Ceppas. Ensino de filosofia política e cidadania

Propaganda
ENSINO DE FILOSOFIA:
POLÍTICA E CIDADANIA
FILIPE CEPPAS
RESUMO
Pensar a cidadania como eixo do ensino de filosofia, e como dimensão central da
formação escolar de modo geral, pressupõe a análise filosófica e crítica dos conceitos
de cidadania, política e formação, sob o risco de, paradoxalmente, subordinar a
liberdade e a responsabilidade da reflexão filosófica — a autonomia, o questionamento,
a criticidade, a análise conceitual e a capacidade argumentativa, quase sempre
identificadas, ainda que vagamente, com suas “competências” e/ou “habilidades”
específicas — a um valor impensado e heterônomo. Ao pensar o ensino da filosofia
sob o prisma dos conceitos de cidadania e política, esse texto procura confrontar
alguns pressupostos subjacentes ao ideal da “formação” (Bildung) com perspectivas
de emancipação articuladas a partir das filosofias de Foucault e Rancière.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino de filosofia, política, cidadania, formação, disciplina e
emancipação.
ABSTRACT
Thinking citizenship as the axis of philosophical teaching and the central dimension
of schooling in general presupposes the philosophical analysis and critique of the
concepts of citizenship, politics and education. There is a paradoxical risk of
subordinating the freedom and responsibility of philosophical reflection – autonomy,
questioning, its critical dimension, conceptual analysis and argumentative skills,
which are almost always identified, even vaguely, with one’s specific “competences”
and/or “skills” – to an unthought and heteronomous value. As a thought on teaching
philosophy in the framework of concepts such citizenship and politics, this paper
seeks to confront some of the underlying presuppositions of the ideal of “training/
educating” (Bildung) with the perspectives of emancipation as articulated in the
philosophies of Foucault and Rancière.
KEYWORDS: teaching philosophy, politics, citizenship, training/educating, discipline
and emancipation.
APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA
Quando o ensino de filosofia no nível médio é chamado a formar
o cidadão, nos deparamos, de imediato, com dois conjuntos de questões:
91
ETHICA
RIO
DE JANEIRO, V.13, N.1, P.91-102,
2006
(1) O que se entende por cidadania? De que “formação para a
cidadania” estamos falando? Quais suas finalidades e seus
contornos?
(2) Por que e como a filosofia deve contribuir para uma formação
cidadã? Partindo do princípio de que os professores de filosofia na
escola espelham a pluralidade e amplitude do espectro da reflexão
filosófica na contemporaneidade, não seria razoável esperar a eclosão
de conflitos significativos entre algumas das perspectivas filosóficas
que nos informam e as concepções de cidadania mais comuns no âmbito
da formação escolar? Ou, ao contrário, todo e qualquer processo de
ensino e aprendizagem de filosofia mobiliza “competências” e
“habilidades” necessárias a uma formação cidadã?
As respostas a esses dois grupos de perguntas estão numa
relação de mútua dependência, partindo do princípio de que a
discussão sobre a formação para a cidadania convida a uma análise
ela mesma filosófica sobre os conceitos de cidadania e de formação.
Se, por exemplo, entendemos a reflexão sobre a dimensão política de
nossa existência como sendo um aspecto central de uma formação
cidadã, então nem todo ensino filosófico dará aqui uma contribuição
decisiva. Mas uma tal “concepção política” de cidadania pressuporia,
por sua vez, a análise filosófica e crítica do conceito de política, sob o
risco de, paradoxalmente, subordinar a liberdade e a responsabilidade
da reflexão filosófica — a autonomia, o questionamento, a criticidade,
a análise conceitual e a capacidade argumentativa, quase sempre
identificadas, ainda que vagamente, com suas “competências” e/ou
“habilidades” específicas — a um valor impensado e heterônomo.
Uma vez formulado o problema em sua irredutível circularidade, cabe
a nós tentar explorar seu rendimento para uma possível formação
filosófica e cidadã.
