Pierre Hadot e os exercícios espirituais: a filosofia entre a

Propaganda
ISSN 0104-4443
Licenciado sob uma Licença Creative Commons
[T]
Pierre Hadot e os exercícios espirituais:
a filosofia entre a ação e o discurso
[I]
Pierre Hadot and the spirituals exercises:
the philosophy between action and speech
[A]
Fábio Ferreira de Almeida
Doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), professor adjunto da Universidade
Federal de Goiás (UFG), Goiânia, GO - Brasil, e-mail: [email protected]
[R]
Resumo
O objetivo do presente artigo é analisar a noção de exercícios espirituais que o filósofo,
filólogo e historiador Pierre Hadot elabora a partir de seus estudos acerca do pensamento antigo. Sobressai da ideia de exercícios espirituais, que marcou tão profundamente a
filosofia de Michel Foucault, a relação entre ação e discurso, relação essa que configura
a compreensão do que seja a própria filosofia. Compreender a filosofia como exercício
espiritual a liga intimamente à vida, o que lhe confere tanto mais intensidade. Considerase também aqui a indissociabilidade entre filosofia e história na obra de Hadot, traço
que distingue seu pensamento e que vem acrescentar a ele uma nota suplementar de
exigência e de rigor. [#]
[P]
Palavras-chave: Exercícios espirituais. Filosofia. Ação. Discurso. Vida. [#]
[B]
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 99-111, jan./jun. 2011
100
ALMEIDA, F. F. de.
Abstract
The aim of this paper is to analyze the notion of spiritual exercises which the philosopher,
philologist and historian Pierre Hadot draw in their studies about ancient thought. Stands
the idea of spiritual exercises, which so deeply marked the philosophy of Michel Foucault, to
the relationship between action and speech, that constitutes an understanding about what
is philosophy itself. Then philosophy acquire much more intensity when understand as spiritual exercise, because intimately linked to life. The connection between philosophy and history in the work of Hadot is also considered, something that distinguishes his thinking and
that it adds an additional note of requirement and precision. [#]
[K]
Keywords: Spiritual exercises. Philosophy. Action. Speech. Life. [#]
Levar o real até a ação como uma flor
desliza para a boca ácida das crianças novas.
Conhecimento inefável do diamante desesperado (a vida).
(René Char)
Pierre Hadot talvez seja um desses pensadores a partir dos quais
pode ser colocada novamente uma questão já velha: a questão da filosofia ela mesma, ou seja, o problema do lugar da filosofia diante, por
exemplo, da história, da literatura, da ciência. Poder-se-ia perguntar
qual, ou o que é, a filosofia de Pierre Hadot? Essa questão, que pode
parecer apressada, talvez tenha um sentido, ou antes um valor metodológico: ela nos mostra que é necessário recuar, com um sorriso filosófico, diante da imponência da palavra “filosofia”, atitude que também a
obra de outros filósofos requer. Uma passagem da entrevista a Arnold
Davidson, publicada no volume La philosophie comme manière de vivre
com o título “De Socrate à Foucault”, ilustra bem o que pretendo dizer.
Quando perguntado a propósito de suas divergências com Foucault,
Hadot responde: é preciso ressaltar antes de tudo que nossos métodos eram muito diferentes. Foucault era, sem dúvida, ao mesmo tempo que filósofo, um
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 99-111, jan./jun. 2011
Pierre Hadot e os exercícios espirituais
historiador dos fatos sociais e das idéias, mas ele não havia praticado a
filologia, isto é, todos os problemas ligados à tradução dos textos antigos, à decifração dos manuscritos, ao problema das edições críticas, da
escolha das variantes textuais. Editando e traduzindo Marius Victorinus,
Ambrósio de Milão, os fragmentos do comentário do Parmênides, Marco
Aurélio, alguns tratados de Plotino, adquiri certa experiência que me
permitia abordar os textos antigos de uma perspectiva completamente
distinta da dele. Em especial, sempre dei muita importância ao cuidadoso estudo do movimento do pensamento do autor e à busca de suas
intenções (HADOT, 2008a, p. 216).
