Jornal A Tarde, quarta-feira, 13/11/1968 Assunto: UM PROJETO DE “APARTHEID” PARA O BRASIL A “Consciência ingênua” do nosso povo iludiu-se muito tempo com o mito da democracia racial brasileira. Ou procurou ocultar o nosso problema racial sob uma ideologia ou racionalização segundo o qual “não há discriminação racial” no País. Foi necessário que cientistas sociais, alguns estrangeiros que utilizavam a princípio conceitos e categorias elaborados noutros contextos, desmascarassem o preconceito, a discriminação, a problemática “racial” em sua complexidade para que o brasileiro começasse não sem relutância, a reconhecer a verdadeira face do que a história e a vida quotidiana lhe mostraram. Aquelas investigações sócioantropológicas dos últimos trinta e cinco anos, iniciadas exatamente na Bahia, não permitem dúvidas sobre a existência e a ação discriminadora de preconceitos “raciais” mesmo onde o convívio sem hostilidade manifesta e a rejeição subjetiva do racismo pereciam negar os fatos. Ficou desde então estabelecido cientificamente que no meio brasileiro as características com que se expressa o problema diferem das que observam nos Estados Unidos na África do Sul, na Rodésia do Sul. Mas nem por isto deixa de existir e de ter conseqüências sociais e individuais graves em grande parte porque também sofremos como indicou Rogar Bastide de um dilema parecido com o que Gunnar Mydal surpreendeu nos Estados Unidos, isto é uma contradição entre o ideal de uma democracia racial e a realidade inegável da discriminação. A adoção da Lei Afonso Arinos veio a representar uma reação por assim dizer instintiva da Nação contra a praga daquela discriminação. Entretanto muitos sempre consideraram indiscretos e disassizado levantar a questão pelo medo de que se cresce na gente de cor a consciência de uma inferioridade social que se nega firmemente. Mas esse estado não é uma invenção de irresponsáveis: os que o denunciam e demonstram em seus estudos de história social, de sociologia, de cultorologia são entre outros, Artur Ramos, Gilberto Freire, Donald Pierson, Roger Bastide, Nélson S. Sampaio, A. Guerreiro Ramos, Charles Wagley, L. A. Costa Pinto, Florestan Fernandes,René Ribeiro, Otávio Ianni... Agora o Ministro do Trabalho com tardio espanto e indignação toma conhecimento de denúncias da imprensa de que no Brasil, apesar da lei e dos costumes tradicionais, há brasileiros que são recusados em empregos no Brasil, apesar de qualificados profissionalmente, porque são “negras” ou de cor. Diante do problema que pensam fazer as autoridades? Segundo técnicos do Ministério do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho, “uma lei semelhante à dos 2/3 poderia solucionar o problema”. Um desses “técnicos” convencido da necessidade de uma legislação que regule o assunto, - como se não existisse uma Constituição e uma lei muito anterior contra toda discriminação por motivo de raça, crença e até ideologia política, propõe que se estabeleça, por exemplo, que certas empresas sejam obrigadas a manter em seus quadros 20 por cento de empregados de cor, algumas 15 por cento e outras 10 por cento, conforme o ramo de suas atividades e respectivo percentual de procura por candidatos de cor! Não há como calar diante de sugestão ou projeto tão desvairado. Já surgem os protestos e as advertências, às quais quero ajunta a minha voz. Fazer admitir compulsoriamente empregados somente por serem brancos ou de cor já é uma injustiça contra os que, independente do seu tipo se habilitam para o trabalho. Por outro lado, estabelecer quem é ou não é de cor ou branco implica em desafiar a tradição, os sentimentos,os critérios que felizmente vigem no Brasil, além de provocar uma questão moral e técnica dificílima. Mas o que antes do mais e com urgência e vigor é preciso repelir é o principio, a lei, a norma seja o que for que consagre a distinção de qualquer ordem entre brancos e não brancos, como entre cristãos e judeus entre democratas e não-democratas ou quaisquer outras dicotomias simplistas e maliciosas. Negaríamos de plano a vontade nacional de subjugar toda tendência à discriminação racial, porque apesar dos fatos essa é uma deliberação histórica do nosso povo. A Nação cobrir-se-ia de opróbio e indignidade se acatasse tal medida, porque se o fizesse instauraria oficialmente contrário do