O Trãnsito de Vênus - Shirley Hazzard

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O Trânsito de Vênus - Shirley Hazzard
Mais uma vez, para Francis.
"J'ai rêvé tellement fort de toi,
J'ai tellement marché, tellement parlé,
Tellement aimé ton ombre,
Qu'il ne me reste plus rien de toi."
Robert Desnos, "Le dernier poème".
Primeira parte
O Velho Mundo
I
Ao cair da noite, as manchetes estariam anunciando devastação.
Acontecia simplesmente que, em um dia sem nuvens, o céu de
repente ficara encoberto, tal qual um toldo. Um silêncio purpúreo
petrificava os troncos das árvores e mantinha eretas as plantações
nos campos cultivados, como cabelos arrepiados. Tudo quanto
havia de um matiz branco e fresco provinha das baixadas e dunas,
ou lacerava a beira das estradas com uma fileira de cercas. Isso
aconteceu pouco após o meio-dia, em uma segunda-feira de verão,
no sul da Inglaterra.
Na manhã seguinte, surgiram ainda pequenos parágrafos nos
jornais, com espaço obtido em lacunas entre eleições, crimes
diabólicos e a Guerra da Coréia — casas destelhadas e pomares
devastados, com a citação de número e área. Finalmente, haveria
apenas a breve menção a um corpo, no local em que uma ponte fora
arrastada.
Naquele meio-dia, um homem caminhava lentamente nessa
paisagem, sob relâmpagos que se ramificavam. Uma composição de
expectativa quase humana definia o cenário, no qual ele penetrou
vindo do canto esquerdo. Cada nervo
— porque os próprios celeiros, carrinhos de mão e coisas
desprovidas de tecido adquiriam nervos naqueles momentos
— aguardava, fatalístico. Apenas ele, cinético, avançava contra as
circunstâncias rumando para um só destino.
Os fazendeiros moviam-se metodicamente, guiando animais ou
conduzindo máquinas em direção ao abrigo. Além, no horizonte,
ruas provincianas ficavam frenéticas ante os primeiros pingos de
chuva. Limpadores de pára-brisas agitavam-se, incessantes, e as
pessoas também iam em frente e esquivavam-se, de cá para lá, de
um lado para outro. Embrulhos eram protegidos à frente dos
casacos e jornais se dobravam acima de cabeleiras recém-onduladas.
Um cachorro correu para dentro da catedral. Crianças saíam
correndo excitadamente dos playgrounds, janelas se fechavam com
estrondo, portas batiam. Donas-de-casa apressavam-se, gritando:
"Minha roupa lavada!" Então, um súbito risco de luz dividiu a terra,
vindo do céu.
Foi quando o homem que caminhava chegou à estrada e ali parou.
Acima dele, quatro casas antigas se situavam em uma curva alta da
montanha, bastante distanciadas entre si: pendiam para baixo, como
fardos pendurados, sobre a terra ondulante. Ele ficara sabendo de
seus nomes na aldeia — o nome dos moradores, não dos donos. As
paredes de tijolos eram gastas e escurecidas; uma delas estava
coberta de hera, verde como um gramado revolvido. A casa mais
distante e maior situava-se diante de um bosque, clamando
supremacia.
Rompendo com decisão a própria imobilidade, o homem observava,
como se visse, num grande relógio, o ponteiro fazer soar a pancada
seguinte diante de seus olhos. Ele deixou a estrada quando da
primeira lufada de chuva e vento, depositou sua mala no chão, tirou
o boné encharcado, bateu-o contra um lado do corpo e o enfiou no
bolso. Seu cabelo elevou-se como as plantas das lavouras entre as
lufadas e, também como elas, ficou rapidamente molhado e escorrido. Ele escalou a subida sob a chuva, com decisão e sem
demonstrar qualquer infelicidade. Parou uma vez para observar o
vale — ou valezinho, como poderia ser doce e brandamente
chamado. Estava sendo varrido pelos trovões, ribombo após
ribombo, até as plantações arqueadas reverberarem. Havia um
castelo na montanha oposta — cinzento, pomposo, guarnecido de
torres, e que se adequava ao temporal.
Ao aproximar-se da casa mais distante, ele tornou a parar, olhando
com o mesmo genuíno interesse que alguém teria se o tempo
estivesse maravilhoso. Da cabeça erguida, a água lhe escorria para o
colarinho. Era uma casa escura, mas permanecia firme. No correr de
dois ou três séculos de acréscimos secundários, Peverel se
mantivera dentro da escala e da proporção, como um princípio;
harmônica, a não ser por uma janela alta e alargada — defeito
frívolo e intencional, como o furo em uma orelha, para a colocação
de um ornamento.
A lama escorria por sobre o cascalho e a argila batida. Galhos
podados de alfenas sacudiam-se por toda parte. Como se viesse do
mar, o homem vadeou até a entrada da casa e puxou o cordão de
uma sineta. Os passos rápidos que ouviu bem poderiam ser as
batidas de seu coração. Achou velha a mulher que lhe abriu a porta.
Se ele tivesse alguns anos a mais, poderia tê-la promovido à meiaidade. Uma idade que se enovelava no cabelo liso e grisalho,
explícita na pele demasiado delicada para uma jovem e naquela
postura empinada, sem ser marcial. Ela o conduziu pelo pavimento
do que fora um belo saguão. Tinha os olhos grandes, empalidecidos
pela descoberta do que, por humana e comum concordância, fica
melhor não divulgado.
Trocaram os respectivos nomes na mais perfeita calma, ignorando a
tempestade atrás dele e suas roupas encharcadas. A mala barata
gotejava cor de laranja no piso preto e branco, enquanto Ted Tice
tirava a capa e a pendurava em um cabide, como lhe fora indicado.
Um odor de lã molhada, de meias e suor, espalhou-se, acre, pelo
espaço vazio, insensivelmente ensaboado e bem encerado.
Todos aqueles lentos assuntos tinham demorado segundos, e
durante esse tempo pudera-se notar, também, que o saguão era
circular e que um jarro de rosas jazia sobre uma mesa, ao lado de
um jornal comum e abaixo de um quadro escuro, com moldura
dourada. Por sob a curvatura de uma escada, havia uma porta
aberta, dando para um corredor com passadeira persa. E em cima,
no arqueado dos degraus, via-se uma jovem, de pé e imóvel.
Tice levantou os olhos para ela. Teria sido pouco natural não tê-lo
feito. Levantou os olhos de seus sapatos molhados, de seu cheiro de
umidade e da mancha alaranjada da bagagem barata. E ela olhou
para baixo, alta e enxuta. Tice teve uma impressão do corpo da
jovem em toda a sua dimensão — como se estivesse às suas costas e
lhe visse a espinha forte, o cabelo negro repartido sobre o tendão
proeminente da nuca, a dobra frágil atrás do joelho. Ela estava com
o rosto na sombra. De qualquer modo, teria sido demasiado perfeito
e oportuno, se ela tivesse podido mostrar que era bonita.
—
Eu procurava por Tom — disse ela, e foi embora.
Ted Tice ergueu sua mala, que se dissolvia: um recém-chegado
devia manter a própria opinião entre os iniciados. Logo também
estaria procurando Tom ou saberia por que outros o procuravam.
— Meu marido — disse Charmian Thrale — está bem melhor e
descerá para o almoço.
Ted Tice ia trabalhar com o professor Sefton Thrale, aquele que
estava bem melhor, durante julho e agosto. Nesse meio tempo, era
conduzido pela sra. Thrale ao longo da passadeira persa e passava
por fotografias antigas, uma carta emoldurada com um brasão
dourado e uma série de gravuras de portos britânicos.
— Este é o seu quarto — disse a sra. Thrale.
Ted Tice seria deixado a sós, mas ela permaneceu à porta enquanto
ele caminhava por seu novo chão, a fim de colocar a mala onde
causasse o menor dano.
— Aquelas portas duplas, no fim do corredor, dão para a sala onde
nos reunimos. Se quiser esperar lá, depois que estiver pronto, uma
das meninas o acompanhará.
Como se ficar sozinho o incomodasse, a ele, que era grato a isso, em
qualquer ocasião! Ela também mencionou o banheiro. Depois disse
que ia pôr a mesa. Por fim, ele ainda aprenderia isto: a falar
confiantemente e deixar um aposento.
Na única janela baixa surgiam arbustos esfumaçados e divergentes,
bem como um relance de ripas molhadas formando uma cerca —
tudo em diagonal e truncado pela moldura da janela, como uma
foto mal tirada. Havia restos de tinta negra do blackout na vidraça.
Aquele era um dormitório simples e talvez já tivesse sido ocupado
por algum subalterno de categoria. Tice meditou naquelas palavras
— subalterno de categoria —, ignorando que significado teriam no
tempo em que eram usadas. Fora enviado até ali para auxiliar um
eminente cientista, idoso e doente, a dar sua opinião quanto à
localização de um novo telescópio. Pelo que sabia, bem podia
constar como um subalterno de categoria. Era jovem e pobre,
possuía as melhores referências — como a governanta de uma
história antiga que se une à família nobre.
Ele espalhou roupas amarrotadas pelo quarto e procurou um pente.
Mesmo molhados, seus cabelos mostravam um toque arruivado.
Sobre a mesa onde colocou seus livros, havia um tinteiro de bronze
e porcelana e duas canetas de madeira. Tice cantarolava, enquanto
se sentava para trocar os sapatos, de vez em quando deixando
escapar por entre os lábios semicerrados as palavras de uma antiga
canção:
"O vento sopra do sul, do sul, do sul, O vento sopra do sul, sobre o
suave mar azul'
Depois fincou o punho na boca e ficou pensando, olhando
fixamente, como se apenas aos poucos fosse acreditando.
A sala de portas duplas era tão fria quanto o corredor. Cadeiras
confortáveis e feias, um rígido e refinado sofá, livros antigos, mas
não velhos, mais flores. O vento estremecia em uma lareira gélida, a
tempestade formava uma cascata na janela ogival. Ted Tice
acomodou-se em uma das elefantinas e surradas poltronas,
descansando a cabeça em um trecho extra e gasto de pelúcia,
enlevado com a novidade e as perspectivas. Em certa época, aquela
sala deveria ter sido um estúdio ou uma sala de estar matinal —
sendo que a expressão "sala de estar matinal" pertencia à mesma
vaga categoria literária que "criado de alta classe". Em alguma parte
haveria um aposento maior, manifestamente impossível de aquecer,
como se tivesse ficado fechado durante a guerra. A expressão
"durante a guerra" vinha à mente com facilidade, mesmo na paz.
Na lareira, abaixo do gradil vazio, havia uma fila de fragmentos
alinhados, cinco ou seis deles. Eram torradas, manchadas com uma
pasta escura e empoeiradas pelas cinzas.
Ele estava habituado ao frio, e ficou ali à vontade, como se o
aposento estivesse aquecido. Fisicamente, não podia mostrar tal
despreocupação em presença de outros, porque a versão
inteiramente desenvolvida de seu corpo ainda não lhe era de todo
familiar. Em pensamento, no entanto, era fácil, rápido, mas sem
pressa. Tudo indicava que seu corpo esperara outro habitante. Ele
supôs que os dois se reconciliariam com o tempo — como saberia,
com o tempo, que as torradas sujas estavam ali para envenenar
camundongos e que Tom era o gato.
Um livro ao lado de sua poltrona estava fechado sobre um lápis,
que marcava a leitura. Apanhou-o e leu a lombada: "Zanoni.
Romance do Altamente Ilustre Lorde Lytton". Um livro daqueles
era bem adequado à estante de semelhante sala. Mais improvável é
que fosse tirado do lugar, aberto e lido.
Por um momento, imaginou que quem chegava era a mesma jovem,
a que vira na escada. O motivo dessa impressão se devia a serem
ambas irmãs, embora a presente fosse loura e mais baixa.
— Eu sou Grace Bell — disse ela.
O rapaz ficou de pé e novamente apresentou sua mão e disse seu
nome. Ela usava um vestido rosa de lã, caro e novo. Ambos
souberam — era impossível o contrário — que ele a achara bonita.
Entretanto, devido à juventude, ambos simularam ignorar aquela
ou qualquer outra beleza.
— Ficou muito tempo aqui sozinho.
— Nem percebi.
Contudo, não houvera nenhuma culpa da parte dele.
— Faltou luz. Pediram-me que viesse aqui e o conduzisse.
Ele estivera ali, sentado no escuro, por causa da tempestade.
— É por aqui.
Ela se comunicava por breves informações. Sua segurança indicava
que tinha sido bonita desde a infância. "Que criancinha linda", e
mais tarde: "Grace está ficando. . . ficando. . . uma beldade". A
beleza se tornara interior, exterior. Também houvera aulas de
comportamento.
Tice admirou a habilidade da jovem em caminhar suavemente,
tendo-o em seus calcanhares. Ela não era pesada, em absoluto, e
dava uma impressão de delicadeza e submissão. O vestido era uma
raridade para ele — o tecido, o corte. Pela primeira vez, Ted Tice
observava como era feito um vestido, embora muitas vezes
houvesse estremecido ante uma corajosa exibição de roupas dos
pobres.
O vestido rosa-forte viera do Canadá, por mar, tendo sido enviado
pelo filho dessa família, um funcionário do governo, de quem Grace
Bell estava noiva. Ele lhe traria outro vestido, quando voltasse da
conferência em Ottawa. Depois disso se casariam.
Um cachorro, semelhante a um crisântemo anelado, ficou no
paraíso quando a viu aproximar-se.
— Grasper! Grasper!
O cão dava saltos, emudecido. Alguém tocava uma sineta. Grace
abria uma porta. E as luzes acenderam-se sozinhas, como em um
palco.
2
Percebia-se que as duas irmãs haviam passado por alguma
experiência inequívoca que, embora sem interesse para os demais,
formara um elo indissolúvel entre ambas. Era a gravidade com que
se portavam, comiam, falavam e, poder-se-ia dizer, até mesmo riam.
Era algo que intercambiavam, sem uma olhar para a outra, mas
formando uma dupla. Eram os olhos descansando em alguém, na
parede ou na mesa, sopesando a situação, a certa distância dos fatos
e sentimentos: seus olhos, com a mesma tonalidade escura, se não a
mesma distinção.
Por terem feições semelhantes, era notável o contraste na coloração.
Não por uma ser clara e a outra morena, mas porque a que se
chamava Caro possuía uma cabeleira negra, lisa, basta e de textura
grossa como a de uma oriental. Por tal motivo, Grace parecia mais
clara do que era — sendo considerada mais leve e suave, contra a
força de Caro. As pessoas exageravam a alvura, para simplificar as
coisas: a loura e a morena.
Usando um cardigã que talvez houvesse sido azul, Caro despejava
água de um jarro. Era possível adivinhar-se sua beleza futura, que
certamente se confirmaria. Na aparência, estava ainda inacabada,
faltava-lhe alguma revelação, que poderia ser, simplesmente, sua
própria conscientização. O contrário de Grace, já completada, se não
completa. Grace sorria, lidando com a carne em conserva e as
batatas, inocentemente ensaiando para uma época em que a carne e
as verduras seriam de fato suas. Ted Tice notou então que ela usava
um anel de diamantes na mão esquerda. Entretanto, tinha sido leal a
Caro, antes de perceber aquele detalhe.
Necessariamente, Caro não pertencia àquele lugar: com o tempo, ela
decidiria a que mesa pertencer. Era ainda jovem para compreender
a necessidade disso. Sua outra descoberta
importante também não era original: que a verdade tem vida
própria. Talvez fosse em tais direções que suas energias houvessem
fluído, deixando que a aparência seguisse como pudesse.
O que lera sem dúvida a deixara impaciente com a discrepância
principal — entre o homem como poderia ser e como era. Ela
imporia sua própria crença rude — de que poderia haver heroísmo,
qualidade — a si mesma e aos outros, até que eles ou ela
capitulassem. Poderiam surgir exceções, raras e implausíveis,
sugerindo que estivesse certa. Àquelas exceções, Caro daria toda a
sua devoção. Aparentemente, era para elas que reservava sua
humildade.
Parte disso podia ser lido em sua aparência. Ainda não tendo
começado a agir, ela permitia uma teoria. Ao mesmo tempo,
mostrava os lábios entreabertos, ternos, impressionáveis, como
poderiam ter estado no sono.
Eles ainda não se tinham falado à mesa, as moças e o rapaz. Com
impenetrável simplicidade, ele ouvia o velho astrônomo à cabeceira,
o eminente cientista. Sua eminência: um penhasco protuberante, no
qual haviam sido acuradamente colocados colarinho, gravata e
óculos. Juntos, o jovem e o velho preparavam-se para ler o
horóscopo do mundo. Concentrado em ouvir, como o único
adequado a fazê-lo, Ted Tice ainda conseguiu rapidamente saber
que as duas moças eram da Austrália, que Caro estava ali à espera
de um emprego público em Londres e que o filho que participava
de uma conferência em Ottawa chamava-se Christian.
Apesar da angina, o pai tinha gestos rápidos e definitivos — erguia
seu copo de água com uma espécie de eficiência e o depositava na
mesa com uma ligeira batida. Apertava rapidamente um
guardanapo à boca esculpida, para não perder tempo. Snap-snap,
snap-snap-snap. Ele poderia estar à frente de uma mesa de trabalho,
não à de refeições. Falava com ríspida velocidade, também, e já
havia alcançado o fim do mundo.
— Sua geração será a única a senti-lo. Até agora, houve
determinada forma de estrutura social. Diga você o que quiser a
respeito disso. Agora, estamos chegando ao fim de tudo. Vocês é
que agüentarão as conseqüências.
Com rápida satisfação, chamou a atenção de Ted e das moças para a
quase culpável má sorte deles. Da mesma forma que diriam a
recém-chegados a um balneário chuvoso: "Tivemos um tempo
excelente até hoje".
—
Tem havido uma ordem global de certa espécie. Digam o que
quiserem.
Aquilo, evidentemente, era algo que eles não podiam fazer.
Quando Sefton Thrale pronunciava a palavra "global", podia-se
sentir a terra redonda como uma bola macia ou branca e delicada
como um ovo. Era forçosa a recordação dos saudáveis e
desagradáveis veios e afloramentos deste mundo. Pensava-se nos
Alpes, no oceano ou em um vulcão ativo, para acalmar o espírito.
O professor Thrale não dava muita importância ao fato de Grace ter
vindo da Austrália. A Austrália requeria desculpas e era quase um
tema para irreverências. A Austrália só seria abrandada por uma
ousada fortuna, oriunda de suas fontes recentemente forjadas —
ovelhas, digamos, ou desinfetantes para ovelhas. E não havia
nenhuma fabulosa propriedade com muitos milhares de acres ou
milhas quadradas, nenhum bem-sucedido desinfetante, unidos ao
nome de Grace. Pelo contrário, ela chegara sobrecarregada por uma
irmã; havia, inclusive, uma meia irmã, por sorte ausente, passando
férias em Gibraltar. Sefton Thrale explicaria: "Christian ficou noivo"
— dando a entender uma ingênua tolice cometida — "de uma moça
australiana". E com enfática boa vontade, talvez acrescentasse que
Grace era uma excelente jovem e que ele próprio estava feliz,
"realmente".
A tempestade fizera uma pausa para descanso. À luz do dia, o rosto
de Ted parecia manchado e descamado, despretensioso como o
rosto refletido no espelho salitrado de um quiosque de balneário, no
verão. Sua testa era dividida por um sulco ligeiramente vertical.
Sofrera um ferimento no olho — um irmão fizera aquilo quando
eram crianças e brincavam com uma estaca no quintal: uma linha
leve, como a arranhadura de uma unha na tinta fresca.
— Mostarda, sr. Tice?
O professor Thrale refletia que, na época, estava francamente em
voga ser um rapaz pobre, oriundo de uma cidadezinha fuliginosa,
um jovem inteligente que conseguia ir — a frase, desta feita,
implicava esperteza — para uma grande universidade e lá causar
impressão. Tais pessoas progrediam rapidamente, não tendo nada a
perder; como no caso presente, podiam muito bem escolher os
novos aspectos da astronomia, desenvolvidos através das técnicas
de radar da última guerra. Sentindo uma pontada, semelhante às de
sua moléstia, Sefton Thrale recordou um jornal onde a precoce
realização de Ted Tice havia sido apresentada, contra todas as
probabilidades; ali, a obstinação não era desaprovada por
empreendimentos aberrantes — estudos de radiação no Japão do
pós-guerra e a intenção de passar o próximo inverno em Paris,
trabalhando com um controvertido físico.
Sefton Thrale disse para si mesmo que Ted Tice ainda iria parar na
América: "É lá que ele irá parar" — a ambição do rapaz visualizada
como um grande molinete, no qual as aptidões podiam ser
enroladas, destra e proveitosamente.
— As verduras são da nossa horta — disse a sra. Thrale.
Por sobre o aipo guisado, Sefton Thrale permitiu-se uma certa
aversão pelas roupas, cachos e sotaque de Ted Tice, bem como pela
falha em seu olho. Como acontecia com a beleza de Caro, a futura
ascendência de Tice não podia ser considerada garantida: era
necessário algum indício quanto a ele vencer ou fracassar — sendo
ambas as possibilidades manifestamente acentuadas nele. Mesmo
que ele terminasse se saindo bem em tudo, era difícil imaginá-lo
adequadamente ilustre na velhice, como o próprio professor. Era
difícil prever que alguém que tinha um nome como Tice chegasse a
ganhar importância ou que um olho marcado pudesse significar
uma distinção.
Em verdade, Edmund Tice se suicidaria, antes de atingir o ápice de
suas realizações. Isso, no entanto, só aconteceria em uma cidade do
norte e ainda faltavam muitos anos.
O trabalho importante e pessoal de Sefton Thrale havia sido
cumprido na juventude, antes da Grande Guerra. Mais tarde, ele se
tornara uma figura pública, ao escrever um pequeno e lúcido livro
que preenchia ou pretendia preencher uma falha ou lacuna.
Enquanto discorria sobre o futuro, ele permanecia ereto, com o pé
imobilizado no guarda-fogo da lareira e a mão no bolso. Havia feito
isto por tanto tempo e tão publicamente, que era reconhecido à
primeira vista, por pessoas de todos os tipos, nos jornais
domingueiros — "Ainda forte, eh, não se pode negar!" O velhote
pesadão, vestindo um paletó de risca de giz. O paletó — puxado
para baixo de um lado, pela mão enfiada no bolso, segurando um
presumível cachimbo —'- dava o efeito de uma casa de ripas de
madeira inclinada.
Sefton Thrale usava uma linguagem antiquada: "A Lombard Street
por uma laranja doce", "Dar volta à China para chegar a Charing
Cross", "A Velha Senhora" — exatamente — "da Threadneedle
Street". Eram frases fora da moda já antes de sua época, mas que ele
cultivava e continuava utilizando embora estivessem em desuso.
Ainda falava da Turquia como "o doente da Europa", embora todo o
continente fosse uma verdadeira enfermaria de baixas, há muito
tempo. Suas simpatias ficavam com as distâncias manobráveis do
passado, de preferência ao alcance extravagante do futuro.
0 futuro havia sido algo sobre o que falar, com um pé bem em
segurança no guarda-fogo da lareira.
Para os jovens, era fácil farejar e condenar isso. Menos fácil era
condoer-se do que havia nisso de humano, quanto mais de
lamentável.
No geral, era permitido ao professor Thrale arengar, como agora,
em rápidas orações que não supunham nenhuma discordância. No
entanto, se desafiado, ele perdia a segura pressão no cachimbo e no
futuro. Então se elevava dele uma nuvem de confusa indignação,
como a poeira de um livro velho cujas capas são batidas uma contra
a outra ao ser limpo. Em assuntos particulares, ele não havia sido
tão inteligente e dissipara a fortuna da esposa, além do próprio potencial, em ingênuos investimentos. O grau de cavaleiro, agora bemvindo, fora muito adiado. Entretanto, seu nome era conhecido e
pesava nos negócios públicos e políticos, como no caso da
localização de um telescópio.
Ted Tice aceitou a mostarda. Acontece que estivera de folga nas
duas semanas anteriores, caminhando pelo West Country. 1
1 Parte da Inglaterra a oeste da ilha de Wight, estendendo-se desta à foz do rio Severn.
(N. da T.)
Além do mais, ele tinha interesse em monumentos pré-históricos e
passara o solstício em uma escavação perto de Avebury Circle. Não
era difícil imaginar pedras grandiosas como companheiros seus.
A sra. Thrale comentou que, em Peverel, por vezes recebiam
vibrações da base de mísseis, perto de Stonehenge. Embora
lançados consideravelmente distante do monumento, os foguetes
sempre constituíam certo perigo local. Uma janela se estilhaçara em
um quarto para hóspedes, certa vez, felizmente não machucando
ninguém.
— Ah, sim! — disse Sefton Thrale. — No entanto, Paul Ivory é uma
pessoa de sorte.
Tirava o hóspede desconhecido de baixo dos cacos de vidro e o
elogiava, a fim de excluir Ted Tice; e, com tal necessidade de
impressionar, oferecia a vantagem a Tice.
—Por falar nisso, alguma notícia de Paul? Alguma notícia dele?
Ted Tice já percebera que os homens sempre esperavam que ele
desse uma opinião favorável. E que, se falhava nisso, eles poderiam
mostrar-se condescendentes.
Amenizando o leve delito do professor, as três mulheres
testemunharam prontamente uma ausência de notícias. E Ted Tice
compreendeu que a indulgência das mulheres tinha sido
indispensável à fama de Sefton Thrale. Como era esperado, a sra.
Thrale fez saber que Paul Ivory era seu afilhado e que logo chegaria
para ficar. Ted talvez tivesse ouvido falar nas peças de Paul Ivory,
em produções universitárias; não, não ouvira. Bem, de qualquer
modo, ele era um jovem promissor, que em breve teria um trabalho
seu representado em palcos londrinos.
— Paul possui todas as qualidades — disse Sefton Thrale, e poderia
estar fazendo alguma comparação.
— Ele é aparentado com o poeta?
— Em realidade, o filho.
Ted Tice dificilmente saberia da sutil perturbação gerada por sua
pergunta — sendo o amor aos poetas georgianos o remanescente do
melhor eu de Sefton Thrale, que, por seu turno, se originava num
período anterior, como seu melhor trabalho. Ele os apresentaria,
aqueles esquecidos e menosprezados poetas de sua juventude,
através de um leal calculismo — a pungente citação, o entrevistador
perguntando: "Muito bem, quem disse isso?", e a réplica de Thrale:
"Um maravilhoso poeta, que faleceu na época em que você nascia,
meu jovem" (o professor mostrando sua benignidade e a experiência
em todos os truques em público); depois a identificação — Bridges,
Drinkwater, Shanks ou Humbert Wolfe; Thomas Sturge Moore, até
mesmo Rupert Brooke, nos dias em que se encolerizava. Ou Rex
Ivory.
— Rex Ivory não foi um grande poeta — comentou a sra. Thrale —,
mas foi um poeta verdadeiro. — Ela achava falsa a idéia de que os
cientistas não tinham gosto para a literatura: — Conheci muitos
exemplos que provam o contrário.
Ted sorriu.
— Pensei que nos fosse permitido sermos musicais. Por um
momento, os olhos de Caroline Bell foram tão
gentis como os de sua irmã.
— Costuma-se dizer, também, que eles são taciturnos.
—Talvez me expresse com menos clareza, quando ficar mais velho.
Charmian Thrale apontou para uma fotografia acima do aparador.
Três rapazes em um jardim, dois sentados em poltronas de vime e
um de pé, com as mãos erguidas e afastadas. A figura ereta, de
camisa aberta e calças brancas, declamava para os outros, estes
convencionalmente vestidos em suas roupas de 1913. As cabeças de
cabelos claros eram elmos, eram coroas ou halos. Um nimbo maior
contornava o jardim, onde árvores se conglomeravam acima de
esporei-ras, com o gramado metodicamente raiado por ondulações.
Parecia ser quase crepúsculo. E os mágicos jovens sobre a relva
estavam condenados pela guerra iminente, inclusive os
sobreviventes.
—Como um entardecer em um mundo inocente — disse Charmian
Thrale.
O remanescente do Sefton Thrale sentado naquela fotografia
inocente teria gostado de fazer amizade com Edmund Tice, por
causa de sua improvável pergunta. As mulheres sabiam disso,
novamente, e suspiraram em pensamento, ante a breve resposta do
velho: "Em realidade, o filho".
O professor passou a elaborar sua preferência, alinhando
habilidosamente garfo e faca.
—Paul Ivory já conquistou um certo lugar na literatura. E está
subindo tão depressa, que não se pode prever até onde chegará.
Ted Tice sorriu, de maneira alguma indefeso.
— Como o princípio de indeterminação de Heisenberg. É
impossível medir-se velocidade e posição simultaneamente.
Caroline Bell parecia poder dar risadinhas sufocadas, como as
outras jovens.
— E está quase noivo — o professor estava decidido a prevalecer —
da filha de nosso vizinho, o do castelo.
Ted perguntou-se o que poderia significar "quase noivo" e viu Caro
sorrir, com o mesmíssimo pensamento. Qualquer que fosse a
heresia existente naquela casa, provinha dos subalternos de
categoria.
Ele recordou o castelo, com suas paredes cinzentas desencorajando
os próprios liquens.
Lendo seus pensamentos, o professor disse:
—
Hoje em dia, para casar com a filha de um lorde, um homem
tem que ser corajoso. Com todos vocês, radicais, andando por aí.
Aquilo era dirigido a Ted e Caro, uma vez que as maneiras
tranqüilas de Grace, empilhando os pratos, a isentavam. No
entanto, foi ela quem ergueu os olhos e disse:
— Talvez ele a ame.
— Absolutamente correto. Os jovens deveriam seguir suas
tendências. Por que não? A própria Caro, aqui, se casaria com um
mecânico, se tivesse tendência para tanto.
Todos olharam para Caro. Ela respondeu:
— Não sinto tendências mecânicas.
Sefton Thrale sempre se sentia pior quando havia hilaridade.
— É verdade — acrescentou a moça. — Além de uma perfeita
ignorante em mecânica, não tenho a menor afinidade com o
assunto. Nem com a ciência.
— Pois deve sua existência à astronomia, minha jovem. Meu jovem,
minha jovem: eles, contudo, não podiam
dizer meu velho, minha velha. O professor se preparava para
explicar, quando Caro perguntou:
— Está se referindo ao trânsito de Vénus?
Não era a primeira vez que ela estragava as coisas. O professor
continuou, como se ela não as houvesse estragado e não tivesse
falado:
— Por que James Cook se fez à vela no H. M. S. En-deavour, rumo à
Austrália não descoberta, senão a fim de observar o planeta Vénus
no Taiti, durante a rota, quando este cruzou a face do Sol a 3 de
junho de 1769, e então determinar a distância da Terra ao Sol?
Estava ensinando uma lição a eles. Novamente, olharam todos para
Caro, designada como uma filha de Vénus.
— Os cálculos estavam irremediavelmente incorretos — disse Tice.
Virou-se para a moça: — Em geral, é o que acontece com os cálculos
sobre Vénus.
Sefton Thrale declarou:
— Houve distorções no disco de Vénus. Um fenômeno de
irradiação no trânsito. — Era como se ele defendesse sua própria
expedição, sua própria experiência. — Damos a isso o nome de black
drop1.
1
Fenômeno que pode ser observado durante um trânsito de Vénus. O planeta parece
arrastar uma faixa negra, ao se deslocar pela frente do Sol. Essa faixa desaparece quando
Vénus já está bem no disco do Sol. Isso impede uma precisão de cálculo. (N. da T.)
A moça admirou-se.
— Tantos anos de preparativos! E então, de uma hora para outra,
tudo acabado. . .
O rapaz explicou que havia estágios. Disse:
— Existem os contatos e a culminação. Ambos
enrubesceram pelo universo.
— Está falando de eclipse — disse o professor Thrale. — Vénus não
pode tapar o Sol.
Sacudiu migalhas de seu punho. Na presença das duas virgens, não
se podia relatar como, no Taiti, naquele ardente dia de junho de
1769, Vénus havia se ocupado de outros assuntos. Enquanto seus
oficiais se concentravam nos telescópios com James Short, a
tripulação do Endeavour invadiu as lojas de Forte Vénus para roubar
uma grande quantidade de pregos de ferro — com os quais
compraram os transitórios favores das taitianas e a infecção
permanente de uma doença venérea que nenhum dos castigos
subseqüentes conseguiu curar.
Ted Tice disse:
— Outro astrônomo cruzou o mundo para ver aquele mesmo
trânsito e fracassou. — O tom privado com que os homens falam,
com naturalidade, sobre o que os impulsiona. Tice podia não
ensinar uma lição, mas pagaria tributo. — Um francês viajou para a
índia, anos antes, a fim de observar um trânsito anterior, mas
guerras e imprevistos o atrasaram em seu trajeto. E já que perdera
aquela oportunidade inédita, aguardou oito anos no Oriente, à
espera do próximo trânsito, o de 1769. Chegado o dia, a visibilidade
era tão reduzida, que nada pôde ser visto. Não haveria outro trânsito em um século.
Ele contava isso a, e para, Caroline Bell. Naquele momento, ambos
poderiam ter sido os mais velhos à mesa, elegíacos. Ela comentou:
— Anos por Vénus!
— A história dele contém tanta nobreza, que dificilmente se poderia
considerá-la uma derrota.
Ted Tice estava homenageando a confiança, não o fracasso. O
professor Thrale já estava farto disso.
