que somente após ter sido ―embranquecido‖ por músicos como
Elvis, Bill Haley e Jerry Lee Lewis, e ícones do cinema como James Dean, que o rock
ganhou seu devido espaço na mídia, embora, junto com isso, tenha adquirido a conotação de
música de rebelde sem causa de uma geração consumista.
Em meados da década de 1960, essa resistência ao rock foi um pouco mitigada com o
movimento da Jovem Guarda que se iniciou com a apresentação de um programa homônimo
na TV Record pelo cantor Roberto Carlos (o Brasa) e sua turma – com destaque para Erasmo
Carlos (o Tremendão), Wanderléa (a Ternurinha) e Martinha (a Queijinho de Minas). Esses
artistas ganharam a alcunha de ―reis do iê-iê-iê‖, em alusão aos Beatles, e ajudaram a difundir
o rock‘n‘roll no Brasil, além de ditarem moda entre a juventude da época. O programa fazia
tanto sucesso que roubou a audiência de outro apresentado na mesma emissora: ―O Fino da
Bossa‖, comandado por Elis Regina que se viu obrigada a reformular o programa para tentar
salvá-lo, mas, apesar de seus esforços, a Record o tirou do ar pouco mais de um ano depois –
mais precisamente em 19 de junho de 1967. Estava declarada a guerra contra o rock‘n‘roll: a
música estrangeira que queria ―roubar‖ a ―identidade‖ da música brasileira.
Duas semanas antes desse fato, Elis fez uma ameaça aos roqueiros da Jovem Guarda
durante a exibição do programa ―Show do Dia 7‖, causando um enorme desconforto por entre
os bastidores da emissora que mais tarde soube utilizar comercialmente aquele conflito: criou
um novo musical para substituir ―O Fino‖, intitulado ―Frente Única – Noite da Música
Popular Brasileira‖ no qual sete emepebistas se revezavam semanalmente na apresentação:
Elis Regina, Jair Rodrigues, Geraldo Vandré, Wilson Simonal, Chico Buarque, Nara Leão e
Gilberto Gil, que a essa altura já havia se tornado um convidado assíduo do extinto ―Fino da
Bossa‖ por Elis.
O Brasil já havia entrado no período da Ditadura Militar e para cantores e
compositores como aqueles tudo o que a população não precisava, naquele momento, era de
canções ingênuas, alheias às atrocidades acometidas contra os brasileiros, principalmente os
que eram considerados comunistas: perseguições políticas, prisões arbitrárias, torturas,
exílio... Era necessário se rebelar, reivindicar, protestar. E as letras das canções de rock‘n‘roll
ainda distavam dessa demanda, no entanto, não seria justo não admitir que a Jovem Guarda
contribuiu, ainda que sutilmente, para algumas mudanças no comportamento conservador da
sociedade ao introduzir o uso da minissaia e falar abertamente sobre namoro.
17
Segundo Carlos Calado (1997), a suposta finalidade da criação do ―Frente Única‖ era
valorizar a cultura da música brasileira e seguindo esta linha foi organizada uma espécie de
pré-estreia com um ato público que ficou conhecido como ―a passeata contra as guitarras‖.
Tal acontecimento deixou Gil muito desconfortável, pois ele também já estava influenciado
pela sonoridade dos Beatles e meses antes havia passado, em Pernambuco, por uma
experiência musical que expandira sua percepção para os rumos que deveria tomar a música
produzida no Brasil:
A convite do Teatro Popular do Nordeste, Gil fez uma temporada de shows em Recife
e, enquanto isso, aproveitou para desvendar a cultura do sertão pernambucano – suas
manifestações folclóricas, ritmos etc. Num de seus passeios, teve a oportunidade de conhecer,
dentre outras coisas, a Banda de Pífaros de Caruaru e ficou tão encantado a ponto de se
emocionar. Aquela descoberta, aliada a uma conversa que tivera com Guilherme Araújo (seu
amigo e empresário na época) durante a viagem a Recife, o deixou perturbado na volta ao Rio
de Janeiro. Gil refletiu sobre o que Araújo lhe disse a respeito da MPB que estava sendo feita:
Em sua opinião, comparada ao que estava acontecendo em outras partes do mundo,
a MPB soava velha e preconceituosa. O resultado disso era que os jovens brasileiros,
principalmente nas grandes cidades, estavam ouvindo música estrangeira como
nunca. Ou mesmo se contentavam com as poucas atrações do iê-iê-iê nacional, que
quase sempre deixavam a desejar (CALADO, 1997, p.98).
Assim como o amigo, Gil também já vinha se fazendo determinados
questionamentos. Apesar da grande admiração que nutria pelo trabalho de João Gilberto,
―pai‖ da bossa nova, havia também a vivacidade sonora dos Beatles...
Guilherme sentia que estava na hora de tentar rejuvenescer a música brasileira. Para
isso, era preciso deixar os preconceitos com ritmos estrangeiros ou mesmo com
certos instrumentos de lado. Por que não usar guitarras elétricas? O visual também
era muito importante: quem quisesse atingir o público mais jovem teria que se vestir
como ele, usar roupas mais modernas, em vez da sisudez que dominava o cenário
musical do país (CALADO, ibidem, loc. cit.).
Dessa forma, Gil chega à conclusão de que era preciso criar um novo movimento
musical que chacoalharia as estruturas musicais em voga. Sem tanta sisudez da MPB
politizada, tão pouco com a ingenuidade copiosa da Jovem Guarda. Para isso, precisava se
juntar com pessoas dispostas a causar essa revolução e o primeiro a ser contatado foi Caetano
Veloso.
18
Quase que concomitantemente a essa constatação de Gil, Caetano também andava às
voltas com o som que ele próprio estava produzindo. Ser um ―descendente direto‖ da Bossa
Nova já não supria suas necessidades musicais. Aquele movimento havia sido distorcido de
sua ideia original (concebida pelo baiano João Gilberto), tornando-se elitizado pelos boêmios
da zona sul carioca, ao buscar uma estética que se afastava das raízes brasileiras, decalcando o
jazz estadunidense. Além disso, o jovem músico estava fortemente influenciado pelo filme
Terra em Transe do cineasta Glauber Rocha e pelo programa Discoteca do Chacrinha, que o
impulsionaram ainda mais a criar um movimento musical que refletisse muito além do quadro
social vigente, mas o povo brasileiro.
Convencido pela irmã Maria Bethânia a assistir ao programa da Jovem Guarda para
buscar uma nova inspiração, Caetano até que gostou um pouco de Roberto Carlos e sua turma,
achando interessante seu jeito de cantar e o visual pop do programa, porém o que lhe chamou
mesmo a atenção foi a guitarra elétrica. Os olhos de Caetano encontraram naquele
instrumento tão rejeitado pelos seguidores da Bossa Nova a informação poética mais incisiva
que ele estava procurando. E se se misturasse o rock e a bossa?
Empolgados com a possibilidade inovadora na música brasileira, Gil e Caetano
convocaram uma reunião com amigos e colegas compositores a fim de lhes explicar a ideia do
movimento que estava para nascer, dentre eles: Edu Lobo, Chico Buarque, Paulinho da Viola,
Torquato Neto e Capinan. A intenção era tão boa que parecia impossível de ser rejeitada. Mas
foi.
A parcela nacionalmente reconhecida da esquerda cultural brasileira estava
dicotomizada: de um lado tinham-se os radicais socialmente engajados que se recusavam a
abandonar as ferrenhas músicas de protesto com uma sonoridade ―puramente‖ brasileira; de
outro, os amantes incondicionais de canções que soassem sofisticadas e que não estavam lá
muito interessados em revoluções musicais. Gil e Caetano se viram sós, mas não por muito
tempo...
Meses depois, eles foram convencendo pouco a pouco alguns parceiros musicais e
encontraram outros dispostos a se abrir a novas experiências criativas e assim fundaram o
movimento que intitularam de Tropicália, cujos principais representantes foram: a banda Os
Mutantes (formada por Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias), Tom Zé, Jards Macalé,
Nara Leão, Gal Costa, Jorge Ben, Rogério Duprat e Torquato Neto.
19
Os tropicalistas sorveram elementos do Antropofagismo, do Concretismo e da Pop
Art, revolucionando a estética musical da moda com um visual extravagante, um som bastante
experimentalista e uma composição poética metafórica, a exemplo de ―Panis Et Circenses‖
canção-título do único disco oficial do grupo:
Eu quis cantar
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
Mandei fazer
De puro aço luminoso um punhal
Para matar o meu amor e matei
Às cinco horas na Avenida Central
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
Mandei plantar
Folhas de sonho no jardim do solar
As folhas sabem procurar pelo sol
E as raízes procurar, procurar
Mas as pessoas na sala de jantar
Essas pessoas na sala de jantar
São as pessoas da sala de jantar
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
(Gilberto Gil/ Caetano Veloso/ Mutantes)
Panis et Circenses (do latim, Pão e Circo) era uma crítica à política implantada pelo
Governo Militar para tentar manter a população alienada através da ―Aliança para o
Progresso‖ (programa assistencialista estadunidense criado com a intenção de conquistar a
simpatia dos latino-americanos) e do entretenimento – em especial, da televisão. Era também
um deboche com os críticos da Tropicália, mas criticava principalmente os costumes e a
alienação das pessoas que preferiam o conservadorismo do seio familiar a buscar soluções
20
para mudar o quadro social vigente, limitandose a se preocupar com assuntos relacionados ao
seu pequeno círculo de convivência.
Apesar de seus esforços, os tropicalistas
não conseguiram desfazer na mente da maior
parte dos jovens intelectuais esquerdistas a
imagem do rock como um produto da indústria
cultural
norte-americana,
até
porque
a
Tropicália era notadamente influenciada pelo
movimento da contracultura, proveniente mais
uma vez dos EUA, que encontrou no rock seu
Figura 1 - Capa do disco da Tropicália
maior porta-voz. A influência estava nas roupas, nas atitudes rebeldes e, claro, no não receio
de introduzir elementos musicais diferentes em suas composições. O rock psicodélico, por
exemplo, tão apreciado pelos hippies nas décadas de 60 e 70 flertava com instrumentos típicos
da música indiana.
A irreverência constante dos tropicalistas em seus shows e apresentações em
programas de TV conquistou a antipatia de vários lados e não demorou muito para que fossem
atacados. Em 1968, “Criticados diariamente na mídia ou mesmo por colegas do meio
artístico, sem falar nas cartas revoltadas de pais de família e prefeitos de cidades
interioranas contra o programa que faziam na TV Tupi, os tropicalistas já estavam
praticamente isolados” (Calado, 1997, p.11) e em dezembro desse mesmo ano Caetano
Veloso e Gilberto Gil foram presos pelos militares, acusados de subversão. Era o fim de uma
revolução musical que estava apenas começando...
Ainda sob o jugo dessa experiência, Gil compôs os primeiros versos da canção
―Futurível‖:
Você foi chamado, vai ser transmutado em energia
Seu segundo estágio de humanoide hoje se inicia
Fique calmo, vamos começar a transmissão
Meu sistema vai mudar
Sua dimensão
Seu corpo vai se transformar
Num raio, vai se transportar
21
No espaço, vai se recompor
Muitos anos-luz além
Além daqui
A nova coesão
Lhe dará de novo um coração mortal
A Tropicália ou Tropicalismo foi um movimento efêmero do ponto de vista de sua
duração (de outubro de 1967 a dezembro de 1968), mas suficiente para marcar seu nome na
história da música brasileira, pelo talento de suas figuras emblemáticas que influenciaram
muitos outros artistas que ainda estavam por ascender.
3.2 ANOS 70-80
Em meados dos anos 70, o rock ―ganhou‖ nova oportunidade de se mostrar: o
movimento da contracultura que, como em tantos outros lugares do mundo, também adentrou
no Brasil havia ampliado a mente das juventudes para a percepção do novo e as canções de
MPB já não eram explicitamente contestadoras devido à repressão da Ditadura; com isso, o
rock passou a ser visto como um estilo alternativo, o que significava ser diferente dos padrões
estabelecidos, por conseguinte, uma nova ―arma‖ para se contestar e atacar o sistema.
Longe do perfil comportado dos jovens adeptos da Jovem Guarda da década
anterior, o visual do roqueiro setentista parecia bem mais próximo dos hippies da
cultura internacional. De cabelos longos, jeans surrados e comportamento
antissocial, anunciavam uma rebeldia que não poderia encaixar-se no caráter ―sem
causa‖. Ao contrário disso, as causas saltavam aos olhos da população de um país
em crise, sob a égide de uma ditadura militar que tentava calar os sujeitos sociais a
qualquer custo. Pelo menos o visual não poderia ser calado e, assim, se sobressaía
como uma forma de contestação (RAMOS, 2009, p. 18).
Alguns autores, como Joaquim Alves Aguiar (apud Muhlstedt, 2004), consideram o
rock brasileiro dos anos 80 ―desengajado socialmente‖ quando comparado ao que se produzia
na década de 70; porém, essa afirmação é feita quando se analisa o papel do rock na
formulação de um projeto de vida, por exemplo: o famoso lema ―sexo, drogas e rock‘n‘roll‖
corroborava com a ideologia da juventude, daquela época, de brigar pela liberação social e
pessoal de maneira agressiva contra todo tipo de convenção. Além disso, esse envolvimento
do rock com o engajamento social estava muito mais ligado aos jovens dos EUA que
protestavam, dentre outras coisas, contra a corrida armamentista que havia sido instaurada
22
desde o início da Guerra Fria – período no qual os EUA e União Soviética estiveram
envolvidos nas guerras da Coreia (1950-53), do Vietnã (1962-75) e do Afeganistão (1979-89).
