Introdução - Editora Contexto

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Introdução
Numa época de crescente globalização, em que cada vez mais indivíduos
visitam povos de línguas diferentes da sua ou em que indivíduos migram
para o território de falantes de outra língua, o contato de línguas é um fato
altamente recorrente. É dele que vou tratar no presente livro. A base teórica
foi erigida partindo de conceitos da ecologia biológica. Como veremos no
capítulo “Linguística, Ecologia e Ecolinguística”, um desses conceitos é o de
ecossistema, que é encarado como um todo (holismo). Ele é constituído por
uma diversidade de organismos (animais e vegetais), num constante processo
de inter-relações, tanto dos organismos com o meio ambiente quanto deles
entre si. Meio ambiente e organismos fazem parte do ecossistema. Como
veremos no lugar apropriado, contato de línguas é basicamente inter-relação,
ou comunicação, no caso, entre povos aloglotas. O ecossistema, por seu turno,
é um sistema dinâmico, em constante evolução, que é justamente o que ocorre
com as línguas nas situações de contato.
Após essa exposição das bases ecológicas da argumentação, passo a
conceituar o que veio a ser chamado de Ecolinguística, que é justamente o
estudo das relações entre língua e meio ambiente. Com isso, faz-se necessário
definir o que se entende por língua, meio ambiente da língua, bem como por
interações entre língua e seu meio ambiente. O equivalente de ecossistema
nos estudos linguísticos é o que passou a ser conhecido como Ecossistema
Fundamental da Língua (efl), constituído por um povo (população da ecologia), habitando determinado território (biótopo). Tudo o que acontece na
língua se dá dentro desse contexto. Em seu interior, o habitat (nicho)/biótopo,
juntamente com a população, constitui o meio ambiente da língua, no sentido
mais amplo. Esse ecossistema maior se desdobra em três outros menores, ou
seja, o ecossistema social, o mental e o natural da língua, no interior de
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Linguística, ecologia e ecolinguística
cada um dos quais a língua tem o respectivo meio ambiente, ou seja, o meio
ambiente social, o mental e o natural da língua. Como na própria Ecologia,
também na Ecolinguística às vezes se usa ecossistema por meio ambiente e
vice-versa, uma vez que o contexto desfaz qualquer ambiguidade.
Sabemos que o que interessa à Ecologia não são os organismos em
si nem o seu meio ambiente em si, mas as inter-relações que se dão entre
eles. Por esse motivo, o capítulo seguinte do livro (“Ecologia da Interação
Comunicativa”) trata justamente das inter-relações verbais que se dão entre
os organismos (pessoas) do efl. Por outras palavras, nesse capítulo tratarei
da Ecologia da Interação Comunicativa (eic). Veremos que a interação é a
base da dinâmica das línguas, exatamente como ocorre com as inter-relações
entre os organismos das sociedades da Ecologia. É ela que faz surgir a língua,
assim como é ela que a faz viver e sobreviver. Uma língua é viva na medida
em que é usada em Atos de Interação Comunicativa (aic) em determinada
comunidade. Se, e quando, ela deixa de ser usada nessas circunstâncias, passa
a ser uma língua morta. Esta pode até ser mumificada e continuar a ser usada
ritualmente, mas nunca como o meio de comunicação de uma comunidade,
embora ela possa ser planejadamente revivida, como aconteceu com o hebraico.
No capítulo “Conceituando contato de línguas”, trato do assunto principal
do livro, ou seja, o contato de línguas, de uma perspectiva teórica. Veremos
que, na verdade, o contato é uma constante na dinâmica das línguas. Quando
não pelo fato de ele ser um tipo de interação, que é universal. Na Física, por
exemplo, o mundo é constituído de matéria e movimento, ou matéria em
movimento, ou movimento da matéria. Além disso, a interação é também a base
da Ecologia, embora sob o rótulo de inter-relação. Aliás, contato de línguas
não é nada mais nada menos do que comunicação ou, pelo menos, tentativas
de comunicação entre povos falantes de línguas mutuamente ininteligíveis.
Para os neogramáticos, a mudança linguística era basicamente uma
questão interna, ou seja, era motivada intralinguisticamente. Veremos que isso
não é verdade. É a dinâmica das inter-relações que se dão no interior doefl
e das que se dão entre um efl e outro (ou outros) que determina a evolução
linguística. É por isso que o capítulo subsequente se intitula “Ecologia
da evolução linguística”. Como autores até muito distantes da concepção
ecolinguística reconheceram, toda mudança linguística tem a ver com o contato
(inter-relação, interação), sob as diversas formas que ele se apresenta. Veremos
Introdução
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que, com as devidas reservas, podemos concordar com August Schleicher em
que as línguas nascem, crescem e morrem.