É importante esclarecer, desde já, que repensar o ensino de
filosofia a partir dos conceitos de cidadania e política não se deve
somente à necessidade de responder aos ditames mais ou menos
recentes das políticas educacionais em nosso país, mais ou menos
recorrentes entre os próprios professores. A motivação reside, antes,
em repensar criticamente um pressuposto mais geral no trabalho de
formação do professor de filosofia do ensino médio: o de que a
discussão sobre os objetivos específicos do ensino e da aprendizagem
de filosofia envolve, necessariamente, o compromisso com o processo
de emancipação intelectual dos seus alunos. De imediato, podemos
subdividir essa questão em outras:
92
RIO DE JANEIRO, V.13, N.1, P.91-102, 2006
ETHICA
1) supondo que faz sentido pensar o ensino de filosofia a partir de
um horizonte normativo unificador, o que significa indentificá-lo
com a emancipação intelectual dos alunos?
2) antes de ver-se constrangido pelas limitações das condições de
ensino, este ideal não deveria ser questionado, em primeiro lugar,
pela própria dinâmica da atual autocompreensão da filosofia e
de seu lugar na cultura? (levando-se em conta [1] que as duas
coisas estão intimamente relacionadas e [2] que o impedimento
de se falar em uma dinâmica atual de autocompreensão da filosofia
complexifica radicalmente o problema)
3) se algo do ideal sobrevive após um processo radical de autocrítica
filosófica, como transformá-lo em ação, em contraste com as
condições do ensino e, mais amplamente, em contradição com o
todo da cultura (contradição formulada aqui como um
pressuposto, mas que deve ela mesma ser discutida)?
Neste texto, procuro desenvolver algumas idéias que considero
importantes para responder às questões (1) e (2). Trata-se de apresentar
elementos que apenas esboçam uma resposta ao terceiro ponto, qual
seja: pensar e praticar o ensino de filosofia sob o prisma da emancipação
pouco tem a ver com um privilégio concedido a conteúdos doutrinários,
capazes de mobilizar o pensamento e a ação dos estudantes em torno da
conquista da cidadania; pensar e praticar o ensino de filosofia sob o
prisma da emancipação implica, sobretudo, descortinar os mecanismos
que funcionam na base da distribuição desigual dos poderes e,
particularmente, nas configurações a partir das quais os alunos se
reconhecem ou não como sujeitos que se autorizam a pensar e agir
criticamente. Embora a hipótese esboçada pareça, talvez, trivial, espero
que o caminho percorrido para esboçá-la revele sua fertilidade, uma vez
que procura contornar algumas armadilhas comuns a uma concepção de
“formação para a cidadania” ainda presa a um ideal “iluminista” de cultura,
não apenas incompatível com a dinâmica cultural em que os jovens estão
de fato imersos, mas —o que dá no mesmo— também com a configuração
mais ampla da produção e circulação dos bens materiais e imateriais.
I. SOBRE A EMANCIPAÇÃO INTELECTUAL COMO
HORIZONTE NORMATIVO UNIFICADOR PARA O ENSINO DE FILOSOFIA.
Ao invés de responder positivamente a pergunta sobre a
identificação do horizonte normativo unificador do ensino filosófico
93
ETHICA
RIO
DE JANEIRO, V.13, N.1, P.91-102,
2006
com a emancipação intelectual dos alunos, vou mostrar, inicialmente,
como nós não deveríamos fazê-lo. A postura normativa acerca do
ensino de filosofia, embora inevitável, é um grave problema na medida
em que, paradoxalmente, costuma subscrever de forma acrítica um
ideal crítico de ensino ou formação (a distinção é aqui crucial), em
nome de uma descrição mais ou menos trivial da situação econômica,
política e, sobretudo, cultural em que vivemos, e que, sem dúvida,
parece nunca se cansar de ser cada vez mais a pior possível. Trata-se,
aqui, apenas de confrontar visões otimistas e pessimistas, mais ou
menos engajadas? Ou trata-se antes, por exemplo, de afirmar, em função
de uma certa natureza da filosofia, usualmente identificada com sua
origem no debate público, debate na pólis, uma missão a qual ela não
poderia se furtar?