Não se pode, evidentemente, afirmar com isso que a filologia
está para o pensamento de Hadot do mesmo modo que a história está
para o pensamento de Foucault. Com efeito, a reflexão de ambos reserva à história um papel decisivo. Entretanto, a história que faz Hadot
carrega consigo esse traço, que nos parece determinante, da filologia,
de uma atenção redobrada para o movimento do pensamento e a intenção de cada autor em questão. Eis a história que Hadot pratica, não tão
distante, mas ligeiramente diferente da que pratica Foucault. Contudo,
o que a minúcia, a paciência, o rigor científico desse trabalho filológico
acrescenta à démarche do historiador, do filósofo? Uma resposta a essa
pergunta encontramos no final da mesma entrevista: concretamente, os historiadores da filosofia estudam filosofias e obras
filosóficas. Pessoalmente, tendo a estudar, não tanto as filosofias, mas,
sobretudo, as obras filosóficas, pois duvido da possibilidade de reconstruir com exatidão corpos de doutrinas filosóficas, ou de sistemas.
Podemos apenas estudar a estrutura das obras e a finalidade delas, o
que o filósofo quis dizer nesta ou naquela determinada obra. Para tomar o exemplo de um filósofo moderno, como Bergson, é impossível
descobrir uma coerência absolutamente perfeita entre seus diferentes
escritos. Quando afirmo que o filósofo deve sempre permanecer vivo
no historiador, quero sobretudo dizer que, em cada obra de um filósofo,
é necessário tentar reviver integralmente, em si, a démarche filosófica
do autor, a um só tempo o movimento do pensamento e, se possível,
todas as intenções do autor. O estudo desta démarche permitirá, talvez,
reconhecer os dois pólos da atividade filosófica, o discurso e a escolha
de vida (HADOT, 2008a, p. 227). Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 99-111, jan./jun. 2011
101
102
ALMEIDA, F. F. de.
Sem evidentemente pretender desenvolver um estudo comparativo entre Foucault e Hadot, podemos então dizer que: se o primeiro
é, ao mesmo tempo que filósofo, um “historiador dos fatos sociais e
das ideias”, o segundo só é historiador na medida em que filosofa ou,
para empregar aqui a expressão consagrada por Martial Guéroult, na
medida em que essa história se constitui como filosofia da história da
filosofia.1 Deve-se entender essa perspectiva não como um esforço por
reviver o autor que se estuda, que se comenta, que se traduz, mas como
essa exigência filológica de fazer com que o filósofo – seu pensamento,
sua obra – permaneça vivo no historiador, que a leitura que se faz de
uma obra seja como uma releitura da obra pelo seu próprio autor.
Se nos for permitido agora retomar a pergunta que nos colocávamos inicialmente – qual ou o que é a filosofia de P. Hadot? –, poderemos responder que é esse estudo minucioso, esse esforço para reviver
intimamente e com isso atualizar o pensamento e as intenções de um
autor. Sabemos quais são esses autores. Dentre eles destacam-se, sobretudo, Plotino e Marco Aurélio, mas também Sêneca e Epicteto. Esse
trabalho é histórico porque realiza, assim, a reconstituição do pensamento expresso por um autor em uma determinada obra e, ao mesmo
tempo, a atualização desse pensamento em uma época distante daquela
na qual foi originalmente concebido, sem perder de vista que essa atualização é sempre fruto disso que já podemos reconhecer como esforço
de objetividade, esforço que exige cautela, pois “é extremamente importante não cometer anacronismo na pressa de dar a um texto um
sentido atual” (HADOT, 2008a, p. 115-116).
E, ainda, tal história só é possível na medida em que possibilita
a constituição mesma de um pensamento, isto é, a partir de uma obra
determinada, repete-se a questão decisiva: o que é a filosofia? É nesse
sentido que o que encontramos na obra de Pierre Hadot é, de fato, uma
filosofia, mas essa filosofia não é, senão, uma filosofia que se funda na
O problema do estruturalismo parece não se colocar para a filosofia de P. Hadot e a passagem citada há pouco parece
confirmá-lo. Até onde sei, Guéroult não é citado por Hadot e o método estruturalista não é discutido por ele, ainda que o
nome de Victor Goldschmidt seja recorrente. Isso talvez se explique pelo fato deste ter se dedicado ao pensamento antigo,
ao passo que Guéroult consagrou seus estudos à filosofia moderna.
