Movimentos do ato de pensar: interlocuções possíveis entre Deleuze e Foucault Cláudia Cisiane Benetti⃰ Resumo: Este artigo examina em um primeiro momento, parte da crítica à filosofia da representação realizada por Gilles Deleuze, a qual contém em seu bojo o entendimento do que seja pensamento que contemple a diferença, relacionando-a ao ato de aprender e de problematizar. Em um segundo momento, apresenta como Michel Foucault “realiza” nos seus escritos um pensar criativo, que foge ao ato de pensar compreendido pela filosofia fundamentada nos pressupostos da representação e interpretação, relacionando sua forma de pensar à proposta de pensamento de Deleuze. Com isso, aponta possíveis interlocuções entre a filosofia de Deleuze e de Foucault, colocando-os como autores que propiciam o encontro com o pensamento que prima pela diferença e pela criação. Palavras- chave: Pensamento. Representação. Interpretação. Diferença. Criação. Abstract: This article looks at first, critical part of the philosophy of representation held by Gilles Deleuze, which contains in its core an understanding of what is thought to contemplate the difference, relating to the act of learning and questioning. In a second step, as Michel Foucault has "accomplished" in his writings a creative thinking that goes beyond the act of thinking understood by the philosophy based on the assumptions of representation and interpretation, relating his thinking to the proposal of Deleuze's thought. Thus, points possible dialogue between the philosophy of Deleuze and Foucault, placing them as authors who provide the meeting with the thought that elect the difference and creation. Keywords: Thought. Representation. Interpretation. Difference. Creation. Notas introdutórias Deleuze e Foucault produzem um movimento de pensamento que por um lado, se constitui a partir de criações e invenções e por outro lado, questiona toda uma tradição do pensamento filosófico determinado pela representação. O estatuto ocupado por estes pensadores é de filósofos ousados que trazem rupturas ao pensamento que se elabora nos caminhos da representação e da razão pura. Podemos dizer que, encontramos em Foucault e Deleuze o entendimento do ato de pensar como um processo que se elabora através do movimento de algo violento e marcante que gera acontecimentos no contexto que está inserido. A trajetória filosófica que pressupõem que o conhecimento se constrói nos caminhos seguros da razão pura, como determinante da capacidade de pensar “corretamente” para o encontro da verdade, é questionada por estes filósofos, uma vez que tanto 49 Deleuze quanto Foucault, problematizam o filosofar imbuído da busca de fundamentos e verdades universais. Neste texto, algumas questões permanecem como pano de fundo, a saber, como se entende o “pensar” fora dos pressupostos metódicos da filosofia da representação? Como se constitui o pensar fora do pressuposto de clareza e distinção? O que significa pensar no heterogêneo e na diferença? A partir disso procuro desenvolver, em um primeiro momento, parte da crítica à filosofia da representação realizada por Deleuze 1, a qual contém em seu bojo o entendimento do que seja pensamento que contemple a diferença, relacionando-a ao ato de aprender e de problematizar. Em um segundo momento, procurarei apresentar como Foucault “realiza” nos seus escritos um pensar criativo, que foge ao ato de pensar compreendido pela filosofia fundamentada nos pressupostos da representação e interpretação, relacionando sua forma de pensar à proposta deleuzeana de pensamento. Nesse percurso, se mantém o fio condutor que é a crença de que Deleuze e Foucault, apesar de problematizarem de maneiras diferenciadas, possuem uma proximidade na forma de entendimento do que seja pensar. Assim inicio pelo que me é fascinante em Deleuze, o olhar direcionado para a diferença que foi excluída pelo pensamento filosófico constituído por pressupostos conceituais da representação. E posteriormente, procuro levantar em alguns textos de Foucault indicações de sua forma de pensar e filosofar, ressaltando dois pontos que considero marcantes em seu pensamento, a saber, a existência de uma relação intensa com a diferença e uma produção que corre o "risco" da criação. Tais situações serão as marcas do pensamento de Foucault que relaciono ao que Deleuze pontua como pensamento, que se entende como um construir-se no movimento para além das divisões categoriais presentes no ato de representar. Pensamento e imagem em questão: pontos da crítica de Deleuze à representação. 1 Crítica desenvolvida in: DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição; Tradução Luis Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988. 