O perigo mais imediato, para falar a partir de Heidegger — ou,
mais precisamente, de Heidegger lido por Derrida —, é o de ajudar a
perpetuar, de modo geral, a figura da filosofia como “funcionária do
fundamental”, quando tudo em nossa cultura, e em todo o lugar, o
desmente:
Ora, a filosofia é uma das formas essenciais do espírito:
independente, criativa, rara em meio às possibilidades
e necessidades do Dasein humano na sua historialidade.
Em função de sua raridade essencial, uma
singularidade atrai todos os enganos, tal como a
ambigüidade (Zweideutigkeit) atrai a má-interpretação
(Missdeutung). A primeira má-interpretação consiste
em exigir, de início (ainda hoje conhecemos bem esse
programa), que a filosofia forneça ao Dasein e à época
de um povo os fundamentos de uma cultura; para em
seguida denegrir a filosofia quando ela não serve para
nada neste sentido e não presta nenhum serviço a
essa cultura. Segunda expectativa, segundo engano:
esta figura do espírito, a filosofia, deve fornecer no
mínimo sistema, sinopse, imagem do mundo
(Weltbild), mapa mundi (Weltkarte), uma espécie de
compasso para orientação universal. Se a filosofia
não pode fundar a cultura, que ela ao menos torne
mais leve e facilite o funcionamento tecnoprático das
atividades culturais; que ela alivie também a ciência
ao desencumbi-la de uma reflexão epistemológica
sobre seus pressupostos, seus conceitos e seus
princípios fundamentais (Grundbegriffe, Grundsätze).
94
RIO DE JANEIRO, V.13, N.1, P.91-102, 2006
ETHICA
O que se espera do filósofo? Que ele seja o funcionário
do fundamental. Hoje mais vivos do que nunca, esses
malentendidos são sustentados, diz Heidegger (e quem
o contestará?), pelos professores de filosofia.1
Embora a perspectiva heideggeriana, ou ainda os inúmeros textos
que o próprio Derrida dedica ao ensino de filosofia, pudesse nos oferecer
um ponto de partida importante para pensar o porquê de vicejar entre os
professores um tal fundacionismo filosófico utilitário, ou um tal
utilitarismo da fundamentação filosófica, podemos explorar caminhos
talvez mais triviais em um filósofo de inspiração conflitante. A essa
figura utilitária da filosofia, Adorno contrapõe a concepção fichteana
da filosofia como autoconscientização viva do espírito. O que Adorno
faz, no mesmo passo, entretanto, é procurar entender a configuração da
distância que essa imagem imponente guarda frente às ruínas concretas
das provas de candidatos a postos docentes em diversas áreas, na
Alemanha dos anos 1960. Segundo Adorno:
A aprovação científica converte-se em substituto da
reflexão intelectual do fatual, de que a ciência deveria
se constituir. A couraça oculta a ferida. A consciência
coisificada coloca a ciência como procedimento entre
si própria e a experiência viva. Quanto mais se imagina
ter esquecido o que é mais importante, tanto mais
procura-se refúgio no consolo de se dispor do
procedimento adequado.2
No ensino de filosofia, em especial em seus níveis introdutórios,
as pretensões grandiosas da filosofia estão tanto mais presentes quanto
mais nos acreditamos livres da responsabilidade do pensamento
perante sua própria impotência. A hipótese é simples, embora talvez
pareça, à primeira vista, esdrúxula (ela não explica realmente o porquê,
apenas indica, talvez, uma melhor formulação para a equação): a
permanência de uma concepção utilitária e fundacionista da filosofia se
fixa, pouco consciente de si mesma, como procedimento adequado
perante a crise, porque o verdadeiro poder questionador da reflexão
1
2
DERRIDA, Jacques. De l’esprit. Heidegger et la question, Paris: Éd. Galilée,
1987, p.68-69.