No Brasil, apesar da população estar vivendo sob o Regime Militar, os artistas que
seguiam a linha da chamada ―música de protesto‖ ainda eram, em sua maioria, da MPB. A
rebeldia do rock chocava mais pelo seu visual e som experimentalista do que por algum tipo
de envolvimento político. Em geral, pode-se dizer que a relevância do rock brasileiro da
década de 70 está mais pela busca de uma ―originalidade‖ nas músicas e letras que pela sua
representatividade junto aos jovens consumidores do mercado fonográfico. Nem mesmo os
Mutantes alcançaram grande sucesso comercial, apesar de seu pioneirismo ter influenciado
outras gerações de músicos.
Como é possível perceber, os caminhos de uma dada sociedade estão sujeitos às
influências das demandas de seu contexto econômico e político, mas também das demandas
culturais; portanto, não parece ser muito sensato avaliar, de forma tão categórica (como o faz
Aguiar) o comportamento de uma juventude em detrimento de outra.
Na busca por dar uma nova roupagem ao rock brasileiro, surgiu um novo estilo em
meados dos anos 70 que ganhou destaque nacional: o ―rock rural‖, que incorporava a
musicalidade do folk rock, do country e do rock psicodélico com elementos da música
brasileira, principalmente do Nordeste, e que remetia à vida campestre. Essa nova
musicalidade já estava em fase experimental em fim dos anos 60 (enquanto a Tropicália ainda
causava rebuliço) por Tom Zé, Rogério Duprat e o grupo O Terço.
O rock rural não chegou a ser um movimento musical, mas um novo segmento
experimentalista, uma espécie de ―filhote da Tropicália‖. Seu principal representante foi o trio
Sá, Rodrix e Guarabyra, cuja música ―Casa no campo‖ (regravada por Elis Regina) é
considerada um marco na formação desse estilo. Outro artista que despontou após se
aventurar pelo rock rural foi Raul Seixas, um dos maiores ícones da música nacional. Apesar
de passear por vários estilos, foi mesmo o rock que marcou a imagem artística de ―Dom
Raulzito‖, um rebelde contraditório e polêmico.
Mas o rock só conquistaria relevância no Brasil a partir dos anos 1980, com a
reabertura do país para a democracia, que possibilitou novamente aos jovens gritar por justiça
e liberdade de expressão através da música sem correrem os perigos tão salientes das décadas
de 60 e 70. O Brasil passava por um processo de redemocratização com o declínio da
23
Ditadura e a realização de campanhas pelas eleições diretas. A inquietude da população sobre
o futuro do país, mais uma vez, se refletiu na música, porém agora serviu muito mais que uma
válvula de escape para aqueles que, de uma forma ou de outra, se sentiam deslocados em
meio ao caos cotidiano, abrindo as portas para a reverberação do sentimento juvenil, e é aí
que o rock ganha um impulso sem precedentes na história do país, beneficiado pelo
crescimento vertiginoso da indústria fonográfica e vice-versa.
Inúmeras bandas e artistas solo surgiram: foi uma explosão de grupos encabeçados por
nomes como Legião Urbana, Os Paralamas do Sucesso, Titãs, Ultraje a Rigor, Barão
Vermelho, Kid Abelha, Engenheiros do Hawaii, Biquíni Cavadão, Lobão, Camisa de Vênus,
Cólera, Inocentes, Ratos de Porão, Sepultura, etc., cada um com suas peculiaridades:
Paralamas do Sucesso popularizou a mistura do rock com o ska; Barão Vermelho mostrava
sua forte influência do blues; Ratos de Porão contribuiu massivamente para a divulgação do
estilo hardcore/punk; Sepultura investiu num rock bem mais pesado, na linha trash metal,
sendo, até os dias atuais, a banda brasileira de maior reconhecimento internacional.
Coincidentemente ou não, boa parte dos grupos que ainda permanecem em atividade
são aqueles que investiram numa música mais séria, cantando os anseios e reivindicações de
uma nova geração de brasileiros. Como já era de se esperar, parcelas dos jovens procuravam
neles uma representação. Contudo, é importante salientar que “o rock no Brasil dos anos 80
não se apresenta com as mesmas características que o consagrou como gênero musical por
excelência da juventude da década de 1960, principalmente nos EUA” (Mühlstedt, 2004, p.
02). Contextos diferentes, valores diferentes; mas é fato que o rock brasileiro foi porta-voz da
Geração Coca-Cola5.
Quando se considera a postura de bandas e artistas solo que se destacaram na época e
que até hoje servem de referência para músicos que nem eram nascidos nos anos 80, isto é,
quando se analisa suas composições, apresentações e relação com o público, percebe-se que
havia sim uma crítica ao sistema social vigente, um questionamento existencialista e uma
tentativa – mesmo que para alguns imatura – de incitar a juventude da época a causar uma
revolução social.
5
Alusão à música Geração Coca-Cola da banda Legião Urbana, ícone da época.
24
A título de exemplificação da afirmação acima, a seguir tem-se duas composições da
época: a primeira da Plebe Rude – banda punk que compunha a ―Turma da Colina‖ 6,
juntamente com outros grupos, como o Aborto Elétrico, do qual também se originou Capital
Inicial e Legião Urbana, considerada quase que por unanimidade a maior banda de rock
brasileira dos anos 80, em termos musicais:
Plebiscito
Um pouco além de notícias de jornal
Um pouco aquém da situação atual
Este absurdo já é tão constante
Se você para por um instante
O que tens que evitar é se acostumar
O poder do sim ou não
As letras em negrito
Quem cala consente, isso não
Proponho um plebiscito
O absurdo e essa indecisão
Tanto esforço para dar uma opinião
A plebe incita uma chance
Se você para por um instante
É o caminho ao voto popular
O poder do sim ou não
As letras em negrito
Quem cala consente, isso não
Proponho um plebiscito.
A segunda da Uns e Outros, banda formada no Rio de Janeiro, em 1983, que obteve
fama em 1989 com seu álbum homônimo, lançando os clássicos ―Dias Vermelhos‖ e ―Carta
aos Missionários‖ – dedicada aos chilenos contra o ditador Augusto Pinochet7.
6
A Turma da Colina foi o nome dado a um grupo de jovens que se reuniam, entre o final da década de 1970 e o
começo da década de 1980, na Colina, conjunto habitacional dentro do campus da Universidade de Brasília.
7
Informação retirada do website oficial da banda (www.unseoutros.com) em 23/07/2012
25
Carta aos Missionários
Missionários de um mundo pagão,
Proliferando ódio e destruição
Pelos quatro cantos da terra
A morte, a discórdia, a ganância e a guerra... e a guerra.
Missionários em missões suicidas
Crianças matando crianças inimigas
Generais de todas as nações, fardas bonitas, condecorações
Documentam na nossa história
O seu rastro sujo de sangue e glória.
Vindo de todas as partes, indo pra lugar algum
Assim caminha a raça humana, se devorando um a um
Gritei para o horizonte, e ele não me respondeu
E então fechei os olhos, sua voz
Assim me bateu...
O ápice da força que o rock havia ganhado no Brasil aconteceu no ano de 1985, em
Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro, com a primeira edição do Festival Rock in Rio.
Para sua realização foi criado um espaço de convivência batizado de Cidade do Rock que
durante os dez dias do Festival reuniu cerca de 1 milhão e 380 mil espectadores8.
3.3 ANOS 90-2000
Com o desenvolvimento da Internet e a chegada da MTV, o rock nacional ganhou
novos rumos: as bandas independentes obtiveram mais oportunidade de mostrar seu trabalho
para o grande público e chamar a atenção das gravadoras. A MTV impulsionou a indústria de
produção de videoclipes e desde então vários programas de música invadiram a TV brasileira.
8
Informação retirada de http://dev.rockinrio.com.br/rock-in-rio/historia/ em 13 de julho de 2012
26
Bandas como Mamonas Assassinas e Raimundos se
tornaram uma febre entre os jovens, mesclando rock com
elementos da música popular e com letras escrachadas. Com
atitudes irreverentes nas apresentações, esses grupos
trouxeram de volta a onda do rock debochado.
Em 1991, aconteceu a segunda edição do Festival
Rock in Rio, dez anos depois a terceira edição e novamente
uma década depois a quarta edição. Em 1994, outro marco
para a música brasileira: o Movimento Manguebeat,
Figura 2 - Chico Science
liderado por Chico Science e Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, que nasceu em Recife (PE),
visava resgatar a valorização da cultura regional, como, por exemplo, o maracatu,
repaginando-a com elementos de várias vertentes musicais, dentre elas, o rock.
Mas o Manguebeat não se limitou somente à música, por isso deve ser considerado
como um movimento cultural. Além de articular manifestações culturais tradicionais e
modernas, com um foco mais voltado para a cena da periferia, procurou mudar a realidade
social de Recife e região metropolitana incentivando a participação política popular, em
especial dos jovens, através de práticas coletivas (CARVALHO, GAMEIRO, 2008). Isto foi
de grande valia para a reconstrução da identidade cultural local, pois sujeitos sociais que antes
estavam à margem dos projetos que configuravam as diretrizes de sua realidade enquanto
cidadãos se viram agentes de um poder instituinte.
O Manguebeat questionou o modo de construção das políticas públicas e inicialmente
incitou os cidadãos marginalizados a se organizarem de forma autônoma. Esta atitude em
muito se assemelha ao movimento punk que surgiu no Reino Unido, nos anos de 1970,
pregando a necessidade dos que estavam à margem do sistema social de agir em conjunto.
Um grupo de jovens, influenciados pela efervescência do fim da ditadura e em
contato com influências musicais, produziu um programa na Rádio Universitária. A
iniciativa mostrou que havia espaço para criar e divulgar música fora dos parâmetros
estabelecidos pelas multinacionais da indústria fonográfica. Inconformados com a
realidade social e urbana da capital, Recife, produzem o Manifesto do Movimento
Manguebit no qual apresentam uma alternativa para o marasmo cultural: ―livrar-se
dos grilhões do tradicionalismo abandonando a energia negativa do melaço de cana
e energizando o ambiente fértil da lama‖. (CARVALHO, GAMBEIRO, 2008, p.07)
As letras das músicas faziam críticas incisivas ao sistema social, reivindicavam
cidadania enquanto denunciavam as mazelas cotidianas dos marginalizados e enalteciam sua
27
identidade cultural. Dentre os cenários retratados, o manguezal era tema constante, visto que
Recife foi construída sobre manguezais, cujas áreas mais degradadas são ocupadas por
moradores de favelas:
Corpo de lama
Este corpo de lama que tu vê, é apenas a imagem que sou.
Este corpo de lama que tu vê, é apenas a imagem que é tu.
Que o sol não segue os pensamentos, mas a chuva mude os sentimentos.
Se o asfalto é meu amigo eu caminho, como aquele grupo de caranguejos, ouvindo a música
dos trovões.
Essa chuva de longe que tu vê, é apenas a imagem que sou.
Esse sol bem longe que tu vê, é apenas a imagem que é tu.
Fiquei apenas pensando, que seu rosto parece com minhas ideias.
Fiquei lembrando que há muitas garotas em ruas distantes.
Há muitos meninos correndo em mangues distantes.
Essa rua de longe que tu vê, é apenas a imagem que sou.
Esse mangues de longe que tu vê, é apenas a imagem que é tu.
Se o asfalto é meu amigo...
(Deixar que os fatos sejam fatos naturalmente, sem que sejam forjados para acontecer.
Deixar que os olhos vejam pequenos detalhes lentamente.
Deixar que as coisas que lhe circundam estejam sempre inertes,
como móveis inofensivos,
pra lhe servir quando for preciso,
e nunca lhe causar danos morais, físicos ou psicológicos).
(Chico Science e Nação Zumbi)
28
Para fortalecer sua articulação com os grupos e coletivos culturais das periferias de
Recife, o Manguebeat criou o festival anual Acorda Povo, ainda atuante, no intuito de
promover focos de manifestações culturais do subúrbio. Além de música, o Festival dialoga
com o grafite, com a produção audiovisual, promove palestras, debates e diversas oficinas,
dentre elas, de moda e de reciclagem.
Por toda a sua atuação político-cultural, o Manguebeat conquistou reconhecimento em
diversas camadas sociais, a despeito de interesses políticos vigentes. Vale ressaltar que outros
movimentos surgiram em Recife, inspirados pelas ações do Mangue, como, por exemplo, o
Movimento Cultural Boca do Lixo.9
O Manguebeat existe até hoje, apesar de Chico Science, seu principal idealizador, ter
falecido em 1997 num acidente de carro. As transformações culturais promovidas pelo
movimento, nas palavras de Fred 0410, ―tomaram proporções irreversíveis”11.