50 Segundo Deleuze, a questão dos pressupostos do começo em filosofia é um problema delicado, já que os pressupostos filosóficos são tanto objetivos como subjetivos. São pressupostos filosóficos objetivos ou explícitos os que são envolvidos e supostos num conceito, enquanto que são subjetivos ou implícitos os que estão envolvidos num sentimento, em vez de estarem envolvidos num conceito. Um pressuposto subjetivo, no contexto da filosofia da representação 2, está calcado na forma “todo mundo sabe”, o que significa pensar, eu e ser. “Todo mundo sabe” antes do próprio conceito o que é pensar, ser, e eu. Assim, o filósofo, ao dizer “Eu penso, logo sou”, pode supor que todos sabem, de maneira implícita, o que é pensar, tornando assim sua premissa universal. Para Deleuze, a forma “todo mundo sabe, ninguém pode negar é a forma da representação e o discurso do representante” (1988, p.216). Apresenta-se, nesse entendimento dos filósofos, o pressuposto de que todos pensam naturalmente, essencialmente e por isso sabem o que é pensar (senso comum); acredita-se que há um pensamento que naturalmente é capaz de verdade, sendo esse pensamento marcado pela boa vontade do pensador e que se funda num sujeito pensante. Esta forma, todavia, tem uma matéria mas uma matéria pura, um elemento. Este elemento consiste somente na posição do pensamento como exercício natural de uma faculdade, no pressuposto de um pensamento natural, dotado para o verdadeiro, em afinidade com o verdadeiro, sob o duplo aspecto de uma boa vontade do pensador e de uma natureza reta do pensamento. É porque 2 Conforme dicionário de filosofia de Nicolas Abbagnano, “representação” é um vocábulo de origem medieval para indicar a imagem ou a ideia, termo na escolástica imbricado ao conceito de conhecimento como “semelhança” do objeto. Descartes, filósofo racionalista, que teve grande importância na constituição da filosofia do séc. XVII, conhecida como período do Racionalismo Clássico, utiliza o conceito “ideia” como “quadro” ou “imagem” da coisa. Com Kant, o termo ganha uma significação mais geral, entendida como “o gênero de todos os atos ou manifestações cognitivas”. (Abbagnano,1982, p.820). A filosofia da representação refere-se à filosofia que, no processo de conhecimento, o objeto é a imagem ou representação conceitual. Ou seja, as manifestações de conhecimento se dão por representações ou imagens do objeto. Nesse sentido, a filosofia da representação tem suas bases conceituais firmadas na “identidade”, que será um dos pontos da crítica de Deleuze, apontando que o processo da diferença é pensado, submetido aos quatro elementos que coordenam a representação, a saber: a identidade no conceito, a semelhança na percepção, oposição no predicado e analogia no juízo. Nesse contexto, Deleuze diz que a diferença se reduz a um conceito seguindo, portanto, os pressupostos da representação, e não apontando sua força e implicação na constituição do conhecimento. 51 todo mundo pensa naturalmente que se presume que todo mundo saiba implicitamente o que quer dizer pensar (DELEUZE, 1988, p. 218). Temos, assim, um pensamento filosófico dotado de um pressuposto apreendido do senso comum, que é a imagem de um pensamento natural, que se dá pela concordância das faculdades no sujeito pensante. O homem é dotado de uma capacidade inata de pensar retamente e de encontrar o verdadeiro, sendo a garantia dessa capacidade o fato de que todos possuem “naturalmente” a capacidade de pensar. Segundo Deleuze, esta é a imagem dogmática sob a qual se desenvolveu o saber filosófico de grande parte dos filósofos. Neste sentido, o pensamento conceitual filosófico tem como pressuposto implícito uma imagem do pensamento, pré-filosófica e natural, tirada do elemento puro do senso comum. Segundo essa imagem, o pensamento está em afinidade com o verdadeiro, possui formalmente o verdadeiro e quer materialmente o verdadeiro (Idem, 1988, p.219). Baseando-se em Nietzsche, Deleuze chama a imagem implícita de dogmática e moral. Mas, para que o pensador exercite seu espírito para o pensamento seguro, bom e verdadeiro, é necessário um método. Esse é um dos aspectos desenvolvidos, por exemplo, por Descartes no texto O Discurso do Método, de 1637. Mas o que significa pensar em uma filosofia baseada nessa Imagem? O modelo que se apresenta para o exercício do pensamento acerca do objeto é o da recognição. Reconhece-se o objeto quando as diferentes faculdades (pensamento, imaginação, percepção, memória, entre outras) concordam que o objeto é o mesmo para todas, estando as mesmas