— E o pobre-diabo retornou à França, segundo me consta, e
descobriu que fora declarado morto durante sua ausência e que seus
bens haviam sido distribuídos.
Se aquilo não era um fracasso, nada mais o seria.
— Como se chamava ele? — perguntou a moça a Ted Tice.
— Legentil. Guillaume Legentil.
A sra. Thrale tinha feito creme de leite e ovos. Uma criada irlandesa,
em colorida vestimenta, trouxe os pratos em uma bandeja. A sra.
Thrale fora criada acreditando, sob pena de perder a dignidade, que
suas costas jamais deviam tocar a cadeira: jamais, jamais. Isso lhe
emprestava um ar de pertinácia, dando ainda a impressão de que
encarava os outros além do que seria natural. Fora ela quem
pensara no balneário, em relação à qualidade de Ted Tice — o
espelho salitrado pendurado entre as etiquetas para
espreguiçadeiras e as chaves dos vestiários, tudo vibrando com uma
cálida cobertura de pés cheios de areia. Por outro lado, havia as
noites, dele, passadas entre pedras primitivas.
O próprio ego introvertido de Charmian Thrale, agora inteiramente
isento de ânsias, acalentava apenas alguns segredos puros — certa
vez retirara de uma panela fervente uma batata que apresentava um
broto nascendo. Também voltara atrás, quando a caminho para uma
imperiosa entrevista, a fim de ler uma linha de Meredith. Escolhera
não ter muitos pensamentos que seu marido pudesse adivinhar, temendo vir a desprezá-lo. Ouvir havia sido um grande hábito em
sua vida: ela ouvia atentamente, e como as pessoas estão
acostumadas a ser apenas meio ouvidas, sua atenção as perturbava,
deixava-as perceber a impropriedade do que diziam. Dessa forma,
Charmian tinha um efeito calmante sobre os que a cercavam,
abrandando com suavidade o fluxo mundano da fala impensada.
Embora oferecesse poucas opiniões, seus pontos de vista eram
considerados, ao contrário das pessoas que, constantemente
opinando, nada guardam de reserva.
Os pescoços curvados das moças ficaram intoleravelmente expostos
enquanto elas comiam colheradas do doce, quase se podendo sentirlhe o eixo. A empertigada sra. Thrale nunca se dobrava daquela
maneira, pelo menos não o fazia naquele momento. O rapaz e as
moças trocaram comentários sobre a estação atrasada — "o verão
passado", como se ele já estivesse morto. Eram como viajantes
manejando uma língua estranha, falando em infinitivos. Tudo tinha
o desafio e a promessa de significado. Mais tarde, haveria mais e
mais recordações, menos e menos dignas de serem recordadas. Mais
tarde, seria necessário que uma bomba explodisse, a fim de deixar
espaço mental para uma cena como a presente.
A experiência acumulava-se em torno do aposento, um vagalhão
prestes a arrebentar.
Enquanto as moças retiravam os pratos da mesa, o professor levou
o rapaz até a janela.
— Deixe-me mostrar-lhe uma coisa — disse. Sua mão seca e
decidida esfregou a janela, mas apenas para aumentar o borrão na
vidraça embaçada, e ele se voltou, taciturno: — Bem, não se pode
ver agora.
Não explicou que nova lição seria ensinada naquele quadro-negro.
Ted Tice sabia que era a estrada por onde tinha vindo.
3
No ano anterior, quando estava na casa dos vinte, Christian Thrale
tivera uma inesperada noite de folga, em seu trabalho de fim de
semana, em uma repartição do governo. Em retrospecto, aquela
parecia ter sido uma noite livre também de si mesmo. Não era
comum ele ir sozinho a um concerto ou algo mais de natureza
cultural. Por conta própria, o indivíduo fica à mercê de suas reações.
Se acompanhado, no entanto, ele permanece controlado, emite conceitos peremptórios e impõe exigências hipotéticas. Pode também
dar uma opinião pessoal, raramente de todo favorável, na volta
para casa.
No tocante a divertir-se, ele desconfiava de tudo o que aliviasse
seus sentimentos.
Naquela noite em particular, além disso, estava fácil demais assistir
ao concerto. De qualquer modo, passando sob a chuva ligeira, ele
viu os cartazes e reservou uma cadeira na coxia.
Mal ocupara o seu lugar, precisou levantar-se de novo, a fim de dar
passagem a duas mulheres para a mesma fila. Recolheu o
impermeável dobrado, o chapéu e o guarda-chuva úmido que havia
deixado no assento vazio ao lado. A mulher mais nova, tendo
entrado depois da mais velha, ocupou aquela vaga. Ele percebera
sua boa aparência imediatamente, assim que ela o fitou, dizendo:
"Com licença". Entretanto, ao terminar a movimentação dos casacos
que eram despidos e a retirada de luvas recalcitrantes, Christian
perdeu o interesse.
A coisa seguinte que lhe chamou a atenção foi a outra mulher.
A mulher mais velha era miúda, morena e usava uma pequena
circunferência de feltro na cabeça, marginada de fita azul-marinho.
Em torno de seus ombros enrolava-se uma espécie de trouxa de
pequenas peles ásperas — a boca de uma das peles, em forma de
pegador e com dentes afilados, prendia uma pata da outra. Havia
em seu colo uma bolsa de mão abarrotada, que ela enxugava com
um papel roçagante. Pelos modos das duas, juntas, era evidente que
a mais velha estava associada à mais nova, de algum modo.
Mesmo por suposição, mentalmente, era difícil resumir o
relacionamento entre a jovem e a mulher. Até que, quando os
músicos começaram a aparecer e mais recém-chegados foram
enchendo as filas de assentos, a frase acudiu a ele: ela está em seu
poder.
A mulher mais velha fora induzida a sair, no desespero de um
domingo interminável. Que ela nada esperava da música, era
aparente pela maneira como se virava, para um e outro lado,
expressando sua atitude discordante. — Como as pessoas se
entulham de roupas! É o que lhe digo, basta dar uma espiada
naquela ali. — Eles bem que já podiam ter endireitado um pouco
este lugar. Não acha? Pretendem usar a guerra, para sempre, como
desculpa. — A jovem permanecia acomodada em seu lugar, uma
evasão que não lhe era permitido levar a cabo.
— Eu diria que você não está muito animadora. Primeiro, diz que
estou deprimida; depois, não tem uma só palavra para dizer!
Tendo descoberto que a associação entre ambas era fundada no
medo, ele ainda se perguntava se as duas seriam primas, talvez, ou
tia e sobrinha. Quando a mulher menor se voltou para o seu lado, a
curvatura alta e ampla de suas faces brilhantes recordou a da jovem.
— Não sopra a menor brisa por aqui. — Ela bateu com as peles
sobre o peito e o focinho saliente da raposa subiu e desceu. — É
assim que a gente pega coisas. Lembre-me de fazer um gargarejo,
quando voltarmos para casa.
As luzes baixaram. Durante a primeira parte do concerto, Christian
percebia a mulher fremindo em seu lugar, como uma ebulição em
fogo baixo. A jovem entre eles permanecia impassível, com as mãos
levemente entrelaçadas, os joelhos esguios unidos por sob a saia
escura. No intervalo, a mulherzinha murmurou algo para a jovem,
levantou-se e foi ao toalete das senhoras.
Ela mal havia saído da fila, quando Christian falou. Jamais fizera
algo semelhante na vida, mas sabia que não havia tempo a perder.
Comentaram qualquer disparate sobre Sibelius e, quando a dama
de companhia retornou, ele já escrevera um número de telefone e
sugerira sábado. Tudo isso embora lhe pudesse parecer
extraordinário, agora assumia um aspecto inevitável e inteiramente
correto.
Ele levantou-se e Grace disse:
_ Dora, este é o sr. Thrale.
Ele viu o rosto de Dora dardejar ao perceber que os dois tinham se
antecipado a ela, e com um impulso de estragar as coisas. Dora viu
um homem de cabelos cor de areia, bastante alto, que, facilmente,
poderia transformar-se' em desafio. Christian havia descoberto que
as duas eram meias irmãs e provinham da Austrália. Quando o
concerto terminou, colocou-as em um táxi.
Durante aquela semana, ele não disse para si mesmo: Eu devo terme mostrado atoleimado, ainda que'atoleimado fosse uma de suas
palavras. Christian sabia que algo fora do comum havia se iniciado.
No entanto, gostaria de saber se aquilo sobreviveria a uma reunião
com Grace, cuja atração poderia perfeitamente diminuir, quando no
endereço de uma residência alugada. Então, talvez ele enfrentasse o
processo de cair em si. Para se fazer justiça, Christian Thrale mais
temia do que esperava por isso.
No sábado, dirigiu-se à W 11 de táxi, para descobrir a verdade. A
escada estava pintada de fresco e tinha um tapete escarlate. Havia
um jarro de vidro com flores amarelas, em um patamar.
Era algo que não lhe ocorrera: ele mesmo podia tê-las trazido.
Ao subir, Christian sentiu-se envergonhado por uma sensação de
aventura que delineava a reduzida escala de suas aventuras. Após o
impetuoso início, ele as desorientaria, tornando-se sensato e
cauteloso. Em um espelho de moldura dourada, perto da porta,
surpreendeu-se consigo mesmo, ao ver-se ainda jovem.
A beleza de Grace era uma justificativa. Christian confiara nisso e
não se viu logrado. Ela estava calma, como antes, e sorriu. Havia
novamente as flores douradas em uma mesa. Ele se sentou em um
canapé que parecia fazer parte do mobiliário alugado. Não houvera
qualquer dificuldade para encontrar o endereço, e ele conhecia bem
a área, realmente, porque certa vez já tivera um dentista nas
proximidades. Uma chaleira sibilando em uma khchenette foi rapidamente amortecida por, deduziu ele, Dora.
Caro trouxe a bandeja. Minha irmã. Foi arranjado espaço para
xícaras e pires. Christian tornou a sentar-se, tendo
Caro do lado oposto, e Grace inclinou-se entre eles: É daquele bem
forte, da Fortnum's. Com uma faca de prata, ela cortou um
quadrante de bolo. Uma pequena ruga de concentração entre seus
olhos mais parecia o supercílio entalhado de um gatinho. No sofá,
Christian era um homem à margem de um rio, não só olhando para
a outra margem, como cônscio de uma corrente na qual devia
mergulhar. Viu Grace, brilhando e murmurante, sobre pedras da
tarde. Ela se reclinou a meu lado, junto às águas tranqüilas.
Do lado oposto, as águas tranqüilas de Caro eram profundas.
Infelizmente, Dora tinha que ir até a Wigmore Street para apanhar
seus óculos novos. Graças a Deus. Era claro que a saída de Dora,
quando das oportunidades das jovens, podia carecer de
necessidade, porém nunca de tato. Como na sala do concerto,
evidentemente precisavam aproveitar o máximo de tempo, antes
que ela retornasse. A situação tinha que ser conduzida a um grau de
onde Dora não pudesse revertê-la. Aliviado pela ausência dela,
Christian ficou à vontade, tomou uma segunda xícara de chá e
sentiu-se satisfeito. Na insipidez mobiliada, o ar frio penetrou por
uma janela, e sentia-se o odor de sais de banho ou colônia.
Contra a luz, a cabeça e ombros de Caro eram notáveis. Por uma ou
duas vezes ele a fez rir. Entretanto, ao abaixar-se para os biscoitos,
sentiu nele os olhos dela, como se, por exemplo, Caro adivinhasse a
sensação de aventura na escada.
Christian achou aquelas mulheres singularmente seguras de si, em
vista de sua situação. Mal pareciam conscientes de serem
australianas em um apartamento de aluguel mobiliado. Ele gostaria
que elas se mostrassem um pouco mais impressionadas por sua
vinda, mas, em vez disso, viu-se conformado ao que poderiam ser
seus padrões e esperando que as moças não percebessem o esforço
efetuado. A rapidez retornou a ele, como um negligenciado talento
requerido em uma emergência: como se subisse a um palanque em
trepidação e pigarreasse, limpando a garganta para cantar.
A sala em si não parecia intimidar-se diante dele — não devido a
alguma desordem, mas à sua própria naturalidade. Uma sala onde
houvesse expectativa transmitiria o fato — por uma tensão de
almofadas volumosas e revistas colocadas, uma ausência de objetos
inconvenientes embolados e fora de vista; pelo suspense definhando
lentamente nas cortinas. Aquela sala estava absolutamente isenta de
tal ansiedade. No estofamento, a penugem de costume permanecia
impassível. Ali, nenhum tributo de preparativos lhe fora prestado,
excetuando-se talvez as flores, que eram frescas e que ele próprio
deveria ter trazido, se houvesse pensado nisso.
Era uma sala de qualidade, que Grace disse já ter conhecido dias
melhores.
____ Não posso imaginar um dia melhor do que este —
disse Christian.
Uns poucos objetos e os livros, evidentemente delas. Havia uma
cabeça de mulher deformada pintada em madeira.
— Caro a trouxe de Sevilha.
— É um anjo.
Caro passara três meses na Espanha, para treinar o idioma. Com tal
finalidade, conseguira um emprego de babá com uma família
inglesa que, depois, a levara à França e Itália. Agora trabalhava —
servia, como afirmou — em uma livraria, enquanto estudava para o
concurso a fim de ingressar no serviço público.
Ainda pior acontecia a Grace, empregada no Departamento de
Reclamações da Harrods.
Não poderia haver saída para tais atividades senão no casamento.
Ele estava a par do concurso de Caro e sabia que ela jamais seria
aprovada. Só recentemente fora aberto às mulheres, e Christian
nunca ouvira dizer que alguma tivesse passado nos exames.
— É rígido — falou.
Aquilo nem mesmo oferecia perspectivas, começava-se no nível
mais baixo, era um meio de conseguirem elementos que falassem
idiomas e sem oportunidades de progresso na carreira.
— Uma exploração, se preferem — concluiu.
— Eu não prefiro — disse Caro, pegando um biscoito de creme. —
"Peek Frean's" — leu, antes de morder o letreiro ao meio.
— Devo limitar-me a dizer. . . — recomeçou ele, e parou.
Ignorava de onde lhe vinham tais expressões: "limitar-me , "absterme", "recuso-me a comentar sobre" — como se tivesse colocado a si
próprio em prisão domiciliar. Talvez tosse por causa de seu pai.
Perguntou com quem ela teria de tratar, onde deveria apresentar-se.
E assentiu, com a segurança de alguém que conhece, ante os
funcionários e departamentos das respostas dela — como um grego
assentiria sabiamente à menção de Hesíodo ou Píndaro, mesmo que
jamais houvesse lido uma linha deles.
A situação de Grace era ainda mais contundente, uma inatividade
temporária. O que ela poderia aprender em um Departamento de
Reclamações?
— Aprendi que uma resposta suave não elimina o ódio
— disse Grace Bell.
As duas começaram a rir, com os corpos ligeiramente inclinados um
para o outro, mesmo frente à mesa do chá.
— Londres é nossa conquista — disse Caro a ele. — Nossa carreira
para o futuro. — Era como se ela pudesse ler através da testa dele,
se esta fosse de vidro. — Termos chegado aqui é uma realização,
estarmos aqui é uma ocupação.
Como um animal, cujo esconderijo tivesse sido notado, ele se
desviou para uma nova cobertura.
— É muito sensato não fazerem planos a longo prazo.
Falariam sobre ele mais tarde, com Caro fazendo o julgamento.
Christian ignorava se Grace aderiria ou não ao veredicto. Caro
poderia mordê-lo pelo meio, como a um biscoito. Perguntou-se
como ela se mostraria ao lado de Dora, e por um momento sentiu a
curiosidade de ver as duas juntas. Ao se levantar, trazer água
quente ou fechar uma janela, Caro movia-se com importância, como
se a existência não fosse trivial.
Quando as duas eram pequeninas, seus pais haviam morrido
afogado, quando uma barca de transporte adernou. Pelo resto da
vida, Christian ouviria falar em "um acidente de barco", ao aludirem
àquilo.
— Quer dizer então — disse ele, procurando mostrar independência
sobre seus futuros — que pretendem tentar a vida aqui e voltar
para. . . onde mesmo. . . Sydney?
Caro riu.
— A vida não é assim.
Como se ela soubesse, e ele não.
O prato em que estavam os biscoitos era velho, lascado, italiano, e
tinha um letreiro rústico na borda. Caro o trouxera de Palermo.
— Posso?
Assim dizendo, Christian pegou o prato e leu em voz alta, girandoo para decifrar.
— "Chi d'invidia campa, disperato muore." Quem vive
— acertei? — na inveja morre no desespero.
Recolocou o prato na mesa. O anjo tinha sido gracioso; o prato
possuía arestas mais cortantes.
Christian estava muito feliz, mas dava tudo no mesmo. Ele, que
costumava recear ver-se em condições obscuras, em um
monocromo, no qual suas cores talvez não fossem fixas. Diante das
presentes circunstâncias — o aposento alugado com mobília, o
acontecimento brutal de Sydney, o balcão na Harrods e o concurso
já praticamente fracassado —, devia ser esse o caso, sem sombra de
dúvida. Entretanto, não era assim, de modo algum.
Aquelas mulheres forneciam-lhe algo novo — uma clara percepção,
não lastrada de suspeita. A distinção delas não se devia apenas à
beleza, à atitude de uma para com a outra, à sua gritante
necessidade de uma salvação à qual não faziam nenhum apelo, mas
sim a uma profunda candura, repleta de humor, a que — ele não
conseguia imaginar de outra maneira — elas desejavam sacrificarse.
Christian estava feliz. Grace fizera isso por ele. Ela fará você muito
feliz.
O grau de boa fé requerido dele importava um brando abandono,
mas Christian não queria estragar aquela tarde. Suas oportunidades
na vida pareciam fundir-se às cores dos vestidos das jovens, às
camadas de cortina nas janelas, a um anjo pintado. Até mesmo ao
abafador de chá de croché laranja, esfiapando devido ao uso, o que
dizia tudo sobre o senhorio. Viradas para ele, estavam as duas
figuras esguias na luz. Christian gostaria de ter pensado em
Sargent, porém temia algo mais disruptivo, como Vermeer.
Houve intervalos em que sentiu que ele é que precisava de salvação,
que Grace bem poderia fazer algo mais que apenas começar a andar
com ele e que Caro passaria no concurso, em primeiro lugar. No
entanto, era difícil manter a sanidade: a presunção tremeluzia como
febre.
Agora havia algo mais com os três naquela sala: algum evento ou,
pelo menos, um momento. Fosse o que fosse, o excitamento
implícito impunha calma e encanto. Passou rapidamente. Christian
compreendeu que Grace era o máximo que poderia conseguir; ela já
constituía um início, embora objeto da própria e inesperada escolha
dele. Caro situava-se acima de suas capacidades. Christian se sentia
como um ministro de gabinete, face a face com uma decisão capital.
Da beira do sofá, renunciou a quaisquer possibilidades em relação a
Caro. Havia entrega nisso, bem como um fluxo de emoção
propiciatória, dirigido a Grace.
E agora que Caro se revelava demais para ele, Christian quase a
detestou.
Grace falava sobre um cliente que voltara à loja com um canário
morto em uma caixa, querendo ser indenizado. Christian teria que
se explicar em breve. Um terceiro encontro seria uma espécie de
compromisso, atado a uma cadeia de novas circunstâncias.
— E ele o recebeu de volta, do Departamento de Taxidermia, com
uma conta de cinco guinéus!
Christian riu alto, aliviado. Podia ouvir o próprio riso, mostrandolhe o que era capaz de. fazer, quando surgia a oportunidade. Em
seu riso era como se já tomasse Grace nos braços.
Ela desceu a escada, a fim de levá-lo até a porta. Agora à vista, ao
longo da rua, Dora desempenhou sua costumeira função de
encaminhar os assuntos a uma pronta decisão. Ele convidou Grace
para jantar durante a semana e ela se comprometeu para a quartafeira. Repetiram hora e lugar, como votos, salvos para sempre dos
saltos aguçados de Dora na calçada.
Christian não sentia a menor vontade de ver Dora, mas esperou
para despedir-se, agindo assim em consideração a Grace. O cabelo
de Dora parecia preso em uma rede, sob uma boina, como palha
debaixo de arame. Ela deixou a chave cair e bateu com a cabeça na
de Christian, ao se abaixarem ambos para recolhê-la. Isso provocou
falsas e breves exclamações de exageradas desculpas. Christian
conhecia o tipo. Ela era uma daquelas pessoas que se encolhem com
a gente, na mesma divisão de uma porta giratória, a pretexto de
causar menos problemas.
Christian já a tinha esquecido quando chegou em casa. Anos se
passariam, antes que tornasse a considerá-la seriamente ou que ela
se tornasse objeto de outra inspeção em nível de gabinete. Muito
antes da quarta-feira, ele começou a ansiar por Grace, e, chegada a
noite, mostrou-se mais encantador com ela do que jamais o havia
sido com outra pessoa em toda a sua vida.
4
— Será que o perdemos?
Ted Tice observava a estrada rural, à procura do ônibus. Caroline
Bell espiava em torno, para as árvores à margem da estrada e os
jardins emaranhados, aos quais nenhum australiano daria valor. Era
difícil perceber-se os sinais da tempestade do mês anterior: por mais
que se olhasse, a terra insistia em que nada havia de errado. Tice
ficou desajeitado; naquele dia, sua personalidade pendia dele, como
roupas demasiado frouxas e grandes. Sua pergunta não a
despertou.
Pouco tinham a dizer, debaixo das árvores frondosas. Quando o
ônibus rolou pesadamente e embarcaram é que começaram a falar,
o diálogo iniciado de comum acordo com o antigo e barulhento
motor, com o estremecimento metálico da lataria lateral e o vozerio
alto dos passageiros. O ônibus os circunscrevia, como em uma
obrigação social. Talvez fosse a partida o que lhes afrouxara as
línguas, um lembrete, enquanto desciam pelo vale do rio Test.
Embora reclinada para trás, com o braço estendido para apoiar-se
no assento fronteiro, Caro não demonstrava nenhum desejo de
dominar a situação. Baixando os olhos, Ted Tice via seu perfil de
pálpebra e lábio, descia para o ombro e o seio azuis, para o braço nu
com a mão aferrada ao metal enferrujado do encosto de um banco.
Seu corpo tinha um contorno mais distinto quando ela estava
afastada da irmã.
Já se passara uma hora daquele dia em que ficaram juntos. Ted Tice
se alegrava a cada quilômetro adicional que, pelo menos, afinal,
teria que ser percorrido de volta. Cada casa de fazenda, vermelha e
visível, cada igreja ou curva brusca, funcionavam como uma
garantia do tempo passado com ela.
— Está pensando em como tudo isto é bucólico, não? — perguntou
ele.
Aludia ao floral verão inglês, mas podia ser compreendido de outro
modo. Em verdade, não era ousado o bastante para tocá-la, mas fez
um gesto em direção à cabeça dela.
— Em que está pensando?
Caro estivera olhando pela janela, e pousou nele o mesmo olhar de
curiosidade geral e paisagística. Para ela, aquele homem não
passava de uma presença de bisonha vivacidade, em um cardigã de
fios torcidos. O ônibus rural cambaleou subitamente sobre uma
estrada sem molejo. A moça refletiu que, nos romances, escreveriam
que ele e ela eram jogados um contra o outro, e isso era impossível.
Só podemos ser atirados um contra o outro se quisermos. Como
com o estupro, dizem os homens.
— Eu pensava que o verão fosse mais violento que bucólico.
Aquele era o seu segundo verão do tipo norte, uma abundância que
esmagava — como esmagadora era a certeza de que poderia ser
desmantelado e remontado infinitamente: a natureza num estado de
espírito impassível, prodigioso, absoluto.
— O verão australiano é tórrido, não sobra uma folha sequer. Lá, a
força está na falta, na escassez e na distância — acrescentou ela.
Recordando distâncias de imemorial desolação, perguntou-se se
estaria definindo a fragilidade. — Para cores assim, é preciso água.
Não obstante, mesmo com água, na Austrália o pigmento talvez
estivesse ausente. Era duvidoso que rosas ou azuis jazessem latentes
no solo australiano, quanto mais o pleno prestígio do verde.
Ela tornou a olhar pela janela, o rosto de frente como uma criança, e
pensou que ali os próprios campos pareciam feitos para o prazer.
No referente à multiplicação e subtração de estações, é claro que ela
soubera, perfeita e antecipadamente, como as folhas caem, na
Inglaterra outonal. No entanto, ainda estava despreparada para algo
tão extremo como o outono — em sua vermelha destruição, mais
como um ato do homem que de Deus.
Deixaram para trás uma abadia flutuando em uma ondulação de
árvores e passaram por uma cidade com fios elevados e pequenas,
desencorajadoras lojas.
— "Grandes esperanças" — disse Caro, que conseguia ler o cartaz
do prédio distante do cinema.
O ônibus parou, depois tornou a rodar pesadamente. A
regularidade das ruas suburbanas havia sido cortada por uma autoestrada: a nova via abria-se em leque através de uma elevação, as
casas espalhando-se como botões sobre um ventre volumoso. Em
um campo devastado, uma montanha-russa emborcada era presa da
ferrugem; um letreiro suspenso havia perdido o F inicial e, em
resultado, podia-se ler apenas UNFAIR 1. Um celeiro acocorado à
margem da estrada, como um caminhão ou cargueiro abandonado.
O ônibus mergulhou para diante. Ao seu rugido, um carro pequeno
recuou para dentro de uma sebe: um cão latira.
— Antes, na Inglaterra, nunca se estava distante do campo — disse
Ted. — Hoje, sempre se está perto de uma cidade.
Começara a ver com olhos de antípoda, por causa de Caro.
Depois passarei a viver em uma cidade para sempre. — Caroline
Bell logo começaria a trabalhar no emprego público. — Terei de
esperar, até ocupar o posto.
Ele pensou: "Ela já está começando a usar o jargão". Caro, no
entanto, acrescentou:
1
Em inglês, "Funfair" significa "parque de diversões". Sem o F inicial, o significado
passa a ser "falso", "injusto", "desonesto". (N. da T.)
— "Posto", "posto"! É como ser amarrada a um poste, uma estaca em
um campo. Como um patíbulo numa encruzilhada.
Sorriram da imagem enluarada da pendente Caro: Caro seria
enforcada por isso. O que quer que dissessem importava a ele. Ao
invés de formularem frases sobre cidades e escritórios, podiam ter
perguntado: "O que será de nós?", ou: "Você acredita em Deus?" A
jovem sentia a respiração de um homem em seu pescoço. Um rio
desfilou salgueiros ao lado dela; apareceu uma pálida espira,
certamente não mineral. O ônibus saltou e sacolejou, determinado a
desalojá-los do assento. Estamos sendo jogados um contra o outro.
Onde saltaram, portões de ferro forjado desdobraram-se para trás,
como páginas escritas. Guardando essa caligrafia, havia um homem
de cabelos brancos, sem um braço e com as fitas de antigas batalhas
ao peito.
— Chegaram bem a tempo. — Um aviso fornecia o horário de
visitação, como se a grande casa mais além fosse um paciente em
um hospital. O guarda acrescentou, às costas deles: — É melhor se
apressarem.
Eles riram e seguiram o conselho.
Caro prosseguiu com uma canção de Ted Tice e cantarolou "do sul,
do sul", em uma voz aguda, leve e não muito afinada, enquanto
erguia ambas as mãos para dar sombra aos olhos. Pelo menos por
um instante, aqueles dois foram apenas aquilo que aparentavam ao
mundo — jovens, esperançosos, e talvez prestes a se tornarem
namorados.
— É evidente que nunca vimos nada disto. — Era o casarão onde
Ted Tice já fora uma criança evacuada da blitz. — Nem mesmo
parece a mesma casa.
As resplandecentes cores interiores de seda, veludo e porcelana
podiam ter sido uma prerrogativa das classes dirigentes.
— Talvez tenhamos tomado o ônibus errado — disse Caro.
Eles riam e olhavam pelas janelas. Era uma casa toda de pedra. No
exterior, abaixo do amplo peitoril, havia uma massa de falso
alaranjado: eram arbustos de budléia, de cor púrpura e repletos de
abelhas; rosas, como seria de esperar, e ervilhas-de-cheiro. Os restos
podados das ornamentadas cercas vivas iam sendo recolhidos por
jardineiros — toda uma Inglaterra sendo aparada e atesourada,
mais e mais curta.
— O Rapto das sabinas significa algo para vocês?
A guia levantava uma vareta branca. Falava em um inglês furtivo,
embora ouvida pelo obediente grupo. Eles viram o quadro,
imensamente italiano, rodopiante de membros ultrajados, os lábios
vermelhos entreabertos no grito pintado. Caro e Ted riam, perto das
janelas. O Rapto das sabinas nada significava para eles.
Os excursionistas afastaram-se, arrastando os pés pelo chão. Havia
uma barreira de proteção, formada por cordões torcidos, e um
aviso: SOLICITA-SE AOS VISITANTES QUE TENHAM A BONDADE. As
emoções foram despertadas por uma cascata de decoração pintada,
despencando de imensa altura. Havia deuses, havia guirlandas
fantásticas, urnas e balaustradas, além de enorme quantidade de
ouro. Em semelhante aposento, era como se a casa estivesse dando
guarida a alguma outra nação, demasiado suntuosa, e nisso mal se
via deslealdade.
— Estas paredes foram protegidas por tábuas pregadas durante a
guerra. E são de Rubens.
Os visitantes ficaram atentos, agora vendo menos as pinturas e mais
a forração de madeira, interessante e engenhosa, que uma vez as
ocultara.
— O tema de batalha da parede oeste merece uma atenção especial,
considerando-se que o Segundo Front foi planejado nesta sala.
Sim, era verdade: os comandantes tinham estado ali, em traje de
batalha, e o mapa da França pendera, por seu turno,, sobre as telas
de enérgica roupagem e cintilante carnadura, protegidas pelas
tábuas. Em verdade, Marte cobrira Venus. Um calvo general
praticara tacadas de golfe no feltro do piso, enquanto um primeiroministro, para não ficar atrás, havia pintado um quadro.
Os excursionistas não haviam percebido. Tinham pensado que a
casa há muito ultrapassara sua fase séria. E queriam saber como a
mesa estivera colocada, além de informes sobre Montgomery.
— Sim, eles estiveram aqui. — A guia em cinza-claro abandonara
sua vareta sobre uma mesa e mostrava com as mãos, à maneira de
um artista: — Todos os arquitetos da invasão!
Como se também a guerra fosse algum solene edifício. Ela havia
tirado os óculos e, com uma pequena marca vermelha de cada lado
do nariz, era uma ave delicadamente assinalada. Sentia-se feliz em
ser agradável, através de sua importante informação — as tacadas
do general, a colocação da paleta do estadista. Ficava também
contente pela família, proprietária de tão grande bem.
Os excursionistas afastaram-se, ao longo de outro cordel de
proibição. Um aviso voltava a pedir ou solicitar delicadamente o
que eles deveriam fazer ou não; prosseguia, anunciando que a
biblioteca continha livros que iam a até três metros do teto (o qual,
em si, representava a história — pastel, côncava e não muito
decente — de Dejanira e Héracles). Bem mais adiante, o tapete era
desenhado em cores pálidas, com reflexos. Sobre mesas polidas,
havia fotografias nos ângulos, em molduras de prata e assinadas.
De vez em quando, podia-se ver o R maiúsculo, após o nome.
— Rainha Alexandra, princesa Pat.
A multidão pegava os retratos, sem dúvida já todos peritos naquilo.
As pessoas perambulavam entre cômodas e credencias, sem que
ninguém tivesse coragem para impedi-las. Os mortos e executados,
príncipes russos e prussianos, ao mais despertavam pena ou terror;
de seus destinos privilegiados, todos unidos à magnificência, faziam
parte as tiaras, diamantes e jarreteiras, os longos fios de pérolas. Um
homem num traje de lã espinha de peixe, disse:
—Esse é o hemofílico.
As cabeças se viraram vivamente, mas logo assentiam, ante o
padecimento do pequeno e malfadado czaréviche.
— Reparem no grupo incomum das gerações. E o duque de Kent,
pouco antes de ser morto por Cecil Beaton.
A apreciação não escasseou. Com grande sensatez, pediram a uma
mulher de vestido estampado para não tocar.
— Não há dúvida, é exatamente a mesma casa — disse Ted Tice.
Ao encontrarem a indicação SIGA, desceram a escada, juntos.
Do exterior, a casa parecia estar sendo esculpida. Não havia
armações, vigas, arquitraves ou andaimes de laboriosa construção
imaginária. A videira virgem estendia-se até as janelas que
flanqueavam a sala onde generais haviam mapeado a morte,
enquanto enorme glicínia estrangulava colunas, em um pórtico
silencioso. A casa se preparava para a moldagem, como para outra
fase de vida.
Ted Tice sentou-se no gramado com Caro. A jovem abraçou os
joelhos e disse:
— Os criadores de semelhante casa certamente deviam ser belos.
— Provavelmente, a casa foi o máximo que puderam fazer, em
termos de beleza.
O homem arruivado estendeu-se de costas na relva, com os braços
por baixo da cabeça, e recitou, em sua voz regional:
"Que eles,
Amargos e violentos homens, pudessem criar na pedra A suavidade
por que todos ansiavam noite e dia".
O vestido de Caro modelou uma rótula azul.
— Acha que, atualmente, alguém em algum lugar está ansiando
pela evidência ou criando-a?