Como é possível perceber, o espírito de coletividade parece estar presente em qualquer
época, não sendo um privilégio histórico das juventudes que compuseram a contracultura, ao
menos quando se faz uma comparação entre a cena rock das décadas de 60 e 70 e a que
passou a acontecer a partir da década de 80 no que diz respeito ao comportamento de suas
juventudes – usa-se aqui o termo juventude no plural porque se entende que uma sociedade,
quando não tão próxima de um modelo tradicional, é constituída por diferentes categorias e
dentro dessas mesmas podem existir ―subcategorias‖ como, no caso dos jovens, existem
diversos grupos com suas especificidades que nas sociedades urbanas ocidentais ganharam a
alcunha de ―tribos‖ (RAMOS, 2009). E até essa categoria jovem é algo relativamente novo
quando se analisa a história das civilizações:
Pois outrora, no século XIX, um jovem operário trabalhando na fábrica não detinha
o privilégio de ser chamado de adolescente, pelo contrário, já era considerado um
adulto. Em outras palavras, o aumento do período da juventude proporcionou o
aumento dos anos de um jovem se rebelar, visto a maior tendência para a rebeldia
que este tem se comparado com o adulto (ARIÉS, 1981 apud FUKUHARA, 2009).
O que se pode afirmar é que as particularidades dos contextos sócio-políticos dessas
décadas evidenciavam, em maior ou menor grau, as necessidades de manifestações conjuntas
9
Agente de mobilização de mais de 30 grupos e organizações locais que atuam nos âmbitos da
educação, cultura, esportes e saúde.
10
Líder do conjunto musical Mundo Livre S/A, outro expoente do Manguebeat.
11
CARVALHO, GAMEIRO
29
dos jovens: os anos 60 e 70 foram marcados pelo movimento da Contracultura, no qual se
destacava a figura exótica dos hippies, e pela atuação dos estudantes comunistas contra o
sistema político e econômico vigente na época – a tecnocracia. Apesar de algumas
divergências ideológicas, hippies e comunistas tinham em comum o sonho de viver em uma
sociedade igualitária e ambos protestavam e lutavam, ao seu modo, para que esse sonho se
tornasse realidade. Precursor da contracultura, o Movimento Beatnik, em meados da década
de 1950, também pregava a liberdade individual, porém sem a idealização de um novo modo
de vida comunitário, estava mais afeito ao imediatismo, como é possível constatar no clássico
livro On The Road (em português ―na estrada‖) de Jack Kerouac, principal jovem pioneiro do
beatnik – vide também Allen Ginsberg e.
É interessante notar que a literatura foi o artifício mais forte usado pelos jovens
rebeldes da década de 5012, nos EUA, para divulgar suas ideias revolucionárias de liberdade
plena, hedonismo e niilismo, enquanto a geração posterior fez uso da música para tal, em
especial do rock; apesar deste já existir desde os anos 50, somente na década seguinte
conquistou seu devido espaço na grande mídia, pois até então era proibido de tocar nas rádios
comerciais por ser ―música de negro‖.
Nesse contexto de contestação e rebeldia, o rock complementou a vontade de
revolução social, dando força à propagação pelo mundo afora das novas ansiedades e
expectativas juvenis, aproximando pessoas diferentes em torno de um ideal. Como afirma
Theodore Roszak (1972) em seu livro A Contracultura:
―O fato é que foram os jovens, à sua maneira amadorística e até mesmo grotesca,
que deram efeito prático às teorias rebeldes dos adultos. Arrancaram-nas de livros e
revistas escritos por uma geração mais velha de rebeldes, e as transformaram num
estilo de vida. Transformaram as hipóteses de adultos descontentes em experiências,
embora frequentemente relutando em admitir que às vezes uma experiência redunde
em fracasso‖ (p.37).
E, de fato, mais de quarenta anos depois do fenômeno cultural que foi a contracultura,
quando se compara os seus objetivos com as suas reais consequências pode-se concluir que o
resultado beira o fracasso. Se por um lado se deu mais espaço à liberdade sexual e à discussão
do racismo e das guerras internacionais, por outro, o capitalismo, maior inimigo da
contracultura e também da ―geração beat‖, conseguiu sobrepor-se ao sonho de um mundo de
12
Ao lado de Jack Kerouak, Allen Ginsberg e William S. Burroughs são os principais representantes da geração
beat e suas principais obras são, respectivamente, Howl e Naked Lunch.
30
igualdade de direitos e engolir as reivindicações juvenis para depois transformá-las em forma
de indústria cultural.
O próprio Roszak (1972), quando ainda acreditava no movimento da contracultura e
escrevia sobre isso em fins dos anos 60, já alertava para o perigo do desvirtuamento do novo
fenômeno que estava movimentando os jovens da época:
A partir dessa ofuscação do genuíno talento contestador, a contracultura não tarda
em ver-se invadida por oportunistas cínicos ou ingênuos que se transformam (ou
convenientemente permitem que sejam transformados) em porta-vozes de rebeldia
jovem. Por conseguinte, temos hoje figurinistas, cabeleireiros, editores de revistas de
moda e uma verdadeira falange de artistas populares que, sem terem na cabeça uma
só ideia que não tenha partido de seus relações-públicas, passaram de repente a
advogar ―a filosofia da atual juventude contestadora‖ para benefício dos
suplementos dominicais (...). Nessa altura, a contracultura começa a parecer, com
bons motivos, nada mais que uma campanha publicitária em escala mundial. A
contracultura corre, pois, o risco de sucumbir a esses dois perigos:
por um lado, a debilidade de seu relacionamento cultural com os
desprivilegiados; por outro, sua vulnerabilidade à explosão como
espetáculo divertido para a sociedade opulenta (p. 80-81).
Essa mesma ressignificação feita pela indústria
cultural é pontuada por Rodrigo Fukuhara em estudo
comparativo sobre as características presentes nas
juventudes que compuseram o movimento hippie e o
movimento anarco-punk nos EUA:
Figura 3 - Manifestação hippie
Jovens antiautoritários, libertários no sentido mais estrito da
palavra, embalados, em última instância, pelo rock – feito por e
para os jovens – e vivendo na maior potência capitalista mundial
sob o contexto da Guerra Fria; seus movimentos e suas músicas atingiram escala
internacional e acabaram virando alvos da indústria cultural (2009, p.67-68)
No Brasil não foi diferente. Após a forte atuação política da juventude, seja através da
música, do teatro, dos partidos políticos etc., nas décadas de 60 e 70, a apatia parece ter
tomado conta da juventude oitentista, abalada pelos rumos que tomava a América Latina na
―década perdida‖. Do ponto de vista cultural, o país carecia da mesma força para impulsionar
uma revolução cultural como em épocas anteriores. Naturalmente, havia artistas que se
indignavam com aquele esfriamento da juventude e tentavam expressar isso de alguma forma,
como se pode perceber na canção ―Ideologia‖ de Cazuza, considerado um dos maiores poetas
do rock nacional ao lado de Renato Russo:
31
Meu partido
É um coração partido
E as ilusões
Estão todas perdidas
Os meus sonhos
Foram todos vendidos
Tão barato
Que eu nem acredito
Ah! eu nem acredito...
Que aquele garoto
Que ia mudar o mundo
Mudar o mundo
Frequenta agora
As festas do "Grand Monde"...
Meus heróis
Morreram de overdose
Meus inimigos
Estão no poder
Ideologia!
Eu quero uma pra viver
Ideologia!
Eu quero uma pra viver...
O meu prazer
Agora é risco de vida
Meu sex and drugs
Não tem nenhum rock 'n' roll
Eu vou pagar
A conta do analista
Pra nunca mais
Ter que saber
Quem eu sou
Ah! saber quem eu sou..
Pois aquele garoto
Que ia mudar o mundo
Mudar o mundo
Agora assiste a tudo
Em cima do muro
Em cima do muro...
Meus heróis
Morreram de overdose
Meus inimigos
Estão no poder
Ideologia!
Eu quero uma pra viver
Ideologia!
32
Apesar de ter sido escrita há mais de vinte anos, esta composição continua coeva.
Quem são os ídolos do mundo político atual? Onde eles estão? Aos jovens faltam exemplos
contemporâneos de heróis. Sem referências do presente, imitam-se os modelos do passado e a
história parece se repetir...
Na década de 90, mesmo com um breve revival da música utilizada como ferramenta
de protesto e de inovação e valorização cultural impulsionado pelo Movimento Manguebeat
criado por Chico Science e Nação Zumbi, as juventudes do Brasil nem de longe se
assemelhavam àquelas que agitaram o país décadas atrás, porém isto não significa que essas
juventudes não tenham contribuído, de uma forma ou de outra, para o desenvolvimento da
democracia no país.
Em 1992, o Brasil voltou a ver a atuação coletiva estudantil na política com o
movimento dos Caras Pintadas13 em protesto contra o então Presidente da República
Fernando Collor de Mello – suas medidas econômicas inadequadas para a conter a inflação
aliadas a uma grave denúncia de corrupção feita pelo próprio irmão do Presidente,
impulsionaram a formação do movimento, com manifestações em várias cidades do país.
Esse movimento não teve a mesma força do que marcou a geração dos anos 60 e 70,
mas
é
necessário
compreender
que
momentos
históricos
diferentes
demandam
comportamentos sociais diferentes. O período do Regime Militar era uma situação extrema:
ou se era da esquerda política ou se estava a favor do Governo, mesmo que de forma velada
para garantir a sobrevivência; ou se se comportava como ―as pessoas da sala de jantar‖ ou se
ia arriscar a vida em reivindicações de direitos.
Além disso, o grande desenvolvimento das tecnologias de comunicação e informação
influenciou a maneira como as pessoas se relacionavam. O alto consumismo dessas novidades
tecnológicas, de certa forma, ―esfriaram‖ as relações sociais, o que para muitos estudiosos das
ciências sociais contribuiu bastante para o crescente individualismo da chamada pósmodernidade. No entanto, essas mesmas tecnologias, com o passar do tempo, passaram a ser
utilizadas para causar uma reaproximação entre as pessoas, principalmente no que diz respeito
ao fortalecimento das identidades culturais. Nesse contexto, a música, mais uma vez, atuou de
forma bastante significativa.
13
Assim ficaram conhecidos os estudantes, que saíam às ruas com os rostos pintados nas cores da bandeira do
Brasil.
33
Na Bahia, criou-se na cidade de Salvador o Festival Alternativo Palco do Rock que, a
princípio, segundo seus empresários, tinha como objetivo a valorização das manifestações
culturais diferentes da maioria, no período do Carnaval. Deveriam ser várias tribos (Maffesoli,
2010) celebrando um mesmo ideal: a valorização do gênero musical rock para evidenciar a
diversidade cultural de Salvador, estigmatizada pelo axé e pelo pagode, no que diz respeito à
produção musical. Porém, o que se nota, não só analisando a forma como o evento é
organizado e realizado, como também os públicos que o compõe, é que “a experimentação
cultural dos jovens que frequentemente corre o maior risco de infestação comercial – e,
portanto, de dissipação da força de sua contestação” (Roszak, 1972, p.79).
Ao mesmo tempo, essa mesma ―infestação comercial‖ pode ser positiva no sentido de
dar visibilidade à manifestação cultural marginalizada, conquanto não se perca a proposta de
valorização, a exemplo do que aconteceu com o Manguebeat que começou de forma
independente e hoje em dia conta com parcerias do Governo do Estado de Pernambuco, de
ONGs e outras organizações.
34
4 O PALCO DO ROCK14
O Festival Alternativo Palco do Rock é um evento gratuito, de caráter independente,
que carrega o status de ser pioneiro em festivais de rock durante o carnaval do Brasil. Para
compreender sua história é necessário remeter à história da Associação Cultural Clube do
Rock da Bahia (ACCRBA), a primeira agregação de bandas de rock do Brasil. Fundada em
1991, em Salvador, por Humberto César (mais conhecido como Tedão) com o apoio de
bandas de rock que sentiam a necessidade de ter uma representação formal na sociedade.
Tedão realizava esporadicamente pequenos festivais de rock, desde os tempos do colégio, no
entanto, esses eventos não satisfaziam a vontade dos músicos de ter maior visibilidade do seu
trabalho na sociedade soteropolitana, principalmente durante o Carnaval, já que nessa época
do ano outros gêneros musicais – em especial o axé e o pagode – dominam a indústria
fonográfica na Bahia.
Ao tomar conhecimento, através de uma divulgação num jornal, de que na praia do
Jardim dos Namorados eram realizadas pequenas apresentações musicais alternativas num
restaurante chamado Sabor da Terra, então administrado pelo Chocolate da Bahia – nome
artístico do músico que geria esse espaço –, Tedão resolveu procurá-lo para saber como
poderia fazer apresentações lá com suas bandas e de amigos:
“Ele viu que tinha umas bandas que tocavam na Estação da Lapa e resolveu fazer
tipo festivais de rock no Sabor da Terra. Chegando lá, a gente viu muita gente. Muita gente
de Mussurunga, Cajazeiras, Liberdade, IAPI... Aquela notícia se espalhou. Então eu vi ali
uma oportunidade de se buscar espaço para o rock também, porque eu sempre tive essa ideia
de que um movimento organizado era respeitado. Se fôssemos pessoas soltas, não iríamos
conseguir muita coisa, mas a gente se organizando, montando uma sociedade organizada,
poderia conseguir alguma coisa”.
Depois de algum tempo de convivência, Chocolate da Bahia, resolveu mudar o nome
do evento que organizava de ―Clube do Chocolate‖ para ―Clube do Rock‖ e juntamente com
Tedão organizou uma assembleia, em 08 de maio de 1991, na qual Tedão foi escolhido como
presidente do clube. ―Pra ter efeito de representatividade‖, Tedão sugeriu ao clube o nome
Associação Cultural Clube do Rock ―para poder chegar aos poderes públicos com mais
14
As informações contidas neste capítulo foram obtidas com base no site www.palcodorock.com.br, que não
está mais no ar, no blog da ACCRBA e nos depoimentos de Sandra Magalhães, AJ Nascimento e Humberto
Tedão.