1
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 99-111, jan./jun. 2011
Pierre Hadot e os exercícios espirituais
“vivência”, ou no esforço em vivenciar o pensamento expresso na obra
de um filósofo. Em outras palavras, ela se constitui, de fato, como uma
filosofia da história da filosofia ou, no caso preciso de Hadot, uma filosofia da história da filosofia antiga. Esse parece ser o traço distintivo
que a prática da filologia acrescenta ao pensamento e libera o tema
latente da leitura. Trata-se, então, de um exercício de leitura que forma,
que constitui pensamento.
Com isso, Hadot pode ser reconhecido na vizinhança de autores,
além de Foucault, Nietzsche, Heidegger e ainda outros. Não por acaso,
a última parte do artigo Exercices spirituels, de 1976 – artigo que lhe
valeu, como sabemos, a indicação, por iniciativa do próprio Foucault,
para a cadeira intitulada “História do pensamento helenístico e romano” do Collège de France2 –, intitula-se precisamente “Aprender a ler”.
Ora, esse privilégio reconhecido à leitura nos remete novamente à conexão entre pensamento e história marcada ou regulada pela filologia.
Se a história já deve ser entendida como exercício de leitura sem o qual
não há filosofia, a filologia vem sobrecarregar esse exercício, vem torná-lo ainda mais exigente, ela demanda ainda maior esforço daquele
que a pratica.
Diria que é na obra de 2004, Le voile d’Isis, que Pierre Hadot fornece a forma mais acabada dessa prática – por que não dizê-lo, desse exercício – de leitura. O livro é resultado dos cursos ministrados no
início de suas atividades como professor do Collège de France, e que,
segundo o próprio autor, há muito vinha sendo planejado. Nessa obra,
percebe-se com clareza aquele papel que a leitura desempenha em seu
pensamento. Seu subtítulo já é significativo, trata-se de um “Ensaio
sobre a história da ideia de natureza”. Temos aí uma história, mais precisamente a história de uma ideia. A marca da filologia aparece, penso,
não na ideia da qual se pretende fazer essa história, mas antes na démarche adotada: o que está em jogo é, de fato, uma “leitura” de como
Em 2006 foi publicado o texto da aula inaugural pronunciada por Hadot, Eloge de la philosophie antique, na qual
o autor ressalta o fato de no Collège se primar por um “ensino e pesquisa que mantém em estreita ligação orientações
freqüentemente separadas de maneira artificial: o latim e o grego, a filologia e a filosofia, o helenismo e o cristianismo”.
(HADOT, 2006, p. 9)
2
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 99-111, jan./jun. 2011
103
104
ALMEIDA, F. F. de.
o famoso aforismo 123 de Heráclito, physis kriptesthai philein (que se
traduz geralmente por “a natureza ama esconder-se”), atravessou toda
a cultura ocidental, como servindo-lhe de fio condutor. Ao final do prefácio à obra, Hadot esclarece:
é no quadro da história destas metáforas e de seus lugares-comuns que
o presente estudo se inscreve, seja no que diz respeito à fórmula ‘A natureza ama esconder-se’, às noções de véu e de desvelamento, ou à figura
de Isis. Estas metáforas e estas imagens inspiraram e, ao mesmo tempo, influenciaram a atitude do homem em relação à natureza (HADOT,
2008b, p. 18).
Em suma, é a atitude do homem em relação à natureza que determina a filosofia de P. Hadot, e o livro Le voile d’Isis mostra, por meio
do mesmo movimento de pensamento, o sentido dessa preocupação e
o estilo com que é tratada, ou seja, como a ideia de natureza é lida nas
obras que atravessam o pensamento e a cultura ocidentais e seus efeitos sobre a própria reflexão, que, lendo, faz a sua história.
A já conhecida fluência do estilo quase contrasta com a profunda erudição, características, aliás, de todos os trabalhos do filósofo.