ADORNO, Theodor. Educação e Emancipação, Petrópolis: Ed. Vozes, 1995, p.70.
95
ETHICA
RIO
DE JANEIRO, V.13, N.1, P.91-102,
2006
filosófica parece diluir-se no todo da cultura. Trata-se, portanto, de uma
reação, uma péssima trincheira, mas ainda assim uma trincheira.
Seria importante, aqui, identificar o que chamamos de “poder
questionador”. Para Adorno, como sabemos, o discurso filosófico é um
lugar, e talvez o lugar, do enfrentamento político mais urgente: a luta
contra a barbárie. Ainda no texto “A Filosofia e os Professores”, Adorno
escreve:
Hoje em dia o nazismo sobrevive menos por alguns
ainda acreditarem em suas doutrinas (...), mas
principalmente em determinadas conformações formais
do pensamento. Entre estas enumeram-se [1] a disposição
a se adaptar ao vigente, [2] uma divisão com valorização
distinta entre massa e lideranças, [3] deficiência de
relações diretas e espontâneas com pessoas, coisas e
idéias, [4] convencionalismo impositivo, [5] crença a
qualquer preço no que existe. Conforme seu conteüdo,
síndromes e estruturas de pensamento como essas são
apolíticas, mas sua sobrevivência tem implicações
políticas. Este talvez seja o aspecto mais sério do que
estou procurando transmitir.3
Podemos reconhecer aí um caminho possível a seguir, se
queremos aprofundar a reflexão sobre os perigos do caráter normativo
da reflexão sobre o ensino de filosofia: dizer que este ensino deve propiciar
a emancipação das inteligências corre o grande risco de reforçar aquela
visão “grandiosa”, fundacionista-utilitária da filosofia; na medida em
que dispensa a necessária mediação de uma reflexão autocrítica; i.e,
uma reflexão que reconhece em si mesma a impotência que gostaria de
superar, ao invés de identificar apressadamente as causa desta
impotência em tudo aquilo que se revela como incultura.
II. A DINÂMICA DA ATUAL AUTOCOMPREENSÃO DA FILOSOFIA E SEU LUGAR NA CULTURA.
Se o que foi dito acima pode nos deixar suficientemente
desconfiados diante de qualquer perspectiva utilitária para a filosofia,
tal como formar para a cidadania, isso não é porque partimos de algum
3
idem, pp.62-63.
96
RIO DE JANEIRO, V.13, N.1, P.91-102, 2006
ETHICA
princípio especulativo acerca da dignidade da filosofia. Ao contrário:
partimos, por assim dizer, de uma certa constatação empírica de sua
impotência. A introdução crítica não tem por objetivo, entretanto, negar
a pertinência do compromisso do ensino de filosofia com uma proposta
de emancipação intelectual dos estudantes, muito pelo contrário. É
apenas importante que estejamos alertas às dificuldades iniciais que se
encontram para além das condições mais óbvias, materiais, culturais,
políticas e sociais, a partir das quais qualquer proposta de “formação
para...” poderia se dar.
Sem dúvida, a própria idéia de formação é, por definição,
incompatível com a ênfase em qualquer finalidade particular ou
especializante. De imediato, seria preciso ponderar que a cidadania,
enquanto horizonte de valores, idéias e ações voltados para a conquista
ou aperfeiçoamento do estado de direito, só retoricamente pode ser
entendida como um “objetivo específico”. Mas, se o conceito de Bildung
diz respeito a uma formação cultural geral, como uma apropriação
desinteressada da cultura, em oposição aos valores da civilização ou do
progresso material, a cidadania, ao contrário, tem sua dinâmica regulada
por aquilo que Canivez chamará de “autonomia calculista”.4 Esta, ainda
segundo Canivez, pressupõe uma cultura escolar geral, cujos contornos,
entretanto, não têm a ver, necessariamente, com um conceito robusto
de Bildung, com o tipo de formação cultural geral que alguns filósofos
vislumbraram como parte do processo de autorevelação do espírito,
fosse ele absoluto ou meramente ilustrado, antes fruto do ócio ou de um
esforço desmedido. Para além dessas nuances, que eventualmente
perturbam a convivência pacífica entre os conceitos de cidadania e de
formação, nos cabe perguntar em que medida as clivagens conceituais
da filosofia no século XX já nos afastam irremediavelmente de uma
perspectiva de responsabilidade filosófica perante aquela promessa de
uma certa conjunção unificadora da cultura, em torno do conceito de
Bildung.