35
respaldo‖, o que demonstra que, já naquela época, compreendia a importância de se constituir
um movimento de rock em Salvador.
Aproveitando-se do fato de haver feito parte do Sindicato dos Músicos, que
selecionava bandas, de vários gêneros, para tocar no Carnaval e depois procurava apoio da
Prefeitura Municipal e do Governo do Estado para montar os palcos de bairro, no entanto,
Tedão procurou se informar como poderia incluir nessa seleção a categoria rock. Devido a
dificuldades como essa, muitas bandas acharam ―utópico‖ conseguir espaço dentro do
Carnaval.
“Um dos membros do sindicato, João Sousa, me disse assim: „você tem que ir para o
Sindicato como uma categoria porque o Sindicato entende como luta de classes uma
categoria. Então vocês vão se colocar como uma categoria do rock‟. Eu achei estranho, não
entendia nada disso, mas disse: „já que você tá falando que é assim...‟ e nós fomos como
categoria, chamando aquelas bandas todas que tinham um destaque maior em Salvador. Na
época tinha Úteros em Fúria, Cabo de Guerra, Elite Marginal, 14º andar... Tinha essas
bandas, mas muitas delas acharam a coisa muito utópica e nem apareceram nas reuniões”.
Mesmo assim, Tedão resolveu registrar a associação e construiu seu estatuto tomando
como modelo o que seu pai escreveu para o Condomínio Chácara do Cabula, onde ele mora
até hoje. Depois disso, pediu a uma amiga, Jandira, que na época namorava Joe, hoje baixista
da Pitty,para redigir o projeto do Palco do Rock. Tedão também elaborou as fichas de
cadastramento dos associados para manter a organização e pensou numa maneira de se reunir
para não só mobilizar os roqueiros soteropolitanos, como também chamar a atenção da
sociedade.
“Eu imaginei que a gente tinha que fazer as reuniões num lugar aberto e que as pessoas que
passassem vissem que a gente se reunia, pra causar impacto. Então eu marquei a reunião
numa terça-feira no Pelourinho porque lá tinha uma passagem de benção e a gente se reuniu
na Praça Castro Alves onde tinha um quiosque chamado Cacique. As pessoas passavam pelo
Pelourinho e viam todo mundo de preto ali e pensavam: „rapaz, esses caras tão organizando
alguma coisa‟. Então isso aí já era tudo estratégia minha de causar impacto nos poderes
públicos porque eles têm medo de movimento organizado”.
Enquanto isso, a ACCRBA mandou o projeto do Palco do Rock para vários
coordenadores do Carnaval, mas as respostas eram sempre negativas, ou nem mesmo
36
obtinham resposta. Quando Lídice da Mata foi eleita prefeita de Salvador em 93, Tedão ficou
sabendo que o irmão dela, Ari da Mata, seria o superintendente da EMTURSA. Como eles
tinham alguma proximidade, Tedão resolveu pedir ajuda a ele, que já sabia da mobilização
das bandas e também gostava de rock, mas o evento só foi acontecer mesmo no ano seguinte.
Em 1994, Sandra de Cássia Magalhães foi convidada para uma reunião da ACCRBA
e aproveitou a oportunidade para mostrar um projeto seu: o de montar um festival de rock em
Arembepe no período de Carnaval. Coincidentemente, membros da ACCRBA já estavam
cogitando essa possibilidade para Salvador. Depois de muita discussão, chegou-se ao
consenso de que o melhor mesmo seria realizar o evento na capital baiana como forma
provocadora de se contrapor ao Carnaval. Em entrevista concedida no dia 30 de junho de
2012, Sandra admite o propósito original do Palco do Rock:
“Não foi coincidência, não. A gente pleiteava isso mesmo: de estar nessa data, na nossa
cidade, com o direito de tocar e ouvir o que a gente realmente gosta, que é o rock‟n‟roll. Por
quê? A gente ficava dentro de casa... Carnaval acontecendo... ou viajava, saía de Salvador,
enquanto que pessoas que pagam impostos como nós tínhamos o direito de uma festa maior e
nós pleiteávamos um espaço aqui, um espaço ali e não acontecia; então, o Palco do Rock é
um contraponto mesmo. Se você não gosta desse estilo [axé, pagode], vai pro Palco do
Rock!”.
Apesar da intenção de resistência cultural ter sido a mola propulsora da criação do
Palco do Rock, Sandra afirma que aos poucos foi revendo seus conceitos e atualmente possui
“uma leitura muito distinta do Carnaval de Salvador” e que o vê como “uma festa bonita e
que também nasceu de um idealista”. AJ Nascimento, também empresário do Palco do Rock,
demonstrou essa mesma preocupação em ressaltar que a relação da ACCRBA com o Carnaval
está diferente:
Na verdade, a ideia do projeto não é ser uma afronta ao público, não existe isso de afronta.
Nós simplesmente estamos dentro do que chamam de diversidade cultural. Não é essa a
intenção do Carnaval? Você une toda a cultura baiana, nesse caso focada na soteropolitana,
e apresenta ao grande público nacional, até internacional, ou seja, nós também temos a
nossa cultura e somos baianos, pagadores de impostos e estamos dentro da festa. É
simplesmente isso. A gente tá dentro do que eles chamam de diversidade cultural. Não é um
termo criado por nós. Eles que pregam isso. Então não há afronta, não há combate. Existe a
resistência? Há! Pra se manter lá, mas nada com relação a um choque imediato, um
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confronto feroz, não existe isso. Até porque a gente não quer que o Carnaval de lá acabe, a
gente quer que ele permaneça porque existem outras pessoas, com outros tipos de cultura,
com outros gostos musicais, só que a gente tem o nosso.
Em seus primeiros anos, a ACCRBA divulgava suas ações através de fanzines,
tabloides e rádios alternativas. Apesar dos poucos recursos, quase duzentas bandas se
inscreveram para a primeira edição do Palco do Rock que aconteceu de uma maneira um tanto
quanto curiosa. Segundo Sandra, a ACCRBA não havia conseguido junto à Prefeitura
Municipal um espaço para a realização do evento e ao saberem que havia sido montado na
Praia de Jaguaribe um palco para um festival de surf, ela e alguns amigos acamparam no
evento para impedir que o palco fosse desmontado e assim o aproveitaram para seu próprio
evento. No ano seguinte, a Associação conseguiu permissão para efetivar o Palco do Rock em
Coqueiral de Piatã e desde então esse tem sido o local de sua realização.
Em 2000, pouco tempo após a realização da sétima edição do Palco do Rock, Tedão
saiu da ACCRBA, devido a divergências ideológicas com os membros da Associação e
políticas com algumas pessoas dos poderes públicos. Desde então, Sandra tem assumido a
presidência da ACCRBA.
Os preparativos para o PdR (alcunha dada por seus próprios produtores) são
compostos por três fases: a reunião Pensando Palco do Rock, a Curadoria Pública e a Oficina
Palco do Rock. Tais eventos, segundo a ACCRBA, visam à democratização do acesso ao
Festival, tanto no que diz respeito à participação dos espectadores nas decisões da
organização do evento quanto dos músicos que irão compor a grade de atrações; contudo,
existem muitas controvérsias sobre essa democratização em cada uma das fases do Palco do
Rock. Apesar dos esforços da ACCRBA para divulgar a imagem de uma organização
democrática, aberta à participação popular, a opinião que se constata na maioria dos roqueiros
que frequentam ou costumavam frequentar o Palco do Rock diverge da que é expressa pela
Associação.
Tal polêmica será destrinchada da seguinte forma a seguir: em primeiro lugar, tem-se a
descrição das três fases que antecedem o Palco do Rock, segundo as informações divulgadas
pela ACCRBA em seus dois sites e nas palavras de dois de seus empresários: Sandra de
Cássia Magalhães e AJ Nascimento. Posteriormente, a opinião geral dos espectadores baseada
em depoimentos recolhidos em entrevistas nos bairros do Campo Grande e do São Caetano
38
entre abril e julho do ano corrente. Por último, retoma-se o discurso da ACCRBA, desta vez
apontando sua versão para as reclamações feitas por esses espectadores.
O intuito de tal análise não é esclarecer quem está certo e quem está errado ou quem
diz a verdade e quem está mentindo – ou exagerando – mas tão somente tentar elucidar o
processo de realização do Festival Alternativo Palco do Rock, bem como sua
representatividade para os públicos que o compõem: membros da Associação, músicos
participantes e plateia.
4.1 PENSANDO O PALCO DO ROCK
“Com uma visão democrática e levando em conta
a coletividade que é necessária para a construção de uma
rede independente forte”. É desta maneira que a ACCRBA
descreve a reunião aberta ao público que realiza com
alguns meses de antecedência na Casa da Música da Bahia
(Parque Metropolitano do Abaeté) para discutir as
diretrizes do próximo evento. A ACCRBA informa que
esta reunião, intitulada ―Pensando Palco do Rock‖, tem o
Figura 4 - Slogan do PDR 2012
intuito de incentivar o público externo a participar do evento, não só durante os seus dias de
realização mas também em sua pré-produção, com sugestões e qualquer tipo de apoio.
Ainda segundo a ACCRBA, o motivo maior dessa reunião é “integrar as bandas,
poder público, o público e a produção para juntos conhecerem e analisarem” o Festival a fim
de que todas as dúvidas sejam sanadas. Na ocasião é feita a leitura do regimento interno do
Palco do Rock e do projeto Oficina, que é voltado exclusivamente para a seleção de quatro
bandas novas e autorais da Bahia. Quem estiver fora de Salvador ou da Bahia pode
acompanhar a reunião ao vivo através de transmissão via streaming de vídeo em link
disponível no site da Associação.
4.2 CURADORIA PÚBLICA
Com o objetivo de selecionar as bandas que farão parte da programação do PdR, a
ACCRBA realiza, desde 2007, a Curadoria Pública do Palco do Rock, também na Casa da
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Música da Bahia. Composta por três sessões nas quais acontece a audição por músicos
convidados, donos de estúdio e profissionais de Comunicação Social dos discos enviados para
a triagem. Há também um designer que analisa o material gráfico das bandas.
O regimento do concurso é lido na abertura da Curadoria. Em seguida, as bandas são
apresentadas, paulatinamente, através dos releases que elas mesmas enviam para a ACCRBA
e uma de suas músicas é tocada para julgamento. Geralmente, a música é escolhida pela
Associação, mas se algum membro da banda achar que outra música é mais adequada pode
pedir para que seja mudada a faixa. Cada curador recebe uma ficha na qual deve colocar sua
nota e observações, caso ache necessário. A média final é divulgada no mesmo momento e a
ACCRBA dispõe de um microfone aberto para contestações dos resultados.
A Curadoria também é transmitida ao vivo na Internet e após a sua realização a
ACCRBA se dispõe a prestar assessoria aos representantes das bandas presentes que tenham
ficado com alguma dúvida sobre o seu resultado através do que chamam de ―Raio-X‖:
entregam por escrito um relatório com as notas das mesa curadora e suas observações.
4.3 OFICINA PALCO DO ROCK
Idealizado para atender as bandas independentes novas e de pouca circulação da
Bahia, o projeto Oficina acontece no Cine Teatro Solar Boa Vista (Engenho Velho de Brotas).
Para participar é necessário enviar à ACCRBA um vídeo que contenha apresentação do grupo
e apresentação individual dos integrantes, além de respostas às perguntas da Associação,
previamente disponibilizadas no regimento do projeto. É considerada como nova a banda que
não tenha um disco gravado nem material de divulgação.
4.4 ROCK E RESPONSABILIDADE SOCIAL
Desde sua primeira edição, o PdR realiza uma campanha solidária. No ano passado,
foi solicitado ao público que levassem pacotes de leite a serem doados à Casa de Apoio e
Assistência ao Portador do Vírus HIV (CAASAH), entidade que possui uma ala exclusiva de
assistência às crianças com o vírus da AIDS. É interessante notar que ações como essa tendem
a atrair a atenção de potenciais patrocinadores, bem como conquistar a simpatia da parcela do
público adepta ao engajamento social.
40
4.5 ESPAÇO PARA OS PEQUENOS ROQUEIROS
Em 2010 foi criado o quarto espaço do Palco do Rock: o Interativo Infantil, com
acesso gratuito às crianças, onde elas encontram brinquedos e material didático, além de
vídeos educativos. Segundo Sandra, esse espaço foi criado após ela observar que muitos dos
freqüentadores mais antigos do Palco do Rock haviam constituído família e continuavam a ir
ao evento levando seus filhos.
4.6 PRÊMIO PALCO DO ROCK
A premiação ocorre alguns dias após o Palco do Rock, com uma festa no Cine teatro
Solar Boa Vista, e é destinada aos artistas que participaram do Espaço Interativo e do palco
principal em diversas categorias, como banda revelação, músico destaque, entre outras. Os
premiados são escolhidos por curadoria da ACCRBA e pelo público em rede social.