— Se houver alguém, será melhor que fique nas sombras ou penará
no inferno. — No momento, a própria ânsia podia ser uma
admissão de fracasso. — Beleza é palavra proibida em nossa época
— disse Ted —, como o foi a palavra "sexo" para os vitorianos.
Entretanto, sem o mesmo poder de reafirmar-se.
Ele poderia estar ecoando Sefton Thrale: Vocês é que agüentarão as
conseqüências.
Ted Tice tornou a sentar-se no relvado, com Caro. Um silêncio pode
cair facilmente entre aqueles que não se consideram um assunto. De
qualquer modo, o ar estava impregnado dos sons bruscos e odores
verdes das podas e coletas. Em seu próprio benefício, a Inglaterra
estava sendo cortada até as raízes; é assim que se constrói o caráter.
Em camisas cinza, os jardineiros se movimentavam para estancar o
crescimento ou para mantê-lo nos limites. O verde caía, em todas as
formas, e era recolhido em cestas.
— Estão cortando a própria cor. — Caroline Bell inclinou-se para
diante e sorriu, ao ver justificada sua longa crença. — Conhecemos
o verde apenas pelos livros.
5
"O cinza inverno se foi, como um hóspede enfadonho,
E, vede, em compensação,
Setembro chega, com o vento do oeste,
E a primavera em suas roupagens."
Seria possível recitar-se esses versos na aula de declamação, mas
dificilmente na de poesia inglesa. Era como se o poeta houvesse
optado deliberadamente pelo partido derrotado, o da Austrália. Ele
segurara a urtiga, mas uma urtiga segura continua urtiga, e, por
outro lado, segurá-la é um ato antinatural. Naturais eram sebes
formadas por arbustos, pilriteiros, cotovias, o tentilhão no galho do
pomar. Nunca os vemos, mas acreditamos neles piamente. Como
acreditaríamos, também, nas úmidas, transitórias e corretas estações
da literatura inglesa e nos relvados de veludo esmeraldino ou nas
flores que só poderiam ser cultivadas na Austrália quando a
estiagem cede, e com adubo à flor do solo. A literatura,
simplesmente, não tornou essas coisas verdadeiras. Ela colocou a
Austrália em perpétua e flagrante violação da realidade.
Menininhas cantam, monótonas: "Venham a Kew, no tempo dos
lilases (não fica longe de Londres!)"
Envolvendo-se em uma jornada de dezesseis mil quilômetros.
Como castigo, poder-se-ia escrever cem vezes, depois das aulas:
Auto-reverência, autoconhecimento, autocontrole Somente estes
três levam a vida ao poder soberano.
As menininhas sugavam as pontas metálicas das canetas e alisavam
as tranças, preparando-se para o poder soberano.
História era a ilustração dobrável e colorida da coroação, que havia
sido pregada com tachinhas na parede da sala de aulas — a cena na
abadia, com os nomes impressos embaixo. O duque de Connaught,
o conde de Athlone, o esguio rei em arminho. Dora havia comprado
uma caneca da coroação, na Woolworth's: Que Reinem por Muito
Tempo. Aquilo era história, tudo na ponta da língua, com o Príncipe
Negro e a Guerra das Rosas. Certa noite de verão, Grace e Caro
haviam tido permissão de ficar acordadas até mais tarde, para
ouvirem o crepitar da abdicação, através das ondas-curtas. Algo que
a gente nunca esquecerá.
A história da Austrália, dada apenas uma vez por semana,
encaixava-se facilmente em um pequenino livro, de cor pardacenta,
como as cenas que descrevia. Presidida em seu breve e prístino
nascimento pelo capitão Cook (rendas douradas, peruca branca e de
costas para Sir Joseph Banks, nas ilustrações), a história australiana
rapidamente terminava em insucesso. Havia sido engolfada em
sombrio fedor de prisioneiros sem nome, cuja única e aparente
atividade fora a de construir, para o próprio encarceramento, as
masmorras de pedra, agora monumentos vazios pelos quais as
menininhas excursionavam, nas saídas domingueiras: Aquelas são
as celas para confinamento solitário, aqui é onde eles ficavam. A
história da Austrália definhava nas expedições de exploradores
malfadados, jornadas sem revelação ou batalhas suportadas por
homens
descarnados,
cujos
retratos
já
apresentavam,
antecipadamente, uma expressão gasta e infeliz — os olhos luzindo
febrilmente em órbitas que já eram ossos.
Aquela era a esmirrada crônica — parca, vergonhosa, sem
inspiração: folheada rapidamente pelos professores, impacientes
para voltarem à cerimônia na abadia. A carga de um desarrumado
continente era pesada demais para qualquer criança alterá-la. Em si,
a história prosseguia maravilhosa, espiritualizada, sem um olhar
para baixo, dirigido à Austrália. Maior que a natureza, inevitável
como a linguagem das orações matinais: O Deus, que és o criador
da paz e amante da concórdia, em cuja sabedoria permanece a nossa
vida eterna, cujo culto é a liberdade perfeita.
Sentimentos de magnitude, aos quais somente um australiano
presumido, audacioso ou de partida poderia aspirar. No hemisfério
verdadeiro — e do norte — além do equador, que nada equilibrava,
até mesmo a água da banheira escorria em direção oposta. Talvez
até mesmo os discos que giravam no gramofone. Os australianos
podiam somente pretender fazer parte de tudo aquilo e esperar que
ninguém localizasse a verdade.
De vez em quando — ou o tempo todo — havia a sensação de algo
óbvio e supremo, à espera de ser anunciado. Como no dia em que
meninos atormentavam um camponês com sua trouxa, no ramal
ferroviário, e um homem de nenhures lhes disse: "É um sê umano".
Quando o ardente dezembro assenta pé na floresta. . .
Eles moravam em uma casa com torre e vista para as Heads.
Tinham poltronas bordadas, pratos de cristal que tilintavam ao
piparote de uma unha e um fragmento de carvalho da nau capitânia
de Nelson, em uma pequenina caixa de veludo. Na escola, Caro se
iniciava na Armada Espanhola e no triste coração de Ruth, quando
a lancha chamada Ben-bow emborcou no posto de Sydney e afundou
hediondamente. Grace ocupava uma cadeira azul no jardim de
infância e existia ainda a srta. McLeod, que começara após a Grande
Guerra e seria aposentada no Natal.
A srta. McLeod tocava o órgão da escola para as orações da manhã.
Hush'd was the evening hymn, For all the saint e, na temporada, Once
in royal David's city. Todos eram C. of E. 1, ou coisa parecida, exceto
Myfanwy Burns e a pequena Cohen. Religião era o menino na
manjedoura, o rapaz com a funda, o casaco de várias cores.
Caro e Grace sabiam que era drástico o que lhes sucedera. Podiam
dizê-lo pelas lisonjeiras novas atenções que nada tinham a ver com
uma perda persistente em que não se podia acreditar. Demoraram a
desistir da esperança de uma miraculosa inversão, e, pela manhã,
acordavam descrendo do tempo da morte. Teria sido difícil haver
um tempo ou consolo adequados, mas aquele calor não parecia
neutro.
Teu pai jaz sob nove metros de água. Na casa do gramado inglês, a
sra. Horniman declarou nada haver que ela não fizesse. Então, no
dia de Natal, elas sufocaram de calor ao lado da árvore de celulóide
dos Hornimans, enquanto um incêndio lavrava em terras incultas
de Clontarf.
Grace foi sorteada com uma moeda de três pence no bolo de Natal,
mas a tarde foi ficando terrível.
1
Church of England: Igreja da Inglaterra. (N. da T.)
As crianças foram proibidas de nadar, por causa do peru, e Athol
Horniman atingiu Caro com uma bola de críquete.
Dias mais tarde, Dora disse a elas:
— Estamos em 1939.
Dora as surpreendera como uma estranha. As duas mal a
reconheceram, quando ela fizera parte de uma família de cinco
pessoas. A Dora atual parecia nunca haver partilhado da vida, antes
de Benbow. Havia apenas uma coisa — uma recordação, ainda não
definida como tal, de Dora esganiçan-do-se atrás de uma porta
fechada e papai dizendo: "Vejam que filha!"
Era difícil imaginar, por exemplo, onde estaria Dora nas manhãs do
grande passado, quando Grace e Caro eram levadas à cidade, para
comprar uniformes. Papai as deixava — a mãe e as duas meninas —
na importante névoa onde odores metálicos de cidade fluíam
juntamente com os carros, esgueirando-se por entre estreitas fileiras
de prédios. Um bonde, amarelo-desbotado, balançava-as em bancos
de madeira, luzidios devido à passagem humana. Havia jovens
empregadas de escritório, com cabelos ondulados e chapéus de
marinheiro, de feltro ou palha; entretanto, sem a menor dúvida, não
havia Dora. Os homens se sentavam nos compartimentos abertos,
em cada extremidade do bonde, com seus grossos coletes
desabotoados no calor, atirando pontas de cigarro e charuto no piso
de ripas e inclinando-se para cuspir para fora. Quando chovia, uma
tela de lona era descida para elas, presa a uma ripa. No
compartimento interno, Grace permanecia entre os joelhos da mãe e
Caro oscilava contra numerosas coxas de pé. Uma inteira e duas
meias, como a passagem; e nada de Dora.
A mãe de Dora havia morrido quando ela nascera, como acontecia
nas histórias. Dora tinha vinte e um anos, mas desistira do Colégio
de Professores.
Quando desciam do bonde, dirigiam-se a vitrines brilhantes com
luvas coloridas, bolsas e calçados sedosos, as galerias de compras
iluminadas como arco-íris. As mulheres que passavam pela Pitt
Street ou pela Castlereagh tinham rostos mais frescos e usavam
chapéus enfeitados de violetas ou botões de rosa, com pequeninos
véus. Não obstante, barriletes de cerveja eram transportados em
carretas logo depois das melhores lojas, por parelhas ou grupos de
clydesdales1: pescoços castanhos apertados em arreios de couro
suado, os cascos enormes sob tufos de pêlos estriados. E o cocheiro
sem colarinho, com o colete puído aberto, sem paletó, o rosto
curtido e o bigode manchado, como um chumaço de crina. Esterco
debaixo dos pés e um ofensivo cheiro de couve, caída e pisoteada
por pôneis de antolhos, atrelados a carroças de verduras. Ao longo
do passeio, carrinhos de mão com laranjas-de-umbigo, de Jaffa, ou
maçãs da Tasmânia. Tudo isso, vil e rural, no elegante cruzamento
das ruas Market e Castlereagh.
Na mesma esquina, elas deparavam com os espectros temidos por
Caro e Grace; então, era olhar e desviar os olhos de todos os que
passavam ali. Aparições da terrível espécie dispersavam-se pela
cidade e podiam ser esperadas em qualquer centro comercial dos
subúrbios. Com infalível e atroz certeza, elas ficavam à espera dos
passantes naquela particular e movimentada esquina que, por esse
motivo, não parecia uma rua, em absoluto, mas um covil ou arena.
Alguns dos espectros ficavam de pé, incluindo-se aqueles com
apenas uma das pernas. Os pernetas acomodavam-se no chão,
contra as vitrines. Os cegos mostravam um letreiro, para tal
finalidade, pendurado ao pescoço, talvez acrescentando SUVLA ou
GALÍPOLI. Igualmente, no letreiro INTOXICADO POR GÁS,
pendurado ao lado de medalhas espetadas, podia aparecer a
informação adicional, YPRES ou ARRAS. O letreiro também podia
indicar MESOPOTÂMIA, tão naturalmente como se escreveria INFERNO.
Eles ocupavam lugares separados, talvez tendo um cão por
companhia, uma criança ou uma mulher esquelética, estendendo o
' Raça de cavalos pesados de tiro. (N. do E.)
chapéu em silêncio. Era mais comum ficarem sozinhos.
1
Quem ou o que haviam sido individualmente, no entanto,
afundava-se na mesmice encovada dos olhos. Nada mais poderia
ser feito por eles, mas seu lado bem pior teria que ser suportado
para todo o sempre. Havia imobilidade até mesmo nos olhos dos
cegos, fechados só Deus sabia em que última visão.
O tipo de música que executavam e a maneira como cantavam,
aquela orquestra em brim lustroso e pendente, sem firmeza, com
violinos em que faltavam cordas, concertinas ofegantes e gaitas-deboca enferrujadas, instrumentos seguros pela mão restante e
inexperta; as vozes desafinadas, indo a extremos agudos. Em busca
dos pennies da Depressão, com que crueldade martirizavam uma
audiência relutante com suas canções torturantes — A rosa da terra
de ninguém, Rosas da Picardia, Rosa de Tralee e Que coisa, eu não quero
morrer, quero voltar para casa! A guerra das rosas, rosas, e sorrir,
sorrir, sorrir.
"Ighty-tiddly-ighty,
Leve-me de volta para Blighty,
Blighty é o meu lugar!"
As próprias crianças — crianças que ainda não haviam
experimentado a virtude e podiam ser implacáveis, ao atormentarem os companheiros de brincadeiras — eram adultos
atingidos pela piedade: a Grande Guerra era profundamente
conhecida por elas, aprendida antes de memorizada, como as
criancinhas conhecem o macabro através dos sonhos. Nada mais as
surpreenderia, nada, quando já lhes haviam falado explicitamente
sobre cavalos explodindo, homens explodindo, atitudes e gestos dos
mortos em decomposição, o fundo das trincheiras, os estilhaços de
granada, o terror. O fanfarrão sargento-ajudante gritando sobre
tocar gaita de foles aos praticamente mortos, o jocoso estadista
visitante, atrás das linhas. Elas sabiam a respeito de Wipers e da
Plug Street. Sabiam sobre a Linha. Haviam aprendido tudo isso de
algum modo, em lições não faladas pelas esquinas, nas canções das
rosas e Inky pinky parlay-voo. Haviam descoberto na provocação das
frágeis coroas castanhas nos cenotáfios, no silêncio de dois minutos,
em reuniões para recordar, onde garrafas de cerveja transbordavam,
e nos monumentos aos símbolos mais suaves da guerra — o
soldado, seu rifle de bronze pousado, sustentando o companheiro
decorosamente caído, o marechal limpamente vitorioso, em sua
égua imaculada.
Quão longos haviam sido, quão imensamente longos, aqueles
quatro anos que permaneceriam para sempre!
No Dia do Armistício ou do ANZAC 1, Grace e Caroline Bell tinham
passado por entre a multidão, para ver os homens de rostos afilados
que caminhavam em fileiras, em trajes decentes, se tivessem algum,
divisas presas por alfinetes, com restos de galões alinhados em
diminutos arco-íris sobre o peito, a papoula de papel vermelho na
lapela, o galhinho de rosmaninho. Sendo pequeninas, Caroline e
Grace tinham sido levadas para a frente da multidão, a fim de ver
aquilo, como se fosse da maior necessidade.
O conhecimento penetrara em seus corações oprimidos. O
conhecimento permanecera formidável e impotente em seus peitos
infantis enquanto, olhando para o lado, deixavam cair dois pence no
chapéu estendido ou esmagavam até o fim o rosmaninho entre os
dedos, por causa do cheiro.
A casa para a qual se mudaram com Dora era menor, com camélias
no jardim, mas excesso de hortênsias. Nos fundos havia capim
baixo e de folhas delgadas e arbustos de espigas, além de um jardim
ornamentado de pedras, tiradas do declive de arenito. Dentro de
casa, o cristal sensível, o fragmento da verdadeira cruz do H. M. S.
Soldado das tropas expedicionárias da Austrália e Nova Zelândia durante a Primeira
Grande Guerra (iniciais de "Australian and New Zealand Army Corps"). (N. da T.)
1
Victory tinha se transformado em peças de museu, relíquias de uma
outra vida. A cada lado de seu breve reinado horizontal, as longas
ruas desciam para o mar. Se soubessem, elas quase poderiam ter
estado no Rio ou em Valparaíso. Uma noite se seguia a outra, noites
de oceânico silêncio, agora nem mesmo interrompidas por guinchos
dos bandicoots1, em ratoeiras no jardim inglês dos Hornimans.
O Pacífico rolava entre a fenda dos dois promontórios, um
brinquedo azul entre patas. O porto rendilhado era um país em si,
familiar como o arquipélago que uma criança governa entre as
rochas: mal parecia que o mar aberto tivesse mais a oferecer. No
entanto, transpondo aquela fenda para o Pacífico, os transatlânticos
transportavam os felizardos para a Inglaterra. Ia-se ao porto para
vê-los partir, os Broadhursts ou Fifields. Houve um almoço a bordo,
que Dora não apreciou, por causa de uma pequena espinha de peixe
que se encravara em sua garganta. Soavam sereias e beijos, choviam
serpentinas, a moderação se animava. E o Strathaird ou o Unon se
afastavam, imensos. Dava tempo de chegar-se em casa e ver os
navios passando por entre as Heads; Caro até conseguia ler o nome,
na popa ou na proa. A própria Dora içava subjugada, ao
testemunhar tão irrefutável evasão.
Ir à Europa, escrevera alguém, era quase tão definitivo como ir ao
paraíso. Uma passagem mística para outra vida, da qual ninguém
voltava como era antes.
Os que retornavam em tais navios eram invencíveis, porque haviam
conseguido aquilo, e poderiam refletir para sempre, depois do
cottage2 de Anne Hathaway ou da Torre de Londres, uma confiança
que Sydney não gerava. Nada havia de mítico em Sydney: objetos,
seres e eventos importantes situavam-se sempre no estrangeiro ou
nos indefinidos lugares dos livros. Em Sydney nunca se podia ter
como certo que um poeta nasceria lá ou que um grande pintor
1
2
Marsupial insetívoro da Austrália. (N. da T.)
Casa de Anne Hathaway, mulher de Shakespeare, preservada em Stratford, como
monumento. (N. da T.)
caminharia sob suas janelas, como acontecia nas mais insignificantes
cidades da Europa. O indício não surgia, eles não achavam que o
mereciam. Tal era a medida de ressentida obscuridade: eles eram
incapazes de imaginar uma pessoa que pudesse exibi-lo ou exaltálo.
Havia o porto e o mar aberto. Era um ambiente em que um pôr-dosol podia ser confortavelmente admirado, porém não muito mais.
Qualquer outra alegria particular — no claro ou no escuro, no
batente da porta ou no pilar do portão — sabia a revelação e era
inexpressada; até na glicínia ou mimosa, pelas manhãs, sem dúvida
mais frescas do que agora, em qualquer outro lugar. Havia uma
imobilidade em certas noites, um matiz nas rochas ou um desenho
de lânguido ramo contra o céu, que poderia estar anunciando a
glória. Embora dificilmente fosse correto sentir prazer, se Dora não
o fizesse, as meninas ofereciam as faces calmas às gardênias,
inalando dezembro por uma vida inteira.
Para o interior havia o bush3, o próprio nome um ressequido e
insípido borrão. Para o interior estava a aridez, um apergaminhado
mistério não visitado, um horizonte abandonado em um fio de
frouxo arame farpado. Dora não ia além de Gosford e nenhuma
delas jamais vira um abo4. Na Páscoa, os Whittles as levaram a Bulli
Pass, onde o radiador do carro ferveu e todos ficaram parados à
margem da estrada, em pé, após rolarem pedras para os pneus
traseiros. Adiantando-se para empurrar, o rechonchudo sr. Wittle
fazia lembrar um bebê em crescimento, cujo primeiro impulso é
empurrar o andador em que estivera caminhando. Voltando para
casa, Dora sentou-se em uma cadeira que raramente usava e disse:
"Vocês nunca mais me farão repetir isso".
Como uma vasta terra interior de seu próprio litoral, Dora estava se
tornando uma região afetada, uma fonte de abrupta conflagração.
3
4
Terra agreste e inculta, com ou sem vegetação. (N. da T.)
Aborígine. (N. da T.)
Submissas ao estado de ânimo dela, as meninas se admiravam por
que a vida de Dora teria que ser subjugada à de ambas, segundo ela
estava sempre dizendo. Havia algum mal-entendido ali. E logo
descobriram que um sério problema abria caminho em Dora. Ela
ainda podia tomá-las nos braços — mas veementemente, como se
alguns daqueles abraços lhes tivessem sido reservados, mas sem
oferecer abrigo. O estado de Dora abatia-se sobre as duas como o
cair da noite, enquanto ainda simulavam discernir as formas e cores
do dia normal. Mantendo as aparências emocionalmente,
aprendiam a apaziguá-la e vigiá-la.. Agora podiam ser temidas as
encolerizadas reações de Dora ao erro ou qualquer combustão de
seu espírito agastado. As equimoses de uma queda precisavam ser
escondidas da irritada atividade de Dora, da mesma forma que
outras quedas e contusões.
As duas meninas estavam perdendo a mãe pela segunda vez.
Caro estava se aproximando da realidade da infelicidade: chegava à
percepção de que Dora gerava infelicidade e que ela estava ligada a
Dora. Ninguém apareceria agora, oferecendo salvação, era tarde
demais para isso. Enquanto crescia, Caro iniciava sua longa tarefa,
ao invés de superá-la. No presente, pelo menos, era mais forte do
que Grace e. assumia Dora como uma obrigação moral. Em si, Dora
era a mais forte de todas, em seu poder de acusar, julgar, causar
dor: em seu poder soberano. A habilidosa desconfiança de Dora
podia penetrar-lhes certeiramente no cérebro, dele extraindo os
piores pensamentos e exibindo-os para que todos os vissem, mas
nunca trazia à luz o simples bem. Era como se ela conhecesse a
verdade interior, contestadora e racional das duas meninas e
tentasse provocá-las, a fim de que a expusessem, como traição. Por
um lado, havia Dora buscando a devastação e, por outro, as irmãs
tentando continuamente obstruir ou despistar.
As meninas tinham ouvido dizer que Dora as estava criando. No
entanto, aquilo era mais como afundar e sempre tentar emergir.
Naquelas crianças, uma veia de instintiva sanidade se abria e fluía:
um aviso de que toda mentira será por fim redimida. Era
engendrada uma aversão à emoção e à crença — que em Caro
duraria toda a sua vida — de que quem não se vê como vítima
resiste a tensão maior.
Em seu apreço pela imparcialidade, elas começaram a ansiar,
perversa e inconscientemente, por alguma força que perturbasse
aquele equilíbrio e as arrastasse para um nível mais alto.
Como outras crianças, paravam no caminho, quando voltavam da
escola para casa, fosse para puxar as soquetes, para arrancar cascas
de feridas ou espiar uma alameda de jardim, em alguma entrada
opalescente. Grace, com uma sacola e pálidas madeixas oscilantes,
Caro, pendendo para uma pasta volumosa. Na escola, ambas eram
inteligentes, o que era atribuído aos efeitos amadurecedores de sua
tragédia — da mesma forma que, se ficassem atrasadas nos estudos,
a burrice seria imputada ao inevitável trauma. No recreio, uma
procurava a outra, e eram conhecidas como uma dupla aberrante.
As salas de aula tinham paredes ásperas e lívidas. Os alunos
estavam lendo O mercador de Veneza, sob Os desposados, reprodução
do quadro de Lorde Leighton, pintalgada de pontinhos negros, e a
aquarela de Ormiston Gorge. As salas de aula eram janelas para a
baía. Nos peitoris de madeira enroscavam-se gavinhas de
campainhas. Era sempre verão — e, com mais freqüência, era de
tarde, quente com o cheiro do giz e dos calçados de ginástica ou
talvez da banana não comida, na pasta de alguém. Fatigadas como
negociantes, as meninas esculpiam nomes no tampo das carteiras, à
espera do toque da sineta.
Caro e Grace voltavam para casa subindo a colina, em meio ao calor
abrasador. Casas de tijolos mostravam-se simétricas, em
respeitabilidade vermelha, amarela ou púrpura: muros baixos de
jardins, amplas varandas, moitas repetidas de frangipanas e ibiscos,
de banksia1 e cavalinha; talvez um pavilhão no jardim, talvez um
mastro de bandeira. Jamais um indício de roupa lavada ou mesmo
de gente: tais evidências tinham que ser procuradas no interior das
casas e nos fundos. Caro começava a preocupar-se com o interior e
os fundos, a se perguntar se cada casa escondia uma Dora. Se, em
cada vida, havia um Benbow, que adernava e afundava.
Sentia-se que as paredes dessas casas desabariam para dentro, que
desmoronariam, mas nada revelariam.
O refinamento era mantido no fio de navalha de um abismo.
Aparecer sem luvas ou de outras maneiras que sugerissem o corpo,
quase como uma pública demonstração amorosa, equivalia a ser
arremessado ao poço sem fundo da Austrália brutal, era o retorno
total ao homem primitivo, em toda a linha. O refinamento era uma
frágil construção, continuamente frustrada por ondas evocativas de
crua humanidade: as brigas das seis horas diante dos pubs, homens
engalfinhados entre vômito e vidros quebrados; o grupo de
estivadores, em seus bares impregnados de fumaça, agachados em
torno da moeda que atiravam em piparotes, perto do cais, e
chamando as mulheres passantes, em irada lubricidade. Havia
famílias de vozes roufenhas que, por medida de economia, faziam
compras no desvio para estacionamento, se é que compravam
alguma coisa, e cujos filhos mostravam contusões de sovas ou
tinham o corpo deformado pelo raquitismo — essa sutil ameaça
contida nas casas apinhadas ladeira acima, cuja sombria imundície
era um contágio das ilhas Britânicas, uma ignorância das Midlands.
A Inglaterra se apressara em partilhar sua sordidez com a Austrália,
embora retendo a abadia e o Cisne de Avon2.
Abalado por tais e piores realidades, o refinamento estremecia e
batia em retirada.
As duas meninas voltavam para casa de mãos dadas, não tanto
como enamorados, mas como um casal idoso, sisudas, com sua
informação e responsabilidade. Voltar para casa era voltar para uma
1
Arbusto ou árvore australiana com folhas e cachos de flores cilíndricas. (N. do E.)
2'
Shakespeare. (N. da T.)
Dora de ultrajada tranqüilidade, cujo motivo deveria ser
explosivamente conhecido, mais cedo ou mais tarde. Ou para uma
Dora desfigurada pelas lágrimas, provocadas por uma afronta de
algum vizinho, agora traumatizada para o resto da vida. O
significado era acústico, ecoante, modulando inflexões,
preenchendo silêncios. O pesar era estatístico: "Em dois anos, eles só
me convidaram uma vez ', "Em todo o tempo que fiquei lá, só houve
chá duas vezes, exatamente". Qualquer crise na sala de aulas ou no
recreio, inadvertidamente descoberta, podia levar Dora aos
guinchos. "Paz! Eu quero paz!”— e a casa ressoava a gritos de
"Paz!”muito depois que as meninas estavam na cama.
Dora costumava dizer que, afinal, sempre podia morrer. Eu SEMPRE
POSSO MORRER, como se isso fosse uma solução a que pudesse apelar
repetidamente. Disse às meninas que a morte não era o pior, como
se já houvesse tido oportunidade de prová-la. Dizia que podia
acabar consigo mesma. Ou que podia desaparecer. Quem se
importaria, que diferença fazia? As duas se fundiam em seu terror,
Dora, não morra, Dora, não suma. Não, ela era inflexível: não havia
outro jeito.
Com que freqüência, vezes sem conta, ela recorria a essa inexaurível
reserva da própria morte, que se regenerava mais e mais pelo horror
que inspirava, ao se demonstrar a outrem sua exata iminência. Era
do medo de cinzas das meninas que ela se erguia, sempre, como
uma fénix. A cada empréstimo semelhante da morte, ela ganhava
um novo arrendamento de vida.
Não que Dora fosse tolerante com os sofredores ou os que tinham
fracassado. "Todos nós podemos cair", respondeu, quando lhe
contaram que a srta. Garside, a bibliotecária, entregara os pontos
completamente. Os aleijados ou cegos eram uma ressentida
incursão na piedade que pertencia a ela, por direito: o brado de
Dora por socorro devia sufocar todos os demais. Estava
inteiramente tomada por seu próprio desaparecimento, o qual se
agigantava assustadoramente, como a presença maior em suas
vidas.
As primeiras lendas das meninas pertenciam todas à vez em que
Dora enfrentara o motorista do táxi, à vez em que Dora se recusara
a ouvir disparates do ministro. "Por uma vez, eu disse o que
pensava." Dora reclamando, ofendida ou ofendendo. Dora
criticando, Dora repreendendo com energia, Dora deitando abaixo.
Dora dando as temidas novas: "Tive uma boa discussão". Uma boa
choradeira, uma boa discussão, uma boa briga. Além do mais, Dora
estava convencida de que, pressionando bastante as boas intenções,
estas poriam as próprias limitações a descoberto; e nisso, vez após
vez, ela mostrara que estava certa.
Dora tinha um vestido vermelho-vivo, com botões pretos, que
usava para fazer os serviços domésticos. Menina ainda, Grace
perguntou:
— Por que você está sempre zangada, quando está com esse
vestido?
Dora mal soube como explodir.
— Com este vestido. . . estou sempre ocupada. Não zangada, mas
ocupada!
Grace não acreditou.
—
Pouco importa se me dizem que estou sempre zangada. É
claro que não estou zangada!
Dora estava muito zangada. Grace tremeu.
— Sinto muito.
— Vocês imaginam, vocês têm a mais leve idéia de como trabalho
duro para as duas? Isso não tem fim!
_ Tinha razão; as donas-de-casa eram escravas. — Depois,
ainda me jogam isso na cara, dizem que estou zangada. Deixe estar!
Grace foi chorar fora de casa.
Dora tinha vinte e dois anos, olhos escuros e líquidos, dentes
pequeninos e perfeitos, apesar de certa inclinação por doces. Caro se
perguntava quando Dora ficaria velha o bastante para haver
tranqüilidade. Pessoas velhas sempre eram serenas. Aos setenta
anos, por exemplo, tem-se que ser sereno. Até mesmo Dora seria,
bastando que elas esperassem.
Não obstante, Dora era a vida diária. Dora fazia compras, pagava
contas com o escasso dinheiro da herança; também falava com
curadores sobre debêntures. Dora devolveu A cidadela à biblioteca
de empréstimo e voltou com E as chuvas chegaram; jogava bridge no
Pymble e tinha um primo rico em Point Piper. Dora ia ao chá e
escrevia bilhetes de agradecimento em seu papel de cartas com
bordas irregulares. Ela usava um elegante vestido de seda, na cor
conhecida como marrequinho, e seus longos cabelos escuros formavam ondas e anéis. Na noite da entrega de prêmios, Dora
exultou sobre as antologias encadernadas das meninas e a taça de
prata conquistada por Grace em piano; ela derramou lágrimas
verdadeiras pela medalha de ouro de Caro, em francês. Era isso o
que fazia Caro interrogar-se sobre os fundos das casas e se, de
alguma forma, Dora era inevitável em cada moradia.
Extremamente desorientadora era a Dora, toda adorável
normalidade, que surgia após uma boa briga. Nesse intervalo, por
uma noite ou um dia, as meninas voltavam a ser jovens.
Naturalmente, era uma desorientação sobre a qual todas tinham
certeza, embora por intermédio da inevitabilidade de um
sofrimento. Entretanto, como outras crianças sob o jugo da
autoridade absoluta, elas aproveitavam a breve pausa. Parecia mais
fácil mentir — para Dora, para si mesmas, para Deus — do que
voluntariamente desencadear a outra Dora.
A guerra explodiu em meio a tais hostilidades. Em um ano, os
estadistas esganiçavam: "Paz! Paz", enquanto, como Dora,
conduziam o holocausto. No seguinte, foi a Polônia, a Linha
Siegfried, o Graf Spee. Uma família de Viena, judia, veio morar na
casa ao lado. Dora informou:
— Ele é engenheiro, ela é pediatra. Supõe-se.
Sim, porque uma profissional do sexo feminino despertava
desconfiança. Os dois meninos, Ernst sem o segundo "e", e Rudolf
com "f", aparavam a grama. O pai deles, esguio e grisalho, avaliou
cuidadosamente uma fileira de frésias que, em outubro, tinham
forçado caminho pelo solo, no lado mais distante do terreno.
Em junho seguinte, as janelas dos vendedores de hortaliças foram
depredadas, porque eles eram italianos. Em Junction, a Manganelli's
colocou um aviso: NÓS SOMOS GREGOS. Mais uma vez, os homens se
fizeram ao mar, pela história, na escuridão e sem bandeirolas. A
França caiu. Havia a blitz, a RAF e o sr. Churchill. A classe de Caro
abandonou a Guerra da Sucessão Espanhola para ler um livro sobre
Londres, os prédios de pé como heróis — o Guildhall, a Mansion
House — que a cada noite eram consumidos pelas chamas, no
noticiário das sete horas. Dora fervia de raiva sob o racionamento,
mas ansiava estar onde caíam as bombas. Ela encarou o conflito
como algo pessoal, levada ao frenesi pelo sr. Churchill. Era a guerra
de Dora.
A maré morta da história, como de hábito, as deixou encalhadas.
Caro ganhava corpo. Suas mãos assumiam atitudes. Nos sapatos
opacos por causa da poeira do recreio, seus pés eram longos e bemtalhados. O cinto de seu uniforme escolar, que na época de
Dunquerque enlaçava uma mera criança, à altura do sítio de Tobruk
delineava um corpete de algodão. Seu corpo exibia uma delicada
apreensão de outra mudança. Ela sabia a localização das nascentes
do Yang-tse e conhecia palavras como "hipotenusa". A própria
Grace agora já fazia lição de casa, sentada no chão. Dora tricotava
para a marinha mercante, impregnando essa calma atividade de
vociferante agitação.
A Grécia caiu, Creta caiu. Havia desequilíbrio, inclusive de história.