Seria bastante simplista dizer que o ideal burguês de “formação”
poderia ser fixado em qualquer configuração estanque, embora seja
costume reconhecer um conjunto de autores importantes que transitam
de modo mais explítico por questões comuns à problemática da
“transmissão da cultura” e da educação (Humboldt, Schiller, Coleridge,
Eliot, Arnold, Carlyle, etc.). Pode-se notar, em primeiro lugar, que muitos
4
CANIVEZ, Patrice. Educar o Cidadão? Campinas: Papirus, 1991.
97
ETHICA
RIO
DE JANEIRO, V.13, N.1, P.91-102,
2006
autores considerados mais conservadores mantiveram, de algum modo,
evidentes os conflitos inerentes à própria figura do homem burguês,
que Leandro Konder define como o homem competitivo, autônomo e
empreendedor.5 A maioria dos pensadores “sombrios” e/ou elitistas
que defenderam os valores da cultura diante do pragmatismo do mundo
dos negócios, da mercantilização e da massificação de todos os recantos
da vida, é também aquela a indicar a impossibilidade de se harmonizar
os conflitos de interesses do mundo capitalista através da cultura e do
aperfeiçoamento da democracia. Isto implicou, em alguns casos, uma
recusa a depositar grandes esperanças na democratização da educação
e na emancipação intelectual de modo geral. Visto o problema desta
maneira, o investimento no ensino de filosofia como um processo
irrecusável de conquista da emancipação intelectual não pode estar
senão dirigido a uma minoria.
O caráter aparentemente irresolúvel dos conflitos nas sociedades
capitalistas exclui o apelo a uma instância unificadora dos valores; no
que se refere à escola, ou ela restringe sua função formadora à elite, ou
ela não pode senão perder, em ampla medida, esta função. Agora, se
fizermos apelo a uma perspectiva de análise radicalmente diferente como
a do Foucault de Vigiar e Punir, a questão ganhará uma clivagem
filosófica importante, na medida em que a função da escolarização deve
ser pensada menos pelo alcance ou ressonância de seus conteúdos e
objetivos declarados, e mais pela confluência de sua organização num
regime de produção de subjetividade.6 O que é importante destacar na
configuração estética e discursiva da conformidade à disciplina não é,
necessariamente, como diz Canivez, que ela não deixa espaço para a
reflexão, mas sim que as opções às quais ela dá lugar não dizem mais
respeito à reivindicação do universal ausente (a cultura, o capital) pela
união subversiva de particulares excluídos ou divergentes. Esta
configuração sugere, antes, o desafio da decodificação dos universais
que servem como dissimuladores das práticas disciplinares que nos
distribuem no espaço e no tempo, e nos constituem enquanto sujeitos.
Pôr lado a lado os filósofos da Bildung e as idéias de um Foucault
é contrastar duas maneiras radicalmente divergentes de compreender a
5
6
KONDER, Leandro. Os Sofrimentos do “homem burguês”. São Paulo: Ed.
Senac, 2000.
FOUCAULT. Michel. Vigiar e Punir. História da violência nas prisões.
Petrópolis: ed. Vozes, 2001 (23a. ed.).