fundadas no sujeito pensante tido como universal. Dessa forma, ocorre o processo de reconhecimento do objeto pelo pensamento do sujeito pensante. A garantia desse reconhecimento das faculdades está no “Eu penso”, pressuposto inicial que unifica as faculdades no sujeito e o qualifica como universal. O pensamento naturalmente reto segue o modelo da recognição, o qual “nunca santificou outra coisa que não o reconhecível e o reconhecido, a forma nunca inspirou outra coisa que não fossem conformidades” (Idem, 1988, p. 223). Essa forma de pensamento remete às pretensões da imagem dogmática, que são alvo da crítica e questionamento deleuzeano: De um lado é evidente que os atos de recognição existem e ocupam grande parte de nossa vida cotidiana: é uma mesa, é uma maçã, é o pedaço de cera, 52 bom-dia Teeteto. Mas quem pode acreditar que o destino do pensamento se joga aí e que pensemos quando reconhecemos? (Idem, Ibdem, p. 224 ) O modelo da recognição faz acreditar que o pensamento ocorre somente mediante o reconhecimento e concordância das faculdades entre si, e nisso reside parte da crítica de Deleuze. Outra parte está na desconsideração de possibilidades de pensamento, no estranho e aventureiro, que são compreendidas pela lógica da representação e identidade como formas produtoras de desvios e falsidades. Assim, a Verdade determinada pela Imagem do pensamento natural ao seguir os passos metodológicos seguros será atingida. A dúvida cartesiana, por exemplo, é um momento de um método que já considera o pensamento como portador da vontade de reconhecer. Segundo Deleuze: Acontece com as coisas duvidosas o mesmo que com as certas: elas pressupõem a boa vontade do pensador e a boa natureza do pensamento concebidas como ideal de recognição, a pretensa afinidade com o verdadeiro, (...). E as coisas certas, tanto quanto as duvidosas, não forçam a pensar (1988, p. 230). Mas, diante desse quadro, como podemos compreender o significado “forçar a pensar”? Contrariamente à filosofia clássica, Deleuze quer mais do ato de pensar, pois quer considerar no conceito a força de uma estranheza que irrompe e impele ao pensamento. Vemos que o pensamento não é natural, mas forçado; não é somente reconhecido, mas estranho. Nesse contexto de entendimento, “o que é primeiro no pensamento é o arrombamento, a violência, é o inimigo, e nada supõe a Filosofia” (DELEUZE, 1988, p. 230). O que funda o pensamento é o encontro com algo violento que força a pensar, que coloca ao sujeito a necessidade de pensar. Em outros termos, àquilo que mexe e que marca e, portanto, desencadeia a paixão de pensar. Nesse sentido, as faculdades não são concordantes entre si numa unidade do pensamento no sujeito; elas são discordantes e nessa discordância pode surgir a diferença, o encontro do pensamento com o que o impele a pensar quase como uma necessidade de dar vazão aquilo que nos capturou. Não desencadeamos pensamentos por reconhecimento, mas por arrombamento de algo estranho que é sentido e é impulsionador. A apreensão, nesse encontro, é sentida em formas de afetividade diferenciadas em cada sujeito. Por 53 exemplo, pode ser pelo ódio ou pelo amor a apreensão de um encontro, o qual leva ao pensamento. Qual é a diferença? O encontro é sentido, entendido como o que causa a sensibilidade, é o ser do sensível. A sensibilidade passa a estar o início de todo o ato de pensar. Cada faculdade no ato de pensar é colocada no seu limite (apreender o que é impossível no exercício empírico), apreendendo aquilo que lhe diz respeito essencialmente. Apreender o que lhe diz respeito essencialmente e o impossível no empírico, é o exercício transcendente, o qual força a faculdade a apreender aquilo que só ela pode apreender, que só ela pode ser forçada a apreender. Por exemplo, só a faculdade da imaginação pode apreender o inimaginável no empírico, praticando assim o exercício transcendente. É preciso levar cada faculdade ao ponto extremo de seu desregramento (...). Cada faculdade descobre então, a paixão que lhe é própria, isto é, sua diferença radical e sua eterna repetição, seu elemento diferencial e repetidor, como o engendramento instantâneo de seu ato e o eterno reexame de seu objeto, sua maneira de nascer já repetindo (DELEUZE, 1988, p. 236). A origem do pensamento está na sensibilidade que, com movimentos intensos, força as faculdades a engendrar aquilo que impõe seus limites e, desse encontro, se gera o pensamento. A intensidade move o pensamento e apaixona o pensador que busca pensar o que não foi pensado ainda. Diferentemente da filosofia da representação, que creditou na boa vontade do pensador todas as