Crítica: Argumentos http://centralcritica.tripod.com > Confesso quem me agrada realmente é Sartre. > fátima A fenomenologia das nossas leituras é coisa psicologicamente interessante, e pessoalmente, claro. Em geral, temos tendência para gostar de ler os autores que de algum modo respondem às nossas ansiedades, ou com os quais partilhamos um certo número de preocupações ou de experiências. Mas as nossas reacções emocionais e pessoais aos textos filosóficos não podem impedir o nosso trabalho crítico. Por mais que eu goste de X ou de Y, o meu trabalho é 1) compreender exactamente o que ele está a defender e 2) tentar saber se os argumentos apresentados em sua defesa são sólidos, tentar saber se a fundamentação apresentada é firme. E é aqui que começamos o trabalho especificametne filosófico, pois é aqui que começa a nossa postura crítica. A filosofia, como se costuma dizer, é o "lugar crítico da razão". Que quer isto dizer? Quer dizer que, por mais que eu goste de X ou Y, o meu dever como estudante de filosofia é avaliar criticamente se o que X ou Y dizem tem alguma fundamentação sólida. Há 3 elementos fundamentais na discussão de qualquer ideia filosófica. 1) O problema é genuíno? Aqui trata-se de saber se o problema que o autor está a tentar resolver é genuino, ou se resulta de uma confusão qualquer. Na filosofia é fácil fazer confusões dado o carácter abstracto dos problemas da filosofia, muitas vezes intimamente ligados à maneira como exprimimos certas coisas na nossa linguagem, maneiras que podem ser profundamente enganadoras. A gramática é muitas vezes o nosso pior inimigo, porque nos faz pensar erradamente que um dado x pertence a uma dada categoria só porque na nossa linguagem o exprimimos como se pertencesse a essa categoria. 2) A teoria, tese ou ideia é plausível? Quais são os seus pontos fortes? Quais são os seus pontos fracos? Não haverá contra-exemplos? A teoria explica o que pretendia explicar? E essa explicação é realmente boa? Que razões temos para pensar que sim? Que razões temos para pensar que não? 3) Que argumentos há a favor da ideia apresentada? E que argumentos há contra? Os argumentos a favor são sólidos? Qual é a sua força? E os argumentos contra? São sólidos? Qual é a sua força? É claro que isto dá muito trabalho. E é preciso pensar, não basta fazer um levantamento das opiniões dos filósofos. A filosofia compromete-nos pessoalmente, exige este comprometimento (como qualquer discussão séria de ideias). Enquanto estamos apenas a fazer o levantamento do que disse X e o levantamento do que todos os comentadores de X dizem e o levantamento histórico do contexto de X, etc., não estaremos ainda a estudar filosofia. Só estamos nos preliminares. O objectivo de todos estes preliminares é fazer depois o trabalho de avaliação crítica; é dizer se concordamos ou não e porquê. Se nunca chegarmos a este ponto somos como músicos que estudam composição durante anos e depois nunca compõem nada, por modesto que seja. Por vezes pensa-se que a atitude crítica é dizer: "Eu acho que sim". Mas não. O que conta é a justificação, a fundamentação disso. É isso que avaliamos. Não adianta eu dizer que acho que o aborto não deve ser permitido. Isso não contribui em nada para a discussão. É apenas um facto interessante para a psicologia da pessoa. Só contribuimos para a discussão quando dizemos (…) por que razão o aborto não deve ou deve ser permitido. São essas justificações que são objecto de estudo. Pensar filosoficamente não é ter opiniões sobre várias coisas, mas sim saber fundamentar e defender com argumentos claros e subtis e imaginativos as nossas opiniões. E isto tem um valor social. Pois quando nos dispomos a apresentar as nossas opiniões não como coisas que é "pegar ou largar" mas como coisas que estão fundamentadas em razões que podem ser publicamente discutidas, estamos a cultivar a liberdade. E cultivar a liberdade é a melhor maneira de a fazer crescer. E no decurso da discussão vamos muitas vezes descobrir que estavamos enganados; que os argumentos que tínhamos eram fracos. Que há melhores argumentos contra a nossa posição do que a favor. Que havia aspectos do problema em que não tínhamos pensado. Que a nossa posição tinha consequências desagradáveis que desconhecíamos. Ou que as razões em que fundamentamos a nossa posição têm consequências que não queremos. Portanto, isto conduz à abertura de espírito. Habituamo-nos a mudar de ideias. Deixamos de ser dogmáticos. Passamos a ser pessoas que respondem a argumentos, e não dogmáticos que se fecham no seu próprio pensamento. Nada disto acontece quando achamos que as opiniões dos filósofos e as nossas próprias são incomensuráveis. Que nada resta fazer, excepto o levantamento do que disseram os filósofos e os seus comentadores. Que a discussão dos problemas, teorias e argumentos da filosofia é inútil por esta ou por aquela razão. Começa-se por achar a discussão filosófica inútil e acaba-se a achar toda a discussão inútil e o parlamento uma tolice e as eleições um disparate e a imprensa livre uma tontice. Começa-se por achar toda a argumentação falaciosa e acaba-se por achar que é força militar ou o poder não apenas que efectivamente decide tudo, mas que *deve* realmente decidir tudo. E isto é tenebroso. As ideias filosóficas são muitas vezes muito abstractas e afastadas