98
RIO DE JANEIRO, V.13, N.1, P.91-102, 2006
ETHICA
cultura, a educação e suas relações com o político. Quando se trata de
apresentar para os alunos as aparições, os embates, as dramatizações
das idéias filosóficas, apenas com muita dificuldade renunciaríamos a
uma narrativa composta basicamente de modos de compreender,
hierarquizar e combinar universais e particulares. Ora, a narrativa
filosófica, por mais distanciada que esteja da tematização da política,
parece sempre carregar, como a marca do seu nascimento, o pressuposto
básico de sua subordinação à política, pressuposto que está na base da
idéia de “formar para a cidadania”: a autonomia do lógos e a centralidade
do debate, enquanto fundamento filosófico da cultura e fundamento
cultural da filosofia, em torno do universal ausente, que hierarquiza e
legitima: a justiça, o bem, o belo, o verdadeiro.7 Acompanhar a
relativização que Foucault imprime às diferentes formas de representação
a partir de regimes discursivos e disciplinares que nos constituem
enquanto sujeitos também significa, precisamente, entender a promessa
da Bildung como manobra política que dificulta até mesmo reconhecer
quais são os verdadeiros inimigos.
Recentemente, Jacques Rancière vem explorando o mesmo tema,
por assim dizer, dessa tensão fundante entre a estética e a política,
através do conceito da partilha do sensível:
O cidadão, diz Aristóteles, é quem toma parte no fato
de governar e ser governado. Mas uma outra forma de
partilha precede esse tomar parte: aquela que
determina os que tomam parte. O animal falante, diz
Aristóteles, é um animal político. Mas se o escravo
compreende a linguagem, ele não a “possui”. Os
artesãos, diz Platão, não podem participar das coisas
7
Valeria relacionar a questão à discussão proposta por Renato Janine Ribeiro, em
“Pode o Brasil renunciar a Filosofar?” (in SOUZA, José Crisóstomo. A filosofia
entre nós. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005). Certamente, a subordinação da filosofia prática
à ontologia ou à teoria do conhecimento é solidária com a timidez da intervenção
do filósofo no espaço público. Mas valeria acrescentar que uma filosofia prática,
apenas por ser prática, por estar voltada para uma intervenção conceitualmente
robusta em terrenos polêmicos e urgentes, não irá nos salvar das armadilhas “do
trabalho padrão em filosofia empreendido hoje no Brasil”, se ela não coloca em
suspeição o pressuposto básico da subordinação dos processos de esclarecimento
às demandas da política — assim como o seu pressuposto complementar de que
o esclarecimento seria condição necessária e suficiente para o aperfeiçoamento
da pólis, como quando se insinua, nos mais diversos discursos, que só a melhoria
da educação irá tirar o país do seu gigantesco atraso.
99
ETHICA
RIO
DE JANEIRO, V.13, N.1, P.91-102,
2006
comuns porque eles não têm tempo para se dedicar a
outra coisa que não seja o seu trabalho. Eles não podem
estar em outro lugar porque o trabalho não espera. A
partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte
no comum em função daquilo que faz, do tempo e do
espaço em que essa atividade se exerce. Assim, ter
esta ou aquela “ocupação” define competências ou
incompetências para o comum, dotado de uma palavra
comum etc. Existe portanto, na base da política, uma
“estética” que não tem nada a ver com a “estetização
da política” própria à “era das massas”, de que fala
Benjamin. Essa estética não deve ser entendida no
sentido de uma captura perversa da política por uma
vontade de arte, pelo pensamento do povo como obra
de arte. Insistindo na analogia, pode-se entendê-la
num sentido kantiano —eventualmente revisitado por
Foucault— como o sistema das formas a priori
determinando o que se dá a sentir.8
Se nos ativermos ao conceito grego de isegoría, será preciso
reconhecer que a formação cidadã é uma prática, e não apenas um
conjunto de princípios e de saberes que deveriam presidir a inserção
do indivíduo na comunidade, supondo que a escola seja um tal lugar
privilegiado de inserção.9 Foucault e Rancière nos ajudam a ver que a
escola é, sobretudo, um dispositivo radical de produção de
subjetividade, solidário com uma partilha do sensível que se estabelece
em diversas frentes, mas contra a qual não é possível lutar somente
com as boas intenções da denúncia, da razão explicadora ou da
“conscientização”.10 Se é verdade, como diz Aristóteles, no início da
Política, que as relações entre um estadista, o estado e seus súditos,
de um lado, e as relações entre um chefe de família e sua casa, de
outro, diferem não apenas no tamanho, mas “em espécie”, não
RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível. Estética e política. São Paulo:
Editora 34, 2005. pp.15-16.