possibilidades do pensamento, a filosofia da Diferença credita na intensidade e no movimento de criação as possibilidades do mesmo. E é esse intenso movimento que permite o devir da diferença não marcado pela unidade do objeto no “Eu penso”, e sim, pelo exercício discordante das faculdades num “Eu rachado”. Segundo essa visão, as faculdades do ser humano não trabalham sob o pressuposto de uma unidade subjetiva no “Eu penso”, mas como uma cadeia das faculdades que apresenta um “Eu rachado”. Pode-se dizer um “Eu rachado” que deixa vir o 54 imprevisível, o demoníaco, que força o pensamento a criar, contrariando a lógica do pensamento natural, segundo a qual já somos aptos ao bom pensamento. A compreensão de que o “Eu penso” é rachado, aposta num pensamento sem a Imagem dogmática3 calcada no modelo de recognição, em que pensar é orientar o exercício natural das faculdades, aplicando, para tanto, regras de um método para desenvolvê-lo. Tudo isso, segundo Deleuze, são formas para dar acabamento ao pensamento, mas não para desencadear o pensamento, para criar. Sabe que pensar não é inato, mas deve ser engendrado no pensamento. Sabe que o problema não é dirigir, nem aplicar metodicamente um pensamento preexistente por natureza e de direito, mas fazer com que nasça aquilo que ainda não existe (não há outra obra, todo o resto é arbitrário e enfeite). Pensar é criar, não há outra criação, mas criar é, antes de tudo engendrar, “pensar” no pensamento ( Idem, 1988, p. 243). Na filosofia clássica, o pensamento estaria enredado em ilusões que Deleuze aponta como entrave à criação e à diferença no ato de pensar. Mas quais são as ilusões que poderão determinar o pensamento? A ilusão dos problemas na constituição do pensamento: pensando a diferença fora da ilusão. A ilusão filosófica apresenta-se na maneira de estabelecer o problema na relação com o ato de pensar. A ilusão, segundo Deleuze, se apresenta em dois pontos: o primeiro está no fato de o problema estar assentado sobre proposições que já existem, ou seja, parte-se de pressupostos “naturais” do pensamento, tais como, hipóteses, juízos a priori, etc...; o segundo diz da ilusão de tratar do problema a partir da sua possibilidade de resolução, a partir de sua capacidade externa de solução. Essa última perspectiva 3 Apostar num pensamento, sem a Imagem dogmática, significa abrir espaço a um pensamento imbricado pela Diferença, entendida fora do modelo da representação, o qual pensa a diferença simplesmente conceitual, reconhecendo-a sob os domínios da identidade no conceito. A Imagem dogmática, conforme já tratamos no texto, refere-se à filosofia que está sob os pressupostos da imagem do pensamento inato, do pensamento dotado de boa vontade e retidão em afinidade com o verdadeiro, e que parte do pressuposto subjetivo implícito e pré-filosófico de que todos sabem o que é pensar e, se tornar, portanto, um pressuposto universal do filósofo. Este é o começo, segundo Deleuze, da forma da representação, que não reconhece o que não se deixa representar, e que não quer representar; em suma, não reconhece a diferença fora do conceito. Um pensamento sem imagem é um pensamento que nasce na sua força pulsional, que não está dominado pela suposição de inatismo ou do encontro com a semelhança na recognição. 55 marca que a solução está presa à imagem dogmática que vincula a verdade de um problema à capacidade de solução do mesmo. Na filosofia da Diferença, o problema é entendido por suas características internas, sendo que o mesmo adquire sentido a partir dessas características e do contexto onde se dá. Resolver o problema depende das condições de constituição do mesmo, sendo que as soluções são engendradas e construídas no próprio problema e não fora dele por modelos determinados. Mas pensar é solucionar problemas? O mestre apresenta os problemas, e o outro soluciona, e aí está a atividade do pensamento? Não para Deleuze, pois o problema e a solução são construídos. Fazem-nos acreditar que a atividade de pensar, assim como o verdadeiro e o falso, em relação a esta atividade, só começa com a procura de soluções, só concerne às soluções. É provável que esta crença tenha a mesma origem que as dos outros postulados da imagem dogmática: exemplos pueris separados de seu contexto, arbitrariamente erigidos em modelos (DELEUZE, 1988, p.259). Utiliza-se a metodologia de respostas e soluções, e nisso se julga o que é certo e errado, o que é mais elevado no pensamento. O problema, no entanto, não é dado, mas investido e construído pelo sujeito conforme a situação na qual se encontra. Para que se desenvolva um problema é necessário o