4.7 QUATRO DIAS DE ROCK - A POLÊMICA
Aparentemente, tudo está correto na realização do Palco do Rock. Os três eventos
(Pensando o Palco do Rock, Curadoria Pública e Oficina Palco do Rock) que antecedem o
Festival são abertos para acompanhamento e interferência do público. Todavia, foi possível
constatar um incômodo muito grande na opinião dos espectadores, expressa, muitas vezes, em
tom de revolta no que diz respeito ao diálogo da ACCRBA com o público externo. De modo
geral, o Palco do Rock foi definido por eles como um ―festival de cartas marcadas‖, em outras
palavras, só entraria na grade de atrações do evento bandas que tenham alguma ligação mais
direta com a ACCRBA e os pré-encontros – Pensando o Palco do Rock, Curadoria Pública e
Oficina Palco do Rock – seriam tão somente artimanhas para disfarçar a real situação da
produção do PdR.
Alguns jovens roqueiros que costumam se reunir na Praça do Campo Grande
expressaram suas impressões a respeito do funcionamento do Palco do Rock, como Jefferson
Carvalho, 20 anos, que ao ser questionado sobre a seleção das bandas, disse: “Pela
convivência que eu tenho do Palco do Rock, pelas histórias que eu ouço de amigos mais
antigos, as bandas eram selecionadas pela aceitação do público e tal. Hoje elas são aceitas
pela questão musical, pela forma de gravação e outras coisas aí. Inclusive, outras bandas de
41
amigos meus que têm uma aceitação muito grande do público, são boas realmente, só que
não têm um meio de divulgação, de gravação e tal, e acabam sendo vetadas pelo Palco do
Rock. O Palco do Rock está sendo feito para pessoas de alto nível, mas não com aquela cena
de antigamente (...) se tornou um evento de elite (...) então, eu acho que o Palco do Rock hoje
tem efeito de mercado para o mercado”.
Na opinião de Maxwell, 27 anos: “o que rola hoje é politicagem. A ACCRBA vive em
função da política e faz o que ela quer. Você só vai pro Palco do Rock, por exemplo, que é o
maior festival que se dispõe em Salvador, se você tiver alguma amizade, alguma parceria
com os caras. Isso daí não existe! Isso é bizarro, prejudica. E sempre funcionou assim. No
rock‟n‟roll de Salvador sempre funcionou assim. Nunca uma banda boa funcionou por ser
uma banda boa. Pra você ser uma banda boa em Salvador, você precisa ser uma banda boa,
ter parceiros bons, ter contatos bons e ter gente que possa promover sua banda”.
Foi possível perceber também a questão do regionalismo nas falas de alguns
entrevistados, a preocupação com a identidade cultural. Em sua opinião, a ACCRBA deveria
dar prioridade às bandas baianas, pois acreditam que dessa forma a cena rock da Bahia, em
especial de Salvador, seria mais valorizada nacionalmente e que o fato de haver mais bandas
do Sudeste evidencia uma preferência regional da ACCRBA.
“Eu acho que tem muitas bandas que podiam entrar no Palco do Rock,
principalmente bandas baianas que são muito boas, e não entraram por uma questão
política, por não ter conhecimento prático. Uma delas foi o pessoal de Os Caras da Rádio
[banda do São Caeano] e que se entrassem, sem dúvida alguma, não fariam feio. E teve
muitas bandas de São Paulo que vierem pra cá e foram medíocres. Eu acho que ela [Sandra]
devia ver melhor o que ela faz, calcular melhor. Ela diz que faz uma curadoria, né?” –
Cristiano Paganucci.
Outra constante reclamação é o fato de haver mistura entre as tribos roqueiras no Palco
do Rock. Grande parte dos entrevistados manifestou a vontade de que as noites fossem
divididas por estilos devido aos casos de violência gerados por essa rivalidade. Esses conflitos
entre tribos urbanas é um problema constante no Palco do Rock, como pode ser percebido nas
palavras de Eduardo Psico: ―Se você não é punk e vai pra lá [pro Palco do Rock], eles
querem te matar. Foi lá, inclusive, que eu fiquei deficiente físico... Eu curtia metal, fui pro
Palco do Rock com a minha namorada; chegamos lá, houve uma briga entre punk e metal; eu
não tinha nada a ver com a história, acabei recebendo a galinha pulando... Fui esfaqueado,
42
sofri uma lesão na medula e fiquei paraplégico. Hoje em dia sou militar aposentado por
conta disso aí”.
É sabido que o público que constitui o Palco do Rock é bem diverso: frequentado por
punks, góticos, metaleiros etc. Aliás, todo festival de rock – quando não voltado para uma
vertente específica – se caracteriza por essa heterogeneidade e tal mistura nem sempre dá
certo. Em algumas edições do Palco do Rock houve casos extremos de conflito entre as tribos
roqueiras que chegaram a ameaçar a continuação do Festival. Para entender tal fato é
necessário investigar o passado.
É interessante notar a quantidade de subdivisões que foram geradas pelo rock no
decorrer de seu desenvolvimento, tantas que seria possível constituir uma verdadeira
enciclopédia. Talvez esse gênero musical seja o que mais tenha sofrido transformações ao
longo dos anos, o que indica duas tendências básicas: a dos músicos de aprimorar suas
técnicas ou, menos que isso, simplesmente afrontar um grupo precursor.
Dois exemplos clássicos dessa rivalidade: os punks surgiram nos anos 70 com o lema
“Do it yourself!” – Faça você mesmo! – querendo provocar os músicos de rock progressivo
(uma vertente do rock psicodélico ou acid rock), estilo que chamavam de masturbação
musical devido aos seus experimentalismos sonoros (vide extensos solos de guitarra),
tornando as canções muito longas e, para muitos, cansativas. Com isso, os punks
intencionavam mostrar ao público que não era preciso ser um músico exímio para se formar
uma banda e que o verdadeiro rock não era feito com firulas.
O outro exemplo clássico de rivalidade entre grupos roqueiros se situa entre o final da
década de 80 e início dos anos 90: em Seattle (EUA) começava um movimento musical
diferente daquilo que estava em voga na época e que mais tarde ganhou o nome de Grunge.
Os grunges queriam se contrapor ao chamado glam rock (o glam vem de glamour), visto que
os ídolos desse estilo tinham um comportamento de estrelismo do qual eles claramente
discordavam. Então a maquiagem, cabelos e indumentária extravagantes foram substituídos
por um visual simples, que podia ser usado por qualquer pessoa e era justamente essa a
intenção: desfazer a imagem do rock star como um ídolo inalcançável, quase um ser de outro
planeta – neste ponto percebe-se um pouco do resgate da crueza do movimento punk rock.
Infelizmente as rivalidades não se limitaram aos palcos. Inocentes provocações deram
lugar a agressões verbais e físicas cada vez mais pesadas, tanto por parte dos ídolos como por
43
parte dos fãs, chegando mesmo a haver casos de morte, como numa apresentação realizada
pelo grupo Rolling Stones em 6 de dezembro de 1969 em que o grupo conhecido por Hell‘s
Angels esfaqueou um hippie, causando um enorme tumulto no qual várias pessoas ficaram
feridas.
Diante desse fato, nota-se que as questões ideológicas tornaram-se pessoais e a
proposta originária do rock‘n‘roll (escandalizar o conservadorismo social) se esvaziou um
pouco de sentido ante aos vários segmentos que se formaram, cada uma defendendo a ―sua
ideologia‖. Este negar o outro, esta atitude de enquadrar o outro num estereótipo e, por
conseguinte, esforçar-se para ser diferente e melhor mostra a necessidade de afirmação de
uma identidade legítima que concederia ao indivíduo um destaque no meio em que está
inserido por sua suposta superioridade e quiçá o ―direito‖ de liderança.
Esta situação se contrapõe à proposta do Palco do Rock, divulgada pelos seus
empresários, que seria a de servir como refúgio para os roqueiros que queiram celebrar o
Carnaval a seu modo, reunindo pacificamente amantes do rock de várias vertentes durante os
quatro dias do Festival, não só para curtir seu som favorito como também trocar idéias sobre
bandas, festivais, etc.
A ACCRBA demonstra certo distanciamento deste fato. Segundo Sandra, ―a gente [a
Associação] não tem muita preocupação em relação a isso. A gente acredita no seguinte: o
nome do evento é Palco do Rock, então a gente não se prende a um estilo só. Se a gente fosse
dar uma noite só pro metal, eu vou ter que dar uma noite pro hardcore, uma noite pro black
metal... vai ser uma noite de cada e nós não temos esse suporte – são 4 dias. Então é bacana
como ele funciona”.
Sandra afirma que as pessoas que vão para o Palco do Rock com o intuito de
―resolver‖ alguma rivalidade lá, precisam ―se educar‖, isto é, aprender a conviver com as
diferenças, pois organizar a programação por estilos seria corroborar a segregação entre as
tribos. Essa postura pode ser relacionada ao pensamento de Maffesolli (2010) que acredita
num ‗ajustamento orgânico‘ entre as tribos, decorrente da sua própria necessidade do ‗estarjunto‘, embora haja vários casos de intolerância que vão de encontro a esse suposto
ajustamento.
44
5 UM GÊNERO, VÁRIAS TRIBOS
Como já foi dito, as sociedades atuais, principalmente as do Ocidente, estão
notadamente marcadas pelo imediatismo e pela fragmentação de seus sujeitos sociais. O que
poderia ser um indício do agravamento do individualismo expandido nas décadas de 1980 e
1990, no entanto, parece estar se ressignificando ao ser constatado que esses mesmos
indivíduos, em especial os jovens, têm buscado formas de se reagrupar por identificação
cultural.
Ainda que esse reagrupamento já não ocorra frequentemente nos moldes tradicionais –
como no caso das comunidades virtuais que proliferam no espaço cibernético – a necessidade
de ―se estar junto‖ não se mostra suplantada e faz com que as pessoas criem as oportunidades
de encontros pessoais nos quais possam corroborar suas afinidades, a exemplo de congressos,
saraus e festivais de música. Para Michel Maffesoli (2010), é a ‗emoção compartilhada‘ ou
‗sentimento coletivo‘ o que mais caracteriza esse novo vínculo social.
Não seria exagero afirmar que está em voga discutir a condição do sujeito social na
pós-modernidade ou, como preferem alguns autores, na contemporaneidade, e daí as várias
especulações sobre ―o mal do século 21‖: a solidão. Nesse contexto, a Indústria Cultural se
aproveita para vender a volta ao passado, numa espécie de revival estético, especialmente na
moda (recentemente as passarelas foram invadidas por uma onda vintage e pin-up) e nas artes.
A título de ilustração, aconteceu na Cinemateca de São Paulo, durante o mês de junho
do ano corrente, uma mostra de road movies (filmes de estrada) – gênero narrativo típico dos
EUA e associado à ideologia da contracultura dos anos 60, cujo marco fundamental é Sem
Destino de Dennis Hoper. A essa exposição foi dado o nome de On The Road em
homenagem ao livro homônimo de Jack Kerouak que ―batizou‖ o Movimento Beatnik
supracitado e que foi precursor, nos anos 50, do Movimento da Contracultura. Vale ressaltar
que os road movies não se limitaram ao seu país de origem e até mesmo algumas produções
brasileiras recentes sofreram essa influência como, por exemplo, Diários de Motocicleta
(2004) e Pé na Estrada (2012) do cineasta Walter Salles15.
15
Disponível em: http://www.mundopositivo.com.br/noticias/variedades/20127668cinema_com_o_pe_na_estrada.html
45
Nesta tendência de volta ao passado, de busca pelo resgate de valores comunitários,
pode-se entender o motivo de festivais como o Palco do Rock terem a capacidade de reunir
tantos grupos diferentes em torno da afinidade com um gênero musical.
Para compreender o festival Palco do Rock, enquanto exemplo de agregação
comunitária contemporânea, é necessário enveredar na análise de dois caminhos paralelos: o
Palco do Rock enquanto produto do mercado do lazer e entretenimento que, cada vez mais
competitivo, busca assimilar as demandas culturais juvenis e o Palco do Rock enquanto
representante de um determinado segmento da juventude urbana, que compõe a miscelânea de
tribos facilmente constatáveis nas grandes cidades.
Para tanto, será usada, aqui, como base principal de sustentação dessa abordagem, a
teoria do sociólogo francês Michel Maffesoli, autor do livro O tempo das tribos, publicado
pela primeira vez em 1985, com o qual ele faz emergir, até então, uma nova forma de se
analisar a condição dos sujeitos sociais na pós-modernidade. Embora o termo ‗pósmodernidade‘ cause divergências entre diversos autores quanto à coerência de seu uso,
Maffesoli não demonstra incômodo algum com essa denominação, ao contrário, fala com
propriedade sobre a ‗potência‘ que move as pessoas nessa nova era da história humana. O que
lhe incomoda – e isso ele faz questão de demonstrar em várias passagens de seu livro – é a
tese do ‗individualismo catastrófico‘ na pós-modernidade.
Maffesoli defende a tese de que na pós-modernidade o individualismo é substituído
pela necessidade de ‗estar junto‘, de identificação com determinados grupos. Essa necessidade
daria origem a um novo tipo de comportamento social: o tribalismo, a “expressão de um
enraizamento dinâmico”
16
, que “será o valor dominante para os decênios do futuro”17. O
tribalismo é fundamentado pelas noções de comunidade emocional, potência e socialidade e
teria como consequências o policulturalismo e a proxemia.