que deseja: o apartheid. Na África do Sul, por exemplo o apartheid tem exatamente fundamento a distinção legal, expressa e determinada de brancos para com “negros” e “coloreds”. Leis draconianas fixam direitos e privilégios, obrigações, responsabilidades, diversos e inconfundíveis para cada grupo e punem com severas sanções as transgressões no que se refere a área de residência, educação e habilitação profissional, direitos políticos e civis, propriedade utilização de serviços públicos... É assim que se explica a tirania de dois milhões de brancos sobre mais de onze milhões de pessoas de cor e que se detém, segregam, condenam-se a trabalhos os que ousam desobedecer e uma série de leis irracionais e cruéis, cuja vigência é justificada pelos interesses do Estado pela segurança nacional e, acima de tudo pelo progresso da raça branca! O odiosíssimo regime tem sido denunciado no próprio país por políticos, homens de letras, cientistas, clérigos, jornalistas ao preço de uma repressão inflexível, muitas vezes baseada em lei de defesa contra a subversão e o comunismo. Criada que seja no Brasil uma distinção entre brasileiros brancos e brasileiros de cor e estabelecidos quotas de empregos para as duas categorias e categorias de atividades em que seria obrigatória a admissão de tantos ou quantos de um e outro tipo, independente obviamente das aptidões dos postulantes, os critérios de competência passariam a competir e até a submeter-se aos de “raça”, regulamentada e definida a figura jurídica do homem de cor como geradora de direitos arbitrários que se tornariam uma arma fácil de manejar contra os supostos beneficiários. Mulato ou “negro” não teria direito a certos empregos porque a lei teria limitado tal privilégio, sob vigilante fiscalização M. do Trabalho. Assim, uns empregos seriam reservados e privativos de brancos - e quem é “branco” no Brasil?, e o resto, o que sobrasse da partilha, arbitrária e caprichosa ficaria para os “crioulos”. Restaurar-se-ia por necessidade a classificação das atividades em nobres e servia: “trabalho pra negro” voltaria a ser o braçal, o manual, o insalubre, o desprezível socialmente como no tempo da escravatura. E toda uma nova ética e um novo sistema de valores - fictícios e desmoralizantes passaria a regular as relações entre os que, por sua cor houvessem nascido com o destino de livres ou de escravos. Os que fossem inferiores na escala de ocupações marcados pelo estigma da origem ética não tardariam a ser inferiores perante a própria Justiça e os outros órgãos e instituições sociais. E o que se ia procurando aperfeiçoar com o conhecimento de problema, graças à advertência dos cientistas sócias, seria relegado e substituído pela brutalidade irracional das diferenças de tipo físico tornadas um padrão e um critério legal. A quota fixada para forçar a aceitação de empregados de cor também não custaria a se transformar num limite máximo, que as empresas ou muitas delas não quereriam ultrapassar. E não há exagero em prever que instituições outras, - hospitais, hotéis, transportes coletivos, associações recreativas etc., se proporiam a cumprir a legislação com a mesma falsa generosidade. Emaranhados na trama da discriminação oficializada teríamos o “poder negro”, os motins, os linchamentos, os assassinatos, o ódio e o ressentimento criados e até ensinados nas aulas de Organização Social e Política até que a duríssimas penas nos livrássemos da injustiça e da desonra. Enquanto isto, as Nações Unidas se ainda existissem, estariam promovendo reuniões para coibir o nosso “apartheid” já então, quem sabe? Com o apoio de uma África do Sul redimida. Não deixa de ser um feliz angúrio o fato de que o Brasil, acaba de tomar posição aberta e declarada de oposição ao “apartheid” em recente reunião de comissão especial da ONU que mais vem denuncia segregação racial na África do Sul. Não foi assim na penúltima dessas reuniões exatamente em assembléia da mesma natureza, realizada por ironia em Brasília, em 1965, o governo do Brasil recusava a presidência da reunião porque se considerava neutro ante a odiosa política racial sul-africana. Se a nova posição apaga a vergonha então sofrida pelo povo brasileiro, não é menos oportuno registrar que o gérmen do racismo pode não ter sido extinto. É preciso protestar contra a nova lei-dos-dois-terços.