Percorrem-se as mais de 400 páginas de Le voile d’Isis com um fio condutor muito nítido: como já indicamos, a ideia de natureza. Filosofia,
religião, artes e ciência vêm aí testemunhar as transformações da
recepção e da representação dessa ideia. “Escrever a história de sua
recepção”, afirma Hadot, “é escrever a história de uma sequência de
contra-sensos, mas de contra-sensos criadores, na medida em que estas
três palavrinhas se prestaram a expressar, mas talvez a também mostrar perspectivas sempre novas sobre a realidade e, também, atitudes
muito diversas em relação à natureza, admiração ou hostilidade ou
angústia” (HADOT, 2008b, p. 404).
Eis o que justifica o esforço empreendido nessa obra: não se trata
aí de discutir os diversos modos dessa recepção para propor um a mais,
por mais novo e original que pudesse ser; também não se trata de sublinhar descontinuidades epistemológicas na história dos modos de representação da natureza, por mais que a noção de “contra-senso” possa ser
aproximada dessa ideia. Se Hadot se interessa pela ideia de natureza,
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 99-111, jan./jun. 2011
Pierre Hadot e os exercícios espirituais
não é senão movido por aquilo que aprendeu nessa peculiar frequentação da filosofia antiga, um traço que reaparece sempre ao longo dos
séculos, que é ressaltado pela história e que constitui a preocupação diretora, podemos dizer, de suas pesquisas. Essa preocupação se expressa
de modo exemplar, por exemplo, no silêncio com que Wittgenstein encerra seu Tractatus logico-philosophicus, que é, de algum modo, análogo à
sabedoria de Sócrates, que, como afirma no discurso em sua defesa, “reconhece não valer, realmente, nada no terreno da sabedoria” (PLATÃO,
2001, 23b 1), o que dá sentido ao preceito délfico: ser o que realmente é e
ao oracular gnôthi seautón (PLATÃO, 2001, p. 22-25).
Tal preocupação, de Sócrates a Wittgenstein, passando por
Agostinho, Pascal, Goethe e Nietzsche, constitui uma tradição que envolve filosofia, ciência, religião, arte e se pergunta fundamentalmente
pela prática, pela ação entendida como modo ou estilo de vida, o que
remonta à ideia de conversão, isto é, o modo como a ideia expressa por
um discurso repercute na vida prática; um sentimento de si plasmado
no sentimento do mundo. Esse aspecto, com efeito, poderia nos levar a
reconhecer aí um pensamento que se situa para além da ética, e quem
sabe mesmo não ético, na medida em que o privilégio reconhecido à
prática aboliria a necessidade de uma formulação teórica, isto é, uma
reflexão a respeito de conceitos como bem, mal, justo, etc. Tal impressão não é mais que aparente, uma vez que, aí, não se prescinde, não se
pode prescindir de teoria, pois “se for suprimida toda referência dogmática e teórica, o indivíduo se encontra completamente abandonado
a si mesmo” (HADOT, 2002, p. 387), donde a necessidade de modelos,
de exemplos de vida para guiar decisões complexas com as quais o
indivíduo se depara, para orientar a escolha de vida.
É no sentido dessa prática que necessita de modelos, de teorias
e até de dogmas, que reencontramos Le voile d’Isis: o tema geral dessa
obra não é propriamente a ideia de natureza, não é uma exegese nem
do aforismo de Heráclito nem da imagem de Isis, e tampouco das metáforas do véu e do desvelamento. O tema geral da obra é precisamente
esse confronto entre o discurso e a prática, entre o pensamento e a vida,
enfim, entre a experiência e a ideia. É o que reserva ao leitor o último
parágrafo da obra: Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 99-111, jan./jun. 2011
105
106
ALMEIDA, F. F. de.
o leitor terá, de passagem, percebido os temas que me seduzem e sobre
os quais me demorei, talvez um pouco demasiadamente: uma idéia e
uma experiência. Uma idéia: a natureza é arte e a arte, natureza, não sendo, assim, a arte humana mais que um caso particular da arte da natureza; idéia que acredito nos permitir melhor compreender o que pode ser
a arte e, ao mesmo tempo, o que pode ser a natureza. Uma experiência: a
mesma de Rousseau, de Goethe, de Hölderlin, de Van Gogh, e de tantos
outros; a experiência que consiste em tomar intensamente consciência
do fato de que fazemos parte da natureza, que neste sentido somos nós
mesmos esta natureza infinita e indizível que nos engloba totalmente.