Contudo, é preciso, primeiramente, entender o que Maffesoli chama de ‗tribos‘. Para o
autor, essas tribos são nada mais que grupos sociais distintos por suas manifestações culturais,
que compõem o cenário dos espaços urbanos, em maior frequência das megalópoles, e que
estabelecem suas próprias regras de convívio. Às manifestações dessas tribos, ele dá o nome
de ‗máscaras‘, ou seja, maneiras simbólicas que elas encontram de demonstrar que
16
17
Cf. Prefácio à terceira edição francesa, 2010, p.08
Cf. loc.cit, p.04
46
―pertencem‖ a tal grupo na ‗teatralidade cotidiana‘, na qual
o sujeito é, ao mesmo tempo, ator e espectador.18
Esses simbolismos muitas vezes se dão através do
próprio corpo: um corte de cabelo, uma tatuagem com
algum significado específico, uma roupa que denote
determinado estilo, um acessório etc. Embora M. Maffesoli
não designe faixa etária para essas tribos, é certo que é
entre as juventudes que elas se fazem mais presentes.
A existência crescente dessas tribos aparentemente
Figura 5 - Foto do Festival O começo do
fim do mundo realizado em SP (1982)
que reuniu cerca de 20 mil pessoas
corrobora com a tese de Maffesoli de que o individualismo da Era Moderna (que tem como
marco a Revolução Francesa) está sendo substituído pela necessidade de identificação com
um grupo, mas ele faz questão de ressaltar que essa necessidade de identificação não significa
a formação de uma identidade cultural engessada, por isso destaca, como uma das principais
características dessas tribos urbanas, a ‗fluidez‘, ou seja, a capacidade que um indivíduo tem
de, segundo o autor, ‗evoluir‘ de uma tribo para outra, o que vem a contribuir para a
constituição do multiculturalismo da atualidade19. Entenda-se por multiculturalismo o
conjunto de manifestações culturais permanentes que compõem a diversidade de um povo.
A cultura é o caminho pelo qual os sujeitos se posicionam socialmente e, se as tribos
urbanas são uma prova concreta desse fato na pós-modernidade, a Indústria Cultural sabe se
fazer valer bem da amálgama que constitui o cenário ou a ‗teatralidade cotidiana‘,
parafraseando Michel Maffesoli, das grandes cidades. Nesse ínterim, pode-se encaixar o
Festival alternativo Palco do Rock, como uma agregação, ainda que momentânea, de
‗comunidade emocional‘ – outra expressão constantemente utilizada por Maffesoli para
caracterizar as reuniões que se realizam em torno de um conjunto de afinidades, motivadas
pelo que ele chama de ‗o prazer do estar-junto‘.
Esse conceito de comunidade está articulado ao de redes, grupos, o social como
―força‖ e não ―poder‖. Vale ressaltar que a comunidade emocional não precisa,
necessariamente, ser composta por indivíduos de um mesmo grupo ou tribo e o autor traz
18
Cf. Capítulo IV, sobre o tribalismo.
No entanto, o termo ‗evoluir‘ empregado pelo autor torna-se perigoso, visto que pode transmitir a ideia de
progredir de um grupo para outro, como se houvesse níveis de qualidade, sendo que não está em questão aqui –
nem o autor propõe – o grau de ―evolução‖ ou maturidade de um determinado grupo quando comparado a outro,
mas tão somente suas diversidades que integram os espaços urbanos (N.A.).
19
47
como exemplo os eventos desportivos, musicais etc. que possuem o aspecto efêmero, a
‗composição cambiante‘, a ‗inscrição local‘, a ‗ausência de uma organização‘ e a ‗estrutura
quotidiana‘. Por razões óbvias, este trabalho se atém somente à agregação que se forma em
tono da música, mais especificamente do rock.
A Indústria Cultural e a mídia produzem simbolismo para, segundo Maffesoli, vender
a impressão de se pertencer a uma espécie em comum e aproveitando a ‗lógica das redes‘
oferece uma gama de opções de legitimação (?) dessa identidade cultural. Quando se lança
esse olhar mercadológico sobre o palco do Rock, percebe-se que ele, assim como tantos
outros festivais de música, ilustra bem a ‗cultura merchandizada‘ para a qual Maffesoli chama
a atenção:
As pesquisas contemporâneas sobre a linguagem corporal, sobre a importância do
ruído e da música e sobre a proxemia, retomam, por um lado, as perspectivas
místicas, poéticas e utópicas da correspondência e da dimensão arquitetônica, e, por
outro, as considerações da física teórica sobre o infinitamente pequeno. O que
significa isso senão que a realidade é um vasto agenciamento de elementos
homogêneos e heterogêneos, de contínuo e descontínuo? Tempo houve em que se
realçava tudo que era possível distinguir em um dado conjunto, tudo que se podia
separar e particularizar. Agora, cada vez mais, nos damos conta de que mais vale
considerar a sincronia ou a sinergia das forças que agem na vida social. Isso posto,
redescobrimos que o indivíduo não pode existir isolado, mas que ele está ligado,
pela cultura, pela comunicação, pelo lazer e pela moda, a uma comunidade, que
pode não ter as mesmas qualidades daquela da Idade Média, mas que nem por isso
deixa de ser uma comunidade. E esta é que precisa ser destacada. (MAFFESOLI,
2010, p. 140)
Desta forma, ao se pensar no Palco do Rock como uma vitrine para bandas que estão
procurando seu reconhecimento profissional, recai-se numa dicotomia: incontestavelmente, é
o festival mais importante da Bahia, no tocante à dimensão que atinge, porém ele acontece de
tal forma nos moldes mercadológicos que chega a por em dúvida sua legitimidade enquanto
representante da cena rock baiana para muitos roqueiros soteropolitanos, enquanto que há
vários outros eventos acontecendo de forma totalmente independente em lugares de Salvador,
organizados por jovens músicos, e que são pouco ou nada visados pelos próprios roqueiros,
menos ainda pela grande mídia.
O fato é que o público que compõe o Festival, cerca de trinta mil pessoas durante os
quatro dias do evento, segundo a ACCRBA, é o resultado de uma agregação de tribos
48
roqueiras20 que, muitas vezes, só se reúnem em ocasiões desse tipo, devido a conflitos
ideológicos.
O próprio Maffesoli atenta para este fato:
Apesar dos egoísmos e dos interesses particulares, existe um cimento que assegura a
perdurância. Talvez seja necessário buscar sua fonte no sentimento compartilhado.
Conforme a época, esse sentimento vai se referir a ideais longínquos e,
consequentemente, de fraca intensidade, ou a objetivos mais poderosos, porque mais
próximos. Neste último caso ele não poderá ser unificado, muito menos
racionalizado. E a sua própria fragmentação fará ressaltar ainda mais a coloração
religiosa. Assim, a ―religião civil‖, que é difícil aplicar a toda uma nação, pode
muito bem ser vivida, em nível local, por uma multiplicidade de cidades (exemplo
grego) ou de agrupamento particulares. Nesse momento, a solidariedade engendrada
pela religião civil toma um sentido concreto. É nesse sentido que uma certa
indentificação, consecutiva à mundialização e à uniformização dos modos de vida e,
às vezes, de pensamento, pode caminhar lado a lado com a enfatização de valores
particulares intensamente recuperados por alguns. (Idem, ibidem, p. 83-84)
Nesse ponto, Maffesoli demonstra um certo otimismo quanto ao convívio entre essas
tribos. Ele acredita que os conflitos podem ser naturalmente ajustados por entre os grupos, de
acordo com suas necessidades, como se houvesse uma ―ordem natural das coisas‖ e chega a
citar, como exemplos, a vida em comunidades judaicas e terreiros de candomblés.
No entanto, seus exemplos se pautam muito na esfera religiosa que, como já se sabe, é
mantida por rígidos códigos de conduta justamente para manter a ordem ou saber como
eliminar, ou, ao menos, amenizar o surgimento de conflitos.
No campo da música, quando esta não está respaldada numa instituição tão tradicional
quanto a religião, essa confluência não é sinérgica e, a depender do tipo de conflito pode
evoluir para uma rivalidade ao extremo. Talvez se Maffesoli tivesse atentado mais para a
quantidade de subgrupos que se desenvolveram nas tribos de rock, não afirmaria tão
categoricamente a importância da existência desses conflitos que, como ele mesmo chega a
afirmar, ―servem‖ para preservar a identidade do grupo, numa espécie de autovalorização.
5.1 TRIBALISMO E TECNOLOGIA
Outro ponto importante para o autor é o papel das tecnologias de comunicação e
informação para o surgimento das comunidades emocionais, já que elas podem ser utilizadas
20
O gênero musical rock, ao longo dos anos, se multiplicou em vários estilos que geraram essas tribos; devido
ao seu grande número, podem-se citar como principais: punks, metaleiros ou headbangers, góticos, emos etc.
49
para entrar em contato com qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo e a qualquer
momento. Maffesoli acredita que o individualismo da pós-modernidade, tão apregoado por
diversos autores da contemporaneidade, “criou um mito da „flecha lançada para o futuro‟ e
constata que o „presente‟, a „realidade‟ desse „futuro‟ é um reaparecimento do passado
profundo, fortalecido e multiplicado pelas novas tecnologias” (2010, p.13).
É dessa maneira que a maior parte das estratégias de comunicação da ACCRBA é feita
com seu público. A única emissora de TV com a qual podem contar permanentemente é a
TVE, porém, através das mídias sociais (facebook, twitter, blog etc.), a Associação divulga
suas ações e mantém contato com seu público.
(...) essas redes de amizade, que não têm outra finalidade senão se reunir sem
objetivo, sem projeto específico, e que cada vez mais compõem a vida quotidiana
dos grandes conjuntos (...) nas redes de amizade, a religação é vivida por ela mesma,
sem qualquer projeção, seja qual for. Além disso, as sedes de amizade podem ser
das mais pontuais. Com o auxílio da tecnologia (...) é no quadro efêmero de tal ou
tal ocasião específica que um certo número de pessoas vai se (re)encontrar. Essa
ocasião pode suscitar relações contínuas, ou não. O que ela não deixa de fazer, em
todo caso, é criar ―cadeias‖ de amizade que, segundo o modelo formal das redes
analisadas pela sociologia americana, permitem uma multiplicação das relações por
meio, apenas, do jogo de proxemia: alguém me apresenta a alguém que conhece
outro alguém etc. (MAFFESOLI, 2010, p. 58)
Isto significa que a comunidade emocional associada às redes de relações confirma o
sentimento de participar de um grupo mais amplo, multicultural, permitem o ―sair de si‖
defendido pelo autor. Portanto, a expansão das novas tecnologias de comunicação não é,
necessariamente, uma ameaça à naturalidade das relações, afinal, elas também podem ser
usadas para informar e através dessa informação se produzir um conhecimento coletivo,
evidência marcante do tribalismo que, sempre bom lembrar, é caracterizado pela fluidez, pelas
reuniões pontuais e pela dispersão.
É interessante notar que mesmo vivendo na ―era da informática‖, alguns rituais de
convívio entre os indivíduos sociais permanecem os mesmos, ou pelo menos quase os
mesmos, como se eles não tivessem sofrido a influência da passagem do tempo. O ritual
manifesta o retorno do mesmo, ou seja, por meio da multiplicidade de gestos rotineiros ou
quotidianos, o ritual lembra à comunidade que ela ―é um corpo‖21, isso implica que o ideal
comunitário de bairro atua mais por contaminação do imaginário coletivo do que por
persuasão de uma razão social.
21
Cf. Maffesoli, O tempo das Tribos, cap. I, p. 48.
50
Nesse contexto, existem várias iniciativas de agregação social por meio da emoção
compartilhada. São manifestações coletivas, em geral praticadas por jovens, para valorização
de sua produção artístico-cultural. Assim como em Recife tais práticas coletivas resultaram
no Manguebeat (hoje, de reconhecimento nacional), em Salvador existe essa potencialidade
nos bairros periféricos, que se vierem a se articular um dia, poderão fazer surgir um novo
movimento. Toma-se aqui, como exemplo, a cena roqueira do bairro de São Caetano.
5.2 OUTROS PALCOS
Ao se pensar no Palco do Rock como uma vitrine para bandas que estão procurando
seu reconhecimento profissional, recai-se numa dicotomia: incontestavelmente, é o festival
mais importante da Bahia, no tocante à dimensão que atinge, porém ele acontece de tal forma
nos moldes mercadológicos que chega a por em dúvida sua legitimidade enquanto
representante da cena rock baiana para muitos roqueiros soteropolitanos, enquanto que há
vários outros eventos acontecendo de forma totalmente independente em lugares de Salvador,
organizados por jovens músicos, e que são pouco ou nada visados pelos próprios roqueiros,
menos ainda pela grande mídia. Enfrentando dificuldades de todo tipo – financeira, de
divulgação, de espaço para ensaiar e para se apresentar etc. – esses jovens se unem para criar
sua própria vitrine na tentativa de concretizar a realização profissional com a música.
No bairro de São Caetano há diversas bandas de rock e alguns espaços para suas
apresentações. Os roqueiros de lá se revezam na organização dos eventos, elaboram projetos
independentes e tentam solidifica-los da maneira que é possível; a exemplo disto, tem-se os
projetos Musiarte e Radiola Alternativa.
O Projeto Musiarte foi idealizado por Luciano Robô, 39 anos, morador do bairro de
São Caetano, com o intuito de proporcionar aos artistas locais oportunidade de mostrar seu
trabalho: “Eu sentia que a moçada aqui vivia um pouco ociosa, até eu também, não tinha
espaço para a moçada apresentar os seus trabalhos, sentia que as nossas ideias tinham de
ser expostas”. A proposta inicial era a de ser uma cooperativa de músicos, no entanto, devido
à dificuldade de lidar com a autogestão, Luciano se viu obrigado a tocar o projeto quase
sozinho. Além disso, com o passar do tempo, outros segmentos culturais foram sendo
incorporados: as artes cênicas e a poesia.