Em um dia calorento, Caro olhou para Pearl Harbor, no atlas. Logo
os ônibus eram pintados de cores pantanosas.
Foram construídos abrigos antiaéreos e puseram uma corrente,
inútil, fechando a entrada do porto. Conservava-se um balde de
areia na cozinha, com vistas a bombas incendiárias. O sr. Whittle era
inspetor antiaéreo e os rapazes Kirkby foram convocados. A nobre
retórica da Downing Street mal se aplicava a ruas escuras,
austeridade e ficar na fila. Do leste chegaram famílias de colonos em
total desamparo, e Cingapura caiu. Agora, os órfãos eram
numerosos; e as meninas, com sua perda civil, não mais
concentravam uma atenção especial.
A escola estava sendo transferida para uma casa na região rural,
onde os invasores japoneses dificilmente penetrariam. Grace era
ainda muito pequenina para ser salva por tais métodos, Caro iria
sozinha. Caro experimentaria a condição fugitiva; se isso se
mostrasse acertado, Grace poderia ser incluída mais tarde.
Certa tarde, Caro foi instalada ao pé das Blue Moun-tains. Na
planície abaixo, eucaliptos dispersavam-se, voltados na direção de
Sydney, com as cascas do tronco espalhadas como papel picado. As
crianças menores choravam, mas os pais viriam visitá-las em quinze
dias, se houvesse gasolina e os japoneses não chegassem. Havia
ainda um trem antigo que ia no máximo até Penrith, depois do que,
cada um ficava por conta própria. Elas conheciam algo sobre
Penrith, uma cidadezinha com casas revestidas de tábuas, dotada de
postes telegráficos e com aquela espécie de cinema em que se podia
ouvir a chuva.
Grace acenou da janela do carro: enciumada, culpada e salva.
Era domingo. Após a geléia de sagu, cantaram Abide with me, e Caro
foi para a varanda do andar de cima. A noite caiu, rápida. A
escuridão aprofundou-se em silêncio, mais desolado pelo pio de
uma ave, mostrada a elas em ilustrações. Uma reação de
incredulidade estalou na garganta de Caroline Bell. Odores do solo
árido, de eucaliptos, e um pequeno grupo de vacas davam a
impressão de que o tempo cessara ou que seu ritmo diminuíra a um
ponto em que a aceleração dela tivesse que girar absurdamente, sem
propósito algum. O único tremor nas costas sombrias das montanhas era o vapor de um trem, em seu caminho para Kattomba. Dora
as incitara a detestar a insignificância, e se havia algum lugar
insignificante, era aquele. A medida do confinamento era que
Penrith se tornara um objetivo. Caro enlaçou-se em seu próprio e
terno abraço, abarcando tudo o que lhe sobrara de conhecido. Caro
estava no interior do país.
Ela se agachara no ângulo formado pelo balaústre e um dos altos
suportes da varanda. A buganvília fora disciplinada para a
verticalidade e, contra sua bochecha, comprimiu-se uma placa
ornamentada e redonda, fria como louça. Havia insetos nas
trepadeiras de espinhos, um animal corria no jardim mais abaixo.
Dora teria confirmado que a morte não é o pior.
Subseqüentemente, em um quarto com seis camas, todas elas
choraram, até o sono chegar. Pela manhã, Caro viu que o medalhão
no balcão era azul e branco — e católico.
— A srta. Holster disse que é um Della Robbia — contou uma das
meninas.
Percebia-se imediatamente que aquela era uma casa peculiar. Nela
havia muito para se ver. Pertencia ao doutor, que não era doutor em
absoluto, mas arquiteto e italiano, embora do nosso lado. Ele se
retirara para uma edificação menor e ao lado — aposentos da
criadagem, era uma frase que lhes vinha à mente sem dificuldade,
por causa dos livros ou das antigas casas de pedra, construídas
pelos condenados. O doutor usava um paletó curto de algodão
branco e tinha uma barbicha, também branca, pontuda. Embora não
fosse manco, caminhava com uma bengala. Segundo a srta. Holster,
ele compreendera o verdadeiro significado de Mussolini desde o
começo.
A casa tinha 1928 em algarismos romanos na fachada — ou pórtico.
Para sua construção, mármores coloridos e travertino haviam
passado meses no mar; lareiras e tetos tinham sido desmontados
nos arredores de Parma, que era de onde vinham pernis e violetas.
De lá também tinham vindo todos os pavimentos de ladrilhos
floridos, desenraizados e novamente plantados ali. Dizia-se que a
sala de refeições era elíptica. Todas as portas eram duplas, inclusive
as dos banheiros, com painéis de flores pintadas e maçanetas
duplas, gostosas de sacudir, até que se desprendiam. Havia
puxadores de veludo, para sinetas destinadas a chamar as criadas,
mas que logo se desmantelaram, de tanto serem puxados. Houve
também o dia em que Joan Brinstead quebrou um tinteiro sobre a
platibanda de mármore branco da lareira, na sala de música — e o
amoníaco só tornou as coisas piores. A srta. Holster tinha uma cama
com dossel, mas não sabia explicar por que os limoeiros deviam ser
plantados em vasos, ao invés de no chão.
Aqueles aposentos encerravam encanto — algo memorável,
verdadeiro como literatura. Podia haver acontecimentos, ocasiões,
mas não durante a perniciosidade daquela posse. À noite, os
aposentos brilhavam, elegantes e ternos.
No pasto, para os cavalos, proibido, abaixo da casa, uma cerca de
arame farpado circundava tendas, edificações de folha-de-flandres e
trinta ou quarenta homens baixos, grotescamente militares, de
uniformes cor de vinho. Os compatriotas do doutor tinham vindo
ao fim da terra para encontrá-lo, porque os homens que cuidavam
de suas plantações e colhiam seus frutos eram italianos, prisioneiros
de guerra. Ao crepúsculo, eles tangiam o gado, antes de serem
também tangidos para trás do arame farpado. O doutor podia ser
visto de manhã, movimentando-se entre eles, com sua barba branca,
o casaco branco e um panamá branco: novamente o senhor. As
meninas ficaram sabendo que, como um bebê, ele dormia à tarde. E
haviam visto — ou apanhado o flagrante — quando um dos
prisioneiros lhe beijava a mão.
Dos campos ou de trás do aramado, os prisioneiros acenavam para
as estudantes, que nunca acenavam de volta. Nunca. Isso era
questão de honra.
Após duas semanas nessa vida, Dora apareceu com Grace, no carro
dos Marchmains, que havia sido readaptado para movimentar-se a
nafta. Dora atingiu o máximo, no drama da reunião, e havia trazido
uma cesta magnífica de petiscos, a fim de suplementar as terríveis
refeições. Caro exibiu-se a Grace com sua rosa-pálida Rosamund,
companheira de exílio e filha dos Marchmains. Fizeram piquenique
às margens do Nepean, com o sr. Marchmain dando explicações
sobre folhas de urtiga e babaçol. As salsichas foram assadas em espetos, sobre uma fogueira feita pelos Marchmains. A gordura
pingava, com um cheiro forte e desagradável; a carne da salsicha
saía pelas rachaduras de seu envoltório. Uma pessoa que tivesse de
cuidar de si mesma, em uma ilha deserta, viveria de maneira bem
diferente: haveria mangas, fruta-pão, água de coco e peixe dos
recifes de coral.
Dora sentou-se em uma ponta da toalha estendida, desejando que
lhe fosse indicada alguma tarefa, para que se ofendesse com isso. As
meninas nadaram no rio, repugnadas com a água doce e o lodo.
Brincaram de Moisés entre os juncos, com Grace no papel-título,
mas Caro como a princesa. Do outro lado do rio, iniciavam-se as
gargantas, melancólicas, desabitadas. Um amigo dos Marchmains
subira certa vez para Lapstone e lá permanecera — por causa de
uma pleurisia, ou pelo menos foi o que disseram, na época. Não
obstante, em geral era possível diagnosticar-se a verdade, pelo
rubor doentio das faces. Caro pensava na Ümbria, até o dia anterior
apenas o nome de uma cor na caixa de pintura, entre amarelo-ocre e
terra de siena queimada; e na insípida Parma, de onde vinham as
violetas.
Caro gostaria de mostrar a casa, mas temia a reação de Dora. Ela
não era do tipo que se rende ante a informação de que uma varanda
era chamada de loggia ou um mural, de afresco. Muito menos casa,
de villa. Qualquer revelação semelhante, de certo modo, anunciaria
a cisão entre Caro e a regência de Dora. Eles caminharam pelos
corredores e espiaram a sala de refeições oval, sem nada perceber.
— Este Montyfiori — disse o sr. Marchmain, que era um homem
vulgar — parece ser um perfeito lunático.
Depois do chá, os Marchmains desceram até o pasto, com
Rosamund: Lá se podia esperar a vez de montar o pônei. Dora foi
colocar a garrafa térmica no carro. Caro e Grace desapareceram no
dormitório improvisado, onde se sentaram em uma cama, lado a
lado. Ali, soltaram pequenos e devastadores arquejos de um adulto
chorando que, necessariamente, precisa esconder-se. O intenso,
pesado mecanismo de seus corações arrastava-se em seus
corpinhos.
— Eu escreverei — disse Grace.
Lavaram o rosto em um varicoso banheiro de mármore estriado. A
pia tinha o formato de uma concha. Até mesmo o vaso exibia um
desenho azul no interior, possivelmente chinês.
Dora havia descoberto a inspetora e lhe pregava um sermão a
respeito de cobertores. Os Marchmains vinham subindo pela
alameda de cascalho. Agora, as lágrimas estavam autorizadas em
público, o pesar não seria confinado. Grace entrou no carro,
envergonhada por ainda tornar a escapar. Nesse momento, os
japoneses eram a última coisa no pensamento de qualquer um.
Todo aquele exercício parecia despropositado, exceto pelas
emoções, às quais era dada rédea solta.
Caro voltou para casa no inverno, com as outras. A vila dissolveu-se
por entre os eucaliptos, mesmo quando as meninas se torciam, a fim
de vê-la pela última vez, com a respiração embaçando as vidraças
frias do ônibus que as levou ao trem de Penrith. Apesar disso,
ninguém aproveitou a oportunidade de acenar para seus colegas
prisioneiros.
Em breve, sua fuga para as montanhas era parte de um passado de
fábula, uma forma de serviço de guerra. Não, entretanto, antes de o
doutor mover um processo por danos irreparáveis à sua casa.
Depois de toda aquela conversa fiada sobre Danty e o pôr-do-sol, o
velho lunático exigia mil libras, conforme informou o sr.
Marchmain, para consertar aquela sua caricatura de casa.
Como se viesse do estrangeiro, Caro retornou a uma cidade
povoada por soldados americanos. Dora confirmou que eles eram
fanfarrões e amantes da boa vida, em maneiras não especificadas.
As moças que saíam com eles eram vulgares. Em uniforme escolar,
Caro e Grace foram fotografadas por um sargento alto e magricela,
quando atravessavam a rua, em Junction; e levantaram as mãos,
como os famosos, para repelir a intrusão. Era uma pena que não se
pudesse conseguir uma espécie melhor de salvador: os americanos
não podiam proporcionar história, algo de que eram quase tão
destituídos como os australianos.
As irmãs nunca tinham visto homens negros antes, excetuando-se
os lascars', no porto.
Na escola, Grace estudava os reis Stuarts. Pelos jornais, elas ficaram
sabendo sobre Stalingrado e Rostov sobre o Don. Dora fazia parte
de um grupo para redes de camuflagem, que se reunia às quintasfeiras na Delecta Avenue, e estava extremamente rancorosa. No
alívio do lar, Caro se sentia leniente. De vez em quando, imaginavase na casa do doutor, nos altos aposentos que geravam expectativa.
Se fosse possível tê-los sem o sofrimento!. . .
Tais visualizações podiam ser recordações — a menos que ainda
fosse muito cedo para isso. Os momentos nunca dizem qual deles
poderá ser lembrado.
Quando se tinha um metro e meio de altura, podia-se receber
cupons extras para roupas. Se não fosse por Dora, ela transformaria
suas tranças em um rabo-de-cavalo.
Certa manhã, uma garota cujo pai estivera na América, para algo
relacionado a munições, chegou à escola com canetas sem penas, que tanto escreviam em vermelho como em azul.
Havia também lápis com luzes, um aparelho que podia gravar o
nome — da própria pessoa, de preferência — em alto-relevo e
apontadores de celuloide transparente. Havia ainda muito mais
coisas desse tipo. Dispostos em uma carteira, na sala de aula, os
objetos silenciaram a própria srta. Holster. As meninas inclinavamse, pegando isto e aquilo: Posso experimentar, como é que funciona,
não consigo deixá-lo outra vez como era antes. Ninguém poderia
dizer que eram objetos feios, até mesmo o lápis com a brilhante flor
vermelha, porque estavam espalhados na carteira envernizada,
como pedra de uma era vindoura ou evidência da vida em Marte.
Não surgiram julgamentos quanto à atração que exerciam: o poder
daquelas peças era conclusivo, dispensava elogios.
Aquele foi o primeiro encontro com a inutilidade calculada. Antes,
jamais alguém desperdiçara alguma coisa. Até mesmo a peça no
aparador de tia Edie ou a que mamãe possuía, criações de Lalique e
Balibuntl, ao contrário, eram absolutamente funcionais, e serviam a
uma evidente causa de adorno, desempenhando o necessário e
reconhecido papel de uma extravagância. Os aprestos naturais de
suas vidas, via-se agora, tinham sido essenciais — úteis e exeqüíveis
—, ao contrário daqueles objetos insensíveis, irreais e de cores vivas
que proclamavam, apesar de certa fragilidade, a indestrutibilidade
da repetição infinita.
Não lhes tendo sentido a falta, as meninas não podiam sentir inveja.
Teriam ainda de ser condicionadas a uma nova aquisitividade. A
própria Dora teria que adaptar seus métodos, para competir com tal
inacessibilidade.
Jamais elas poderiam sonhar que, manuseando aqueles brinquedos
e, de certa forma adulta, divertindo-se com eles, manuseavam
fatídicos símbolos do futuro. As peças estavam reunidas por um
significado coletivo, como as provas de um crime ou explosivos que
nenhum perito conseguisse desmontar. A invenção era a mãe da
necessidade. Não foi muito tempo depois disso que as meninas
começaram a menear os quadris em formação e a cantar sobre
Chattanooga e o vale de San Fernando. Dos antípodas, cantar sobre
estarem em Havana e cruzando a fronteira do México. Para elas, a
mais distante fronteira estivera em Kew. E o poder de Kew estava
terminando, como um império.
Agora, Caro e Grace Bell não voltavam logo para casa, depois das
aulas, mas caminhavam ao longo da praia abaixo da escola, com
areia penetrando nos sapatos e meias, recolhendo conchas lascadas
e atirando-as longe. Algas marinhas enroscavam-se em escuros
emaranhados de contas, em rendilhados formados pela maré,
ofuscadas por alguma medusa ocasional. Um garoto ou dois
falariam com elas, rapazolas usando knickers1 cinzentos e gravatas
listradas. Os uniformes eram uma garantia: o reconhecimento das
respectivas escolas, como se fossem regimentos.
Grace era uma flor.
Os cabelos de Caro caíam pesadamente sobre seus ombros, de uma
maneira que não acontecia a nenhuma criança.
Os sons e odores do oceano tornavam inútil qualquer conversa ou
requeriam uma linguagem superior à que conheciam. Uma vez que
as instruções de Dora haviam tornado a privacidade sagrada, elas
não trocavam nenhuma palavra a respeito dos perigosos
preparativos que seus corpos efetuavam para uma vida
inimaginável. E, quanto a isso, permaneciam em incomum
ignorância.
Dora era uma criatura demasiado inflamada e perturbadora quanto
a suas tardes circunspectas. Por outro lado, supunha-se que as duas
irmãs a amavam e, com mais exatidão, elas a amavam. Dariam
qualquer coisa para vê-la feliz. Não obstante, aquela vida a três
começava a entediá-las. As pessoas tinham que ficar de lado,
quando Dora saía com as meninas pela rua, com os braços
indolentemente entrelaçados, ou então se as guiava, de uma em
uma, na passagem pelas borboletas. Elas viviam sob supervisão, era
uma vida sem homens. Dora não conhecia homens.
1
Calções presos à altura dos joelhos (N. do E)
Mal se poderia imaginar como ela encontraria algum, quanto mais,
conhecê-los.
Evidentemente, todas as mulheres ansiavam pelo casamento e,
deixando a escola, ficavam em suspenso, enquanto acumulavam
peças para o enxoval — roupa-branca e prata-ria. Havia muito de
espera nisso e uma comprometedora sugestão de emoção. Entre
aquelas que não eram pedidas, algumas desempenhavam o papel
quietamente — como a velha srta. Fife, que ia tomar chá, de guardasol e gola alta, com o vestido de seda macia batendo no meio da
perna e sapatos pontudos, cada um preso ao pé por um só botão:
mais aristocrática que a rainha Mary. Havia outras, desengonçadas,
tímidas ou com bigodes — subjugadas pelo pai, subjugadas pela
mãe ou desconsideradamente postas de lado.
Neste sentido, era difícil classificar Dora.
Caro já tinha permissão para ir sozinha à cidade, de barca. Havia a
passarela, o rangido de amarras, a partida, o cheiro de motores
trabalhando e o mar lambendo as verdes incrustações nas pilastras
de madeira. Ela ouvia a sirene anunciando a aproximação da
cidade, campainhas de bonde, a trepidação de uma grande ignição.
Na cabine, moças que trabalhavam em escritórios exibiam
diminutos espelhos e davam toques suaves de pó nas frontes
encurvadas e colos côncavos, com pequenas reverberações no tórax
ou coxas. Mais toques suaves atrás das orelhas e então fechavam firmemente as bolsas de mão, indicando que estavam prontas. Aquilo
não era o esquema para uma caminhada pela cidade, em fila de três,
mas um prelúdio para encontros.
Sozinha na cidade, Caro escolhia um livro surrado em uma livraria.
— Quanto é este?
— Quinze e três.
De volta à pilha oscilante. A mesa estava amontoada como um
arsenal.
— Hum. . . Bem, digamos dez xelins. Vendo-o aquela
noite, Dora disse:
— Você agora já tem livros de sobra.
Melhor que ninguém, Dora sabia reconhecer o inimigo quando o
via.
6
— Nós também — disse Ted Tice. — Sabíamos de coisas pelos
livros.
Caroline Bell estava sentada na grama, com os braços nus em torno
dos joelhos. A relva era tão compacta e unida como pontos de
bordado: a Inglaterra sem emendas. As árvores admiráveis eram
pinheiros de Weymouth, através dos quais o sol se filtrava em
pinceladas fantásticas, como luz em uma catedral. Os fatos em
breve ganhariam vida para ela, que só os conhecera, como as cores,
através dos livros.
— Como o calor, por exemplo — disse Ted. — Ou o amor.
"O calor é intenso", haviam eles escrito para casa, por intermédio do
Correio Militar. Ou, segundo a familiaridade: "Vocês mal
acreditariam". O navio de tropas, o velho Lancashire, partido de
Liverpool, entrou no mar Vermelho. Ouvindo-a chamá-lo de "velho
Lancashire", já esperavam algo semelhante. Aden era uma sucessão
de despenhadeiros fundidos, com emanações de petróleo e lixo colonial. Passaram pelo oceano Índico sem a menor sensação de alívio.
Em breve estavam esgotados o creme contra queimaduras de sol e a
soda limonada. Cantavam canções da guerra — sediças, em 1946,
mordazmente suplantadas — e canções para marcha, que
escarneciam da imobilidade. À noite, havia brincadeiras ou mais
cantorias, o que exigia esforço. Em Colombo e Cingapura, a
Inglaterra continuava vivendo episódios pouco ventilados.
Em Hong Kong, Ted Tice — que de novo partiria imediatamente
por mar para o Japão — estava em um clube para oficiais com um
tenente da Marinha Real. O clube ficava em uma rua lateral, de
onde se podia caminhar até o estaleiro naval. À noite, os oficiais
apareciam por ali, em puro branco e dourado, como que em trajes
da corte. Sob as lentas revoluções de um ventilador de teto, as
conseqüências da guerra iam sendo detidas. Havia um cheiro de
amido, de suco de limão e de gim, abrandado por almofadas de
lona, bem como o odor exalado da China, vindo fracamente da rua.
Três floridas mulheres claras, em um sofá, demonstravam sem
sombra de dúvida que eram enfermeiras de folga, tão desajeitadas
em seus vestidos como policiais em roupas civis.
— A gente sabe o que eles dizem.
O tenente de Ted baixava a voz, pois sabia uma ou duas coisas.
Ouvindo-o rir, uma das mulheres se virou candidamente e riu
também, com naturalidade. Teria uns dezenove anos, e seu rosto era
amplo e sincero, com um nariz comprido e dentes irregulares. As
mangas e o busto de seu vestido civil estavam apertados como a
túnica de uma estudante. Seu sotaque era de Manchester, como o da
mãe de Ted Tice.
(Quando Ted Tice saíra de casa pela primeira vez, a fim de cursar a
universidade, sua mãe lhe dissera: "Não precisa falar sobre nossa
loja, a menos que queira". Tinham-se encarado fixamente, como
crianças para descobrir quem pisca primeiro. Intolerável a sua
compreensão; sua falta de compreensão.)
O tenente naval, que não estava de todo mal, já andara pelo Japão.
— É um espetáculo americano. Não se pode fazer nada sem
permissão de MacArthur. — Deu um exemplo, obsceno e inevitável.
— Eles nos tratam pior que aos japoneses. No momento, estão no
assento do motorista e nós ficamos por baixo.
Na parede havia a fotografia emoldurada de um despretensioso rei,
em uniforme da marinha. Mesmo um rei podia ser lamentado, se
estava por baixo. Empregados chineses carregavam bandejas, ainda
inconscientes da mudança. A moça do sofá disse, em seu sotaque de
Manchester:
.— E eu digo que ele não poderia dirigir um caos.
Ela se referia ao primeiro-ministro.
O tenente dizia a Ted Tice:
— A menos que você tenha uma garota. — Ted Tice se virou
novamente para ele. — É como digo, não deixe que lhe empurrem
um lote de pérolas cultivadas.
Eles passaram todo o dia no mar Interior, devido ao trabalho dos
barcos caça-minas. As ilhas eram irrupções', cada uma delas
franjada por uma única fileira de árvores inclinadas. Na Inglaterra,
mesmo a costa mais agreste tinha se estabelecido com morosa
insistência, mas, ali, aquelas ilhas eram fragmentos de um
cataclismo. Ted jamais vira um alvorecer tão vermelho ou aldeias de
palha. Barquinhos que pareciam de papel de embrulho agitavam-se
nervosamente em ondas aluvianas, enquanto um jovem inglês,
debruçado na amurada, olhava para baixo, para os rostos que as
caricaturas haviam estigmatizado como a imagem do inimigo.
No porto, jaziam navios imprestáveis, como baleias em
decomposição. Havia docas que tinham sido bombardeadas e, na
bacia do porto, via-se a quilha revirada de um navio, adernado no
atracadouro. No cais, o inimigo de outrora, trajando a cor dos
faxineiros, puxava cordas e dava os gritos através dos quais um
navio é atracado. Um dos oficiais do navio disse:
— Você vai subir a colina.
As encostas acima do porto de Kure eram dispostas em terraços
dourados e verdes, e havia vales vermelhos de azáleas. Estava-se no
começo de junho.
— Não. A direção é outra. — E Ted Tice pronunciou o nome de seu
destino, como uma lição: — Hiroxima.
Era como movimentar-se em alto estilo — o jipe sem capota, o caqui
da autoridade. Havia docas bombardeadas e avenidas arruinadas
nos arredores do porto, depois a caverna de um túnel ferroviário
destruído, na encosta da montanha. O oficial ao lado do motorista
apontava:
— Estava aqui, ninguém acreditaria nisso agora, mas devia estar. —
E acrescentou: — Eu o irei informando, à medida que avançarmos.
Ao longo do encosto do banco dianteiro, seu braço pesado e
estendido mostrava energia, embora não de todo humana, como
uma túrgida mangueira de incêndio. Seu nome era Girling.
Desciam para uma vasta área sem horizonte, e, a princípio,
surgiram pequeninas casas inacabadas, por toda parte. Pranchas
não estragadas pelas intempéries estavam sendo transformadas em
aposentos, tetos eram entrançados em tabuinhas, em habilidosas
tabuinhas. Homens e mulheres transportavam cargas, eram
passarelas ambulantes, moviamse em fila contra o quente céu de
estanho. O jipe diminuiu a marcha ao lado de uma nova linha
ferroviária, recém-assentada. Onde os trilhos e a estrada se
separavam, um jovem inclinou-se pela porta traseira do trem,
cuspiu para eles e retirou-se.
— Se eu pudesse agarrá-lo! — disse o oficial. — Se eu pudesse. . .
Aquele homem estava literalmente decorado, usando as fitas de
muitas medalhas. Tinha uma cicatriz, apenas uma linha, como se a
face adormecida se tivesse vincado contra o travesseiro. Esse
capitão Girling notou o defeito na pupila de Ted Tice sem precisar
fitá-lo nos olhos. No assento traseiro do jipe eles mostravam, como
crianças, o que tinham conseguido — máquinas fotográficas,
relógios e pequenos rádios, com os quais o inimigo quase vencera.
No passado, a demolição de uma cidade expunha contornos da
terra. Isso não é mais permitido nas cidades modernas. A terra
havia sido nivelada anteriormente, para a construção da cidade;
então, a cidade desapareceu, deixando um vazio. No caso presente,
um rio se pasmava, com irrelevante naturalidade. Um único
monumento, vigas aproveitadas de alguma abóbada extinta,
presidia como um crânio oco ou um esvaziamento do próprio
grande globo: o de São Pedro, em alguma cidade eterna de
pesadelo.
Uma catástrofe, a respeito da qual ninguém jamais diria ter sido a
Vontade de Deus.
Era agora que a vida de Ted Tice começava a se modificar em
aspecto e direção. Ele se acostumara a pensar em sua vida — eu fiz
isto, como pude ter feito aquilo — à maneira de todo mundo. Mal
entrado na casa dos vinte, imaginaria ter conquistado um total
razoável. Havia seu pai, espalhafatosamente irritado; sua mãe, total
e desmazeladamente aflita. Então, havia a sua capacidade: um professor aparecendo, depois das aulas. "O rapaz tem uma aptidão fora
do comum." O rapaz, entre todos os demais. Seu nome havia sido
impresso em uma lista e o prêmio cobria tudo, inclusive os livros —
exceto um capote; e a universidade ficava perto do mar do Norte.
Devido à espectral planura onde uma cidade havia sido
famosamente incinerada, os eventos a que ele já chamava sua vida
foram se tornando irrelevantes, antes que Ted Tice experimentasse
torná-los importantes. Isso se derivava, não de um senso de
proporção, mas de profundo caos, uma confusão onde sua feliz e
diminuta ordem parecia miraculosa, mas inconseqüente. Também
provinha de uma revelação, quase religiosa, de que a colossal
proporção do mal só podia ser enfrentada ou contida por alguma
chama solitária de intensa e privada humanidade.
Era incerto se isso equivalia a uma perda de fé ou à sua aquisição.
Foi nesse período que o destino de Edmund Tice se tornou nebuloso
e ele deixou de ter certeza se venceria ou fracassaria.
O capitão Girling informou a eles que, em decorrência do que agora
viam, a guerra seria inconcebível.
— Nesse sentido, até que foi salutar. — Ele sentia prazer em
justificar um extremo. — Tem-se que parar em algum ponto —
acrescentou, a despeito da evidência.
Os outros permaneceram em silêncio, imaginando se o estômago do
mundo vomitara o suficiente. Por outro lado, havia o sedutor e
perigoso alívio de contemplar Armageddon, que os absolveria de
censuras ou esforço.
—
Eu lhe mostrarei — disse o capitão Girling. Como se à beira
de uma sepultura. Ele calculava uns vinte anos, e era uma
estimativa cautelosa, antes de serem conhecidos todos os efeitos.
Estavam sendo feitos registros, haveria um instituto, estudos. —
Bem, o assunto é seu, passo-lhe às mãos — acrescentou. Agora,
veriam os sobreviventes — confinados em uma instituição, como
são conservados em museus os artefatos de durabilidade especial.
O jipe penetrou por um corredor de casas recém-construídas.
— Vocês, caras, estão acostumados a isso — ouviu Ted Tice.
Ele gostaria de responder: "Eu nunca estive. Não sou médico". A
imaginação saltou para diante, consternada, entre vistas que logo
estariam ultrapassadas. À frente, o capitão Girling se sentia
satisfeito, vendo os joelhos daquele jovem tremerem. No cenário
presente, os compassivos ficavam em maior desvantagem que de
hábito.
A maneira de Ted Tice olhar interrompeu o suave fluxo de
aquiescência, lançando inúteis dúvidas sobre o inevitável. Se ele e
seus companheiros agissem da mesma forma, o mundo seria uma
bela confusão, refletiu o capitão Girling, por entre as ruínas
atômicas.
Por toda a nova rua, estavam assinalados os indícios da
normalidade: moradia, crianças, o silêncio interrompido. Troncos
alinhados reuniam os quadros da existência diária.
E pequenas mulheres atarracadas haviam estado recolhendo os
refletores côncavos dos holofotes, que tinham sido atirados por
todos os lados, caindo como pedras de uma erupção. Cheios de
água, esses recipientes haviam sido colocados à porta das casas. E
em cada um deles flutuava, rosa-avermelhada e de uma beleza com
que jamais se chegaria a sonhar, uma fronde ou uma única flor de
azálea.
Não se podia considerar tais famílias como sobreviventes, ou que
estivessem fisicamente ilesas e preparadas para crer de novo.
Quando desceram do jipe, o capitão Girling chamou Ted de lado:
— Escute aqui — disse. — Não banque o calouro. Calouro com o
sentido de algo emasculado — ou humano. Ele estava apenas dando
um bom conselho. E não via por que se deveria rir.
7
Na opinião de Ted Tice, serem portentosas era a sina daquelas
suaves colinas em torno da casa dos Thrales. Havia a estrada
abaixo, onde ele caminhava com Caro, voltando para casa, as
plantações e relvados ao redor, as colinas plenas de eventos.
— Foi aqui que a tempestade começou, no dia em que cheguei. —
Ele marcava tudo, tornava testemunhas os arbustos e sebes. Agora,
o que começava era o crepúsculo. — Está com frio? — perguntou. —
Logo chegaremos em casa.
Não obstante, em vez disso, eles parariam durante a subida e ele a
tocaria, falando de modo diferente. À noitinha, naquela atmosfera
maravilhosa, Ted Tice caminhava com menos segurança que por
ocasião da tempestade; sozinho, mesmo agora, com o que tinha
para oferecer.
Caro não considerava um lar a casa de que se aproximavam, mesmo
não possuindo nenhum outro.
— Você tem seu próprio lugar para morar, na universidade? —
perguntou, certa de que, quando alguém desfruta de privacidade,
tudo vai bem.
— Tenho um apartamento; são dois aposentos, na casa de um
professor. São muito bondosos, uma família feliz. Ele tem sido um
grande amigo para mim. Agora está de mudança para Edimburgo;
irei até lá, por uns dias, em setembro, antes de partir para Paris. —
Fez uma pausa, ao tom da separação e da partida. — Há dois
garotos na família. . . que gostam de mim. E uma filha, pouco mais
velha.
— Que gosta de você.
— Que ainda não decidiu se será dançarina ou pintora.
Caro podia ter perguntado: Que idade tem ela? No entanto,
permaneceu calada, e o espectro da filha logo se afastou deles.
Continuaram na estrada rural, enquanto ela fugia ao
abraço de Ted. A própria Caro pareceu admirar-se de tal
antagonismo e disse, em voz alta:
— Não sei por quê.
Recomeçaram a caminhar. Uma recente gentileza de parte dela
indicou objetividade: podia aceitar a gentileza, mas recusava todo o
resto.
— Senti-me feliz, hoje — acentuou.
Continuaria indefinidamente com ele, mas não haveria amor.
Existiam carências, de silêncio e compreensão, para ela mais
apreciadas que o amor, e pensava nisso como uma escolha feita.
Na curva da estrada, ele recordou:
— Foi aqui que a chuva caiu. . .
Suas feições se anuviaram com o crepúsculo ou devido a algum
novo estado de ânimo; recordava aquele meio-dia quando,
decididamente, uma estria de luz dividira a terra, vinda do céu.
Começaram a subir pela estradinha rural, atrasados pelos
espinheiros da trilha e pela intenção de Ted de parar.
Uma vez que o humor de Ted se voltava para ela, Caro ficou
exasperada por sua vigilância. Quando criança, Caroline Bell
detestava o incessante escrutínio de Dora e a sensação de ser
observada — enquanto lia, costurava ou brincava — com possessiva
atenção. Agora, disse a Ted o que deixara de dizer a Dora:
— Não precisa se mostrar tão interessado em mim.
Ted entendeu prontamente o significado — isso também fazia parte
da coisa, a rapidez com que apreendia os pensamentos dela.
— Eu sei que isso pode irritar.
Sem promessa de mudança. À noite ou em qualquer pausa, se assim
o preferisse, Caro poderia sentir o conhecimento psicológico dele a
seu respeito. Isso persistiria, através de todos os eventos do
universo de seus dias, como o relógio, que é o único mecanismo
audível em um carro de alta potência.