Lembremos Hölderlin: “Unificar-se com todas as coisas vivas, retornar,
por um radiante esquecimento de si, ao Todo da Natureza”; lembremos
Nietzsche: “Ultrapassar a mim mesmo e a ti mesmo. Experimentar de
uma maneira cósmica” (HADOT, 2008b, p. 408). Não é isso o sentimento do excesso – tema tão bem explorado
por Bataille –, o sentimento de que, pertencendo à natureza, o homem
é ultrapassado por ela? Não é precisamente aí, nessa confluência de
ideia e experiência, que desaba sobre o homem, simultaneamente, a
certeza da finitude, portanto de sua fragilidade, de sua provisoriedade,
e o imenso inapreensível da natureza, que o reduz ainda mais a essa
mínima parte dela, que ele é? Uma ideia e uma experiência, dizer a
natureza e senti-la em si, não é precisamente isso que Hadot destaca
como exercício espiritual? Uma vez que se referem ao homem, mas ao
homem como parte da natureza, ideia e experiência, como, aliás, discurso filosófico e vida filosófica, são, assim, incomensuráveis, mas ao
mesmo tempo inseparáveis. E é isso que, segundo Hadot, faz da filosofia antiga um fenômeno singular, um acontecimento único. Temos
então o tema inteiro da obra Qu’est-ce que la philosophie antique?, da qual
nos será escusado citar esta passagem um tanto longa: vida filosófica e discurso filosófico são incomensuráveis, sobretudo, por
serem de ordem totalmente heterogênea. O que é essencial à vida filosófica, a escolha existencial de um certo modo de vida, a experiência
de certos estados, de certas disposições interiores, escapa totalmente à
expressão do discurso filosófico. Isso aparece claramente na experiência platônica do amor, talvez até na intuição aristotélica das substâncias simples e, sobretudo, na experiência unitiva plotiniana, totalmente
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 99-111, jan./jun. 2011
Pierre Hadot e os exercícios espirituais
indizível em sua especificidade dado que aquele que fala dela, uma vez
terminada a experiência, já não se situa no mesmo nível psíquico de
quando ele vivia a experiência. Mas isso vale também para a experiência de vida epicurista ou estóica ou cínica. A experiência vivida do puro
prazer, ou da coerência consigo mesmo e com a Natureza, é de ordem
completamente distinta do discurso que a prescreve ou que a descreve
do exterior. Tais experiências não são da ordem do discurso e das proposições (HADOT, 2008d, p. 267-268). Diria que é pelo homem que ideia e experiência, assim como
discurso e vida, são incomensuráveis. Entretanto, é pela natureza que
os elementos desses pares são inseparáveis. Com efeito, o discurso
contém ideias, ainda que apenas em certa medida, mesmo que de modos que podem variar em precisão e clareza. Eles são, portanto, comensuráveis. O mesmo se pode dizer de experiência e vida. Contudo,
jamais discurso algum será bastante para a vida, qualquer que seja
ela, do mesmo modo que nenhuma ideia jamais equivalerá a uma
experiência. O paradoxo não se resolve; a antinomia persiste, e isso
precisamente porque seus termos são inseparáveis. Essa é a singularidade disso que, na Antiguidade, apareceu como filosofia: foi nesse
momento que, pela primeira vez, a constrangedora unidade desses
elementos incomensuráveis e inseparáveis colocou o homem em contato com a natureza:
não há discurso que mereça ser chamado de filosófico, se está separado da vida filosófica; esta também não existirá se não estiver estreitamente ligada ao discurso filosófico. É aí que, aliás, reside o perigo inerente à vida filosófica: a ambigüidade do discurso filosófico (HADOT,
2008d, p. 268).