investimento no campo de sua atuação e disso resulta a solução. O problema é a Idéia4 que se constitui universalmente por relações entre situações relevantes e singulares. Vemos que a singularidade está implicada na construção e resolução dos problemas, apontando para a necessidade de questionarmos essa visão de que os problemas são verdadeiros pela capacidade de solução que em última instância, está no mestre. Há, sim, um mestre que é também falível, e é importante que se mostre como tal. Para Deleuze, “é um preconceito infantil, segundo o qual o mestre apresenta um problema, 4 Idéia, em Deleuze, diferencia-se da compreensão de Platão. Para Platão, Ideia é a unidade perceptível numa multiplicidade de objetos, é a essência da multiplicidade e modelo da mesma. A Ideia procura estabelecer relações de identidade e igualdade com a Ideia modelo. No entanto, em Deleuze, a Idéia é compreendida como “instâncias que vão da sensibilidade ao pensamento e do pensamento à sensibilidade, capazes de engendrar em cada caso, (...) o objeto-limite ou transcendente de cada faculdade”(1988,p.241). É importante ressaltar que a relação das faculdades entre si é discordante e a Ideia, ao engendrar o objeto-limite gera o problema capaz de levar ao exercício superior de pensamento. A Ideia torna-se problema. 56 sendo nossa a tarefa de resolvê-lo, e sendo o resultado desta tarefa qualificado de verdadeiro ou de falso por uma autoridade poderosa” ( 1988, p. 259). A Idéia segue por todas as faculdades, estimulando-as ao exercício, sendo este exercício capaz de atribuir sentido à linguagem. O aprender, em Deleuze, está justamente em explorar os caminhos da Idéia nas faculdades e estimulá-las à realização do exercício transcendente, ou seja, ir além do que o exercício empírico apresenta. Assim, aprender é inventar problemas e é “o nome que convém aos atos subjetivos operados, em face da objetividade do problema (Idéia)” (1988, p.269). Há uma diferença entre saber e aprender, enquanto o primeiro significa ter o domínio das regras de soluções, o segundo significa inventar, penetrar nas singularidades e relações de cada Idéia no percurso das faculdades. Dar sentido ao percurso da Idéia nas suas relações é estar aprendendo. Aquele que aprende faz nascer, na faculdade da sensibilidade, o encontro com o limite, que leva o mesmo a apreender o que é sentido. Assim, da comunicação entre as faculdades e nas suas relações singulares advém o pensamento. Mas não há como traçar de antemão quais os signos, os quais provém dos sentidos, que serão motivadores do pensamento. Isso é a singularidade do pensamento, sendo que as possibilidades a partir dos signos serão diferenciadas para cada sujeito. Nesse sentido, não é possível enquadrar numa forma única a aprendizagem, pois “nunca se sabe de antemão como alguém vai aprender - que amores tornam alguém bom em Latim, por meio de que encontros se é filósofo, em que dicionários se aprende a pensar” (Deleuze:1988, p.270). Nessa quebra, nesse vazio, é que se apresenta o inconsciente no pensamento. Os signos serão apreendidos, no encontro, diferentemente em cada aprendiz. Este encontro está marcado por singularidades e nisso está toda a possibilidade da diferença. Diferentemente da filosofia da representação, que está sob os preceitos da imagem dogmática do pensamento, a filosofia da diferença crê na aprendizagem como um 57 espaço de criação do problemático. Para esta perspectiva, o problema não se define pela possibilidade de soluções, mas pela implicação da situação que o constitui, e pelo investimento dos atos do sujeito. Nesse sentido, vale o alerta para não acreditar que aprender é ter as regras para as soluções dos problemas. O pensamento inventivo se dá fora das regras de soluções, se dá fora do método que, segundo Deleuze, inspirado em Nietzsche, serve para dominar os espíritos e os pensadores. O que irrompe, o intempestivo, não deve ser visto como entrave ou ameaça ao pensamento seguro ou à aprendizagem. Pelo contrário, deve ser encarado como motor que move paixões diferenciadas de cada um no caminho da aprendizagem. O pensamento, para Deleuze, se dá na violência de algo que impõe às faculdades o ato de apreender o seu sentido, sua diferença, proporcionando o pensamento implicado. Badiou, complementando a compreensão deleuzeana, diz que “pensar não é o escoamento espontâneo de uma capacidade pessoal. É o poder, duramente conquistado contra si, de estar obrigado ao jogo do mundo” (Badiou,1997, p. 20). Diante do entendimento do ato de pensar proposto acima, mostrarei que Foucault pensa e produz exatamente nesse contexto de risco e de implicação com a