51
Oficialmente, o Musiarte existe desde dezesseis de março de dois mil e oito, quando
aconteceu o primeiro evento. Sua realização é muito simples: consiste numa manifestação
artística pelas ruas do São Caetano; Luciano e amigos se juntam para tocar e entoar canções
diversas e recitar poesias com uma tirada de interpretação cênica. Vale ressaltar que o próprio
Luciano passou por essa experiência de encenação na cidade de Paulo Afonso (BA) onde
trabalhou como palhaço.
Luciano afirma que qualquer um pode participar do Musiarte – não há restrição de
idade, gênero, veia artística ou qualquer coisa do tipo: “No Musiarte não criamos barreiras,
não criamos regras para seleção. Aqui é um espaço de todos e pra todos!”. O Musiarte nunca
teve patrocínio apesar de Luciano ter sido convidado pela Rádio Educadora FM para falar
sobre o projeto e de já ter sido divulgado em uma matéria da revista Muito (complemento do
jornal A Tarde). Recentemente, o site iBahia também dedicou algumas linhas ao Musiarte.
Mesmo com essa falta de investimento externo, Luciano persiste com o projeto: há
ocasiões em que ele mesmo precisa custear as despesas, como no início da realização dos
eventos, quando ele e seus amigos não tinham equipamento de som para a apresentação final
do evento no Bar da Tia Dedé e por isso era necessário alugar a aparelhagem. Essa situação
melhorou um pouco depois de um cachê que a sua banda (Confusão Fusão) ganhou por um
show no Teatro Plataforma, o qual foi investido na compra de caixas de som, microfones e
pedestais.
Esse bar da Tia Dedé, aliás, é de fundamental
importância para a existência do Musiarte, pois
funciona como uma espécie de ―sede‖ do projeto.
Antigamente,
acontecia
apresentações
do
projeto
regularmente
Johnny
no
Vermelho
bar
e
Convidados, porém a banda acabou e Luciano viu a
oportunidade que esperava: conversou com a Tia Dedé,
que cedeu o espaço e o Musiarte começou com
apresentações típicas de barzinho – voz e violão – até
ganhar as ruas do São Caetano, mas sempre voltando
para o seu lugar de origem: o Bar da Tia Dedé, uma
senhora de quase 70 anos que, após conviver com
Figura 6 - Banda Ato 5 na 33ª edição do Musiarte
52
tantos roqueiros, agora se diz também roqueira.
Em seus melhores momentos, o Musiarte conseguiu levar para o São Caetano Wilson
Aragão (parceiro musical de Raul Seixas), Corisco e até uma banda venezuelana. O
reconhecimento desse esforço vem com o tempo: o projeto já começou a ganhar repercussão
na cena roqueira de Salvador, apesar de não estar atrelado somente a esse gênero, e Luciano
não esconde o seu orgulho: “Já houve situação de eu estar em evento do Rio Vermelho e até
mesmo no Palco do Rock e as pessoas querendo saber como fariam para tocar no
Musiarte!”.
No período junino, o Musiarte procura fortalecer ainda mais sua ligação com a música
regional: são incorporados instrumentos como triângulo, zabumba, flauta e pandeiro para
compor ritmos nordestinos aliados à poesia. Quando indagado sobre a possibilidade de ganhar
dinheiro com o projeto, Luciano, que trabalha como recepcionista em hotel, é categórico:
“Bem, acho que seria interessante se rolasse uma grana, sim. Não tenho nada contra. Até
mesmo porque tudo tem um custo... E acho que as pessoas que se apresentam também devem
ser respeitadas pelo que fazem, então por isso gostaria sim que rolasse uma grana, mas que
essa grana fosse distribuída!”.
Nota-se aqui a percepção de arte como um caminho de realização pessoal e
profissional – os artistas desejam ser admirados por sua produção e precisam se manter com
ela –, bem como de ação prática para a valorização da cultura marginalizada. Nesse contexto,
existem diversas atividades culturais que podem agregar as pessoas, não somente os agentes
culturais, mas toda uma comunidade pode estar envolvida nas ações dando algum tipo de
apoio para a realização dos eventos que, pode lhes dar a oportunidade de saírem da
invisibilidade na Indústria Cultural.
Outro exemplo de ―neotribalismo‖ do São
Caetano
é
o
projeto
Radiola
Alternativa,
contemporâneo do Musiarte. Organizado por
Marcelo Pinheiro (28), Ítalo Santana (27), Carlos
Augusto (28) e Alessandra Braga (21), também
tem como objetivo dar aos grupos independentes
a oportunidade de mostrar seu trabalho de forma
digna. Para tanto contam com a parceria do artista
Figura 7 - Cartaz da 13ª edição do Radiola Alternativa
53
plástico JC Barreto que cede seu espaço de trabalho (Café Atelier JC Barreto) para a
realização do evento. A fim de custear algumas despesas é cobrado um valor simbólico no
preço do ingresso: dois ou três reais.
O Radiola não é tão eclético quanto o Musiarte com relação às atrações musicais, mas
também não possuem processo de avaliação e seleção das bandas. Tudo é muito simples:
quem tem uma banda procura os garotos, que combinam o dia e horário do evento com JC.
Eles se reúnem para decidir detalhes da programação e depois todos ajudam a divulgar e
correr atrás do que for necessário. Segundo Marcelo, a criação do Radiola partiu da
necessidade de se ter ―mais democracia para os músicos apresentarem seu trabalho”, já que
em espaços mais conhecidos do centro da cidade, como o Groove Bar no Rio Vermelho, os
músicos precisam bater uma meta de vendas da bilheteria para que suas bandas possam se
apresentar.
Para participar do Radiola Alternativa, as bandas não precisam passar por seleção nem
vender parte dos ingressos. Basta procurar um dos produtores do evento e agendar a data e o
horário da apresentação. Marcelo diz que apenas pede aos músicos que vão conhecer o lugar
antes de fechar a apresentação para terem certeza se estarão dispostos a tocar, já que o espaço
é muito pequeno e pode ser desconfortável.
A divulgação do Radiola é feita através de cartazes, cuja arte gráfica é feita pelo
próprio Marcelo que, juntamente com seus colegas, cola-os pelas ruas do São Caetano, e
através do Facebook. Há mais ou menos um mês, o Radiola passou a ser assessorada
voluntariamente pela Calango Comunicação.
Geralmente, os frequentadores desses projetos e de outros eventos menores que
acontecem no São Caetano são moradores do próprio bairro e de bairros vizinhos; às vezes,
pessoas de bairros mais distantes aparecem e na sua maioria são amigos ou colegas mais
chegados que vão prestigiar o trabalho dos companheiros.
Nota-se, em eventos como o Musiarte e o Radiola Alternativa, que a música contribui
para a formação de uma comunidade emocional, que ela pode suprir, nem que seja por uma
noite ou um dia, a necessidade de se estar junto com o semelhante e isto fica mais viável
justamente em lugares que não são visados pela grande mídia, em lugares que os empresários
da indústria da música parecem não depositar muita confiança em encontrar público que lhe
dê retorno.
54
6 CONCLUSÃO
De fato, o rock não é o gênero musical mais importante de Salvador, em termos de
mercado fonográfico, mas apesar de Salvador ser mundialmente conhecida como a capital do
Carnaval, é necessário reconhecer que o rock também faz parte de sua cultura e, portanto,
contribui positivamente para sua imagem de cidade marcada pelo multiculturalismo.
Nesse contexto, pode-se entender a posição que ocupa o Festival Palco do Rock na
questão da identidade cultural baiana: existe uma parcela das juventudes que compõem a
Bahia que forma um público distinto da indústria musical vigente e busca um mercado cativo
para essa exceção, tendo o Palco do Rock como principal representante comercial da cena
roqueira do Estado, no tocante à dimensão de seu alcance como um caminho viável para as
bandas se inserirem no mercado.
No que diz respeito ao processo de comunicação estabelecido pela ACCRBA, esta
deve rever a sua forma de se relacionar com o público, a sua visão sobre o que é um evento de
caráter democrático, visto que se propõe a representar os roqueiros baianos.
Com relação à possibilidade de agregação comunitária, o Palco do Rock se encaixa no
conceito de comunidade emocional formada pelo tribalismo por apresentar as características
de reunião pontual (motivada pela emoção compartilhada) com o intuito de celebrar
afinidades culturais e que, após atingir seu objetivo, se dispersa, porém estabelece uma rede
de relações interpessoais.
Por fim, as novas tecnologias de informação e comunicação contribuem para a
democratização da cultura ao facilitar a divulgação das manifestações culturais independentes,
criando e fortalecendo as redes de relacionamento que compõem as novas formas de convívio
social na contemporaneidade.
55
REFERÊNCIAS
ACCRBA. Disponível em: http://accrba.blogspot.com.br/. Acesso em julho de 2012.
BAUMAN, Zygmunt. [25 jul. 2011]. Diálogos. Entrevista ao Fronteiras do Pensamento.
Londres, Inglaterra: 2011
CALADO, Carlos. Tropicália: A história de uma revolução musical. São Paulo: Editora 34,
1997.
CARVALHO, Cristina. GAMEIRO, Rodrigo: O Movimento Manguebeat na mudança da
realidade sociopolítica de Pernambuco In___VI Congresso Português de Sociologia.
Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2008.
FUKUHARA, Rodrigo. Fronteiras esfumaçadas: mutações simbólicas para a subjetividade
de grupos contraculturais In___ Anais da XXI Semana de História da UENP—Pesquisa
histórica: fronteiras. Jacarezinho (PR): Universidade Estadual do Norte do Paraná, 2009.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de janeiro: DP&A, 2006.
MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: O declínio do individualismo nas sociedades de
massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
MÜHLSTEDT, Lidiane. Geração Coca-Cola: as representações da juventude e do seu
comportamento no pop/rock dos anos 80. Curitiba (PR): Universidade Federal do Paraná,
2004.
PERUZZO, Cicília Maria Krohling. Revisitando os conceitos de Comunicação Popular,
Alternativa e Comunitária. Brasília (DF): INTERCOM, 2006.
RAMOS, Eliana Batista. Anos 60 e 70: Brasil, juventude e rock. Vitória (ES): Revista Ágora,
n.10, 2009.
ROSZAK, Theodore. A contracultura: reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição
juvenil. Petrópolis (RJ): Vozes, 2ª edição, 1972.
Revista Mundo Estranho. Rock! In___coleção 100 Respostas. São Paulo (SP): Ed. Abril, 4ª
edição, 2004
56
APÊNDICE A – Trabalhos acadêmicos onde o Palco do Rock é citado
CASTRO, Armando Alexandre (2009). Carnaval soteropolitano: diversidade cultural e
turismo. Artigo in___ Revista Eletrônica Patrimônio: Lazer & Turismo, v. 6, n. 7, jul.-ago.set./2009, p.1-18.
CASTRO, Armando Alexandre (2010). Axé Music: mitos, organização e world music. Artigo
in___ VI Encontro de Estudos Multidisciplinares em cultura, Universidade Federal da Bahia.
GAIARSA, Clarissa Chagas (2008). Rock baiano em pauta: uma análise de como a cena é
abordada pelos jornais locais A Tarde e Correio da Bahia. Monografia (Bacharelado em
Comunicação Social), Universidade Federal da Bahia.
SANTOS, José Mário Peixoto (2003). Jayme, a figura do artista performático. Artigo in___
História das Artes Visuais na Bahia, Universidade Federal da Bahia.
APÊNDICE B – Trechos da entrevista com rockeiros do Campo Grande em 13.04.2012
Marcelo Araújo Santos, 28 anos22: O Palco do Rock pra mim acabou em 1998.
Aracelli: por que?
Marcelo: Porque em 1998 houve uma briga com algumas pessoas idiotas que com certeza
não curtiam o velho rock‘n‘roll e tentaram fazer disso uma coisa extremamente idiota, como o
rock‘n‘roll nunca foi idiota... por isso temos o nosso Palco do Rock aqui em Salvador. É uma
coisa genial, é um projeto muito bom até; por melhor que seja ou pior que seja, mas pelo
menos é um projeto alternativo muito bom que temos e sempre será e sempre vai acontecer.
Fato.
Aracelli: Vem cá, você parou de ir, não vai mais desde 98?
Marcelo: Não, não. Eu voltei a ir a partir de 2010, mas por causa de amigos, porque se fosse
por mim eu não iria. Mas fui sim e achei muito divertido, foi genial.
Aracelli: Marcelo, você falou que o PDR não é mais o que era, que acabou em 98 e tal... Mas,
antes disso, você ia por que? Porque existem várias festas de rock, mas por que você ia pro
PDR? E por que você voltou a ir já que você falou que pra você tinha acabado em 98?
Marcelo: Porque em 1998 eu só tinha 14 anos de idade e antes disso eu também ia ao Palco
do Rock e era uma coisa muito legal, porque eu era levado por amigos mais velhos e era
superdivertido. Eu não via brigas, nunca aconteceu nada disso e era supergenial pra mim
22
Marcelo veio a falecer nessa mesma noite.
57
como eu tô vendo até hoje, pena que hoje há muitas coisas alternativas, porém continua nas
mesmas coisas assim sempre.