Foi o que disse a ele, sobre o relógio, exorcizando-o com seu riso.
Ted Tice replicou:
— O que está descrevendo não é um relógio, mas uma bombarelógio.
— Sendo assim, então há um limite. Bombas-relógio também têm
de parar.
— Não em um dado limite. Em um clímax.
Ted Tice imaginou que ela tivesse algum receio do amor físico. Não
inventou isso para salvar o próprio orgulho, já tendo observado
como ela efetuava bruscas retiradas, que se estendiam até mesmo
aos olhos, e o esforço — quase caritativo — com que, às vezes,
tocava algo; e, volta e meia, virava-se para a irmã mais nova e
menor, como para alguém que houvesse dominado tal assunto ou,
pelo menos, estivesse à vontade com sua inevitabilidade.
Como Ted Tice percebeu, não se tratava de dominar suas objeções.
Ela própria requeria um tipo de conquista. E ele iniciara essa
conquista, com dedicação. Em breve, as demandas de Caro seriam
testadas pela experiência, da mesma forma que princípios são
testados pela adversidade, e talvez ela transigisse temporariamente;
por ora, no entanto, Caro se imaginava transcendente sobre o que
ainda não havia encontrado.
Ela desejava elevar-se a alguma altitude solitária. Devido à
ignorância, possuía uma inobstruída visão do conhecimento — que
ela via majestoso, pálido e puro como a Acrópole em suas alturas.
Não se poderia dizer que a vaidade de Caro fosse inócua: como
qualquer desejo humano por distinção, podia ser facilmente
denunciada ou satirizada; e, em sua forma elementar atual, era
claramente escassa de piedade. De qualquer modo, se encarada
como pretensão, não era a pior, de modo algum.
Ted Tice já compreendera que seu apego a Caro era uma
intensificação de suas qualidades mais fortes, se não de suas
energias: não se tratava de uma aventura juvenil, nova e
experimental, mas de uma indicação de todo esforço, alegria e
sofrimento, conhecidos ou imaginados. A possibilidade de que
jamais conseguisse, enquanto vivo, fazê-la retribuir o seu amor era
uma descoberta que abrangia toda a existência. Em seu desejo e
pressentimento, ela era como um homem desperto que observa uma
mulher adormecida.
Um latido, um sino, um fazendeiro gritando para o animal, um
choro de bebê. Eram esses os únicos sons, mas que cunhavam
eternidade. Na encosta da colina, abaixo deles, uma porta aberta de
par em par à luminosidade amarelada de um vestíbulo miserável
era uma declaração de paz. Comparadas a tal franco
escancaramento, as janelas de Peverel, agora sua visível destinação,
eram manchas de velada respeitabilidade, onde se desconhecia o
ardor. Por mais que se pudesse criticar Sefton Thrale, algo drástico
devia ter ocorrido a sua casa, em época anterior. O século XIX tinha
o dom do ensombrecimento.
Enquanto eles caminhavam, Caroline Bell pensou no professor
Thrale — suas exposições, a enviesada postura e seus repúdios à
própria benevolência. Ainda na véspera, em suas maneiras rápidas
e conclusivas, ele havia absolvido completamente os inventores de
armas letais: "Nós nos limitamos a interpretar as escolhas do gênero
humano". E quando Caro objetara: "Os cientistas, então, não são
também homens? Pelo menos, responsáveis como seus semelhantes?", ele havia encerrado a questão com seu sorriso raramente
paciente, como quem assegura a uma criança que ela
compreenderia ou não se incomodaria, quando ficasse mais velha.
Não dispondo de qualquer vocabulário para o trabalho deles, Caro
era incapaz de imaginar as manhãs do professor com Ted Tice,
passadas cerimoniosamente atrás de uma porta, fechada todos os
dias. Podia visualizar os dois homens a uma mesa e o professor
tomando nota com sua caligrafia miúda, mas não ia além disso.
— Nunca lhe perguntei sobre seu trabalho — disse ela. Estavam
sentados em uma parte baixa do muro, que
ainda continuava quente — em um país do sul, ali poderia ter
estado um lagarto. Havia um cheiro de alfena ou de trevo, em um ar
tão livre, que se poderia sentir o cheiro do céu. Daquela geométrica
lâmina de luz amarela, um homem chamava: "Bessie! Bessie!" Até
que, por fim, um grito respondeu, insatisfeito.
— Em verdade, não é preciso nenhuma competência técnica para
que se entenda o nosso desacordo, dele e meu. — Caro não aludira
ao desacordo, que era sentido na casa, se não testemunhado. Ele
continuou, sem reservas: — Simplesmente, não existe na Inglaterra
nenhum lugar onde esse telescópio possa ser instalado. Não há
visibilidade. Todos eles sabem disso. No entanto, em benefício da
política e do lucro, por mesquinharia, o telescópio ficará aqui.
A Caro, aquilo parecia um tema adulto, mais sério que o amor.
— E para onde ele deveria ir?
— Há bons lugares no sul da Europa. Entretanto, jamais permitirão
que ele fique fora do país.
Ted explicou como o professor estudava as horas estimadas da luz
do dia, simulando acreditar. Enquanto ele falava, as sombras das
folhas alongavam-se na trilha, tornando-se exóticas; cruzando o pé
estendido de Caro, uma tira de sombra, semelhante a uma sandália.
Tornaram a ouvir o chamado, "Bessie", e o grito impaciente em
resposta.
— Eu poderia publicar uma opinião divergente — disse Ted.
— Se é como diz, é claro que deveria.
Ted fizera aquilo soar como algo indiscutível, mas, quando
começou: "Compreenda", e hesitou, Caro pensou que ele poderia ser
irresoluto, como todos os outros.
— A única finalidade disso — resumiu Ted — seria chamar a
atenção da imprensa e provocar um escândalo. A coisa não se
deteria, mas atrairia a atenção. — Acrescentou: — Existe ainda a
questão da deslealdade e a costumeira interrogação sobre onde jaz a
lealdade.
Pela mudança de entonação, Caro poderia ter esperado um
desabafo. Sua surpresa foi enorme, quando ele perguntou:
— Lembra-se do cartaz de hoje, onde você leu "Grandes esperanças"?
A pergunta dele, "Lembra-se", trouxe a manhã de volta no tempo,
uma distante inocência.
— No cinema.
— Exato. Lembra-se de como, na primeira página daquele livro, o
menino ajudou o condenado evadido? — Era mais uma pergunta
que um lembrete.
— Sim, mas ele não agiu como amigo. Foi por medo. Parecia
inteiramente natural estar sentada em um muro,
no escuro, falando sobre um livro.
— O medo pode assumir outras formas além da prestabilidade e,
naquele exemplo, é recordado como compaixão.
As pontas dos dedos de Ted Tice descansaram no muro de pedra, a
fim de equilibrar seu corpo para algum novo avanço.
— Durante a guerra, ajudei um prisioneiro a escapar. Um alemão.
Eu estava no País de Gales. Fiquei dois anos em uma escola de lá,
depois de transferido daquela que você conheceu hoje. A alguns
quilômetros, mais para o interior, havia um campo de prisioneiros
de guerra, e ouvimos dizer que um oficial — um general,
naturalmente, segundo disseram — havia escapado. Quando me
permitiam, eu às vezes dava uma longa caminhada até a costa, a fim
de ficar sozinho e apreciar o mar. Naquele tempo, o mar constituía
uma espécie de proibição, como as praias. Havia arame farpado
enrolado em pilhas, como plataformas de metralhadoras, espessas
como vestiários de banhistas. O oceano além parecia a liberdade.
Não se pensava que ele levaria à Irlanda ou à América — era o
infinito, como o firmamento. O mar aberto. Eu tinha dezesseis anos,
queria o isolamento acima de tudo e era infeliz quando o conseguia
— exceto durante aqueles passeios até a costa. Só contava com a
escola em meu presente e o exército no futuro. Mal tínhamos licença
para agir por conta própria e, não obstante, em um ou dois anos
estaríamos na luta, talvez mortos. De fato, dezoito meses mais tarde,
fui enviado para o treinamento com radar, já no fim da guerra.
"De qualquer modo, eu costumava caminhar da escola até a costa e
ficar de pé nas últimas colinas, olhando para o mar durante algum
tempo, antes de tornar a fazer os dezesseis quilômetros de volta à
escola. Apenas contemplar algo amplo tinha um sabor de liberdade.
Eu também adorava o campo, que não tinha vegetação — apenas
relva áspera e moitas oscilando ao vento constante. Cores
desbotadas, confinadas a uma periferia — como se houvesse um
âmago da existência, e ali se chegasse mais perto dele. Ou, em
outras palavras, o lugar era tão obscuro, que seria necessário o
máximo de convicção para acreditar que ele — ou você — existiam.
O tempo era sempre borrascoso, mas eu não me importava. Até
mesmo isso me dava uma sensação de exposição, de espaço após o
confinamento.
"Havia uma determinada curva de penhasco, era como caminhar
em torno de uma curvatura da terra. E, daquela vez, havia um
homem sentado em uma fissura das rochas, olhando. Não
observando fixamente. Tão silencioso e indiferente, que poderia ter
estado lá esperando por mim. Percebi, imediatamente, que era o
alemão. Como se, também eu, estivesse esperando por ele. E
ficamos, os dois, olhando. Ele conseguira um capote em algum
lugar, mas estava quase gelado. Estivera perambulando pelas
montanhas próximas durante quase uma semana e se encontrava
inteiramente vencido, além de exausto e faminto. Os olhos estavam
muito saltados, e você precisava ter-lhe visto as mãos.
"Ele foi a prova conclusiva de que a guerra era real", continuou Ted
Tice. "Bem, isso foi quase tudo. Dei-lhe o meu sanduíche e meu
pulôver. Dei-lhe também um frasco de uma coisa terrível a que
chamávamos caldo de carne. Os próprios policiais teriam feito o
mesmo. O fato de não denunciá-lo é que constitui o escândalo
público, mas nem mesmo pensei em denunciá-lo."
Aquilo diferia de todos os outros segredos que Caroline
Bell conhecia, por não ter pontos escuros. A escuridão significara
Dora, significara eventos sórdidos com o eu. Ao forçar caminho
para a luz, vinda da escuridão de Dora, Caro adquirira consciência e
equilíbrio, como uma profunda e laboriosa educação. O exercício de
princípios sempre exigiria mais dela que daqueles que haviam
crescido com eles, porque Caro o aprendera através da força de
vontade. Caro jamais faria a coisa certa sem a conhecer, como
alguns. Agora havia aquele segredo de Ted, raiado de difícil benevolência: algo imediato, porém tocando escassamente o eu, nobre,
mas não virtuoso. Seria presunçoso julgar ou perdoar. Ela ficou
silenciosa, depois reverteu à lógica da história.
— Ele fugiu?
— Fugiu. Conhecia o caminho para descer até o mar, para o que
quer que o esperasse lá, mas estava fraco demais para a tentativa,
até que eu apareci. Dias mais tarde correu a notícia de que, de
algum modo, ele fora levado por sua gente. Nunca soubemos como.
Contudo, após a guerra, a imprensa anunciou o fato como um caso
notável de nossa imbecilidade — era assim mesmo a manchete.
Porque descobriram que ele era um cientista envolvido com as
instalações de mísseis — daí o motivo de sua gente ter tanto
interesse em recapturá-lo. Nada disso foi percebido quando o
prenderam, porque ele estava de uniforme e tinha patente militar —
foi apanhado durante uma caprichosa viagem em um destróier, de
volta a Peenemunde, no Báltico. A verdade só foi descoberta
quando ele se evadiu da prisão. Então, devido aos ataques de
foguetes, por fim se ficou sabendo que o deixamos escorregar por
entre nossos dedos — disse Ted. — Sempre se diz nós e nossos. Fui
eu que o deixei escorregar por entre nossos dedos. Assim, depois
que ficou estabelecido quem era ele, tive também que pensar nos
ataques dos foguetes.
— Onde está ele agora?
— Na América. Atualmente, fabrica armas para eles e para nós. A
história de sua fuga faz parte da lenda pública, quase admirável,
como é apresentada pelas revistas. Eu não consto nela — talvez a
recordação fosse incompatível com a vida de poder. Ter estado à
mercê de mais alguém sugere que a mercê pode importar. Tenho
pensado, por vezes, que agora esse seria um caso difícil para um
processo — o meu, quero dizer. — A voz de Ted Tice sorriu
brevemente no escuro. — Vejo fotografias dele, de quando em
quando. Absolutamente irreconhecíveis, como se ele agora usasse
uma máscara e seu rosto real fosse aquele que vi. O rosto que todos
possuímos no ponto extremo.
Caro estendeu a mão para ele. Ted a tomou, aceitando a mera
gentileza.
— Não estou procurando uma justificativa. É a primeira vez que
comento isto, e não estou me saindo bem. Não sou bom para contar
histórias. Na época, eu sabia que ele podia ser alguma coisa, das
piores, e havia inclusive a idéia de que, em sua opinião, estaria
vencendo. Não que eu refletisse nisso, então. Naquele momento, eu
tinha que agir, e aquela foi a forma tomada pela ação — a forma
permanente, pois, seja o que for que contivesse de errado, eu não
imaginaria fazê-lo de modo diverso. Agora, contudo, em geral
esqueço isso. Se me lembro, pode parecer importante ou irrelevante
— dependendo de minha disposição. Não se pode dar apenas
esmolas aos pobres e inocentes. De qualquer modo, as complicações
surgiram imediatamente, em decorrência da ocultação, o que gera
suas próprias traições. Mesmo quando não se deseja
particularmente divulgar uma experiência, dever-se-ia ser capaz de
fazê-lo. Eu não conhecia ninguém em quem pudesse confiar, não
tinha nenhuma espécie de amigos. E não estava certo de entender
bem aquilo tudo, quanto mais saber o que era direito ou não. Além
disso, naturalmente, não me agradava a confusão, o escândalo, no
caso de a coisa se tornar pública. Assim, deixei tudo em segredo, até
hoje. Eu contaria tudo agora, se quisesse, mas de nada serviria.
— Qualquer pessoa consideraria tal ato acertado, em um livro —
disse Caro —, mais ou menos como o menino e o condenado de que
você falou. Na vida real, entretanto, a maioria o condenaria.
— Compreenda, eu já tinha idade suficiente para não me creditarem
um impulso generoso. Um garoto de dezesseis anos tem idade
demais para a santa inocência.
Não havia muito, a menina Caro deixara de acenar para aqueles
atrás do arame farpado, quanto mais oferecer misericórdia.
— Um ato consciente de benevolência independente — disse Ted —
é o mínimo que a sociedade se pode permitir. Se eles cedessem por
uma vez, não haveria mais fim para isso. Caso ele e eu estivéssemos
em luta, eu o mataria, tendo aceitado os padrões da sociedade. Da
forma como aconteceu, apenas apliquei meus próprios padrões,
pois não me restava outra alternativa. Não estou pretendendo
escusar-me. Apenas, eu tinha vantagens demais para usar. De novo,
as complicações viriam mais tarde. Nossos melhores instintos não
são mais confiáveis e coerentes do que a lei. Se você vive
essencialmente em sociedade, haverá vezes em que preferirá
depender da fórmula social — e descobrirá que, de algum modo,
arruinou essa possibilidade. Desqualificou-se, por julgar os outros
segundo aquelas regras.
— Está querendo dizer que, um dia, você talvez tenha tido um bom
motivo para denunciar alguém, mas que perdeu esse direito.
— Sem dúvida. — Ted Tice prosseguiu, depois: — Tudo isto nos
traz de volta ao velho Thrale. Provavelmente vou deixar o velhote
se meter nesse negócio do telescópio, mas a honestidade de minha
posição me repugna. Desta vez, pelo menos, não se pode dizer que
tenho todos os trunfos, ou qualquer deles.
— Você está com a verdade. Ted Tice riu.
— Assumir livremente tal desvantagem devia ser convincente em
si. — Virando-se no escuro, ele tornou a apertar a mão da moça,
mas com um toque incerto, dedutivo, inteiramente pessoal, como o
contato do cego. Inquiriu novamente, como já havia feito nessa
manhã: — Em que está pensando, Caro?
— No alemão. Gostaria de saber o que ele achava e como eram as
coisas entre vocês dois.
— Certo. Excesso de elementos, como ser incapaz de tomar fôlego
em meio a um vento forte. Em outro nível, pequenas sensações
familiares — ressentimento, por exemplo, por isso ter acontecido
comigo, ao invés de com um patriota renitente, que manejaria o
assunto de maneira convencional e sem o menor escrúpulo.
Também uma sensação degradante de juventude e limitações.
Então, havia a nova possibilidade de que nada importava, nem
mesmo isso, embora tivesse acontecido para esclarecer aquilo. Da
parte dele. . . quem sabe? Nenhuma demonstração de emoções
naturais, nenhuma simpatia ou excitamente, inclusive medo, no
sentido habitual. Não possuíamos palavras em comum, mas, sem
dúvida, eu teria identificado algum desejo a partilhar.
— Por isso é que escolheu o tipo de trabalho que faz?
— Quem sabe?
— Você poderia voltar a encontrá-lo, qualquer dia.'As coisas se
repetem, de modo bastante estranho.
— Também já pensei nisso. Pensei que talvez existam mais colisões
dessa espécie na vida do que nos livros. É possível que o elemento
de coincidência seja menosprezado na literatura porque parece
impostura ou não pode ser tornado crível. Enquanto a vida em si
não precisa ser imparcial ou convincente.
Havia nisto algo de conclusivo, que fez com que logo se tornasse
necessário levantarem-se e caminharem. A história dele criara uma
intimidade mais humana do que sexual, uma crise de conhecimento
comum, solene demais para traduzir-se em desejo. Ante a visão do
homem e do rapazinho entre as rochas geladas, o amor se colocara a
respeitosa distância, onde permaneceria à espera do amanhã.
8
"Por favor, desculpem a carta mal-escrita e mal-alinhavada. Minha
unha do polegar se quebrou, e eis aí o resultado."
Caro e Grace chegaram ao pós-escrito no mesmo instante. Estavam
de pé na sala de estar de Peverel, ao meio-dia, Grace segurando a
carta e Caro olhando por sobre seu ombro. Dora ia se casar. '
Nunca tendo acalentado a possibilidade, as duas estavam
despreparadas para a facilidade da liberação. Ou para a conscientização de que isso poderia ter acontecido antes e em tempo.
Seus ombros se tocavam, em uma espécie de conforto, tendo tanto a
carregar e estando tão sobrecarregados. Portanto, elas podiam ser
poupadas de algo.
— Vejamos novamente a primeira página.
Viraram atabalhoadamente as páginas, até onde estava escrito
"Queridas G e C".
Beth Lomax, a endinheirada viúva da Victoria League, tinha se
revelado gratuitamente grosseira, logo após chegarem a Gibraltar.
Tendo ela mesma convidado Dora para a visita, passara a tratá-la
como a um estorvo. Dora prontamente colocara os pingos nos "ii":
Beth Lomax ouvira algumas verdades, durante um bom período de
tempo. Depois, Dora fora à cidade, para conseguir passagem de
volta à Inglaterra. Na agência marítima, notoriamente ineficiente,
ela ficara esperando em um sofá de couro, com um homem que ia
apresentar uma queixa. Acontece que a espera se revelou longa
demais para ambos. Saíram para uma xícara de chá, sem a
passagem e sem que a queixa fosse feita. (De qualquer modo, as
malas do major Ingot chegaram a Algeciras no dia seguinte, o que
significou um bom augúrio para os dois.) Desde então, tinham dado
algumas saídas e descoberto interesses mútuos.
Caro leu, admirada:
— Temos gostos iguais e pensamos da mesma forma. "Vocês duas
agora estão crescidas", escrevia Dora.
"Não precisam mais de mim." Havia censura, bem como ironia, na
frase. O casamento seria no Algarve, onde o major vivia — ou
residia. O major Ingot — Bruce — estava cuidando dos
preparativos. "Nunca tive ninguém que fizesse as coisas por mim,
antes, de modo que estou saboreando o luxo." Os noivos viajariam
para a Inglaterra, mas tão-somente a fim de arrumarem seus
pertences, uma vez que o major se fixaria no Algarve, onde cuidava
de negócios de importação e exportação, depois que se reformara.
— Dora em Portugal! — suspirou Grace. Aquilo parecia histórico.
— Oh, Grace, graças a Deus!
Aquilo era o mais próximo a que chegariam, na avaliação da perda.
Inclinaram-se novamente para ler. Dora estaria freqüentemente na
Inglaterra, porque o major Ingot — Bruce — tinha que visitar seus
compradores. Afinal de contas, não era como se ela fosse
desaparecer. Nem precisava dizer, afirmava, que as amava. Ela
própria não importava; elas eram tudo o que importava. "Nunca
pedi nada a ninguém e não vou começar agora." O vestido seria de
crepe marfim, um modelo de passeio, com um casaco curto. O
chapéu, bege. Havia uma palavra que não conseguiram ler, mas que
poderia ter sido "estefanote". O major estava arranjando algumas
fotos e Dora levaria as que estivessem mais ou menos boas, embora
nunca tivesse tirado um retrato que lhe agradasse. Seria um alívio
fugir daquele calor, pior do que tudo na Austrália. Apenas ser feliz.
A carta era assinada "D". Dora tinha dificuldade, não só com
assinaturas, mas com saudações também.
Um tom mecânico, quase distraído, levantava a possibilidade de
que Dora talvez nunca tivesse tido sentimentos em relação a elas.
Grace receava que Caro pudesse chamar a atenção para isso. Houve
também uma rápida, indecente conscientização da mudança carnal
que Dora, espantosamente, seria a primeira delas a experimentar.
— Temos que passar um telegrama.
No entanto, permaneceram ali, juntas, em uma síntese de confusa
recordação. Grace gostaria de ter pensado em algo universal, mas só
conseguia alcançar a superfície do sentimento. Caro poderia estar
vendo a própria Grace, de avental e arrastando uma cadeirinha
azul-celeste. Iam dar, uma à outra, um raro abraço.
— Espero não estar interrompendo.
Sefton Thrale viu que as duas estavam eretas e enlevadas à luz do
sol, segurando sua carta.
As duas se separaram, ainda não preparadas para contar.
— Trouxe Tertia comigo.
Ele trazia Tertia consigo, a filha de um lorde. Tão insinuante e bela,
tão loura e alta, que parecia o anúncio de algo muito caro. Viera do
castelo dirigindo seu carro e tinha os cabelos presos com uma tira
de seda rosa, que lhe passava atrás das orelhas. Os olhos eram azulclaros — com um brilho que, à distância, parecia de genuína delícia,
e talvez o tivesse sido realmente, na infância. De perto, no entanto, a
claridade ofendia, não dando nem recebendo boa impressão. Nada
nela parecia tocado pela benevolência.
As circunstâncias impunham Grace como a responsável ali. Fechou
a carta de Dora em seu envelope e adiantou-se, polida demais para
denunciar-se. Murmuraram "como vai". Tertia ofereceu as pontas
dos dedos, em um gesto um tanto cansado, como se reservasse
forças para algo que valesse mais a pena.
— Paul chegou?
Três jovens sentaram-se, enquanto Sefton Thrale saía, em sua
incumbência favorita — saber notícias de Paul Ivory, que,
finalmente, devia chegar naquele dia.
Após apertar mãos, Tertia tocou seu corpete e seu cabelo: um
animal que expulsava fastidiosamente os traços de contato. Percebia
que viera interceptar, sem interromper, uma corrente de alto
sentimento — as irmãs em sua preocupação particular, nada
acessíveis ao seu desinteresse. Como acontecera antes com Christian
Thrale, ela as achava insuficientemente cônscias da própria
condição inferior, e gostaria de abrir-lhes os olhos quanto a isso.
Sentia que, embora Grace eventualmente pudesse ser corrigida
dessa maneira, Caro seria um caso mais difícil.
Tertia Drage arrancou uma folha presa a seu vestido e a jogou
enfaticamente na lareira vazia. Aquilo era algo que elas notariam
novamente em Tertia — que ela manejava objetos ou empurrava
portas com punitiva rudeza, não encontrando razão para conceder
uma palavra de complacência. A ocasional raiva humana, sentida
contra coisas inanimadas que caem ou resistem, no caso dela era
perpétua.
Não. Tertia não queria sherry. Obrigada. Tinha vindo no carro, que
elas poderiam ver, pela janela aberta. Caro levantou-se e espiou. Era
um Bentley, baixo e conversível, de antes da guerra, um modelo
cobiçado pelos colecionadores. Verde-escuro; esguio e lindo como
Tertia.
— Que carro maravilhoso!
Caro empurrou a persiana da janela um pouco mais e ficou
contemplando o carro. Seus faróis circulares, dispostos sobre os
pára-lamas, eram tão vidradamente apagados como os olhos de
Tertia.
— Mil novecentos e trinta e sete — informou Tertia. — E em
condições para um salão de exibições.
Um gato ainda não adulto chegou pelo peitoril. Caro se sentou
novamente, com o gato no colo. Grace segurava a carta azul de
Dora. Elas não conseguiam recordar a quem cabia a vez de falar
agora. O professor voltou.
— Trago informações decisivas — disse.
Tertia, no entanto, não deu qualquer sinal de vida. Além da janela, o
carro era mais simpático, porque sugestivo de fluência e de eventual
animação.
Paul Ivory vinha de Londres, motorizado, devendo chegar logo.
("Motorizado" era a palavra preferida do professor.) O carro de
Ivory investiria ao longo do de Tertia, que, quase certamente, o
eclipsaria ou condenaria.
— Não posso esperar — disse Tertia, demonstrando com isso
apenas que não iria esperar. — Odeio reuniões.
Ela afirmaria "Não gosto de bichos" ou de crianças ou do oceano, ou
da primavera, confiante em que sua antipatia devia ter importância.
E qualquer opinião contrária tinha de ser, como ela implicava,
falsamente sentimental. Mesmo assim, ela não conseguia deixar
aquelas duas irmãs apagadas ou em equívoco. Em realidade, ambas
aguardavam sua saída, para poderem recomeçar.
Caro tornou a cruzar as pernas com cuidado. No gatinho
adormecido, o peso deslizava de uma extremidade para a outra,
como em uma sacola de feijões. O peso legítimo estava no envelope
azul, no colo de Grace. Quanto a Tertia, Caroline Bell gostaria de
saber qual Benbow a adernara, naquela condição de salão de
exibições.
Grace pensou que Tertia logo afirmaria odiar gatos.
— Posso manobrar o carro aí fora — disse Tertia. — Não posso?
Suas observações não eram acompanhadas de um sorriso, mas
isentas de dúvida ou de delicadeza. Como argolas atiradas, que
caíam tilintando, em um preciso baque, surdo, em torno de uma
estaca.
— Adeus — disse, relanceando os olhos pelo aposento. Para Caro,
acrescentou: — Os gatos me odeiam.
Quando Tertia saiu com Sefton Thrale, Caro disse:
— Radiantes com sua felicidade. O que acha de algo assim?
Em verdade, a única felicidade que Dora havia endossado era a
delas duas.
— Podemos redigi-lo. Descerei de bicicleta, para enviar o telegrama.
A atitude de Tertia as contagiara com monotonia, e elas agora não
tornariam a abraçar-se sobre a carta de Dora. Lá fora, o carro era
manobrado em marcha à ré até uma margem relvada, onde se
agachou para saltar. A gasolina exalou-se sobre os pés de ibéris.
Então, Tertia disparou, dispersando pequeninas pedras.
Quando elas haviam escrito os dizeres do telegrama, chegou o
segundo carro, atarracado, fechado, vermelho-escuro. Puderam ver
o homem de cabelos claros ao volante e Ted Tice, surgindo de um
lado da casa para ajudá-lo a estacionar.
— Tantas coisas acontecendo de repente — comentou Grace. — É
uma pena que não tenham sido mais espaçadas.
Com isto, ela demonstrava a medida infantil de suas vidas isoladas,
inocentes, mas ainda assim expectantes. Ted desapareceu da vista
de ambas, mas puderam ouvi-lo dizer, bem alto: "Para a esquerda"
ou "À direita" e "Cuidado". O rapaz do carro retirou o cotovelo de
sobre o vidro arriado da porta e tomou o. volante com as duas
mãos. Usava uma blusa de malha escura, com gola alta. Seu cabelo
caía sobre a testa, como o de um colegial.
As rodas giraram neste sentido, naquele, e Ted Tice, invisível,
gritou, como um diretor de filme:
— Pare!
Grace perguntou a Caro:
— Quer que lhe traga alguma coisa da aldeia?
Não obstante, as duas continuaram espiando o carro vermelho, até
vê-lo parar. O motor foi desligado e um rapaz saiu: alto, encantador
e bem-trajado, de uma forma que as duas nunca tinham visto.
Paul Ivory foi o primeiro inglês que conheceram usando — como
usariam todos mais tarde — uma blusa de malha azul-escura,
modelo de pescador, calças leves de algodão e sapatos de lona.
Chegou então o momento em que Ted Tice seria o mais culpado, já
que foi ele quem parou, olhou e baixou a mão. Qualquer que fosse a
espontânea antipatia anunciando-se entre eles dois, Paul pelo
menos se adiantou e apresentou-se, tornando as coisas possíveis.
Inclusive quando seu olhar franco pousou em Ted, avaliando-o e
decidindo. Trocaram um aperto de mãos, porém Ted permaneceu
impassível, enquanto Paul Ivory tirava uma mala do carro e batia
uma porta. Ele bem podia ter-se afastado, porque o professor já saía
da casa, anunciando que não podia estar mais satisfeito. Mas não;
ele continuou lá, desajeitado e deslocado, como que apático na
atividade da chegada e decidido a que Paul Ivory se salientasse,
pelo contraste entre ambos.
Foi uma demonstração tão pronunciada de instinto, que Grace se
voltou a meio na janela, esperando que Caro interpretasse.
Caro achava que, na Inglaterra, a desconfiança das classes podia
destruir até mesmo os melhores, desviando-lhes as energias. Ela
observava, com certo amplo sentimento que não chegava a ser
amor, no qual aprovação e exasperação se fundiam em uma ânsia
para que Ted Tice oferecesse a benevolência indispensável, em uma
pequena cena de atitudes superficiais e intercâmbios sistemáticos. A
essa altura, ela se acostumara a vê-lo proporcionar rasgos de
compreensão que, em si, eram fortes experiências. Naquela ocasião,
entretanto, ele permaneceu de pé no cascalho, com as mãos pendidas, parecendo não tê-la percebido e nem a mais ninguém.
Enquanto isso, Caro espiava, perguntando-se que impulso atuava
sobre ele.
Paul Ivory olhou para a janela baixa em que as duas jovens, de pé,
ficavam quase ao seu nível. Ele sorriu, com seu rosto simpático,
claro e atraente, afirmando a agradável surpresa com tal controlada
sinceridade, que a surpresa deixava de existir. As irmãs sorriam
também, na maneira séria que empregavam para tais momentos.
Apenas Charmian Thrale, em uma porta aberta, fazia contraste
entre aquela auspiciosa chegada e a maneira como Ted Tice havia
surgido, encharcado pela tempestade; recordando como Caro, do
alto da escada, olhara para baixo naquela manhã, e se fora embora.
9
Quando Paul Ivory caminhou de alpargatas pelo caminhos e
corredores de Peverel, o som inaugurou maciamente a era moderna.
O mesmo fizeram suas blusas de malha de algodão — algumas
azuis, outras pretas — e as calças de popeline clara. A era moderna,
bem como o tempo, tornavam aquilo possível. Paul trouxera
consigo o sol e sua sorte. Ainda cedo, nas manhãs quentes, as moças
passavam a ferro vestidos estampados em um aposento junto da
cozinha, onde uma mesa de passar era coberta por um cobertor
usado e havia um velho tanque de pedra. O pulo ver Shetland e o
cardigã verde-mar, em ponto torcido, tinham sido postos de lado,
talvez para sempre.
— Lembro-me de você quando ainda pequenino — disse a sra.
Charmian Thrale a Paul Ivory. — Foi a única criança que chegou a
cativar meu pai.
Era a sua maneira de falar: "Que adolescente encantador e deveras
abençoado!" E também de esboçar, com a máxima delicadeza, sua
própria e desolada infância. Paul aceitou bem o elogio, nada
constrangido, modestamente satisfeito. Naquela época, não era
comum ver-se um rapaz apreciando francamente o fato de ser
jovem e sentindo justificado prazer com a própria saúde e boa
aparência. Em sua prematura e merecida distinção, ele fazia o
futuro parecer menos informe.
A peça de Paul seria encenada em Londres, no outono. Como estava
em preparação, ele recebia telefonemas e envelopes registrados.
Havia manhãs em que não devia ser perturbado, pois fazia
acréscimos ou reescrevia. A peça intitulava-se Amigo de César, e já
fora anunciado pela imprensa que apresentava uma família
contemporânea numa analogia com o poder político. O próprio
Paul lera isso, com um
sorriso. Um famoso ator concordara em representar o papel
principal.
Paul Ivory era um homem promissor em um sentido literal: as
circunstâncias haviam assumido o solene compromisso de vê-lo
progredir. Sua peça seria ampla e justamente elogiada.
Cidadezinhas provincianas e capitais estrangeiras clamariam por
ela, e um famoso diretor a tornaria um filme de sucesso. A radiante
preeminência do compromisso dele com os eventos tinha muito
mais de noivado que seu futuro comprometimento com Tertia
Drage.