diferença, proposto por Deleuze. Para tanto, passarei a apresentar indicações dessa relação em alguns de seus escritos5 O ato de experimentar em vez de interpretar de Foucault: outra forma de pensar... Foucault distancia-se da perspectiva de um filosofar e de um pensar interpretativo/ prescritivo acerca das teorias e ações humanas, para construir um filosofar que aponte os efeitos de poder e de saber sobre vidas concretas. Nesse sentido, pode-se entender um pouco melhor o que significa experimentar em vez de interpretar 6 ou seja, a 5 Me deterei nos textos, O que é um autor?; A vida dos homens Infames; Introdução a história da sexualidade II- O uso dos prazeres, cujo as referências constam na bibliografia. 6 Referencia de Deleuze à forma de pensar de Foucault, no texto Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34,1992, p.132. 58 diferença se constitui a medida que não interessa buscar os por quês de determinada situação a partir somente do trabalho teórico, mas importa problematizar e experimentar a partir das coisas que constituem-se como parte integrante da realidade das pessoas e de tudo o que dela faz parte e nela interfere. Para Deleuze, “Foucault é certamente, com Heidegger, mas de uma maneira totalmente diferente, aquele que mais profundamente renovou a imagem do pensamento” (1992, p.118). Renovou a Imagem do pensamento, criando algo que não está determinado pela representação, ou seja, não está determinado pela análise de categorias e de fundamentos que revelariam o sentido das coisas. Em contrapartida, cria-se um pensamento que se mostra entre a vida e a morte e que não dispensa a implicação e a paixão de viver. Aponta-nos uma forma de filosofar que considera o movimento em que um determinado tema, ou questão se constituiu e se efetua no contexto de análise. Foucault tem um olhar voltado para a singularidade, para aquilo que dos acontecimentos foi excluído, não dito, não apresentado. Vejamos Foucault expondo o que lhe interessou nas análises que fez das “vidas infames”. Há muito tempo, para um livro, servi-me de semelhantes documentos. Se o fiz então, foi sem dúvida por causa da vibração que ainda hoje sinto quando me acontece encontrar aquelas vidas ínfimas transformadas em cinzas nas poucas frases que as prostraram ( Foucault: 1992, p.92). Vemos a relevância dada ao sentimento de vibração causado naquele que está aí para pensar. O desejo forte em manter a intensidade com que àquelas vidas o afetara. A partir disso, desenvolve seus escritos marcando-os com a paixão e intensidade de quem se deixa implicar pelos encontros e desencontros presentes na relação que estabelece com os processos que estão à sua volta. Podemos dizer que, no texto As vidas Infames, Foucault demonstra o que Deleuze se refere como pensamento fora da Imagem representacional que faz nascer aquilo que 59 ainda não existe. Criar a partir do que é intenso e que traz as marcas de algo que está fora do “normal”, do que é corrente e difundido, ou seja, da diferença e do heterogêneo. Vejamos, o que se tornou prioridade na pesquisa de Foucault quando trabalhava com os "sem fama". (...) intentei saber porque é que, numa sociedade como a nossa, se tinha súbito tornado tão importante que fossem “sufocados” ( como se sufoca um grito, um fogo, um animal) um monge escandaloso ou um usurário fantasista e inconseqüentes; (...). Mas as intensidades originais que me tinham motivado continuavam de fora (1992, p. 92). Vemos a preocupação de Foucault em manter na análise, que faz dos escritos, a intensidade que diz de trajetórias de vidas e vozes sufocadas pela falta de fama e de casta. Tal forma de problematizar aponta para relações estabelecidas com a realidade em que não se prioriza o processo de referir-se á ela, mas ao contrário, priorizam-se as operações e os efeitos que nela produzem a partir do escrito. Podemos perceber a mesma postura quando Foucault problematiza a sexualidade, ou seja, não está interessado em apontar comportamentos “normais” ou “anormais”, formas corretas ou incorretas de lidar com a sexualidade. Ao contrário, a procura se dá pelos efeitos do discurso acerca da sexualidade e pelas operações que tais discursos, no caso o científico, produzem na vida das pessoas. Pergunta-se pela forma de atuação do discurso da sexualidade na sociedade, suas produções e subjetivações e nos aponta o movimento de tal tema tão caro aos estudiosos do sexo. Cito Foucault: Imagino que seja aceita afirmação de que o discurso sobre o sexo, já á três séculos, tem-se multiplicado em vez de rarefeito; e que, se trouxe consigo interditos e proibições, ele garantiu mais fundamentalmente