9
E seria preciso lembrar, aqui, do clássico problema, trabalhado por Hannah
Arendt, da cumplicidade dos “modernos métodos de ensino” perante à
colonização do possível por modos já legitimados e envelhecidos de ordenação
do mundo adulto. ARENDT, Hannah. “A Crise na Educação”, em Entre o
Passado e o Futuro, São Paulo: Perspectiva, 2001 (5a. ed.).
10
Ver, ainda, RANCIÈRE, Jacques. O Mestre Ignorante, cinco lições sobre a
emancipação intelectual, Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
8
100
RIO DE JANEIRO, V.13, N.1, P.91-102, 2006
ETHICA
deveríamos dizer o mesmo a respeito das relações entre os professores
e os alunos, que elas diferem também em espécie das precedentes? Se
isso é verdade, estamos de imediato diante de uma pergunta crucial
acerca da formação cidadã na escola: a escola serviria mal e porcamente
como laboratório de formação cidadã; seu caráter reprodutor se explica
pelo anseio com que ela procura mimetizar as regras da sociedade e os
ideais exteriores de vida saudável, pelo modelo precário de cidadão
que confunde formação humanista combalida, assistencialismo e
pragmatismo exacerbado. Deste modo, bem se poderia dizer
paradoxalmente que a escola não deixa de ser um laboratório eficaz de
formação cidadã: as dificuldades que têm os agentes escolares diante
dos rituais, das regras anti-democráticas e das práticas instituidoras
de distinção criadas pela própria escola são apenas uma antevisão
assustadora dos mecanismos sociais mais amplos de geração da
injustiça e das desigualdades.
Este modo de encarar o problema não pretende esgotar-se na
adoção de um tom sombrio. Ao contrário, ele liberta a questão da
cidadania para ser pensada como um desafio de reconquista da palavra
em meio a esquemas disciplinadores mais ou menos esclarecidos, do
complexo jogo da “partilha do sensível”. Ele liberta a questão da
cidadania das armadilhas de uma concepção idealizada de formação,
cada vez mais pateticamente deslocada perante as pressões do “cálculo
autônomo” e da velocidade com que a (des)ordem social se precipita
dentro da escola.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, Theodor. Educação e Emancipação, Petrópolis: Ed. Vozes, 1995.
ARENDT, Hannah. “A Crise na Educação”, em Entre o Passado e o
Futuro, São Paulo: Perspectiva, 2001 (5a. ed.).
CANIVEZ, Patrice. Educar o Cidadão? Campinas: Papirus, 1991.
DERRIDA, Jacques. De l’esprit. Heidegger et la question, Paris: Éd.
Galilée, 1987.
FOUCAULT. Michel. Vigiar e Punir. História da violência nas prisões.
Petrópolis: ed. Vozes, 2001 (23a. ed.).
101
ETHICA
RIO
DE JANEIRO, V.13, N.1, P.91-102,
2006
KONDER, Leandro. Os Sofrimentos do “homem burguês”. São Paulo:
Ed. Senac, 2000.
RANCIÈRE, Jacques. O Mestre Ignorante, cinco lições sobre a
emancipação intelectual, Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível. Estética e política. São
Paulo: Editora 34, 2005.
RIBEIRO, Renato Janine. “Pode o Brasil renunciar a Filosofar?”, in
SOUZA, José Crisóstomo. A filosofia entre nós. Ijuí: Ed. Unijuí,
2005.
102
Download