Em sua sutileza e confiança, a beleza física de Paul, como seu
caráter, sugeriam técnica. Como uma tela de qualidade, que pode
receber uma tonalidade escura por baixo da que se tornará clara, ou
clara por baixo da que será escura, também Paul Ivory podia ser
subliminarmente frio onde seria quente e quente onde se mostraria
frio — os tons sobrepondo-se para criar, engenhosamente, um
delineamento forte, mas ainda assim fluido. Da mesma forma, seus
membros podiam parecer instrumentos ou armas de graciosidade,
ao invés de manifestarem sua simples evidência. Os dedos
adelgaçados de Paul se inclinavam para cima nas pontas, com
extrema sensibilidade, como que testando o calor de uma superfície.
—
Paul conseguirá o que quer — disse Sefton Thrale a Ted Tice.
Falava como se elogiasse a beleza de uma jovem, diante de uma
feia. Não obstante, havia a noção de que Paul Ivory e Ted Tice eram
ambos homens predestinados e simbolicamente opostos. Não se
tratava apenas de o mundo tê-los criado como contrastes. Mais
irracionalmente, parecia que um deles teria que perder, para que o
outro vencesse.
Sefton Thrale já comentara duas vezes que Tice iria embora
brevemente, e não esquecia a data certa.
A pedido de Paul Ivory, a sra. Thrale lhe falou sobre o vigário —
que tinha problemas de fala e já fora comunista, mas que nunca,
como o homem em Thaxted, hasteara a bandeira vermelha na igreja.
— Ele é high1. Muito high — indicou o professor, como se um
sacerdote fosse uma peça de caça pendurada, recomendando
atenção para a fachada da igreja, como um belo exemplo de pedras
cardadas. Então, no domingo, Paul fora à igreja da aldeia,
envolvendo os moradores de Peverel em uma atitude religiosa.
Passando blusas a ferro, as duas irmãs viram o carro vermelho
afastar-se. Charmian Thrale talvez observasse o evento, de algum
cômodo do andar de cima. Paul espargiu seu encanto e Ted, seu
desencanto. Era inegavelmente comovente a idéia daquele alto e
vitorioso varão ajoelhado, dando e recebendo. Mesmo que tanto a
sra. Thrale, na janela de cima, e Caro, na cozinha, estivessem
cônscias de que não se pode confiar em mulheres com emoções de
tal espécie.
Carregando as roupas dobradas pelo corredor, Caro encontrou Ted
na porta aberta.
— Christopher Robin está dizendo suas preces — disse ele.
Caro não sabia que partido tomar, mas, como Sefton Thrale,
recordou que Ted logo iria embora. Deixou as blusas passadas em
Membro da High Church (Igreja Alia), partido conservador e ritualista na Igreja
Anglicana. (N. da T.)
;1
uma cesta nos degraus e foi com ele para o jardim.
— Em duas semanas terei ido embora — disse Ted.
— Irá para Edimburgo. E, logo depois, Paris — respondeu ela,
querendo deixar claro que não havia motivos para ele se lamentar.
Dentro de um mês, ela própria viajaria para Londres, a fim de tomar
posse do cargo público. Porque Caro fora aprovada no concurso, à
frente de todos os outros candidatos; à sua maneira, era também
uma pessoa predestinada, o que não acontecia com eles.
Houve a breve e silenciosa fantasia a respeito de uma vida nova,
incluindo-se as mesas de pinho e escalavradas cadeiras de
escritório.
— Preciso imaginar tudo sem você — disse Ted. Caminharam para
fora do jardim e pararam debaixo
das árvores, observando o vale. Toda uma nação jazia imóvel, com
o domingo e o verão. Um campo cultivado amarelo, muito distante,
era plano e brilhante como uma estria pintada em tela. Das terras
altas e além, restos de cereais abandonados no campo após a ceifa,
os restolhos, confundiam os olhos, assemelhando-se a pedaços de
velho tweed. Na elevação oposta, como uma peça de xadrez no
tabuleiro, o castelo de Tertia chanfrava o céu com suas ameias
cinzentas.
— Não sou atraente a maior parte das vezes — disse Ted —, e nada
menos atraente que o amor indesejado. No entanto, em breve
estaremos nos despedindo. Espero que você se lembre de mim e que
me permita escrever-lhe. E, finalmente, que me deixe amá-la.
A jovem ouviu a declaração com um estoicismo que a fazia parecer
o sofredor: suportando o apelo do rapaz como uma dor necessária,
tratando-a com cuidadoso respeito.
— É claro que me lembrarei de você e escreverei. De todos os que
conheço, é a quem mais aprecio. — Ela se afastou — um vestido
azul que passava como uma névoa, sobre um fundo de árvores
escuras e campos pintados.
— Quanto ao resto, não posso imaginar como chegaria a acontecer.
— Em minha opinião, é muito difícil.
Para a liberação de algumas poucas palavras, ele desperdiçava os
haveres de silêncio. Era inconcebível que não pudesse tocar ou
abraçar aquele corpo azul-claro, que tinha dado energia a todos os
seus dias. O próprio contorno da terra, além dela, não tinha
segredos.
— Neste momento, você está tão distante de mim como quando
ficarmos separados — acrescentou ele. — Não traz felicidade para
mim permanecermos juntos, aqui e agora. Entretanto, mais tarde
pensarei nisto como se tivesse estado próximo de você — e feliz.
Ela havia passado o braço pelo tronco de uma árvore e ficou
olhando para ele. Parecia que a própria paisagem exultava e que as
próprias árvores se aliavam a ela — impessoais, assentadas. Ou que
Caro se inclinava contra o tronco sedutoramente, para fasciná-lo. A
alucinação desapareceu, mas deixou uma espécie de conhecimento.
Havia um cheiro forte de vegetação evaporando-se ao sol: a
Inglaterra secando.
— Ted — disse ela. — Ted! — Suave exasperação.
— Quando eu começar meu trabalho em Londres, serei
independente pela primeira vez. Após anos de Dora, isto é uma
liberação para mim.
Era um motivo, sem dúvida; aliás o motivo mais verdadeiro. Ele já
ouvira falar de Dora.
— Uma vez que as pessoas se instalam como motivo para
preocupação, não desistem facilmente. — De súbito, Ted receou que
Caro pudesse relacionar tais palavras a ele próprio. Acrescentou: —
De seu lado existe a ansiedade, do dela, a reivindicação disso. Tratase de algo comumente tomado por afeição, até mesmo profundo
amor. O próprio fato de você ter se saído bem nas provas — ele se
referia ao concurso no qual Caro passara em primeiro lugar —
confirma sua habilidade para aceitar a carga que foi dela: agora, já
tem um certificado para prová-lo.
— Não pretendo contar a ela nada do que aconteceu. Pareceria um
recuo.
Ainda criança, Caroline Bell descobrira que realizações podem
transformar-se em armas hostis. ("Tudo lhe cai nos braços, por que
deveria preocupar-se com uma vida como a minha?") Há muito
tinha sido solucionada a luta pueril entre o desejo de exibir ou
contar e a necessidade de armazenar uma força silenciosa.
— Não sei bem como explicar isto — acrescentou.
— Entendo perfeitamente — respondeu Ted. (Quando ele tinha uns
onze anos, sua mãe lhe contara:
"Aconteceu quando fui para o Lacey's, ao deixar a fábrica, e comecei
a trabalhar com faturas. Foi seu tio Tony Mott quem conseguiu essa
minha oportunidade, ao ver que eu tinha jeito com somas. Sim, foi
seu tio Tony quem me deu essa oportunidade. Muito bem, chegou o
Natal e o sr. Dan Lacey entregou às outras garotas do escritório um
envelope com duas libras para cada uma, como presente. Só que eu
ganhei três, por ser rápida com os números. Eu nunca tinha sentido
o gostinho de duas libras, quanto mais de três, meu salário era de
doze xelins por semana, que meu velho tomava, mal eu aparecia na
porta de casa. E eu sabia muito bem que ele ia ficar com minhas três
libras. Então, morávamos na Ellor Street, e quando cheguei em casa
nessa noite, logo fiquei sabendo que minha prima Lorna — que
nunca chegou a ver a nossa Lorne, que era a filha única de Cec e
morreu dos pulmões, no mesmo mês em que nasceu —, bem, que
Lorna tinha ganho três libras, ou três guinéus, como se dizia, onde
ela trabalhava, embora o costumeiro fossem duas. E eu fiquei
indecisa, compreenda, entre mostrar que também merecia aquelas
três libras, como Lorna, ou dizer que tinha ganho duas e ficar com
uma para mim. Pois foi o que fiz; guardei uma, sem dizer nada. Foi
a única vez que banquei a esperta".
Enquanto falava, a mãe de Ted peneirava trigo sobre um grande
mármore na cozinha, a única mesa que tinham.)
Debaixo das árvores frondosas, Ted Tice virou a cabeça para trás e
viu o céu. Isso podia ter algo a ver com lágrimas salgadas e a lei da
gravidade. "Foi seu tio Tony quem conseguiu essa minha
oportunidade." Oh, Deus! Minha oportunidade!
(A mãe de Ted dizia, enquanto peneirava o trigo: "Lorna queria
agradar ao pai. É apegada à família, aquilo foi muito certo naquele
tempo, mas o que conseguiu? Vive doente e de cabeça baixa, a
pobre Lorna".)
Ted Tice olhou para o horizonte. Lembrava-se do tio Tony, baixo e
rosado, que levava uma vida um pouco melhor que os outros
parentes, conhecia um sujeito no Conselho e tinha um gato-do-mato
chamado Moggie.
— Paul Ivory está casando com aquele castelo — disse ele.
— Creio que sim.
Os dois ficaram olhando para a sólida e ensolarada ficção da
imaginação da história, em sua encosta datada. Como esposa, o
castelo inspirava certo temor.
— Paul Ivory tem que casar com um lorde ou, pelo menos, com a
filha de um — disse Ted. — Está escrito. Como está escrito que ela
precisa ser rica. Ele não tem escolha, é compulsivo. Procurou o
castelo, certeiramente.
— Ainda assim, não vejo por que Tertia devesse ser compelida a
aceitá-lo.
Era esquisito dizer "Tertia", quando não podia haver qualquer
intimidade.
— Talvez ela se sinta sitiada no castelo. — Os dois sorriram,
imaginando Tertia nas ameias, espiando com olhar vidrado de trás
dos balestreiros. — Ou talvez haja algum antagonismo que ela
aprecia. Também é possível que conheçam o pior um sobre o outro.
Isso formaria um elo.
— Paul poderia modificar-se. Ainda é jovem.
— As falhas dele não são as da juventude. Ele não cresceu, trata-se
apenas de uma transmissão automática.
Caro nunca ouvira aquele tom na voz de Ted Tice antes — selvagem
como o de seus inferiores, mostrando uma malícia que lhe
empanava a virtude. O desapontamento talvez fosse por causa dele,
por Ted ter de juntar-se à generalidade sem máscara. Ela saiu da
sombra das árvores e começou a caminhar de volta à casa. Não
haviam discutido, mas agora certa cautela se desenvolveria em
ambos os lados
— uma preocupação em não ofender ou expor. Não ficou claro
porque isso tinha que começar.
A Ted Tice, a derrota pareceu ser de sua própria elaboração, como
se lhe tivesse sido designada alguma grande obrigação e ele a
houvesse deitado a perder. Uma imagem
— a da forte vontade dela, expressa em aparente passividade,
enquanto ele urgia por absoluta necessidade — obstruiu sua
inteligência com uma perda cabal. Do contrário, ele teria visto
naquilo uma virtual representação do ato do amor.
Naqueles dias quentes, Tertia ia e vinha, levando Paul Ivory para cá
e para lá. Grace e Caro a viam sentada ao volante de seu carro
verde, as sobrancelhas erguidas e as pupilas insensíveis como os
discos de bronze aplicados aos olhos de estátuas antigas.
— Imagino que ela seja um grande prêmio — disse Grace.
Havia lido essa frase, a qual era sua maneira de declarar: Eles não
podem estar apaixonados.
Tiveram um interlúdio de calmo esplendor, quando os dias inteiros
se transformavam em manhãs. Em um desses dias brilhantes, Caro
voltava da aldeia e deparou com Paul Ivory, que caminhava. Visto
daquela maneira, livre, ele era como um cavaleiro a pé, e foi o que
ela lhe disse.
— Meus privilégios perdidos — disse ele. Ninguém os imaginaria
perdidos, ao vê-lo rir e dar suas
graciosas passadas. Paul Ivory era um astro: qualquer firmamento o
aceitaria.
Ele avistara Caro à distância e modificara seu rumo para interceptála. Havia observado, à medida que se aproximava, que o caminhar
dela transformava o avanço de outras mulheres em baques surdos
ou passos desajeitados. Poderia dizer que a delicada força morena
de Caro era viril
— um sombrio arrebatamento que podia distinguir algum rapaz.
Paul Ivory recordou jovens morenos e vigorosos que guardavam
algo para si mesmos, porém que ainda retinham essa mesma
ressonância de aventura. Refletiu então em como tais jovens
costumavam terminar débeis, com que rapidez se tornavam
irritadiços ou desconfiados, quando não, transformando-se nos
floretes de mulheres amargas — suas energias concentradas em
criticar ou vangloriar-se, seu orgulho empanado. Ele já presenciara
isso. E, no caso das mulheres, supunha que tais seres definhavam
por completo ou, no máximo, transferiam aos filhos alguma parte
de seu perdido ímpeto.
Paul Ivory também presenciara a punição do impulso. Vira como os
homens providenciavam esposa e filhos para si mesmos, antes de
terem o paladar ou o caráter formado
— para depois ficarem comprometidos e condenados às conseqüências de um capricho ultrapassado. Estava satisfeito e convicto
de que seu futuro casamento evitaria tais perigos. Não se importaria
com a acusação de ser desapaixonado. Não acreditava que paixão
fosse essencial ou que o mundo a tivesse definido adequadamente.
— Devemos tomar o atalho pelo cemitério? — perguntou Caro.
— Nenhum cemitério pode ser um atalho.
Paul abriu um desagradável portão. Uma pipa rasgada jazia sobre a
relva.
— Sempre há crianças brincando por aqui — comentou Caro.
— Crianças gostam de cemitérios. Não há movimento, adultos
vivos, e as lousas das sepulturas têm a sua altura, fazem-lhes
companhia.
Caro costumava passar por ali e mostrou as inscrições. Aqui jaz
tudo o que podia morrer de Oliver Wade. Os encantos terrenos de
Tryphena Cope aqui estão amortecidos. Nas últimas lousas, apenas
o nome e os anos de nascimento e de morte — ligados por um
pequeno hífen gravado, representando a vida. Placas escritas e
erodidas desequilibravam-se como pipas rasgadas. Nas lousas mais
antigas, a escrita era indecifrável: inaudíveis últimas palavras.
—
Os mortos dos cemitérios dão a impressão de terem todos
morrido normal e pacificamente — disse Caroline Bell. Paul não
respondeu, mas ela insistiu: — Acha que é porque eles excluíram os
suicidas do solo consagrado, mantendo assim a ficção?
Quando chegaram à estrada, em silêncio, ocorreu a ela que, sendo
Paul um devoto, talvez o tivesse ofendido. A expressão dele,
agradável, embora talvez fingida, permitia-lhe pensar assim. Havia
algo frio nele que talvez merecesse uma oportunidade.
Talvez Paul desejasse puni-la — por ela agora ter sido invulgar e
por qualquer iminente mediocridade. O invulgar, resumindo-se
tudo, era que ela deixava entrever uma espécie de crença. Poderia
haver discordância quanto a isso, mas era verdade — Caro tinha fé,
à sua maneira, que não era precisamente semelhante à dele.
— Você emana muita decisão — disse ele —, mas toda fora de foco.
— Não creio que me conheça bem o suficiente para dizer isso.
Ele riu.
—
Poderei dizer, então, quando a conhecer melhor?
Os passantes olhavam com mais fixidez que a necessária, porque
aqueles dois formavam um casal cujos destinos não podiam ser
preditos com segurança. E o mundo, ao encará-los como um par,
tornava isso um fato.
— Estão surpresos por vê-la com alguém ao seu lado
— disse Paul. — Você é muito sozinha. — Tinham chegado a uma
curva, de onde o castelo os enfrentava, através de prados estivais.
Tudo parecia oscilar ao calor, mas não o castelo. — Costumo vê-la
sozinha no jardim, à noite. Olho para baixo e a vejo lá, sozinha.
Na manhã transparente, ele criava um momento de silêncio
noturno: Caro no jardim, sem nada perceber, e Paul espiando. De
sua oculta elevação, ele criara fragrante escuridão ao redor de
ambos.
— A mim, parece que não estou sozinha o suficiente.
— Diz isto por agora? Por mim?
— É claro que não.
O castelo era inexorável, o único detalhe não executado por Turner.
No vale, uma linha de vimeiros estremecia à menor passagem da
brisa.
—
As mulheres são capazes de suportar a solidão, mas não a
querem. Os homens a querem e precisam dela, mas a carne logo os
faz de bobos.
Era costume de Paul Ivory imaginar que as moças sabiam mais do
que deixavam transparecer. Tomando o castelo por modelo, Caro
não se mostrou desconcertada. Já estavam na trilha da montanha,
perto do lugar onde ela se sentara com Ted Tice, no escuro, e
conversaram sobre lealdade. Embora não houvesse qualquer traição
envolvida, Caro não desejava que ele a visse ali, parada com Paul
Ivory. Embora caminhando em sua maneira ereta, Caro inclinou-se
interiormente e ficou vulnerável.
Paul parou ao lado do muro baixo, como se adivinhasse os
escrúpulos de Caro e pretendesse ridicularizá-los.
—
Também o mandou ir tratar da própria vida? — Ele limpou
superficialmente o muro com a mão e sentou-se.
— Sabe que me refiro a Tice.
Caro sentou-se ao lado dele. Seu espírito parecia uma coisa
desligada e fria, ao passo que o corpo se destituía de peso, úmido,
com os contornos expostos e pouco natural. Seria difícil dizer qual
era indigno do outro. Ela observava a aparência de Paul Ivony como
se fosse um evento que poderia desenvolver-se diante de seus olhos.
Ele tinha a face do futuro, capaz de perceber o que o mundo deseja.
Quando dissera "Sabe que me refiro a Tice", sua expressão se
anuviara com algo rude, que a tornava cúmplice. Aquilo não era
mais do que Caro esperava profundamente dele, mas ao sangrar
aquela veia de expectação, Paul Ivory criara uma cumplicidade
entre ambos. Quando ele dissera "Sabe que me refiro a Tice", ela
havia compreendido, também, que o amor de Ted constituía um
estímulo para Paul, que era o motivo de estarem ali, sentados juntos
no muro.
O homem se virara para ela, esperando alguma espécie de vitória.
Ele a faria crer que qualquer ou toda suspeita era garantida e
confirmada.
Caro estava certa de que Paul Ivory iria tocá-la — tocar seu seio ou
o ombro, encostar o rosto ao dela — e já experimentava o contato,
com purificante intensidade. Ao mesmo tempo estava inerte,
subjugada, fatalista. E ficou quieta, de dedos entrelaçados, sem
qualquer indício de agitação, com a impassibilidade imemorial das
mulheres em tais momentos.
Paul ficou em pé e enfiou as mãos nos bolsos. — Vamos indo,
então?
Paul se levantara; Caro ergueu os olhos, recompondo sua carne e
seu sangue. E Paul sorriu, tendo conseguido sua vitória.
Caro entrou na casa sozinha e parou no vestíbulo. Havia um
espelho na parede e, ultimamente, ela passara a olhar-se. Mesmo
quando olhava para uma parede lisa, naqueles dias, podia estar
retratando-se, embora sem exatidão. Agora, sua expressão estava
sombria, com a mudança da luz do sol para a escuridão — ou
porque sua visão diminuía, por um momentâneo desfalecimento.
Uma porta se abriu à distância.
— Charmian? — chamou o professor Sefton.
Caroline Bell não pôde entender por que algo tão simples a deixou
quase em lágrimas. Talvez fosse uma disposição de ânimo. Talvez
fosse por haver, muito tempo antes, permanecido em um quarto
escuro, ainda uma garotinha de seis anos, olhando-se em um
comprido espelho, frio como água. E uma porta se abrira e ela
ouvira a voz do pai chamando: "Marian?" — que era o nome de sua
mãe. Era nisso que consistia tudo, essa evocação: um pequeno
espasmo de lembrança que jamais poderia elucidar-se.
10
Paul Ivory havia sido aceito por Tertia Drage. Quando o fato se
tornou conhecido, os Thrales ofereceram um jantar ao lorde do
castelo, convidando também dois vizinhos que, segundo era sabido,
tinham propriedades suficientes no Quênia. A ampla sala de estar
de Peverel, trancada, foi arejada e mais empregados foram
contratados na aldeia. A abertura do aposento para tal finalidade
não apenas encerrou seu período de fechamento, como deixou claro
que ele era agora um relicário.
Mais comprida que larga, a sala tinha pilastras coríntias e uma
pálida lareira em cada extremidade. As janelas iam do piso ao teto,
encortinadas de seda laranja, trazida havia muito de Swatow por
um parente de Butterfield e Swire. As atraentes cortinas, apesar de
estarem agora se desfazendo e empoeiradas, podiam ser puxadas
para esconder espaços que necessitavam de novas vidraças. Dois
candelabros haviam sido cuidadosamente limpos, mas um terceiro,
numa cesta, no sótão, era uma confusão de cristais desmantelados.
À luz do dia, trechos mofados formavam um atlas nas paredes.
Ted Tice tinha muita habilidade para tais coisas e consertou uma
tábua extra de uma mesa oval. A peça, que ficara empenada por
estar fora de uso durante a guerra, foi depositada em uma armação,
para que ele pudesse repará-la. Os empregados contratados na
aldeia, não convencidos acerca da posição que ele ocupava na casa,
desprezaram-no por sua eficiência. Havia um casal de idade, para o
trabalho de supervisão — o marido alto, mas com a postura
distorcida, dando a impressão de que fora agarrado e espremido; a
esposa, uma armadura de carne e corpete, era uma plataforma de
canhão, resistindo ao ataque. Este casal — os Mullions —, após
longa prestação de serviços em alguma casa poderosa, agora gozava a aposentadoria; entretanto, segundo diziam,
sentiam prazer em satisfazer, de tempos em tempos. Servir e
satisfazer, sua preocupação mais premente, não os tinha debilitado
e nem os tornava mais acessíveis.
De preto, a sra. Mullion disse a Ted Tice:
— Os jovens não entendem o significado de servir.
Isso porque ela o ouvira cantar "do sul, do sul" na sala de estar e, no
entanto, continuava não acreditando que fosse um hóspede. A sra.
Mullion também não gostara do sotaque de Ted e o temia, talvez
por ele não esboçar a menor tentativa para alardeá-lo ou disfarçá-lo.
Era visível, contudo, que o casal contratado sentia por Paul Ivory
um respeitoso temor, um homem que não cantava, não consertava
móveis. e mal se dignara cumprimentá-los.
Ted estava terminando o conserto da mesa, que compreendia um
toque de verniz e a fixação de um pequeno gancho de latão.
Quando a sra. Mullion falou sobre o significado de servir, ele estava
trabalhando perto de uma janela aberta e talvez não a tivesse
ouvido.
(Certa vez — isto acontecera quando Ted tinha dez anos e suas
amígdalas haviam sido extraídas, o que foi feito em casa —, sua
mãe se sentara à beira da cama que ele ocupava e lhe falara sobre
servir e satisfazer. "Seu pai disse que não faria isso novamente, que
não serviria mais. De modo nenhum. Fizemos isso uma vez, logo
que nos casamos, e fomos caseiros dos Truscotts, em Ponderhurst.
Tínhamos medo de não arranjar trabalho, e sou pai continuava com
aquela tosse que pegou na guerra, com o gás. Quando foram para
lá, os Truscotts levaram cozinheira, arrumadeira e também um
motorista, mas procuravam um casal que tomasse conta de tudo na
época em que ficavam na cidade, quando havia trabalho no
Parlamento. Bem, o pagamento não era grande coisa, mas a gente
teria casa e comida. Além do mais, não havia muito serviço pesado.
"Acho que estávamos lá havia umas seis semanas, quando o sr.
Truscott — Sir Eric, como hoje é conhecido — chegou para seu pai e
disse que estávamos satisfazendo, que podíamos ficar de vez. No
entanto, vendo que nós éramos casados de pouco, disse que ele e a
sra. T. queriam ter sua tranqüilidade no campo e, por causa disso,
preferiam que não tivéssemos filhos. Eu não estava presente quando
ele falou, mas seu pai me chamou e eu fui. Então, ele disse para o sr.
Truscott: 'Repita aquilo' — bem assim, prontamente, e então deu
para sentir o que podia acontecer. 'Diga para ela', falou seu pai.
Muito bem, seu pai então foi direto ao assunto. 'Estamos indo
embora hoje', disse — nós, que não tínhamos um penny no mundo e
nem mesmo um lugar para encostar a cabeça. E Truscott respondeu,
todo vermelho e fuzilando: 'Podem ir, mas não dou referências'. E
seu pai disse: 'Minhas referências são que não vou aturar sua impertinência abusada. E que lhe importa, se tivermos um bando de filhos
ou nenhum?' Então, ele disse o que não devia, sobre Truscott e a sra.
T. — ela não era má pessoa, realmente, apenas uma tola. Bem,
Truscott já ia embora, quando seu pai disse: 'Vou contar isso aos
jornais e eles vão publicar — como é que um ministro da coroa
agora fala com um inglês'. E, de vermelho, Truscott ficou branco
como este lençol, e disse: 'Tice, tenho certeza de que podemos resolver isto sem brigas'. Ele se modificou na hora. 'Vamos nos sentar e
conversar com calma, talvez eu não tenha me explicado bem.
Acontece que, nos últimos tempos, tenho andado muito nervoso.'
Ele, que nunca se dirigia aos empregados, exceto para tagarelar.
Bem, resumindo, ele nos deu cinqüenta libras e fomos embora na
manhã seguinte. Então, vivemos seis meses com aquelas cinqüenta
libras, espremendo, mas continuamos decentes. E conseguimos
também as referências: eles se consideravam plenamente satisfeitos.
Mas seu pai disse: Nunca mais.
"Pouco mais tarde, ele contou tudo ao sr. Beardsley, nosso pároco
em Southport, que tomava o partido dos trabalhadores, e com a
idéia de que ainda podia ir aos jornais com a história, porque aquilo
continuava irritando-o. Mas o sr. Beardsley disse 'não', porque
tínhamos ficado com as cinqüenta libras. Assim, isso foi o fim de
tudo. E agora, Sir Eric de Truscott tira retrato com o príncipe de
Gales.")
Quanto aos Mullions, o casal contratado em Peverel, Ted Tice soube
mais tarde que eles haviam perdido o neto em um acidente,
semanas antes. Quando se sabe o suficiente, a antipatia raramente é
definitiva.
Caroline Bell apanhou um vestido escuro, comprado no estrangeiro,
a única peça, entre suas roupas, capaz de criar o efeito que seria
inteiramente seu, em alguma época futura ou dentro em pouco.
Pendurou o vestido em seu quarto, em um lugar pnde pudesse vêlo, como a flâmula de um festival. Ela mal o usara e gostava de
pensar que o comprara com um maço de notas em tom pastel,
quando de sua última manhã na França. Mais tarde, Dora teve um
ataque de nervos por causa do preço.
Chegada a hora, tirou o vestido do cabide e ele deslizou por seus
braços, como uma vítima. Tinha repuxado o cabelo para trás e o
prendera em um coque. No espelho, pôde ver como isso a
transformara.
Anoitecia, quando ela desceu usando seu vestido escuro, tendo na
mão o cinto de seda. Estava passando o cinto a ferro, no aposento ao
lado da cozinha, quando entrou Tertia, carregando uma porção de
flores.
—Elas precisam ser postas em muita água.
Tertia deixou as flores em uma laje, perto do tanque de pedra.
Usava um arrebatador, roçagante vestido de seda prateada. Tinha-
se a impressão de que irrompera ali um vendaval salitrado; no
entanto, Tertia apenas permanecia imóvel, espiando Caro passar a
ferro, enquanto as flores jaziam em seu cenotáfio, prontas para
morrer.
Caro pousou o ferro de passar no descanso e ergueu o cinto — a
cabeça virada para trás, o braço levantado e o cinto suspenso. Sendo
humana, era difícil evitar aquilo. Sabia que, por vezes, deixava sua
marca impressa, mas agora queria saborear a certeza do fato
reconhecido.
—O que vai vestir esta noite? — perguntou Tertia, afinal.
Caro continuou com o cinto suspenso no ar — de lado, como uma
abstrata encantadora de serpentes, de maneira a poder olhar Tertia
no rosto. Pena que ninguém mais pudesse ver Caro em seu belo
vestido, com o pescoço e os braços nus, a mão delicada erguida e os
olhos escuros fixos em seu objetivo. Desta forma, durante alguns
instantes, compeliu Tertia Drage a admirá-la.
Do jardim, Paul Ivory chamou:
— Caro!
Era a primeira vez que pronunciava seu nome. Houve uma pausa,
na qual ouviram sons na cozinha adjacente. Libertando Tertia do
encanto, Caro baixou o cinto e o colocou à cintura, com lento
cuidado. Então, carregou um pesado vaso até o tanque e abriu a
torneira. Eram atos insignificantes, mas que prendiam a atenção, e
Tertia não foi a primeira a ver ensaios para a vida e a morte nos
movimentos mais simples de Caro.
Depois de colocar as flores no vaso, Caro tornou a olhar para Tertia
e disse:
— Em muita água.
Então riu, enxugou as mãos e saiu.
Nessa noite estavam comemorando o noivado de Tertia com Paul
Ivory.
Antes de guiar seus convidados para dentro de casa, Sefton Thrale
mostrou-lhes a vista para o vale, à luz crepuscular. A sala de estar
finalmente aberta não parecia muito desejosa de abrigar vida: um
aposento negligenciado, como um jardim maltratado, não consegue
mais ganhar animação, se convocado para uma emergência. Não
oferecia realce aos jarros de rosas, à luz suave das lâmpadas e ao
pequeno fogo que ardia em cada lareira. Assim, quando soaram as
vozes que iam entrando, a sala retraiu-se: era um velho aposento,
destreinado ante os sons crus de fósforos riscados e do gelo nas
taças.
Ficou-se sabendo que a mãe de Tertia era uma sobrevivente do
Titanic — eclipsando Grace e Caro com sua obscura e inglória barca
Benbow e seu ineficaz deslocamento de águas australianas. A mãe de
Tertia lembrava-se de ter sido descida para um bote salva-vidas, aos
sete anos, e salva. Sobrevivendo para tornar-se uma vigorosa fêmea
acastanhada, ela concebera e dera nascimento a cinco filhas, mas a
nenhum herdeiro varão.
Houve o fluxo glacial do moiré de Tertia sobre o tapete, quando ela
velejou para além da mãe, um escaler afastando-se da nau capitânia.
Muito tempo fora gasto para preparar aquela versão noturna de
Tertia Drage — os cabelos macios e lisos, o vestido prateado bemmodelado, as axilas depiladas, o colar cintilante e os pequeninos
sapatos pontudos; o esmalte de unhas, combinando a cor das mãos
com a dos artelhos escondidos. Não obstante, Tertia parecia indiferente, rancorosa, como que enfeitada por aqueles berloques e
sedas inteiramente contra a sua vontade. Quase se poderia acreditar
em sua neutralidade, a despeito de toda a evidência. Tertia se
dissociara das fraquezas humanas: quando tocava seu vestido, com
uma atitude quase irrisória, a simples vida, nos outros,
assemelhava-se a uma comoção.
Ainda assim, ela iniciara a noite com uma pungente derrota.
—
Ela rouba todo jantar a que comparece — disse sua mãe.
Satisfeita e orgulhosa. Esmagando um ondulado sofá azul, Lady
Drage agora se havia tornado uma criatura demasiado pesada para
o elemento marítimo, era um corvo-marinho sobre as ondas. Ela
trouxera um convidado extra, que se postava junto à lareira, onde
línguas de fogo subiam atrás dele. Era um homem alto e corado,
que aparentava uns quarenta anos, pigarreava com segurança para
clarear a garganta, mas pouco falava. Tinha um anel de sinete, de
ouro velho polido como um nó de dedo, e usava gravata da Brigada
de Guardas.
Uma conversa a respeito de preços e impostos se tornara uma
formalidade, com a qual todas as noites eram agora iniciadas.
— Os ingleses sempre falam de dinheiro? — perguntou Caro a Ted
Tice.
— Sempre, especialmente os ricos.
O sr. Collins, do Quênia, sentado em uma poltrona de couro,
conhecia uma anedota sobre a Austrália — ou "Os-trylia". Segundo
ele, a anedota provinha da recente guerra, tendo se passado em
Tobruk, mas na realidade remontava à Grande Guerra e à
campanha dos Dardanelos. A história era como se segue: um
soldado ferido pergunta à enfermeira australiana que se encontra à
sua cabeceira: "Fui trazido aqui para morrer?", e ela responde: "Não,
ontem"1.
Era esta a anedota. Caroline e Grace Bell estavam já familiarizadas
com ela, contada freqüentemente a ambas, quando eram
apresentadas a alguém. Ted Tice ainda não a conhecia. Foram
visíveis as lágrimas que assomaram a seu olho lesado, bem como ao
outro, o sadio.
A sra. Charmian Thrale tocou delicadamente um colar de pérolas.
Mais alvo que as pérolas, seu colo talvez nunca houvesse sido
exposto ao sol.