a solidificação e a implantação de todo um despropósito sexual. Não obstante, tudo isso parece ter desempenhado, essencialmente, um papel de proibição. De tanto falar nele e descobri-lo reduzido, classificado e especificado, justamente lá onde o inseriram procurar-se-ia, no fundo, mascarar o sexo: o discurso tela, dispersãoesquivança. Pelo menos até Freud, o discurso sobre o sexo__ o dos cientistas e dos teóricos__ não teria feito mais do que ocultar continuamente o que dele se falava. Poder-se-iam considerar todas as coisas ditas, precauções meticulosas e análises detalhadas, como procedimentos destinados a esquivar a verdade insuportável e excessivamente perigosa sobre o sexo. E o simples fato de se ter pretendido falar dele do ponto de vista purificado e neutro da ciência já é, em si mesmo, significativo (1990, p.53). 60 O objetivo de Foucault, não está em apresentar o desenvolvimento do conceito de sexualidade na tentativa de mostrar o progresso da ciência, ao contrário, vai problematizar o que foi esquivado no discurso corrente, nomeando tal "esquecimento" como um perigo insuportável ao teóricos e cientistas do sexo. E mais, irá questionar o intento da ciência em se colocar como neutra e purificada, ou seja, irá problematizar justamente o que está dado como ponto pacífico no discurso corrente. Pode-se dizer que, essa forma de relação que Foucault estabelece com o saber está na ordem do que Deleuze defende como um pensar na linha entre a vida e a morte, um pensar na diferença e na inquietude que coloca o pensador no lugar arriscado de inventor de novas formas de ver e pensar o mundo. Para Deleuze, "é justamente o que dá aos pensadores uma coerência superior, essa faculdade de partir a linha, de mudar a orientação, de se reencontrar em alto mar, portanto, de descobrir, de inventar (1992, p.128)". Foucault desenvolve uma forma de pensar e filosofar que não tem como objetivo principal a formalização dos discursos em categorias válidas universalmente que priorizem o pensamento uniforme. Nesta última, o procedimento correto é abstrair do conteúdo concreto e formalizar em categorias que se constroem a partir de pressupostos como o de identidade, semelhança e linearidade. Ao contrário, Foucault prioriza no seu trabalho uma relação muito próxima das situações concretas que estão implicadas com sua forma de vida, e por isso, apresenta um trabalho de pensamento que expressa ambigüidades e crises como pontos que constituem um pensamento criativo e voltado para as experiências concretas. Segundo Rajchaman, "a “teoria” de Foucault está dirigida para uma análise da problematização da experiência em situações históricas concretas" ( 1987, p. 68). Tal procedimento é motor para uma nova forma de fazer filosofia, uma filosofia que diz de um pensamento que se produz a partir das descontinuidades, dos efeitos que não são previsíveis a priori e nem possuem um telos determinado, mas que dizem de processos e acontecimentos possíveis em determinado momento e contexto da realidade. 61 Sabe-se que sempre existiram na filosofia muitas formas de exclusão do imprevisível, heterogêneo e diferente. Foucault, contrariamente, procura desenvolver suas questões e suas análises justamente nesse ínterim que foi negligenciado, ou seja, considerando o lugar do heterogêneo e da diferença no ato de pensar. Foucault faz o que Deleuze entende como necessário para um pensamento criativo e inventivo se realizar, a saber, movimentar-se na intensidade de algo que marca e toca o pensador. O olhar atento para aquilo que é excluído ou aceito como "verdadeiro" pelo discurso corrente. Essa é a maneira como Foucault se movimenta e desenvolve processos de pensamento em que se trabalha com as rupturas e descontinuidades na produção de conhecimento e, penso que nisso está a maneira criativa de atuar com o heterogêneo e com a diferença. Outro ponto que chamo a atenção, diz respeito a ruptura que Foucault faz na concepção corrente de uma unidade da subjetividade no eu. Ao ler o título do texto O que é um autor?, em um primeiro momento, pode-se ter a expectativa de encontrar definições e categorias que unifiquem um conceito de autoria, mas no entanto, nos deparamos com a desconstrução ou problematização da idéia de autoria individual que se perpetuou principalmente na cultura ocidental. Foucault nos diz que o autor se dissolve de sua individualidade em várias possibilidades a que ele chama "função autor", que não é uniforme e não está na unidade de um eu. A função autor é variável e permite a ocupação por vários eus. Conforme Foucault, a função autor: (...) não se define pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas através de uma série de operações específicas e complexas; não reenvia pura e simplesmente para um indivíduo real, podendo dar lugar a vários "eus" em, simultâneo, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem ocupar (FOUCAULT, 1992, p.57). A problematização se dá na tentativa de trazer à baila o que escapa à unidade do sujeito autor e pontuar a possibilidade de se ter vários eus ocupando essa função, o 62 que significa romper com o pressuposto da existência de um eu uniforme e unitário presente na escrita. Podemos relacionar aqui com a afirmação de Deleuze de que pensar não se dá na unidade de um eu (cogito cartesiano) mas, em um eu rachado. Ou seja, um eu rachado que possibilita outras formas e subjetivações se apresentarem e se criarem a partir do escrito, ou obra. É uma dimensão de entendimento que possibilita-nos pensar que uma obra pode apresentar existências diferenciadas funcionando em um discurso. Temos então, um pensamento de risco que não está preocupado em responder pelas origens ou alicerces do conhecimento humano, mas ao contrário está interessado em pontuar os efeitos e movimentos que compõem um determinado discurso. Efeitos e movimentos que também se relacionam com a arte de viver de cada um que cria pensamento. Para Foucault, "deveríamos ligar o tipo de relação que se tem consigo mesmo a uma atividade criativa" (1984, p.51). Ou seja, procurar criar nossa própria vida naquilo que fazemos ou criamos. È um pensamento que se vale das crises, tropeços e movimentos como possibilidade de criação. Considerações provisórias Vimos que para Deleuze a lógica de um pensamento não é a da exatidão e do equilíbrio, como parte da filosofia defendeu, mas um processo em movimento composto por crises e dimensões inesperadas. E, segundo Deleuze, "o pensamento de Foucault é um pensamento que, que não evoluiu, mas que procedeu por crises" (1992, p.130). Podemos dizer que, na tentativa de sair da crise produzia-se algo no campo do conhecimento. Por isso, o pensamento de Foucault traz consigo as marcas de problemas de vida e não diz, portanto, das questões metafísicas acerca do pensamento que determinou as concepções de grande parte da filosofia ocidental durante muito tempo. Nesse sentido, o contato com os textos de Foucault exige um desprendimento de si mesmo para compreendê-los, uma vez que se têm a produção de uma nova forma de 63 filosofia que é criativa e ousada. A exigência é de que se analise os pressupostos através dos quais encaminhamos nossos questionamentos acerca do mundo da vida. Tal exigência leva o leitor a implicar-se com sua maneira de perceber o mundo, propondo que se lance um outro olhar às coisas, um olhar mais capaz de lidar com a diferença. Conforme Fischer: Foi a potência de vida que havia em Foucault que o fez mergulhar na investigação sobre o poder e o sujeito, sobre a verdade dos sujeitos, a mergulhar em tantas vidas anônimas, que só se manifestaram por que se enfrentaram com o poder. Essa mesma potência de vida o fez arriscar-se a pensar o outro dentro de seu próprio pensamento, como ele mesmo afirmou a respeito de si. E é justamente esse o convite que o tema do sujeito e toda a sua obra nos faz: o de convertermos o olhar, e o de arriscar-nos a pensar de "outro modo" e, portanto, a viver nas fronteiras da criação ( 1999, p. 57). Penso que, o que Fischer nomeia como " viver nas fronteiras da criação" é o ponto de proximidade entre a forma de entendimento do ato de pensar de Deleuze e Foucault. Ambos, criam um filosofar que está voltado para a diferença, marcado pelo risco de investir no que foi sufocado. Ou seja, um filosofar e um pensamento que se obriga ao jogo do mundo para permitir a criação de outros olhares para esse mundo. E, esse é o ponto que considero crucial no ensino de filosofia e no ato de ensinar como um todo a saber, permitir-se enquanto pesquisador ou pensador tirar ou, afrouxar as amarras prévias dos discursos que nos subjetivam para poder então, compor um outro olhar acerca do que nos é questão. Referencias ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982. BADIOU, Alain. Deleuze: O clamor do Ser. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição; Tradução Luis Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988. __________.Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. FISCHER, Rosa Maria Bueno. Foucault e o desejável conhecimento do sujeito. In: Educação e realidade_ v. 24, n.1. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Educação, jan/jun. 1999. FOUCAULT, Michel. o que é um autor? 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