***
Jefferson da Silva Carvalho, 20 anos: Pela convivência que eu tenho do PDR, pelas
histórias que eu ouço de amigos mais antigos, as bandas eram selecionadas pela aceitação do
público e tal. Hoje elas são aceitas pela questão musical, pela forma de gravação e outras
coisas aí. Inclusive, outras bandas de amigos meus que têm uma aceitação muito grande do
público, são boas realmente, só que não têm um meio de divulgação, de gravação e tal, e
acabam sendo vetadas pelo Palco do Rock. O PDR está sendo feito para pessoas de alto nível,
mas não com aquela cena de antigamente.
Aracelli: Comparando, assim, a cena de hoje em dia do Palco do Rock e a cena do Palco do
Rock de dez anos atrás, se você fosse tirar a melhor coisa de hoje e a melhor coisa de dez anos
atrás, seria o que?
Jefferson: Eu acho que a melhor coisa de hoje é estar bem divulgado lá fora e tal... E a
melhor coisa de antigamente é ter mais a união, ter as pessoas mais verdadeiras e tal, ter o
convívio entre os amigos, ter atrações refletindo algo para a cena; não bandas apenas que
chegam junto... e a partir disso tentam crescer no cenário através do Palco do Rock. O PDR é
uma porta de entrada para várias outras bandas e tal, mas o critério de seleção eu acho meio
errôneo.
Aracelli: Como é que você acha que deveria ser o critério de seleção?
Jefferson: Pela aceitação do público.
***
Bruxa Death Metal: Todo ano eu vou ao Palco do Rock!
Aracelli: Por que você vai pra lá?
Bruxa Death Metal: Porque eu gosto. É um lugar onde a gente se entrosa. Não é Carnaval.
Carnaval rola mesmo violência. Salvador não tem espaço pra rockeiro.
Aracelli: Por que você diz que em Salvador não tem espaço pro rock?
Bruxa Death Metal: Porque muitas bandas de fora querem vir pra cá e não tem espaço pra
eles mesmos colocarem pra gente ir. O Metallica nunca veio a Salvador, o Iron Maiden
também... Só vão pra São Paulo e Rio de Janeiro. E a gente tem que se deslocar daqui...
Aracelli: O que você acha de mais legal no Palco do Rock?
Bruxa Death Metal: Ah! As bandas que eu curto, black metal pesado!.. Agora eu queria que
no próximo ano rolasse mais black metal e menos punk.
Aracelli: Por que? Você não gosta de punk?
58
Bruxa Death Metal: Não! Punk é muito violento!
Aracelli: Você acha que o Festival em si é violento?
Bruxa Death Metal: Quando mistura os punks com os headbangers... Não dá o que preste!
Aracelli: Você acampa lá também, Bruxa?
Bruxa Death Metal: Acampo! Todo ano!
Aracelli: Você fica durante todos os dias do Festival?
Bruxa Death Metal: Esse ano eu fui com o meu filho e fiquei lá.
***
Aracelli: Por que você acha que o pessoal vai tanto pro PDR, que até acampam lá durante os
quatro dias?
Eduardo Psico: Quem vai mais é a galera que não conhece, porque a galera das antigas
mesmo nem vai mais. O pessoal mais novo que tá chegando agora vai pra curtir o som e tal,
achando que é uma coisa que na verdade não é.
Aracelli: Você parou de ir?
Eduardo Psico: Parei de ir há seis anos.
Aracelli: Não sente saudade, não?
Eduardo Psico: Eu sinto falta dos meus amigos, de encontrar a galera, mas do evento em si,
eu não sinto mais falta.
Aracelli: Mas, assim, você acha que o Palco do Rock de alguma forma representa o cenário
rock soteropolitano? Você acha que ele tem essa importância realmente ou você acha que há
outros eventos de rock em Salvador que poderiam representar muito mais?
Eduardo Psico: Claro! Havia aqui um movimento do qual eu fazia parte; representava muito
bem o cenário metal de Salvador, como as bandas Crucificator e Ofertorium que estão na
ativa até hoje. Inclusive, Crucificator é a banda de metal mais antiga de Salvador, poucos
sabem disso. Foi a Crucificator que começou com o negócio de pintar rosto como marca de
guerra, sendo que isso não começou na Europa... Muitos dizem: ―Ah! Foram as tribos da
Europa que começaram a pintar o rosto‖ e tal. Nada disso! Isso começou aqui em Salvador,
através do Crucificator e do Oferturium. Os caras pintavam o rosto como forma de protesto,
como forma de ir pra guerra, a forma de batalha deles. E tá nisso aí. O Palco do Rock pra mim
hoje em dia não significa mais nada. Já representou muito pro cenário rock‘n‘roll de Salvador,
hoje em dia não representa mais porra nenhuma!
***
59
Gabriel The Libertine: O Palco do Rock pra mim é o seguinte: o lugar onde você não vai
ver som, você vai ver seus amigos, é o lugar onde todo mundo se encontra. Você pode ficar
anos sem ver essas pessoas, mas lá você vai acabar encontrando elas.
Aracelli: E é só por isso que você vai?
Gabriel The Libertine: Eu vou pelos meus brothers, não vou pelo som.
Aracelli: Você não acha interessante conhecer o trabalho das bandas que vão tocar lá?
Gabriel The Libertine: Eu acho... Estão levando a Bahia pra frente em termos de som... Mas
não vou mentir pra você. Eu vou por causa dos meus amigos. Então quem eu quero ver que eu
nunca mais vi é lá no PDR. É um lugar pra se bater com os velhos amigos.
APÊNDICE C - Trechos da entrevista com rockeiros do São Caetano em 09.06.2012
Aracelli: Você vai ao Palco do Rock todo ano?
Tito Barreto: Todo ano.
Aracelli: Por quê?
Tito Barreto: Porque é o local onde eu encontro os meus amigos pra tomar birita e ouvir
alguma banda em especial que vai tocar, porque a maioria lá são bandas que não são muito
boas, mas que também ―tão‖ lá tentando seu espaço, mas por mim mesmo só vou pra
encontrar meus colegas e ver uma banda que eu ache que goste. O Palco do Rock, numa
época do ano, onde na cidade que eu moro só tem o que pra mim não presta – em relação à
música – e eu quero me divertir, a única opção é o Palco do Rock. Então, na verdade, é mais
pra encontrar a galera que eu não costumo ver e que eu sei que vou encontrar lá pra tomar
cachaça, conversar e ver se a gente consegue assistir a alguma banda que preste.
Aracelli: E você frequenta o Palco do Rock desde o início?
Tito Barreto: Na verdade, deve ter mais ou menos uns sete anos que eu vou ao Palco do
Rock.
Aracelli: E nesse tempo em que você tem frequentado, você percebeu alguma mudança na
estrutura do Festival, na organização, na qualidade das bandas que tocam lá?
Tito Barreto: Bem, ultimamente tem vindo bandas melhores. Eu pude observar que volta e
meia o Palco do Rock tem uma banda especial assim, mas geralmente, acho que porque o
público que vai pra lá curte mais metal, eles sempre colocam uma banda de metal pra tocar.
Lógico que eles também já trouxeram outras bandas que não são metal (hardcore, punk) e isso
é legal também. Com relação à estrutura, pra mim sempre foi a mesma e eu acho que o
60
público tem cobrado mais da organização do Festival porque, na verdade, a gente sabe que o
Governo disponibiliza o dinheiro pro evento, então tem que se investir nele.
***
Aracelli: O que é que você acha do Palco do Rock com relação à representatividade dele pro
cenário rockeiro baiano. Você acha que o Palco do Rock tem alguma importância pra
representar o movimento rockeiro na Bahia?
Luciano Robô: Eu acho que ele tem uma importância total na verdade. Eu acho que, apesar
de rolar só uma vez por ano, é uma coisa muito representativa aqui na Bahia porque vem
bandas de todos os lugares. Geralmente, quando vem alguma banda de rock tocar aqui, são
mais aquelas que tão na mídia e o Palco do Rock nos dá essa possibilidade de ver coisas que a
gente não vê há anos e que é um negócio incrível pro rock‘n‘roll, como teve o Cólera, teve
Inocentes, teve Plebe Rude, que são bandas que ficam no lado B da história e que tem uma
importância incrível pro rock. Eu acho que a importância do Palco do Rock é esse lance de a
gente poder ter acesso a essas bandas que tem uma ―responsa‖ imensa pro rock brasileiro.
***
Aracelli: Você acha que o Palco do Rock tem alguma importância com relação à visão que o
resto do Brasil tem com o que acontece musicalmente aqui porque a gente sabe que Salvador
é conhecida como a capital do axé, da folia, do carnaval, do pagode etc e tal... Você acha que
o Palco do Rock ajuda a mudar um pouco essa visão?
Cristiano Paganucci: Eu acho que não ajuda a mudar pelo seguinte: O Palco do Rock não
tem uma boa divulgação – fora a TVE, que é uma emissora pública e quase ninguém vê,
infelizmente. E eu acho que o mercado do axé é muito ―monopólico‖.
Aracelli: Você acha que existe um movimento rockeiro em Salvador?
Cristiano Paganucci: Bom, eu não chamaria aqui de um ―movimento‖... Inclusive porque eu
conheço vários artistas de rock‘n‘roll e tal, mas sinto falta de uma união pra formar um
movimento. Acho que as coisas acontecem em vários lugares diferentes, mas um movimento
só não. Uma coisa unida como tem em Recife, em São Paulo, salvador não tem hoje.
Aracelli: E por que você acha que Salvador não tem? Tá faltando o que pra acontecer isso?
Cristiano Paganucci: Eu acho que isso tem a ver com a cultura do lugar. Acho que quando
se faz [trabalha com] música, ninguém quer ver o outro bem. Então por isso que não tem uma
união. Eu acho que ainda fica muito aquela coisa: ―ah! Minha guitarra é mais bonita que a
sua‖, ―minha música é melhor que a sua‖... Aqui, quando o cara desce do palco, ele não
pergunta ―como foi minha banda?‖, ele pergunta ―o som da minha guitarra tava bom?‖.
Vamos deixar essa coisa de megalomania e vamos trabalhar juntos.
61
Aracelli: Você acha que a maneira como o Palco do Rock acontece hoje cria um caminho pra
que essas bandas se insiram no mercado, já que tantas bandas diferentes juntas num festival
formam uma espécie de vitrine...
Cristiano Paganucci: Não, eu não acho mesmo.
***
Aracelli: Você já foi ao Palco do Rock?
Alexsandro Santos, 24 anos: Sim...
Aracelli: Quantas vezes?
Alexsandro: Doze.
Aracelli: Você gosta mesmo de lá, hein? (risos)
Alexsandro: Gosto de rock‘n‘roll, tribos confraternizando, a troca de ideias, gente, os
debates, o álcool, a noite. (risos)
Aracelli: Você realmente acha que isso acontece lá?
Alexsandro: Como num Woodstock moderno, a ideia é que as tribos coexistam em paz no
evento. Não lhe direi que essa atitude acontece em absoluto, mas ainda existem pessoas que
vão à festa com o intuito de se divertir e confraterninar.
APÊNDICE D – Questionário aplicado à ACCRBA em 30.06.2012
1.
A ACCRBA conseguiu instituir o Dia Municipal do Rock. Você considera esse fato
relevante para o rock soteropolitano?
2.
Como surgiu o Palco do Rock? (de quem foi a ideia inicial, a maneira como foi
organizado etc.)
3.
Naquela época, quem fazia parte da associação? Os integrantes ainda são os mesmos?
Quem saiu? Por quê?
4.
Por que o Palco do Rock foi deslocado de Jaguaribe para Piatã?
5.
Por que o período de Carnaval foi escolhido para a realização do Palco do Rock?
6.
Qual a proposta do Palco do Rock? Sempre foi esta?
7.
Quais as condições para a realização do festival? Vocês têm patrocínio?
8.
Como é a relação do PDR com a mídia?
62
9.
Vocês sabem quantas pessoas, em média, freqüentam o evento?
10.
Qual é a finalidade do encontro Pensando o Palco do Rock?
11.
Qual é a diferença entre a Curadoria Pública e o Projeto Oficina Palco do Rock?
12.
Em entrevista realizada com alguns jovens em abril deste ano, eles disseram que o
PDR é um evento de ―cartas marcadas‖ quando me referi à Curadoria Pública...
13.
As bandas precisam pagar alguma taxa para tocar?
14.
Por que o PDR pode ser considerado ―alternativo‖?
15.
Existe diferencia entre o PDR e outros eventos de rock que acontecem no Brasil?
16.
Muitos daqueles rockeiros que se alojam em barracas de acampamento vêm do interior
da Bahia, enfrentam horas de viagem, e pode imaginar o quanto, de certa forma, é
desconfortável para eles permanecer nessa situação durante os quatro dias do Festival... Por
que você acha que eles se submetem a esse ―sacrifício‖?
17.
Existem muitos estilos dentro do rock que acabam formando ―tribos‖ nesse gênero:
punks, metaleiros, góticos... A programação do PDR atende essa demanda?
18.
Quais são as providências tomadas pela coordenação do PDR para cuidar da segurança
do público?
19.
Em 2010, foi criado o Espaço Interativo Infantil. O Palco do Rock é um evento
propício para crianças?
20.
Qual é o intuito da ACCRBA ao promover as campanhas solidárias no Palco do Rock?
21.
A festa de premiação que ocorre alguns dias após o PDR também é gratuita?
22.
O PDR permanece com as mesmas características?
23.
Qual a importância do Palco do Rock para o cenário musical da Bahia?
24.
O Palco do Rock seria o Woodstock baiano?
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