(Em 1916, durante a Batalha do Somme, Charmian Playfair, auxiliar
de enfermagem voluntária, havia sido designada para o serviço
A anedota perde todo o sentido quando traduzida, pois envolve a fonética do sotaque australiano. No
original, seria: Soldado: "Was I brought here to die?" Enfermeira: "No, yesterday". ("To die", "mor¬rer",
soando para ela como "today", "hoje".) (N. da T.)
1
de ambulância na Estação Victoria, por onde chegavam as baixas da
guerra, em trens-hospitais. A ambulância carregada rodava
pesadamente de volta por ruas escuras, levando suas padiolas de
homens envoltos em cobertores — homens que, do ilibado
anonimato de "os feridos", nos jornais, subitamente se encarnavam
em gemebundos, silenciosos ou corajosos habitantes de carne
lacerada e individual. Encerrada com aqueles espectros em uma
sacolejante obscuridade, uma jovem de dezenove anos levou a mão
ao delicado pescoço. Ainda assim, movia-se o mais que podia,
fornecendo água ou respondendo a perguntas, entre os cobertores
acinzentados e as bandagens vermelhas, acastanhadas ou
enegrecidas. Havia um rapaz de sua idade, na direção de cujo
sussurro ela precisou abaixar-se, quase tocando o rosto no dele:
"Tanto frio. . . Frio. . . Meus pés estão muito frios. . . " Com ar
competente, a jovem respondeu: "Vou dar um jeito nisso". Virandose para ajustar o cobertor, descobriu que ele não tinha pés.)
Em redor da sra. Charmian Thrale, tais impressões passavam mais
em ritual que em confusão: as preocupações simultâneas das moças
com amor e vestidos, os homens com suas grandes e pequenas
assertivas, as mulheres totalmente submissas ou autoritárias. Um
desequilíbrio de esperança e recordação, um selvagem emaranhado
de história. Aquele manar conjunto, em um fluxo de tempo que
somente alguma gramática olímpica — algum tempo de conjugação
desconhecido e aorista — poderia descrever e reconciliar.
A sra. Thrale afastou as rosas, ganhando espaço para um cinzeiro.
Suas costas não tocaram o sofá. A acastanhada mère de Tertia
estava dizenedo:
—Não no Quênia, não, infelizmente, nunca, mas é claro que
estivemos no Egito, quando meu marido era — oh, pitoresco, eu lhe
garanto, ninguém pode negar, Luxor, Karnak, exceto os mendigos, e
o que se pode fazer? . . . Realmente, ninguém com o coração mais
brando — uma falha para a qual minha família sempre me alertou
—, mas ser amável não seria tão arriscado. Não é mesmo, Guy?
Seu marido aquiesceu mecanicamente. Sentava-se entre as
mulheres, como uma tábua empenada pela falta de uso. Havia
muito, ele se transformara no panorama que nunca tinha
contestado: o da perjura aquiescência, registrada em um íntimo
encolhimento de lábio e queixo. No entanto, despertando do sono,
disse, de repente:
— No Egito, ela passou mal com o sol. — E olhou em torno, com
certa intensidade. — Pigmentação, esta é a palavra. Os pais não
tinham bom senso, causaram-lhe muito mal, forçando-a a sair para
o ar livre quando jovem.
Seu protesto era o eco de uma época, quando imaginara que sua
esposa, mais que todos, necessitava de sua proteção. Ainda assim,
entre o fogo e o gelo, ela sobrevivera.
Grasper, o cão modorrento, contorceu-se diante da lareira, onde
permanecia impassível o homem alto com gravata da brigada,
acendendo seu cigarro. Ele fora apresentado como capitão
Cartledge.
Os jovens presentes tinham buscado a outra extremidade da sala,
onde se agrupavam, todos de pé. Os parentes mais velhos sorriam
ao vê-los — pelo menos, alguém estava se divertindo; esperavam
que isso se contrapusesse ao seu próprio desinteresse. A galáxia de
belas jovens e Paul, um atraente rapaz.
Caroline Bell não oferecia uma aparência de todo jovem, exibindo
sua nova beleza como uma diferença de geração.
Era imbecilidade de Ted Tice simplesmente ficar ali. De certo modo,
ambos os lados haviam decidido que ele não pertencia ao grupo.
—
Como sempre acontece comigo — disse Tertia Drage —,
perdi as chaves do carro.
Era como se ela dissesse: "Da maneira inimitável como sempre
acontece comigo" ou "como só acontece comigo" — para emprestar
uma conotação de distinção, inclusive de fama. Se acontecia a
Tertia, devia ser importante.
Ted permanecia taciturno, oprimido, subserviente, mas no entanto
triunfava. Enquanto Tertia, a senhora e vencedora, havia sofrido
uma derrota aquela noite, e isso poderia repetir-se.
Ted havia consertado a mesa em tempo, a despeito da ansiedade de
última hora demonstrada por Sefton Thrale, com as marteladas.
Toalhas e guardanapos, pratarias e flores, foram dispostos em linha
de batalha, candelabros em seus lugares, a mesa posta solene como
um dignitário em toda a sua pompa e esplendor. Mostrando sua
elaborada distinção, a mesa era uma deixa para eles, um cenário
para o comportamento.
—
Imagino que você tenha queda para a carpintaria e coisas
assim — disse Tertia a Ted.
— Acertou.
— Sorte sua. É de família, espero.
— Como na Sagrada Família — interveio Caro.
O homem com a gravata da brigada espiou de onde estava, da
extremidade idosa da sala. Paul sorriu.
—
Santa Caro, Padroeira dos Carpinteiros.
Ele tomava o partido dela, um partido diferenciado do de Ted Tice
ou mesmo dele próprio. Ted talvez preferisse não ter partidos
naquela noite, desejando que ninguém se sentisse na obrigação de
acompanhá-lo. Ele nem mesmo era culpado por demonstrar que
julgava. Estavam colocados de tal modo que os noivos, Paul e
Tertia, ficavam de frente para os outros. Entretanto, ao
conversarem, Paul às vezes se dirigia a Caro. Não se poderia dizer
que fosse algo corajoso, mas ainda assim envolvia um certo risco.
— Todos vocês juntos na mesma casa — disse Tertia, como se
aquilo representasse algum absurdo. — Como náufragos em uma
ilha.
— Ou numa festa, numa casa de campo — acentuou Grace —, onde
foi cometido um assassinato e todas as pessoas distintas são
suspeitas.
Ficou claro que Grace nunca poderia ser um dos suspeitos. Ted Tice
permaneceu calado. Com a eliminação de Grace, os restantes
pareciam mais capazes de violência. Grace era algo à parte, não
apenas por sua meiguice, mas por já ter firmado suas afeições.
Havia sido reivindicada e aparecia como um deles, pela última vez
e incompletamente. Sobre Grace, já houvera confissões públicas e
revelações secretas, além da existência de cartas remetidas de
Ottawa, começando com "Minha muito querida". Na opinião de
alguém, ela alcançara a perfeição.
Tais condições podiam agora ser igualmente aplicadas a Tertia —
ou ainda não, embora nenhum casamento pudesse parecer mais
inevitável que o seu. Era notável que Tertia jamais demonstrasse
uma reivindicação pública sobre Paul, fosse tocando-o ou através
daquelas outras pequeninas demonstrações de posse que deixam os
enamorados complacentes ou inseguros. Nessa noite de seu
noivado, Tertia evitou ligar-se a Paul sob qualquer forma e, de pé
junto dele, transmitia um desligamento singularmente inflexível, no
que devia ter sido o contorno mais suave de seu corpo. Nisso havia
algo do desdém que ela mostrava por suas roupas cuidadosamente
selecionadas.
—
Onde arranjou esse vestido? — perguntava Paul agora a
Caro, de modo brusco e, parecia, desaprovador.
Foi então que o capitão Cartledge se juntou a eles — tornando claro
que estivera aguardando aquela oportunidade, pelo modo como se
afastou abruptamente da lareira e cruzou a sala. De fato, uniu-se a
Caro, porque disse, no mesmo instante:
—
Sim, é um belo vestido!
Com seu cumprimento, ele deixou exposto o recusado elogio de
Paul. Sendo um cavaleiro, o capitão Cartledge cavalgara até o
castelo, vindo da casa de um amigo, nas proximidades, sem a
intenção de ficar. Daí, acentuou ele, as roupas inadequadas, a
gravata. Ele tinha a compleição levemente membranosa dos que
apreciam a vida ao ar livre, fora de casa, e que, em casa, gostam de
beber. Era um homem alto e simpático, que poderia chegar à
crueldade. Havia ousadia ou uma espécie de pureza em sua
caminhada até Caro, com a palavra "belo", que lhes atingiu as
simulações e a má vontade de jovens, com sua única pincelada de
experiência, fazendo com que o próprio Paul Ivory parecesse
imaturo.
Em sua espécie de armadura prateada, Tertia não podia ter ficado
satisfeita. O mesmo se diria de Ted Tice, embora fosse preciso mais
do que aversão para uni-los. Tertia ofereceu a Cartledge a mesma
fria aprovação destinada a Paul. E Ted Tice percebeu que aqueles
dois, talvez nesse mesmo dia, tinham sido amantes.
Na outra extremidade da sala, os três homens idosos discutiam
enfermidades, trocando sintomas em sussurros, como meninos que
estivessem falando de luxúria.
À mesa, o capitão Cartledge sentou-se perto de Caro. O mogno
reluzia como mármore, as próprias flores brilhavam como cristal ou
prata; tudo se tornara algo mais que seu próprio eu lustroso e a
mesa deixara de ser um catafalco. Era inconcebível que uma região
rural às escuras se estendesse além das cortinas acobreadas.
— Quer dizer que vocês exploram a alma uns dos outros. . .
Assim falava o capitão Cartledge, em camaradagem com jovens
reunidos na mesma casa. Caro respondeu que aquilo ia terminar.
Ted Tice partiria para Edimburgo no dia seguinte; a partir de
quinta-feira, Paul Ivory ficaria alguns dias em Londres e, também
naquele dia, Grace escolheria a fazenda para seu vestido de noiva,
em Winchester. Caro apontava para eles, em redor da mesa, como
se fossem estranhos. Enquanto isso Tertia, do lado oposto,
esvaziava seu prato com o costumeiro desdém.
— E você? — como se o resto fosse imaterial.
— Eu? — Caro procurava dar a entender que também preferia ser
imaterial para ele. — Vou até Avebury Circle, por uns dois dias.
Ela acrescentou que Ted Tice já lhe dera as explicações por escrito,
sobre a baldeação de trens na quarta-feira.
— O monumento pré-histórico — disse o capitão, enquanto a mesa
ouvia, sem saber por quê. — É pré-histórico
— repetiu, como se isso o delineasse precisamente, em exíguos
limites. E, tendo feito treinamento na planície de Salis-bury,
embrenhou-se imediatamente no assunto de Stone-henge.
De súbito, Paul Ivory falou, da outra extremidade da mesa;
erguendo os olhos para Caro e exibindo o leve, irônico sorriso com
que as pessoas se escusam por evocar prosa ou poesia, disse:
— Está se referindo ao templo pagão?
Sem sorrir, Caro deu a resposta, lenta e instantânea ao mesmo
tempo:
— Exatamente. Mais antigo que os séculos; mais antigo que os
D'Urbervilles.
Tertia comentou, ao voltarem de carro para casa:
— Aquela moça, a Bell mais velha, tem um pescoço de homem.
Sua mãe, por outro lado, estava considerando que as classes médias
limpavam demais sua prataria.
11
Quando Paul fez o carro continuar depois da estação e dobrar para
a estrada principal, Caro nada disse. Concentrando-se para um
esforço de persuasão, ele procurou ganhar tempo, antes de manejar
as novas circunstâncias. Naqueles momentos, a imobilidade da
jovem era de molde a gerar, paradoxalmente, uma alteração física.
— Você sabia que eu não ia a Londres? Ela assentiu.
— Sabia que eu não ia levá-la para tomar seu trem? — Ele não
trocaria por nada o suspense gerado pelos breves assentimentos
dela. — Então sabia por quê. Quando percebeu isso?
— Na noite do jantar.
— Você sempre sabe tudo, hein?
— Sou inexperiente — respondeu ela.
— Às vezes, devemos retificar.
Paul Ivory estava criando um intercâmbio que poderia ter tido com
Tertia. Caro perguntou-se se ele agia assim com as mulheres,
fazendo-as falar daquela maneira, com aquela voz, com os duplos
sentidos que diminuíam o significado, estirando a férrea tensão
entre homens e mulheres até um antagonismo nervoso e sem
finalidade. O gracejo dele criava o espectral sentimento de que não
se ouvia a sua voz real, que ela talvez nem mesmo existisse.
— Não falemos mais assim — disse ela.
— É como costumo falar.
— Talvez você gostasse de uma mudança.
A finalidade presente dele bem podia ser justamente
essa.
— Você nunca falará como Tertia, se é a isso que se refere.
Caro esperou, receando a deslealdade — ou lealdade — dele. Paul
prosseguiu:
— Ou se parecerá com ela — disse. — Deve ter reparado nos olhos
de Tertia. — Paul deixou o carro quase parar, na via solitária. —
Olhe para mim. — O momento os levou mais além, como se
houvesse ocorrido uma séria discussão ou tivesse sido feita alguma
ofensa. Ele ainda não a tocara, e a certeza de que o faria dava uma
finalidade à conversa: as últimas palavras de seus eus
desapaixonados. — Quando as mulheres têm olhos como os dela,
em geral é impossível dizer se estão chorando. — Paul devia estar
acostumado a uma possibilidade de lágrimas femininas. — No caso
de Tertia, entretanto, pode-se ter certeza.
— Você preferiu Tertia.
— Não estou aqui para dar explicações pessoais. — Nisto já se
percebia a breve e dominadora petulância dos famosos: Paul
esboçando sua fama futura. Não obstante, ele prosseguiu, sem
transição: — Ela era exatamente a mesma aos quinze anos, quando a
vi pela primeira vez, a pessoa menos atraente que já conheci.
— E isso constitui um atrativo?
— Deixemos Tertia de lado, por ora.
Dobraram em um poste com tabuletas de sinalização, deixando
Tertia de lado.
— Estamos indo para Avebury, se é que você ainda pretende ir até
lá.
— Sim, eu quero ir.
Ela queria ir até Avebury, por causa da descrição que Ted Tice lhe
tinha feito. Inclinou a cabeça para a janela, esquecendo Ted.
Rodaram por uma surpreendente zona rural, semelhante a um delta
ou litoral cultivado, abaixo do nível normal, quase sem declive, sob
um céu de nuvens altas e compactas.
— Isto aqui não parece a Inglaterra — disse Caro. — É mais
semelhante à região central da América.
— Eu gostaria de viver algum tempo na América e tratá-la da
maneira como seus escritores nos têm tratado. Os escritores ingleses
não conseguem manejar a fala americana, eles se limitam a inserir
seus próprios preconceitos. Os ingleses têm um péssimo ouvido
para qualquer língua que não a sua e, no tocante aos americanos,
aqui somos todos absolutamente surdos — isto é, surdos a tudo,
exceto ao terrível e despreocupadíssimo turista. Daí se dizer, na
Inglaterra, a um falante americano, que ele não se expressa como
americano: porque ele está estragando a brincadeira.
Ele não poderia ter encontrado melhor maneira de atingi-la do que
se mostrando sensato. E, já que havia infinitas possibilidades para a
extrema candura de Paul Ivory, também isso poderia estar em sua
mente. Para Paul a sinceridade era algo a que se podia recorrer
quando outros métodos falhavam.
—
Há muita gente, na Inglaterra — disse ele —, que passa seu
tempo coligindo indícios negativos sobre qualquer tema. O velho
Thrale é arquetípico.
Isso era mais inesperado que sua traição a Tertia, pois Paul
abandonava não apenas a adulação do professor, mas seus próprios
meios de dominador. Também era extraordinário como tal repúdio
tornava patético o sicofantismo de Sefton Thrale.
— Enfim, o que significa isso? Que você detesta todos eles?
Ela queria se referir a Tertia e Thrale. No entanto, ele encarou a
pergunta como se abrangesse a nação — ou preferiu que assim
fosse, pois a quebra pública de fé é mais apresentável que um
rompimento privado.
— Eu detesto a desnutrição deste país, o ressentimento, o excesso de
crítica, a relutância em tentar algo mais. O ato de ir até o amargo
fim, com todas as coisas erradas.
No momento, o rosto de Paul expressava aversão, ao passo que o de
Caro expressava amor; não obstante, tais eram suas paixões
prevalecentes. O carro manteve sua velocidade uniforme, uma
veloz cápsula dando forma às energias de ambos.
— Você deve saber que meu pai foi prisioneiro de guerra em um
campo alemão — disse Paul. Supondo que ela estivesse a par do
fato, Paul Ivory esqueceu inteiramente a morte do pai de Caro, por
afogamento. — Em 1945, quando voltou, ele tinha um pote de
extrato de carne consigo, um pote de menos de cem gramas, com a
tampa enferrujada e sem rótulo, que havia levado para a prisão e
mantivera intacto durante quatro anos. Prisioneiros conservam
talismãs, é claro, mas aquele poderia ter salvo uma vida por alguns
dias ou mantido um fugitivo a caminho, durante uma semana. Mas
a farsa idiota de salvaguardá-lo — em verdade, retê-lo — tornou-se
mais importante. Enfim, aí está a Inglaterra, em toda a sua
crueldade.
Uma criança acenou para eles em uma encruzilhada. Paul acenou
de volta.
— Um dia depois de chegar em casa, ele mostrou seu pote com a
tampa enferrujada. Depositou-o à mesa do almoço e nos disse, em
voz sepulcral, que não tocara nele durante três anos e tantos meses
de fome no campo, tendo-o a seu lado em cada refeição. Nada
bombástico, evidentemente, pois a rudeza é parte da ausência
prolongada. Era uma daquelas ocasiões em que é impossível a gente
se mostrar à altura da situação, porque não aceitamos as regras. Não
pude suportar aquilo — a devoção ao extrato de carne, o reverente e
mortificado silêncio em torno da mesa. Então, eu disse a ele: "Muito
bem, soou a hora deste pote, porque Deus é testemunha de que aqui
também estivemos famintos". Em seguida, destampei aquela
maldita coisa e enfiei minha colher, ali e naquele momento, a fim de
dessantificar o culto ao pote, antes que ele também me envolvesse e
me embalsamasse.
Penetraram em uma alameda, onde as copas pendidas das árvores
eram como cortinas se fechando.
— Muito bem, fale alguma coisa. Ou será que em seu rosto também
há uma maldita expressão de pote de extrato de carne? — disse
Paul.
— Se sua história faz com que eu tenha tal expressão, é porque seu
relato é brutal e edipiano — respondeu Caro. Reuniu coragem para
um risco mais alto: — Por que você precisa zombar da pertinácia
dos outros ou de seus meios de sobrevivência — você, que nunca
enfrentou a morte e nem mesmo o perigo?
Paul ergueu as mãos do volante, em uma demonstração de
desesperança. Entretanto, depois que rodaram para fora do túnel
arborizado, ele disse:
— Eu poderia acrescentar que isso soou desagradável. Tenho sorte
por continuar vivo.
Eles riram e, prazerosamente, esqueceram tudo a respeito do pai de
Paul.
Quando o pai de Paul Ivory fez seu protesto contra o serviço militar,
por questões de princípios, ainda jovem oficial nas trincheiras, em
fins de 1917, já havia publicado um volume de versos que, segundo
constava na capa de tons pálidos, causava admiração pela lírica
precocidade — evidentemente, algo espantoso, porque aos
dezenove anos era considerado velho o suficiente para deixar o
mundo, mas não para ter idéias sobre ele. Seguiram-se a corte
marcial e dois anos de detenção, que incluíam uma permanência
forçada em um asilo para doentes mentais, onde ele produziu uma
segunda coletânea de poemas, com a mesma forma lírica e tema
pastoral. E isso foi, em um sentido público, a sua ruína. O lirismo
terminara com a guerra; a paz trouxera beligerância. Que um
subalterno condenado celebrasse, sob fogo, as glórias de seu
Derbyshire nativo, havia sido comovente e louvável; que um adulto
sobrevivente, à paisana, se ativesse àqueles mesmos temas e
divagações, no transcurso de experiências violentas e controversas,
era absurdo. Rex Ivory passou a ser encarado como alguém que não
possuía nenhum senso de sua era ou suas oportunidades — que, até
mais embotadamente, ignorava os novos movimentos da crítica
contemporânea. E seu segundo livro, como as várias coletâneas
subseqüentes, foi recebido com rude desdém.
Pouco mais tarde, ele se casou com uma jovem endinheirada e
autoritária, gerou dois filhos e desapareceu no Derbyshire,
aparentemente para sempre — seu nome provocava de vez em
quando uma nota condescendente de pé de página ou servia de
anedota para os escritores de assuntos literários, entre as guerras.
Ao incorporar-se — ou reincorporar-se — ao exército em 1939, um
paradoxo notado apenas por ele próprio, foi designado para a
Malásia, onde, no devido tempo, foi capturado pelos
conquistadores japoneses. Em Cingapura, partilhou sua choça-
prisão com um estatístico, um esquelético oficial da 18.a Divisão,
com o qual dividiu também a tarefa diária de cavar sepulturas para
companheiros vitimados por malária, dengue, disenteria, beribéri,
gangrena e desnutrição, devido ao consumo exagerado de arroz. O
rádio clandestino mantinha os prisioneiros em contato esporádico
com prisões similares no Oriente. Graças a isso, o grande estatístico,
companheiro de Ivory, compilou morosas listas de sobreviventes,
desaparecidos e mortos — registros que eram conservados em
código e escondidos debaixo da terra, todas as noites. Ao mesmo
tempo, ele treinava Rex Ivory como seu cúmplice.
No terceiro ano, o estatístico cavou uma última e mais comprida
sepultura, tendo legado seu arquivo e a respectiva manutenção a
Rex Ivory. No quarto ano, quando uma frota britânica de libertação
alcançou Cingapura, os registros foram definitivamente
desenterrados, e o espantalho que agora era o capitão Ivory, única
pessoa capaz de decifrá-los, recebeu ordens de partir para Colombo,
em uma rápida e segura embarcação. De um porto bombardeado
em Cingapura, ele foi embarcado em seus farrapos, com toda a
tripulação do navio perfilada no convés. Os rolos amarfanhados e
em código, sustidos por seus braços, que a inanição tornara esquálidos, foram o único registro coerente dos mortos de um exército
britânico.
Vestido e alimentado, Ivory foi enviado ao comissário de bordo.
— O desembolso só será efetuado à vista do comprovante do
pagamento anterior.
— Fui feito prisioneiro em Johore, às quinze horas de 8 de fevereiro
de 1942, e estive no Campo Changi até esta manhã.
O comissário-tesoureiro levantou-se de sua secretária de metal e
abriu uma fechadura de segredo em portas duplas. As prateleiras
de um cofre estavam inteiramente tomadas por maços de notas
bancárias, em infinita ordem colorida, como tijolos em uma fachada
pastel.
— Sirva-se.
De Colombo, Rex Ivory foi levado de avião para a Inglaterra, onde,
após apresentar-se ao Departamento da Guerra, conforme as
ordens, tomou o último — e único, naquela época — trem para
Derbyshire. A esta altura, a família já fora informada de sua
ressurreição. Como se fosse apenas um viajante comum de volta ao
lar, ele decidiu não chegar de mãos vazias. Na estação de Londres,
tentou comprar uma diminuta caixa de descorados chocolates, uma
mercadoria exposta em uma vitrina.
— Os cupons. Os cupons, por favor — pediu a moça.
Ela pronunciava kewpongs, e na verdade não era jovem, mas uma
sisuda senhora grisalha, já que todas as jovens tinham ido para a
guerra.
— Que cupons?
Ela o encarou. E enquanto o observava mais detidamente, aferrou a
caixinha com dedos alarmados.
— Diabo, por onde foi que andou?
— Estive em uma prisão japonesa — respondeu Ivory. — Três anos
e sete meses.
— Posso perder meu emprego. . .
Ao falar, ela colocou a caixa em suas mãos.
Tais incidentes não divulgados — o do comissário-tesoureiro e o
dos chocolates — foram os pontos culminantes do retorno de Rex
Ivory, embora sua história logo se tornasse um dos temas da vitória:
os jornais a publicaram e ele passou a ser "o poeta Rex Ivory", em
publicações onde um artigo indefinido outrora o havia liquidado.
Uma edição de Poemas seletos foi impressa no papel áspero e
manchado do tempo de guerra, e não houve mais ditos espirituosos
ou mordazes sobre torres de marfim1. Ele leu que estivera certo ao
repelir desdenhosamente a Primeira Guerra Mundial e que fora
presciente ao apoiar a Segunda; Ivory ponderou a nova idéia de que
demonstrara perspicácia.
1 Em inglês, "marfim" é "ivory". Trocadilho com Ivory, personagem. (N. do E.)
A BBC levou até sua residência equipamento elétrico em um
caminhão e depois uma câmera seguiu o famoso e presciente poeta
Rex Ivory, enquanto ele passeava entre alamedas em flor com dois
sealyhams2, emprestados por um vizinho. A despeito de sua não
ensaiada analogia entre o asilo britânico para doentes mentais e o
campo de concentração japonês, a entrevista foi um sucesso; isso
porque, quando as pessoas insistem em admirar, nada as faz mudar
de idéia.
A esposa de Ivory ficou maravilhada e imensamente satisfeita. E
ficou também satisfeita por maravilhar os grandes e certos, pessoas
com uma distinção até então insuspeitada por eles ou por ela.
Aproveitando a vantagem da surpresa, ela comprou uma casa em
Londres, pouco depois da guerra, quando os preços estavam mais
baixos do que nunca. E Rex Ivory permaneceu em Derbyshire, um
quase invisível filão de autenticidade.
Aconteceu algo. Em sua prisão da selva, Rex Ivory fizera poesia,
como antes — que era memorizada lá, uma vez que qualquer
fragmento de papel era conservado para as listas codificadas de
baixas. Um eminente editor se mostrou disposto a sacrificar parte
de sua provisão oculta de papel no pós-guerra para o esperado
volume. Nada disto era imprevisível. O inesperado é que os versos
elaborados no campo da morte malaio, ao serem transcritos,
revelaram-se uma glorificação, exclusiva e inexorável, dos regatos e
cercas vivas de Derbyshire.
Surgiram outros heróis na época, como também outros manuscritos.
O interesse público em Rex Ivory estava diminuindo, e aumentava a
escassez de papel. Em uma reunião de alto nível, mantida numa
chuvosa manhã de sábado, na editora, decidiu-se que certos poemas
— em particular um que dizia respeito a um ventoinha — davam
ensejo a críticas zombeteiras. Aproveitando-se uma cláusula para
casos imprevistos, os editores esquivaram-se ao contrato.
2 Cães da raça terrier. (N. do E.)
Então, como acontecera com volumes anteriores, The half-reap'd field1
apareceu em obscura edição, custeada pelo autor.
Os dois filhos de Ivory eram agora jovens altos, que freqüentavam
as escolas certas, cantavam os hinos certos e tomavam as atitudes
certas.
— Absolutamente certo — disse Ivory, quando sua esposa lhe
relatou os caminhos tomados durante os anos em que ele estivera
ausente do lar. — Ah! Absolutamente certo.
Não havia motivos para imaginar-se que nisso pudesse haver
qualquer ironia. Gavin, seu filho mais velho, encaminhava-se no
comércio bancário. Certo, novamente. Paul, o mais novo, ainda
estava na universidade. Ambos nascidos nas épocas certas, haviam
escapado à guerra por muito pouco. No seio da família, Rex Ivory
era uma pessoa isolada, tendo perdido a familiaridade. Eles não
tinham idéia se tal perda era bem aceita, mas continuavam agindo
da maneira que consideravam certa e fizeram-lhe companhia — a
princípio todos juntos, depois, por turnos —, até que ele foi se acostumando àquela condição solitária. Isso, pelo menos, podia ser
creditado a Rex Ivory: era mérito próprio, devido a seu interessante
e vantajoso comportamento no campo de concentração.
A família tinha grandes esperanças de que a América o atraísse.
Chegara um pedido de informações sobre suas obras, vindo do
Texas, bem como um questionário de Ann Arbor a respeito de seus
métodos de trabalho. Além disso, Rex Ivory tinha sido entrevistado
por um professor visitante, chamado Wadding, que estava a
caminho da Escócia para estabelecer a identidade da "Ceifadora
solitária", de Words-worth, e as palavras da canção que ela cantava.
(Mais tarde, um ensaio sobre tais pesquisas era publicado em um
jornal literário, sob o título "Ninguém me dirá o que ela canta.
1 O campo semiceifado." (N. do T.)
A esposa de Ivory considerou que tal interesse americano talvez
fosse um indício e que poderia ser estimulado.
Rex Ivory nada objetou. Entretanto, não se podia dizer que ele
estivesse passivo.
— A menos que seja resistência passiva — disse Paul à mãe.
— Seu pai nunca foi do tipo comunicativo.
Chegada a época em que Ivory alcançou seu peso normal e
envergou trajes civis, sua mulher e os filhos subiram o rio até a
cidade. Ivory recebia visitas de alguns poucos e velhos amigos que
com ele haviam partilhado notas de pé de página no passado,
juntamente com o artigo indefinido. Não havia gasolina para
esbanjar, e certo amigo que testemunhara em benefício dele, na
corte marcial de 1917, viajou de bicicleta uma longa distância. Outro
fez o percurso a cavalo, sob chuva, usando um boné de veludo. Não
havia também combustível para aquecimento, de maneira que Ivory
estava permanentemente com frio. Ele mencionou tal detalhe. A
este respeito — não, é claro, alegando-se alguma culpa — falou-se
que seu sangue devia ter ficado ralo na selva. Houve vezes em que
sua esposa se aproximou para lhe dizer:
—Rex, meu querido, todos nós estamos com frio.
Quando seu pai estava para morrer, Paul veio de Oxford, fazendo
três baldeações de trem. Jazendo em silêncio a maior parte do
tempo, sofrendo com isso ou pressentindo que sua hora final se
aproximava, espiando com sua muda mescla de desligamento e
atenção, Rex Ivory parecia mais ou menos o que sempre fora: como
se morrer fosse algo com que há muito estivesse familiarizado. Paul
sentava-se à sua cabeceira — porque agora estavam novamente se
revezando para fazer-lhe companhia — e tinha a certeza de que
nunca se preocuparia o bastante a ponto de entender o mistério de
seu pai. Havia algo mais, porém, que não despertava interesse. Se o
suposto biógrafo americano um dia o explicasse, seria uma derrota
para Paul, até mesmo uma impostura — como procurar a solução
para um exasperante enigma.
"Nunca tinha visto a morte, Dickie? Pois chegou a hora de
aprender."
Paul não ouvira seu pai dizer essas palavras antes, mas as conhecia
por citação e não, como supôs sua mãe, por uma confusão de
nomes, em um leito de morte. Era um verso de uma balada de um
poeta imperial sobre um velho aventureiro que vira a vida e
respirava seu último alento em presença de um filho mimado. Paul
não podia acusar-se e, a despeito das provas circunstanciais, nem
mesmo tinha certeza de que seu pai vira a vida: os eventos tinham
sido impostos a Rex Ivory e mal podiam ser denominados aventuras. Havia sempre a falta de iniciativa — o próprio pacifismo nas
trincheiras, se examinado, poderia ser transformado em abnegação
e recuo. Quietamente formidável, o esforço tinha sido desperdiçado
em renúncia, como se a existência humana fosse algum
monumental pote de extrato de carne.
Avaliado dessa forma pelo filho mais novo, o poeta Rex Ivory
murchou; e, em idade não avançada, definhou e morreu.
12
Repentinamente, na plenitude de sua mocidade, Paul e Caro foram
conduzidos por entre os megálitos, através da pequena e nivelada
estrada. Paul freou o carro. Caro abriu a porta e ficou olhando.
Pedras monumentais erguiam-se, impassíveis, em aléias curvas
cobertas de relva. A Inglaterra bocejava amplamente, para exibir
uma outra terra, como fundamento.
As pequenas lousas do cemitério — da altura de uma criança,
amistosas — entre as quais Caro e Paul uma vez tinham caminhado
despreocupadamente eram, por contraste com aquelas imensas e
poderosas formas, apenas efêmeros folhetos, promulgando uma
causa esquecida. Comparado a este cenário, todo o resto da Criação
parecia um agitar de pétalas e seixos, uma leveza onde a árvore
mais maciça era insubstancial. A própria encantadora aldeia,
através da qual estavam fixados os monólitos mais distantes,
sugeria uma frágil máscara de realidade, com seus poucos séculos
em colmo e ardósia. Não que as rochas escuras emprestassem, por
sua perenidade, qualquer triunfante senso de durabilidade às
intenções do homem. Ali não poderia haver vitória nem
significância. Ter-se-ia que opor alguma razão maior do que a mera
vida contra aquelas rochas: nossa mortalidade, nossa própria
capacidade de receber ferimento, contra a indiferença delas.
(Em uma temporada anterior, Ted Tice havia dito, a respeito de
outra paisagem: "Lá, é preciso reunir toda a sua convicção, para
acreditar que você existe".)
A ordenada colocação dos blocos calcários era mais inevitável do
que a natureza: com a natureza, pelo menos, existe uma
possibilidade de inadvertência. As falhas nas fileiras, onde os
monólitos haviam caído e não tinham sido
levantados, pareciam sinistramente ordenadas, obscenas como a
falta de um dente no sorriso de um tirano.