Os processos de atrição, obsolescência e morte de língua (glototanásia)
são o assunto do capítulo “Obsolescência e morte de língua”. Veremos que
toda língua passa por um processo semelhante ao nascimento, crescimento e
morte dos organismos vivos. Só que ela não é equiparável ao organismo, mas
à espécie, como muito bem demonstrou Mufwene (2001). Frequentemente
línguas minoritárias são devoradas por línguas mais poderosas, como o
português devorou cerca de mil línguas ameríndias aqui no Brasil em apenas
500 anos. Entre as que sobreviveram, a maioria está em avançado processo
de obsolescência, o que significa que, se não houver uma força externa que
freie o processo, dentro de alguns anos estarão extintas. Algumas já estão
moribundas; outras estão dando os últimos suspiros.
Felizmente, nem sempre a língua mais forte (econômica, política
e militarmente) consegue se impor na íntegra, devorando a(s) língua(s)
dominada(s). É o que aconteceu nos casos de pidginização e crioulização,
estudados no capítulo “Pidginização e crioulização”. Isso se deu principalmente
na colonização da África, Ásia, América e Oceania pelas potências européias.
Por exemplo, da intervenção da língua portuguesa em algumas dessas regiões
surgiram os crioulos de Cabo Verde, da Guiné-Bissau, de São Tomé e Príncipe
e outros. Da colonização espanhola surgiram o papiamentu (Aruba, Bonaire e
Curaçao), o palenquero da Colômbia, o chabacano das Filipinas, além de outras
variedades menores. O inglês provocou o surgimento do jamaicano, do krio
(Serra Leoa), do tok pisin (Papua-Nova Guiné) e de muitos outros. O francês
deu lugar ao haitiano, ao mauriciano (ilha Maurício), ao guianense (Guiana
Francesa). Quanto aos pidgins, a maioria deles surgiu da intervenção do inglês
nas regiões mencionadas. Entre eles poderíamos mencionar o Chinese Pidgin
English, o Hawaiian Pidgin English e o Cameroons Pidgin English.
Pode acontecer também de o contato de povos e línguas provocar a convivência de línguas em uma mesma região ou país/Estado. Este assunto será tratado
no capítulo “Multilinguismo”, que engloba o bilinguismo. Veremos que praticamente não há países unilíngues no mundo. O mais comum é haver um alto grau
de multilinguismo, como o caso da Índia, discutido no referido capítulo. Veremos
também que os representantes do Estado normalmente vêem no multilinguismo (e
até no bilinguismo) um estorvo a uma desejada (por eles) unidade linguística. Nor-
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Linguística, ecologia e ecolinguística
malmente não é visto como uma manifestação de diversidade cultural, portanto,
de riqueza. O objetivo dos aparelhos de Estado é sempre reduzir o multilinguismo.
Semelhante ao multilinguismo, temos o multidialetalismo, estudado
no capítulo de mesmo título. Praticamente tudo o que se diz do primeiro vale
igualmente para o segundo. Isso se deve ao fato de não haver uma distinção
clara entre língua e dialeto. Tanto que já se disse que língua é um dialeto com
uma marinha e um exército. Vale dizer, uma variedade linguística é chamada
de língua se tem força para se impor como tal. Caso contrário, pode continuar
sendo chamada de dialeto, mesmo que quem a chama assim não saiba por quê.
É uma questão política, não científica.
No que tange às situações fronteiriças, estudadas no capítulo que porta
exatamente esse nome, se há um rio ou uma cadeia de montanhas separando
as duas partes, enquadram-se no quarto tipo de contato estudado no capítulo
“Conceituando contato de línguas”, ou seja, aquele em que membros de cada
povo e respectiva língua se deslocam de vez em quando ao território do outro
povo. Mas a situação fronteiriça estudada aqui, de Chuí/Chuy, é do tipo em que
não há nada separando as duas partes. Parto da concepção ecolinguística de
que nesse caso se trata de um único ecossistema, mesmo que transicional, entre
dois outros ecossistemas maiores, ou seja, trata-se de uma única comunidade
de fala. Um dos principais argumentos é o de que há uma continuidade entre
os dois lados (só uma avenida separa Brasil e Uruguai); uma vista aérea nos
revela uma única cidade. Um segundo argumento é a atitude dos membros
da comunidade. Para eles é “uma coisa só”. Quem mora de um lado não
considera o morador do outro lado da avenida como alguém de “outra” cidade.
Por fim temos o capítulo dedicado às chamadas “ilhas linguísticas”. As
ilhas linguísticas (il) são uma das situações mais interessantes para se estudar
o contato de línguas. Praticamente tudo o que discuto nos demais capítulos
pode ser averiguado nelas. Exemplificarei com as il alemãs do Sul do Brasil
e com as ameríndias. Por fim, temos a “Conclusão”.
Gostaria de terminar esta “Introdução” com um comentário sobre as referências bibliográficas. Eu já fui criticado por incluir referências bibliográficas
em demasia em meus livros e artigos, como se dar muitas informações ao leitor
fosse um defeito. Pois bem, no presente livro, optei por incluir um mínimo de
referências no corpo do texto, bem como na “Bibliografia”. Em vez disso, incluo, no final de cada capítulo, algumas das principais leituras recomendadas
para o assunto em questão, às vezes com informações adicionais.
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