A filosofia significa, portanto, uma ameaça constante, um perigo
imanente, que se apresenta, pela ambiguidade, à ideia e ao discurso; e
pela morte, à experiência e à vida. A ambiguidade, a ameaça, o perigo,
então, é o que distingue o encontro do homem com a natureza nesse
espaço difuso e estreito que é a filosofia. Eis por que, em seu alvorecer,
a filosofia foi, e deve, ser lida como exercício; é esse perigo e essa ameaça que obrigam o espírito a práticas que, como a conversão, a ascese,
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 99-111, jan./jun. 2011
107
108
ALMEIDA, F. F. de.
visam ao si-mesmo, isto é, ao interior do homem e o outro, aquilo que
o cerca, tudo com que se relaciona. Enquanto prática, enquanto exercício, a filosofia é um aprendizado e isso confere toda singularidade e
exemplaridade à figura de Sócrates: ele não queria, como afirma em
sua Defesa, ensinar nada, mas apenas aprender. Esse aprendizado é que
dá sentido à ideia, muitas vezes repetida por P. Hadot, de que, “no diálogo ‘socrático’, a verdadeira questão que está em jogo não é do que se
fala, mas aquele que fala” (HADOT, 2002, p. 39).
Não podemos nos esquecer que, na expressão “exercício espiritual”, o acento deve recair sobre o primeiro termo. Trata-se efetivamente de exercício, no sentido mesmo físico, biológico e corporal
do termo. Vem daí o significado terapêutico da filosofia tal como é
concebida, por exemplo, pelo estoicismo e pelo epicurismo. É nesse
sentido que, como afirma Hadot, “compreende-se bem que uma filosofia, como o estoicismo, que exige vigilância, energia, tensão de
alma, consiste essencialmente em exercícios espirituais” (HADOT,
2002, p. 33). Todo esse aprendizado, essa exigente terapêutica em
relação ao corpo e à alma, coloca o homem, em primeiro lugar, em
relação consigo mesmo e, necessariamente, em relação com o outro.
Daí a conexão entre as quatro seções que compõem o artigo Exercices
spirituels: “aprender a viver”, “aprender a dialogar”, “aprender a
morrer”, “aprender a ler”. É preciso enxergar que não há nisso nenhuma ordem, nenhuma progressão. Não há primeiro nem último,
pois não são estágios, mas elementos que, naquele espaço que o contato do homem com a natureza abre – a filosofia – se integram, se
interpenetram e se complementam. Na verdade, nenhuma distância
separa viver e morrer. O êxtase, assim como a angústia, nasce da
experiência íntima da natureza. Encontra-se o êxtase, assim como a
angústia, igualmente nas práticas da vida e da morte. Novamente,
Sócrates aparece como exemplo disso. E como não identificar aí
também o amor fati de Nietzsche e a compreensão heideggeriana do
Dasein como “ser-para-morte”?
Tais afirmações podem soar contrárias à admiração que Hadot
sempre nutriu por Goethe e que expressa em sua última obra, na qual
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 99-111, jan./jun. 2011
Pierre Hadot e os exercícios espirituais
destaca a fórmula Gedenken zu leben (N’oublie pas de vivre3): “Esta máxima”, afirma ele,
é a tradução de Memento vivere que Goethe opõe a Memento mori. [...]
Esta última máxima significa que é preciso pensar num acontecimento
futuro para preparar-se para ele. O Memento vivere não é simétrico ao
Memento mori, é uma máxima paradoxal” (HADOT, 2008c, p. 271-272).
Aquele que afirma memento vivere, não pode, portanto, afirmar
memento mori, já que, com efeito, a vida não pode ser uma preparação
para um acontecimento futuro, pois isso quer dizer esquecer a vida
mesma, a vida no presente, sua atualidade. É a negação da máxima
memento mori que faz do memento vivere uma máxima paradoxal: ela
significa, em suma, dizer sim ao devir e ao que é terrificante. De modo
que também não se pode ligar o memento mori àquele “aprender a morrer” que a prática de exercícios espirituais exige. Uma passagem do
famoso artigo de 1976 parece confirmar isso: “exercitar-se em morrer,
é exercitar-se em morrer em sua individualidade, suas paixões, para
enxergar as coisas na perspectiva da universalidade e da objetividade.
Evidentemente, tal exercício supõe uma concentração do pensamento sobre ele mesmo, um esforço de meditação, um diálogo interior”
(HADOT, 2002, p. 49-50), portanto, transformação de si, exercício e
aprendizado da ascese.
