EDITORIAL Microcefalia, zika vírus e a soberania da observação clínica Paulo Andrade LotufoI Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) Este editorial foi escrito na primeira semana de dezembro de 2015. Por esse motivo, há fatos que possam estar ultrapassados quando estas páginas forem disponibilizadas aos leitores. Mas ficará o registro de uma magistral ação da medicina brasileira nos casos de microcefalia. A associação entre a microcefalia e a infecção pelo zika vírus não caberá nestas páginas. O destaque é para o fato de que somente com a observação de casos bem investigados do ponto de vista clínico foi possível mostrar um fenômeno excepcional que repercutirá por décadas. Repetiu-se, conforme exemplos descritos a seguir, que a observação clínica é a base para as descobertas na medicina. A indagação de colegas de Pernambuco, do Hospital Barão de Lucena, Hospital Universitário Oswaldo Cruz e Instituto de Medicina Integrada Fernando Figueira, que notaram o número excepcional de crianças com microcefalia e decidiram notificar a Secretaria de Estado da Saúde em outubro de 2015 foi a base para uma descoberta que terá repercussão enorme na medicina. Nesse caso, novamente o raciocínio clínico superou outras tecnologias. Uma referência que vale tanto para a biologia molecular e suas ômicas como também para a tão festejada “big data”. O caso microcefalia tem precedentes muito importantes e desconhecidos da maioria dos médicos. 1. A relação da angina com morte súbita e “ossificação da coronária” foi um único caso de homem de 55 anos publicado por Samuel Black em 1795.1 2. Carlos Chagas, em 1909, conseguiu ao mesmo tempo fazer uma descrição clínica e epidemiológica completas da moléstia que leva seu nome estudando poucos casos clínicos.2 3. Lawrence Craven, em 1950, verificou que pessoas que utilizavam aspirina após cirurgias como extração dentária ou amigdalectomia tinham frequência maior de sangramentos. Ele propôs, à época, que a aspirina poderia ser um agente importante para a doença coronária. Infelizmente, somente quatro décadas depois, a aspirina foi adicionada ao tratamento da doença coronariana na fase aguda e crônica.3 4. Um estudante de medicina, Ernst Wynder, assistia muitas autópsias. Um caso avaliado tinha como causa de óbito câncer de pulmão extenso, até então considerado como uma doença genética. Wynder obteve a declaração da viúva de que “o cigarro, para ele, era igual a um osso para um cachorro”. Depois disso, Wynder associou-se a um cirurgião torácico e mostrou forte associação do tabagismo com câncer pulmonar.4 5. Apesar da midiática polêmica sobre o pioneirismo na descoberta da aids entre Robert Gallo e Luc Montagnier, o Professor titular de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Presidente da Câmara de Pesquisa do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo. Diretor Científico da Associação Paulista de Medicina 2014-17. Editor das revistas São Paulo Medical Journal e Diagnóstico & Tratamento. I Endereço para correspondência: Paulo Andrade Lotufo Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica, Hospital Universitário, Universidade de São Paulo Av. Prof. Lineu Prestes, 2.565 Butantã — São Paulo (SP) — Brasil Tel. (+55 11) 3091-9300 E-mail: [email protected] Fonte de fomento: nenhuma declarada — Conflito de interesses: nenhum declarado Diagn Tratamento. 2016;21(1):1-2. 1 Microcefalia, zika vírus e a soberania da observação clínica verdadeiro herói foi um quase anônimo clínico geral, Joel Weisman. Em 1979, Weisman, notando que havia um caso de um homossexual aparentemente saudável com candidíase oral e pneumocistose, encaminhou-o para a Universidade da Califórnia em Los Angeles. Nesse hospital foi onde Michael Gottlieb5 descreveu pela primeira vez o quadro de deficiência imunitária e infecções oportunistas, no que seria a aids. Enquanto os médicos pernambucanos, de forma silenciosa e obreira, apresentaram ao mundo um problema de repercussão enorme, representado por uma presuntiva rede causal (na visão deste editorialista), “aquecimento global – Aedes aegypti – zika vírus – microcefalia”, a futilidade travestida de medicina preventiva se esbaldava em todo o mundo com o “outubro rosa” e o “novembro azul”. REFERÊNCIAS 1. Black S. Case of angina pectoris. Mem Med Soc London. 1795;4:261-79. 2. Chagas C. Nova espécie mórbida do homem, produzida por um tripanossomo Trypanosoma cruzi. Braz Med. 1909;XXIII:16. 3. Craven LL. Acetylsalicylic acid, possible preventive of coronary thrombosis. Ann West Med Surg. 1950;4(2):95. 2 Diagn Tratamento. 2016;21(1):1-2. Wynder EL, Graham EA. Tobacco smoking as a possible etiologic factor in bronchiogenic carcinoma; a study of 684 proved cases. JAMA. 1950;143(4):329-36. 5. Gottlieb MS, Schroff R, Schanker HM, et al. Pneumocystis carinii pneumonia and mucosal candidiasis in previously healthy homosexual men: evidence of a new acquired cellular immunodeficiency. N Engl J Med. 1981;305(24):1425-31. 4.