do dia-a-dia e da vida pública. Isto é verdade, excepto nas zonas mais aplicadas da filosofia, como a filosofia política ou a ética. Mas mesmo nas áreas mais remotas da filosofia, como a metafísica ou a epistemologia, a atitude que for por nós cultivada pode ter graves consequências sociais e políticas. Porque é fácil transpor a atitude que temos no nosso trabalho filosófico mais abstruso para as outras coisas. E sobretudo porque haverá pessoas que vão fazê-lo, mesmo que nós não o façamos. Daí o "Assim Falava Zaratustra" nas mochilas da juventude Nazi. Era Nietzsche um nazi? Não. Mas a atitude irracionalista, a conversa de embalar, o apelo à força, a ideia de que toda a discussão de ideias é uma tolice porque tudo é relativo -- tudo isto serve perfeitamente bem ao nazismo. Claro que não era isto que Nietzsche tinha em mente. Mas a atitude que ele cultivou era obscurantista e rapidamente foi aproveitada. Desidério Murcho Dep. of Philosophy King's College London Strand, London WC2R 2LS United Kingdom Reply Reply All Forward Crítica: Argumentos http://centralcritica.tripod.com Caro Valério Delete Previous Next Close > Só mais uma coisa. O que é que se entende por filósofo irracionalista? > Obrigado de antemão. Um filósofo que defende 1) coisas autorefutantes ou incoerentes ou 2) um filósofo que deplora a actividade argumentativa e apela a outra coisa qualquer. Quando são realmente extravagantes, fazem 1 e 2 ao mesmo tempo, muitas vezes porque alguém lhes chamou a atenção para 1 e eles defendem-se com 2 -- isto é, dizemos: pá, com todo o respeito, isso é incoerente por causa disto e daquilo; e eles dizem: que me interessa isso? Eu tou-me nas tintas para essa treta dos argumentos e da lógica e disso tudo. O que me interessa a mim é que eu tenho razão. E acaba a discussão. Esta atitude é depois usada de forma exagerada e muito mais primária por pessoas como nós, pobres mortais que não são Autores Imortais. Já várias vezes me deparei com pessoas assim. Eu apresento um argumento e elas, em lugar de o refutarem, como faz o Jaime ou o Madeira ou outra pessoa normal, mesmo sem grande preparação filosófica, limitam-se a dizer que o meu argumento não tem interesse nenhum porque a lógica é uma treta e que aquilo é só falácias. Mas, claro, não mostram por que razão é uma falácia, e desconfio que essas pessoas não sabem sequer o que é uma falácia. Outra vezes vêm com aquela história de que a lógica bivalente não é adequada; mas não apresentam mais nenhuma lógica. E a lógica bivalente parece ser perfeitamente adequada quando eles falam; só é desadequada quando lhes apresentamos um argumento a que não conseguem responder. Isto, claro, levanta questões éticas. Há uma ética -- ou pelo menos uma boa educação -- no que toca a qualquer discussão de ideias, e portanto também na discussão filosófica de ideias. Se eu digo que o argumento X do Valério é uma falácia, tenho de dizer porquê e que falácia é. Se eu recuso todos os argumentos do Valério em bloco por a sua lógica ser errada, tenho de lhe mostrar que outra lógica e que outras regras de inferência o Valério devia usar; e tenho também de mostrar a superioridade das novas regras de inferência. Quando nada disso se faz, estamos apenas a fugir à discussão. É o mesmo que, a um nível mais primário, começarmos a rir e a gozar, sem levar a sério, o que a outra pessoa está a dizer. O que não é dizer que não devemos rir, e ter um espírito brincalhão; devemos e isso introduz uma informalidade na discussão que é de cultivar. Não podemos é usar isso como arma de arremesso para fugir à discussão. Ou melhor: podemos, mas não devemos. Penso eu de que. Há muitas maneiras de fugir à discussão. Uma delas é nunca dizer claramente o que queremos dizer. Dizemos "Não há X". Nós arranjamos um contraexemplo. E a pessoa diz: "Lá vem este gajo com a lógica! Claro que eu não queria dizer que não há X, mas apenas que há muito poucos!". E depois a gente arranja um argumento para mostrar que não há poucos X. E a pessoa responde: "Mas que me interessa isso? O importante é que na minha perspectiva há poucos X. E cada um tem a sua". Isto torna a discussão impossível. Vejamos um exemplo. As pessoas têm tendência para ser absolutistas em ética pensando que são relativistas. E dizem: "Em ética, tudo é relativo. Não podemos impor a todos os povos a nossa ética. Foi isso que provocou os horrores do colonialismo, essa ideia de que temos a Verdade Absoluta". Ora, o que é interessante nisto é que esta é uma posição ética obviamente não relativista, pois prescreve um preceito ético absoluto: "Não devemos impor os nossos princípios éticos aos outros povos". Isto pareceria simples e qualquer pessoa razoável percebe isto. Mas se estivermos no meio de uma discussão, o nosso opositor, se não tiver uma formação filosófica e humana adequada, vai negar isto o tempo todo. O que torna a discussão completamente impossível porque não se avança nada. Numa discussão temos de estar dispostos a rever as nossas ideias, perante argumentos razoáveis. Temos de estar dispostos a admitir que podemos estar a fazer confusões. Uma discussão de ideias não é uma luta de galos: é uma tentativa de, juntos, eliminarmos alguns erros e descobrirmos algumas verdades. Desidério Murcho Dep. of Philosophy King's College London Strand, London WC2R 2LS United Kingdom