O problema ou, antes, a questão da filosofia, especialmente quando ela, como na Antiguidade, situa-se na tensão entre ação e discurso,
entre a prática e a palavra, é o que faz sobressair para o pensamento a
noção de exercício. Com efeito, filosofar deverá ser esse aprendizado sedutor e perigoso. Sócrates se dizia um parteiro de almas; o pensamento
deve, com efeito, se aproximar da disposição da criança, atraída irresistivelmente pelo mundo e, quem sabe mais ainda, pelo perigo que o
mundo promete. No entanto, como também reconhece o poeta René
3
É difícil trazer para o português a fórmula de Goethe, que recupera a famosa injunção latina: carpe diem. Ocorreme, de imediato, o refrão de uma canção popular: “não pense no amanhã, porque o amanhã é agora”, que expressa
aproximadamente seu sentido. Penso, no entanto, que ela pode ser traduzida por: não esquece que viver é hoje.
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 99-111, jan./jun. 2011
109
110
ALMEIDA, F. F. de.
Char, esse risco, essa ameaça constante diante da ação, constitui a própria vida que nenhuma palavra abarca: “levar o real até a ação como
uma flor desliza para boca ácida das crianças novas. Conhecimento
inefável do diamante desesperado (a vida)”.
Com efeito, diante da natureza apresentamo-nos a um jogo alegre, exercício brincante sobre o abismo: eis o que parece ser, afinal, a
vida. Eis também como Pierre Hadot compreende a filosofia a partir
da Antiguidade greco-latina, e não só isso, mas, e talvez fundamentalmente, como ele pretende mostrar a filosofia ela mesma. Diríamos que
o pensamento faz, por um lado, desabar sobre o homem a natureza
inteira, sua profundidade e imensidão, mas, por outro lado, do homem
explode, na natureza, da qual ele não é mais que uma mínima parte,
esse sentimento imenso, inabarcável: sentimento de si, dos outros e do
mundo. Na expressão de Hadot, “visão do alto”.4 A vida, então, é irresistível, mas gozar a vida exige a aceitação de um risco fundamental,
significa assumir intimamente a vizinhança da morte. Por isso é necessário aprender a viver e aprender a morrer, sem o que não é possível
filosofar. Assim, o carpe diem, do famoso verso de Horácio – “recolha o
hoje, pois sabes o quanto é incerto teu amanhã” –, permanece, como vimos, no Memento vivere, de Goethe, mas também em toda palavra que,
ciente dos limites da matéria que é a sua, transborda imediatamente
de vida, de experiência; vida e experiência que poetas como René Char
nos ensinam que é preciso olhar direto nos olhos e, com o coração na
boca, seguir.
Ser estóico é imobilizar-se com os lindos olhos de Narciso. Recolhemos
todas as dores que por ventura o escritório poderia retirar de cada milímetro de nosso corpo; depois, com o coração na boca, finalmente prosseguimos tendo encarado de frente (CHAR, 2003, p. 4).
Regard d’en haut. Essa ideia é elabora por P. Hadot principalmente a partir de seus estudos sobre Plotino, ver notadamente
Plotin et la simplicité du regard (GALLIMARD, 1997) e, sobre Marco Aurélio, especialmente em La citadelle intérieure,
introduction aux “Pensées” de Marc Aurèle (FAYARD, 1992), retornando em sua última obra, N’oublie pas de vivre.
4
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 99-111, jan./jun. 2011
Pierre Hadot e os exercícios espirituais
Referências
CHAR, R. Feuillets d’Hypnos. In: CHAR, R. Fureur et mystère. Paris:
Gallimard, 2003.
HADOT, P. Exercices spirituels et philosophie antique. Paris: Albin Michel,
2002.
HADOT, P. Eloge de la philosophie antique. Paris: Allia, 2006. HADOT, P. La philosophie comme manière de vivre. Paris: Albin Michel,
2008a.
HADOT, P. Le voile d’Isis. Paris: Gallimard, 2008b.
HADOT, P. N’oublie pas de vivre, Goethe et la tradition des exercices spirituels. Paris: Albin Michel, 2008c.
HADOT, P. Qu’est-ce que la philosophie antique? Paris: Gallimard, 2008d.
PLATÃO. Apologia de Sócrates. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém:
EDUFPA, 2001.
Recebido: 12/09/2010
Received: 09/12/2010
Aprovado: 10/12/2010
Approved: 12/10/2010
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 99-111, jan./jun. 2011
111
Download