Algumas pedras eram arredondadas, outras em forma de coluna.
Aquele era o seu estado natural, não talhadas, não trabalhadas a
ferramentas.
— Macho e fêmea. Ele os criou — disse Paul Ivory. — Inclusive
estas rochas.
A presença de Paul oferecia algo como salvação, implicando que a
propensão humana ao amor, que jamais poderia contradizer
Avebury Circle, não obstante, poderia fazê-lo parecer incompleto.
Cônscio de tal vantagem, Paul aguardou o momento em que o
silêncio de Caro retornaria, intensificado, daquele lugar para ele
próprio. Estava calmo, com um desejo controlado e a curiosidade
que, em si, é um aspecto do desejo. Até então, os dois tinham
apenas adivinhado a essência um do outro; a demonstração da
autosuficiencia de Caro lhe concedera um pequeno grau de poder
sobre ele — um poder que só poderia ser invertido por um ato de
posse.
A incerteza preliminar talvez fosse um estímulo, se o resultado
estivesse garantido.
Havia ainda um admirável perigo que rondava Caro, derivado não
apenas das circunstâncias, mas também de sua recusa em manipulálas. O perigo e a atração eram os mesmos. Ademais, havia seu corpo
jovem e flexível, braços e pescoço fortes, além de sua aversão ao
contato físico. Além do prazer de desafiar suas próprias
circunstâncias, Paul ainda perseguia o impulso de violar o orgulho
ou a integridade de Caroline Bell.
Ela não será tão diferente na hora, supôs ele — com um dar de
ombros ou bravata mental, ineficaz até para si mesmo. O
pensamento não passava de uma maneira de ferir.
Paul sabia que Caro se voltaria para ele, satisfeita pela acolhida
humana: ele seria um consolo, pelo contraste com aquele
fantasmagórico campo de monumentos. Por fim, quando Caro se
virou, ele repetiu:
— Olhe para mim.
Então, com infinita naturalidade, puxou-a para si. Beijou-lhe o
pescoço, a face e a boca. Houve um impacto de simpatia, não
inteiramente aberta ao sarcasmo. O corpo de Caro ficou tenso,
juntando-se ao dele e afastando-se; sua respiração marulhou nos
braços, na língua de Paul. Naqueles momentos, se quisesse, ele
poderia senti-la mudar para sempre; poderia verificar uma crise, na
qual as mulheres entregam sua força aos homens, em confiança —
pronta e às vezes incondicionalmente.
Além da cabeça inclinada da moça, Paul Ivory podia ver duas ou
três pessoas que se moviam entre as rochas e um cão que corria em
busca do graveto que alguém jogara longe. Entretanto, a cena
colorida ficou parada, suspensa, incapaz de manter o ritmo com a
corrente de vida de ambos.
A sacola de lona de Caro escorregou pela porta aberta do carro e
caiu em um pequeno vão no relvado. Ela a sentiu ir-se com uma
irrevogabilidade absurda, um bem apreciado deslizamento para um
mar aberto. Dentro do estreito espaço do carro, braços, ombros e
bustos entrosaram-se perfeitamente. O cão distante latia sem cessar,
correndo para pegar o graveto. À sombra de um pé de lilases, um
homem de boné montou uma banqueta de campanha, um cavalete,
e escolhia as tintas. Os espectadores poderiam julgá-los um casal de
enamorados, em um carro estacionado.
Não ocorrera a Paul que a influência de Caro poderia aumentar com
a submissão dela. Ou que ela permaneceria inteligente. Quando
Caro jogou a cabeça para trás a fim de fitá-lo, ele teve consciência de
seu julgamento, persistente como uma pulsação — inclusive,
compondo a parte mais terna, mesmo mágica do amor. Levou a
mão ao rosto dela, com os dedos tremendo em convulsiva evidência
de indisfarçada vida.
— Linda — falou, tendo aprendido essa nova e quixotesca palavra.
Traçou-lhe o contorno da boca com o dedo e os lábios dela sorriram
sob ô toque. — Vamos andar um pouco?
Saíram do carro. Caro recuperou a sacola de lona. A breve falta de
contato era uma brusca divisão daquilo que eles haviam reunido.
Pela margem da estrada, onde a relva era fina como musgo, a terra
sepultara seixos calcários, cacos de cerâmica e ossos humanos. Paul
caminhou com o braço enlaçando a cintura de Caro e agora a
chamava repetidamente pelo nome: duas sílabas, como carícias
proibidas e contidas.
Um aviso pendia atrás da porta: "A gerência não se responsabiliza
pela perda de valores".
— Portanto, não adianta acusá-los — disse Paul.
Acima do lavatório havia outro aviso, borrifado e desatado:
"Lamentamos não haver fornecimento de água quente nos quartos".
Uma tardia faixa de luz cortava um canto do papelão.
— Como é que conhecia este lugar?
Ela erguia os olhos para o papel de parede floral e um ornato em
relevo, empoeirado, em forma de acanto. Abaixo de sua cabeça, o
travesseiro se projetava da fronha, listrado e manchado.
— Foi em circunstâncias muito diferentes.
Caro recordou o pequenino bar deserto no andar de baixo,
recendendo a azedo; uma fila de garrafas turvas, copos encardidos.
Em um balcão, uma torta de vitela e presunto, dividida ao meio,
rósea e engordurada — seu ovo central espalhafatoso como um
desenho infantil de pôr-do-sol.
— A cena do crime — disse ela.
— De que está falando?
— Eu pensava em Avebury. Embora o crime seja irrelevante para
Avebury. Lá, tudo o que seja humano se torna insignificante —
puxou os cabelos para cima, tornou a aninhar a cabeça no braço dele
—, mesmo o sacrifício humano.
— Tudo hoje é o mesmo de outrora, apenas sobrecarregado de
hipocrisia. — A segurança voltara a Paul, como também certo
ressentimento contra um mundo em que se movera com tanta
facilidade. A jovem deitada a seu lado era parte da aquiescência
geral. Ele lhe afagou os bastos cabelos e disse: — Nunca enfrentei
grandes sofrimentos.
Por acaso ou exorcismo, Caro tocou a mão dele, na horrível
cabeceira da cama, folheada em madeira de bordo.
— Então — disse —, você ainda tem algo a temer.
— Eu quis dizer que, quando houve tragédia ou perigo, não senti o
suficiente. Seja qual for o significado de suficiente. — Ele não a
estava advertindo, apenas dizia a verdade. — Se você pode chegar
aos cinqüenta sem uma catástrofe, quer dizer que venceu.
Conseguiu passar ileso. Talvez, até este momento, eu tenha tido
mais boa vida do que eles me poderiam tirar.
Com "você", Paul se referia a si próprio. "Eles" eram indefinidos.
Caro nada disse. No momento, daria a vida por ele, mas repudiava
o desejo de Paul de ser ressarcido contra a experiência, através de
vantagens aritméticas. "Escapei disso impunemente", havia dito ele,
como se a própria vida fosse uma felonia, uma exposta velhacaria,
como o pano manchado de uma cama alugada. Como se, apesar de
toda a sua autoridade, ele fosse um fugitivo. Talvez seu pai tivesse
renunciado à existência, mas não fugira dela.
Caro lhe teria dito: "Você não conseguirá isso sem catástrofe"; mas
ficou calada por temer a perda — recordou como nada cria tanta
inverdade como o desejo de agradar ou de ser poupada de algo.
Paul levantou-se e se vestiu. Da cama, Caro ficou olhando, lânguida
como um paciente emergindo do éter, com dores e levado em
torvelinho por lentas impressões que mal consegue focalizar,
enquanto o mundo desperto, personificado em Paul, prossegue com
a rotina. A suspensão de vontade naquela experiência quase
poderia ter originado uma nova inocência, se a primeira não
houvesse sido desejada tão profundamente. Houvera a oferenda e o
sofrimento: uma breve escusa para a ternura ilimitada que, de outro
modo, homem nenhum concederia.
Em uma hora, ela passara da ignorância àquela superioridade de
comum conhecimento.
Quando Paul se sentou em sua puída poltrona para calçar os
sapatos, ela finalmente se levantou, caminhou até ele e ajoelhou-se
para seu abraço.
Paul lhe puxou o corpo para o meio de seus joelhos. A pressão de
mangas e calças na pele nua despertou em Caroline Bell outra
sensação, vinda da infância, quando seu pai se inclinava para ela e a
levantava da caminha, quase uma criança despida, em suas parcas
vestimentas, suspensa por aqueles braços onipotentes em brim ou
flanela, braços que tinham cheiro de cidade e do grande mundo.
Uma intempestiva e particular lembrança, também, de seu pai
vestido a rigor, a caminho de alguma cerimônia, usando medalhas
de guerra que pendiam de fitas brilhantes, quando se abaixava para
beijar a filha mais velha. E era ela a criança que se alçava para um
odor de tabaco e colônia, para a escura fricção da roupa masculina,
enquanto as medalhas oscilavam, como moedas de pequeno valor.
As transformações de seus vintes anos não eram mais espantosas ou
irreversíveis do que a nova mudança, no decorrer de um só dia,
quando passara de jovem solitária a mulher, agora ajoelhada e nua
sobre um tapete gasto, aos pés do amante. O braço, o quarto, uma
nesga de luz no teto, a prateleira vazia de bagagens a um canto
poderiam ter sido parte de uma andrajosa insignificância para o
mundo além — ou talvez contivessem a própria fonte de
significado, como o beijo ou a flagelação, no fundo silencioso de
uma obra-prima.
—
Vai acabar pegando um resfriado, Caro — disse Paul. Estava
vestido e presidia de sua poltrona, porém mal suportava a carga do
renovado poder que aquilo conferia a ela, o estar de joelhos a seus
pés. — Poderá se resfriar, querida.
O sol pálido tinha ido para o teto, uma faixa estreita iluminando
cada enfeite ordinário. Paul lhe afastou a cabeleira basta,
descobrindo a pele branca sob ela, que o verão não alcançara.
— Não mais virgem.
Caro sentiu lágrimas se formarem no canto dos olhos. Entretanto,
não eram das que rolam ou precisam ser percebidas.
A caneca suja contivera chocolate, havia um pedaço escurecido de
maçã e um pires, sapatos pesados, deixados em desalinho no chão,
uma camisa em uma cadeira. As cortinas escuras do quarto e as
severas instalações não ganhavam animação pela mera desordem e
pelo cheiro de alimento. E os livros mal facilitavam aquilo, nada
tendo a ver com o quarto: livros de passagem. Eram uma fase do
trabalho de Ted Tice, um período que lhe interessava menos que o
anterior e que o que logo chegaria — e os livros sabiam disso.
Estava singularmente frio ali, e ele jazia na cama, vestido e de
meias. À noite, dispunha de um pesado edredom. A temperatura
era uma piada para a família: "É um setembro excelente para
Edimburgo, não tivemos um só dia com menos de quatro graus".
Ted e Margaret tinham usado essa piada até gastá-la, como pessoas
que vacilam em mover-se para a fase seguinte.
Toda a família saíra para o chá dominical, exceto Margaret, que
ficara em casa para pintar ou estudar piano.
Ela precisava estudar. Também era possível que estivesse evitando
algum Donald ou Willie — pois Margaret, loura e magnífica, era a
caça natural para os alunos de seu pai. Era ainda plausível que
tivesse alguma razão, mais forte que suas muitas realizações, para
permanecer em casa. O piano ficava em um aposento do andar de
baixo, nos fundos da casa, onde ela também pintava. Entretanto, na
suspensão do domingo, podia-se ouvir todas as notas, mesmo a
pausa entre folhas viradas — de Schumann, César Franck. Willies e
Duncans teriam virado as páginas de suas músicas hora após hora,
ou, se agora os rapazes não executavam mais essa tarefa, eles a
acompanhariam por ruas geladas, de dia, para comer costeletas
fritas em algum bar de estudantes enfumaçado e barulhento.
Qualquer deles suspirava pela ampla fronte alva e pela boca tenra
de Margaret, ansioso por fazer demonstrações para ela. "Ela é uma
princesa", dizia sua mãe, uma adepta da Sociedade Fabiana.
Ted Tice largou o livro que deveria estar lendo e colocou um braço
sob a cabeça, com uma carta na outra mão. O livro caiu
desajeitadamente sobre o cobertor dobrado; quando Ted suspirou,
ele pareceu suspirar também e perdeu o equilíbrio, estatelando-se
no chão. Abaixo, o piano fez uma pausa, como uma polida
inquirição acerca daquele baque. A pausa aprofundou-se. Quando a
música recomeçou, era a música de canções que poderiam ser
tocadas em um clube noturno por um, ou uma, pianista de talento
que sentisse aversão pela própria sorte. Smoke gets in your eyes, e
coisas assim.
"Fui a Avebury, mais ou menos conforme o planejado. Aquilo é
mais um símbolo que um lugar — uma expressão do inevitável.
Certa vez, você falou que a vida não precisa ser crível ou justa. Isso
pareceu suficientemente claro em Avebury Circle.
Então, na semana passada fiquei uma noite em Londres. A
entrevista foi com um homem chamado Leadbetter, e começo a
trabalhar no mês que vem. Vou ganhar quatro libras por semana —
seriam três caso eu não fosse aprovada no teste. Esse Leadbetter
estava muito bem trajado, diminuto em seu cubículo de celulóide.
Uma espécie de homem em miniatura, um navio dentro de uma
garrafa. Nossa conversa foi também mais ou menos assim — uma
representação reduzida de discurso humano. Quando questionei
uma das condições, Leadbetter disse que eu era perfeccionista,
como se isso significasse pecadora.
À noite, fui ver Ricardo I I . Uma montanha de homem sentava-se à
nossa frente — o menor movimento seu e metade da corte inglesa
desaparecia de vista."
These foolish things foi seguida por M y romance. As canções estavam
sendo executadas com muito estilo e atenção. Ao invés de serem um
divertimento agradável, eram mais um esbanjamento, o desperdício
total de algo inestimável.
"Tento imaginá-lo em seu limbo no norte, esperando a fim de partir
para a França. Ted, não perca seu precioso tempo comigo. Não há
futuro em que eu creia tanto como no seu, e ninguém mais cuja
ambição já parecesse tão nítida e proveitosa."
"À nossa frente." Ted Tice estava tão certo, e desejava tanto ser
dissuadido a respeito daquela outra presença na frase, que perdeu a
capacidade para julgar — como o homem que olha por muito tempo
para uma forma distante e não tem certeza se ela se move ou está
imóvel.
"Não é uma questão de mais tempo. Não fique decepcionado
comigo. Desejo-lhe muito bem — apenas, sou impotente para fazêlo feliz. Se felicidade significa uma espécie de vigorosa paz de
espírito, então espero — contra toda a moralidade — que ela lhe
seja conferida, sem qualquer sofrimento de sua parte e nem mesmo
esforço. (Isso talvez seja o sentido em que o perfeccionismo, em meu
caso, é relacionado ao pecado.)"
No andar de baixo, Margaret tocava I'm in the mood for love; estava
jogando sua última cartada. E Edmund Tice, no quarto gélido, com
o braço debaixo da cabeça e uma carta ao lado, lamentou-a tanto
quanto lamentaria qualquer pessoa.
13
O corpo de Caroline Bell não era branco, mas nutrientemente alvo,
como massa ou pão, mesmo possuindo as leves máculas — a
pequena etiqueta de um sinal congênito no pescoço ou no seio, uma
cicatriz no joelho, proveniente de uma queda em criança — que
poderiam ter-se formado em um processo semelhante ao da
cozedura. Quando ela se erguia sobre um cotovelo ou se deitava
com os braços abertos, o espaço de seu corpo era um regaço, a curva
emparelhada dos ombros sincronizada para um iminente abraço.
Isso não podia ser percebido senão com ela nua: até então, a
sensação, em si, estava enroupada.
Caro nada mais usava além de um pequeno relógio de pulso
redondo.
— Eles logo estarão em casa.
Naquela tarde de setembro, até mesmo Grace era eles. Até mesmo
Peverel era a casa, o lar.
No quarto de Paul Ivory, situado no alto da casa dos Thrales, a
cabeceira da cama era de latão, a colcha rejeitada e rastejante, uma
trouxa de croché branco. Era o quarto da alta e incongruente janela,
cujas vidraças deixavam o sol bater em cheio na parede lisa. Na
cama branca, Paul e Caro apertaram cabeça contra ombro, queixo
contra têmpora e coxa contra coxa, engenhosamente.
— De qualquer modo, ninguém irá subir até aqui. Sendo domingo,
devo estar trabalhando duro e você, fora de casa.
— Onde estou, exatamente?
— Na estrada perto de Romsey, apreciando o passeio.
— Paul chutou um emaranhado de paciente croché branco.
— Oh, Caro, que bom é isto!
Suficiência era como uma entrega, um parto: ele estivera sufocante,
agora respirava livremente. Paul estava familiarizado o bastante
com o prazer para saber que ele pode tornar-se cediço ou relutante.
A alegria, no entanto, era literalmente estranha, uma palavra que
jamais pronunciaria com facilidade, um arrebatamento que tinha
alguma outra arrojada nacionalidade. Por esse motivo, a plenitude
de Caro no amor, sua felicidade naquilo, a tornavam exótica.
— Tranquei a porta — disse Paul.
Os dedos de Caro aferravam-se às colunas e arremates de latão da
cabeceira como os de uma mulher sonhando. Seu braço, que os
outros consideravam forte, revelava uma parte inferior macia como
a de uma criança, escassamente mais áspero no cotovelo. Sua outra
mão passava e passava por entre os cabelos de Paul Ivory, com toda
a ternura possível. Mentalmente, ele via aquilo acontecer, sua
lealdade escapando através dos dedos dela, no quarto branco. De
qualquer modo, isto é real, disse para si mesmo. E podia sentir que
ela pensava de maneira idêntica.
Ele alcançou a coberta, puxou-a até o queixo de Caro. Tornou a
puxá-la para baixo, lentamente. Os dois riram: o desvelar de um
monumento. Na parede, estava a janela do céu azul, folhas verdes
de uma galhada de olmo. Um aviãozinho angular havia passado
lentamente mais acima, como que em papel prateado, daqueles que
podiam levar crianças em escapadas, entre as guerras: um avião de
brinquedo que zumbira em um campo relvado dos tempos de paz,
enquanto um homem de macacão se precipitava para a hélice e
gritava: "CONTATO".
Eles tanto faziam parte daquela cintilação aérea como do quarto
trancado, doméstico e terrestre.
— E se sua irmã não tivesse ido ao concerto? — disse Paul, tendo
sabido a história de Grace e Christian, no Albert Hall.
— O nosso destino, tanto quanto o deles.
Paul considerara aquilo uma sorte, mas ela agora falava em destino.
Como se Caro lhe houvesse dito: "Você deve escolher". Era aquela
maneira de as mulheres requererem escolhas, seleções e provas,
para então atribuírem responsabilidade. O Julgamento de Paul.
— Jamais gostei de tardes, só agora — disse ela.
A um canto havia um guarda-roupa tão pesado, que fazia evocar
imediatamente os homens que o tinham transportado pela escada,
cinqüenta ou sessenta anos antes, grunhindo e sustentando-o às
costas. Em cima de uma cômoda de nogueira, havia uma fotografia
desbotada, tendo a data 1915 inscrita a tinta. Até mesmo um
bolorento instantâneo de um chalé inglês, se estivesse rotulado
1915, era maculado e difamado com uma turva conscientização das
trincheiras. Inclusive em um quarto de amor. Abaixo da foto, o
pente e a escova de roupa de Paul se situavam ao longo de uma
carteira de couro de porco e um vidro de água-de-colônia francesa:
tudo dourado, sobre uma toalhinba de renda. A pulseira do relógio
de pulso descartado se erguia em dois breves arcos, pronta para o
pulso dele. A maioria dos objetos de tal natureza era tão solene que
quase fazia sorrir, mas os bens de Paul possuíam a eletricidade do
dono.
— Devíamos estar ao sol, em algum lugar — disse ele.
— O sol está aqui.
Paul gostaria que ela imaginasse alguma praia simplificada, com
palmeiras ou pinheiros italianos. Caro, entretanto, descria desse
cenário de filme, para o qual estivera olhando, antes de fechar os
olhos. A insistência dele em mudar estabelecia um final ou negava
um começo. A partir de seu prodigioso conhecimento de agora,
Caro podia assegurar-lhe que ele encontrara o que buscava.
— Bem, está aqui — disse ela. — O sol. Desejaria apenas que o fato
fosse reconhecido. Paul,
no entanto, preferia aquilo que descobria por si próprio.
— Eu pensava no calor real. Sol, areia e mar. — Espalmou as mãos
de ambos e as uniu — jovens, lisas, maravilhosamente limpas, com
dedos tão superiores. — Limoeiros, vinhedos, paredes caiadas. . .
Escarnecia dela com a carência. Um teste de vontades, quando tudo
poderia ter tido um cômodo virtuosismo.
— Por que está sendo rude?
Ele refletiu que as mulheres já nasciam com tal pergunta nos lábios.
Distraiu-se um instante, buscando a contrapartida masculina.
— Espero que me perdoe, com o tempo — respondeu. — A la guerre,
comme à la guerre.
— Que guerra há entre nós? — ela quis saber. Paul considerou
também como era fraca sua pronúncia
do francês.
— Está tudo bem, não há nada. Se você gosta daqui. . .
Riu e desistiu da excursão por causa dela. Como se percebesse, seu
olhar seguiu o braço que ela estirara, o joelho erguido. Paul colou os
lábios a seu seio.
Foi então que ouviram o carro. Não o ronco de um
Hillman ou Wolsey, não a mudança brônquica de marcha com que
um caminhão poderia estar subindo a ladeira, mas um som rápido e
decidido, um som em condições para um salão de exibição,
ganhando caminho deliberadamente, mo-vendo-se com velocidade
na direção da casa, ainda bem longe, depois na direção da parede e
da janela aberta, como um maroto raio de luz.
Foi então, naquela atitude primordial, que eles ouviram o carro. A
cabeça de Caro recaiu no travesseiro branco. Paul saltou da cama.
— Se ela entrar — disse —, se ela subir e achar a porta trancada. . .
Era Tertia, nesse dia e nos outros. Paul já vestira a camisa e pegava
uma gravata, escolhendo para aquele momento roupas mais
formais que de costume. No cascalho, rodas salpicavam pedrinhas
para os lados. Era o próprio castelo vindo ao encontro deles. O
motor cessou, mais conclusivamente do que já cessara algum motor.
— Paul?
Ouviram o barulho da porta de aço.
— Paul?
Nunca houvera sons tão definitivos, aquelas pausas, ultimatos e as
chamadas incondicionais em tom agudo. Caroline Bell permaneceu
imóvel. Paul agora chegava à janela. Inclinou-se para fora, lacônico.
— Santo Deus! — Ele sorria, inclinava-se e fazia espaço para os
cotovelos informais. — Aconteceu alguma coisa?
Havia a intimidade sólida do tom, a naturalidade com que deixara
de pronunciar o nome dela. Como se, no máximo, houvesse
acrescentado "Tertia".
Tertia Drage chegou bem abaixo da janela: um vestido cor-de-rosa e
um rosto erguido. Talvez não esperasse que Paul aparecesse tão de
súbito, mas não demonstrou surpresa e, mesmo estando de pé, mais
abaixo, não havia nenhuma impressão de desvantagem. Não mais
do que Paul — de pé e à vontade, apenas com a camisa e a gravata
— e, no que dizia respeito a Tertia, inteiramente vestido.
Vendo-os agora, qualquer um os julgaria bem adequados.
— Está uma tarde linda — disse Tertia, naquela sua voz tão
desprovida de fervor. Havia uma fita de seda rosa em torno de sua
cabeça e ela segurava uma luva de dirigir na mão direita. —
Devemos aproveitá-la.
— E qual é a idéia?
Estavam em uma de suas competitivas recusas, não desejando
demonstrar qualquer espontaneidade. Ambos eram esquivos,
embora não introvertidos, com uma subterrânea corrente de
sarcasmo que incluía o repúdio a qualquer fraqueza inadvertida.
Com Tertia, a maliciosamente antagônica disposição de ânimo já era
habitual. Ela ergueu a mão, desdenhosa.
— Você está a par das possibilidades tanto quanto eu. O som do
motor havia sido uma voz mais verdadeira
que a dela, e também mais responsiva.
Fora de vista e abaixo do peitoril, os pés de Paul Ivory tinham se
cruzado tão negligentemente como seus braços dobrados. Pêlos
louros e pequeninos anelavam-se nas coxas nuas.
— Nada tão árduo — disse ele, ou estava dizendo quando, após
observar os membros de Tertia, soube que Caro chegava ao seu
lado.
Paul percebeu que Caro chegara por trás e se encontrava ao seu
lado, na janela. O ombro nu, perfeitamente à vontade, tocou o seu.
Ele não se virou, mas, como se fosse Tertia Drage, viu Caro, parada
nua ao seu lado, naquela janela alta, espiando para baixo; espiando
os dois. Lá estavam, ele e Tertia, com Caroline Bell à janela,
observando-os. A mão de Caro pousou no peitoril. Ela nada mais
usava além de um pequeno relógio de pulso redondo.
Momentos passaram — ou não passaram. Tertia permaneceu
impassível. Apenas moveu um braço para o alto, estendendo o
punho enluvado e crispado como o de um falcoeiro. Ela olhava
diretamente para Paul. Seu olhar tinha uma expressão fixa e dura,
para ele somente.
— Você decide — disse.
— Vou descer.
Talvez pela primeira vez, os olhos de ambas se encontraram.
À janela, Caro não se moveu. Paul afastou-se e vestiu o resto de
suas roupas. Seu afastamento expôs completamente a parte superior
do corpo de Caro. A luz cor-de-carne lhe estriava o ombro e
desenhava listras avermelhadas nos bastos cabelos que se
espalhavam por suas clavículas. Mais abaixo, Tertia caminhava em
torno do carro e abria a porta. Depois entrou, deixando livre o
assento do motorista. No quarto acima, a cama rangeu, enquanto
Paul enfiava os sapatos de lona. Demonstrando apenas a pressa
normal, ele pegou seu relógio em cima da cômoda e o consultou,
colocando-o no pulso. Poderia ter-se atrasado para um compromisso.
Uma porta quase fechada. Degraus ecoando sob os pés rápidos de
Paul Ivory. Ele surgiu na trilha abaixo da janela do quarto e deixou
o casaco cair dentro do carro.
— Quer que eu dirija?
— Se estiver com vontade.
As vozes dos dois não soavam alto nem baixo: poder-se-ia dizer que
estavam niveladas. Tertia tirava as luvas bruscamente. Houve o
repentino ronco do carro. Como se alguém, girando uma hélice,
gritasse: "CONTATO".
O capitão Nicholas Cartledge esperava um trem. Seu terno de tweed
era da cor e textura de areia fina. Bege e granulado, ele estava de pé
em uma plataforma cimentada do ramal ferroviário, ao calor do
tédio de uma tarde de domingo. O trecho betuminoso da ferrovia
aniquilava virtualmente toda uma suave região rural. Até mesmo o
dia radioso podia gerar cor, onde somente havia ferrugem depositada no cimento e em uma mancha de raquíticas dálias, em
torno de um poste de sinalização. Nicholas Cartledge se mostrava
impassível, nem paciente nem impaciente, volta e meia deixando a
pequena mala de roupas sobre o asfalto, a fim de caminhar pela
extensão da plataforma e voltar. Por uma vez, seu punho branco se
ergueu, para uma comparação das horas com o relógio da estação,
mas ele não chegou a qualquer aparente conclusão quanto a uma
discrepância. Se alguém houvesse feito comentários sobre o tédio,
ele responderia: "Não me entedio".
Ele viu que o táxi local, um velho Humber verde, que podia ser
solicitado por telefone, parava junto aos degraus da estação e que
Caroline Bell desembarcava do veículo. Com a mínima vibração de
surpresa, ele se aproximou para ajudá-la e, antes mesmo que ela o
reconhecesse, já se inclinava para pagar a corrida. Caro ficou parada
na calçada, estendendo-lhe na palma aberta uma profusão de meias
coroas e sixpences.
— Era só o que faltava! — exclamou Cartledge.
Pegou a mala, não maior que a dele, e um leve impermeável.
Aliviando-a daquelas coisas, parecia sugerir uma expropriação.
Subiram os degraus de madeira, e as duas bagagens ficaram lado a
lado. As dálias fanadas circundavam o poste de sinalização, como
água parada em torno de um ralo.
— Seguindo para Londres, imagino — disse Cartledge, e não
pareceu surpreso.
Possuía uma autoridade associada à insensibilidade. Caro mal havia
falado e poderia ter esquecido seu nome. Estava decentemente
vestida e não demonstrava — ou traía, como se diz — qualquer
emoção. No entanto, ele poderia ter dito que sua aparência era
desordenada, não apenas porque aquilo resumia uma evidente
situação, mas por causa de uma emanação de impotente abalo.
Ela recusou um cigarro e não quis sentar-se. Caminharam ao longo
da plataforma cheia de luminosidade, indo e vindo. As meias claras
se mostravam acima dos sapatos flexíveis que ele usava. Não se
poderia dizer que caminhavam juntos ou que ele fazia algum
esforço para diminuir a distância que Caro criara entre ambos. Um
casal idoso e trajado de escuro, sentado em um banco, os observava
com a perspicácia aguçada pelas neurastenias dominicais.
— Aí há alguma história.
Inclinaram-se a tomar o partido de Cartledge — que afinal era o
homem, e vestia aquelas roupas excelentes, uma figura da escola
antiga, com os cabelos louros e o rosto dispendioso, magro e polido.
— Um legítimo conquistador — disse a esposa, quando Cartledge
tornou a passar por onde ela estava sentada, imóvel, sob um
toucado de violetas em seda artificial. — Ou um roué1 —
acrescentou, reforçando a idéia. Entretanto, logo voltou ao seu
próprio domingo: — Bem, Fred, você demorou bastante para se
decidir a visitar Maude, e demorará ainda mais da próxima vez.
De pé, ao lado da bagagem, que funcionava como um ponto de
destino, o capitão Cartledge sacudiu a cinza do cigarro.
— Era evidente que você se aborreceria naquele lugar. Não
esperava resposta, mas, após algum tempo, virou-se
para fitá-la — a cabeça, os seios. Caro o viu fazer aquilo, mostrando
uma frieza que era, conforme ele percebeu, uma variante do
problema que a perturbava, fosse qual fosse. Finalmente, ele disse:
— Se eu puder ajudar. . .
Ela podia estar sorrindo da ironia:
— Eu me aborreceria, foi o que disse.
— Não há nada pior — concordou ele, identificando o tom. — Não
poderia encontrar um ouvinte mais compreensivo.
Caro não o procurara, em verdade, mas ele mostrava uma
segurança que apenas uma investida violenta destruiria. Quando o
trem chegou, o capitão jogou o cigarro fora e embarcou com as
malas de ambos. Ela caminhou na frente, até um compartimento
vazio, onde se sentou junto à janela, pálida e peculiar, a ponto de o
casal idoso comentar pela última vez, enquanto os dois passavam:
— Aí há mais do que vêem os olhos.
— Isto vai ajudá-la — disse ele, respingando algumas gotas quando
o trem deu a partida.
Caro viu as iniciais NGWC na prata. Ele enxugou os dedos molhados
com um lenço branco enquanto ela bebia, depois despejou uma
dose mínima para si mesmo. O lenço tinha as mesmas iniciais,
enroscadas a um canto.
—
Não tenha pressa — disse ele, sentando-se no banco oposto
ao dela, depois ajeitando polidamente as pernas para evitar o
contato e colocando um braço no peitoril da pequenina janela. — Há
tempo de sobra.
Ele não quis dizer que havia tempo para a existência retomar seu
curso, mas que ela terminaria aceitando o que deveria acontecer
agora. Havia a prata e o lenço, o tweeà granulado e o peitoril sujo da
janela. Caro entrelaçara os dedos no colo, uma atitude de tal
calmaria que ela e a irmã adotavam quando sob tensão, ao mesmo
tempo em que sustinha o olhar dele, sem pensar e sem pestanejar.
Colinas e vales passavam oscilantes pela janela do trem. Uma
fábrica ocultou a paisagem momentaneamente e recuou depressa,
como o slide errado em um projetor. Havia um odor úmido e
metálico no compartimento, um cheiro antigo do estofamento, uma
exalação do lavatório próximo e o sabor mais imediato do brandy.
— Estou ao seu dispor — ofereceu-se o capitão, mas ela não se
iludiu ou mal o ouviu. Ante o silêncio de Caro, acrescentou: — Não
me aborrece.
Ele ponderou se teria sido aquele rapaz vesgo, antes de lembrar que
Ted Tice já havia partido — para Glasgow, Edimburgo ou,
possivelmente, Paris. O fato de ser Paul Ivory dava um matiz mais
interessante, pelo menos por razões de classe social.
Passaram estações com dálias cobertas de ferrugem, das quais o sol
se retirava sucessivamente. As plantações de lúpulo estavam no
ponto, em um campo após outro. Em alguma parte, perto da frente
do trem, o casal idoso cochilava. Em certa ocasião, a mulher
perguntou, entre uma e outra soneca:
— De onde você acha que vem a palavra "roué” 1 ? Ela pronunciou
"ruei", e não obteve resposta.
Os cabelos de Caro tocavam o batente da janela. Não fechou os
olhos. Cartledge disse:
— Não prejudicou em nada sua aparência, você sabe.
— Falta muito tempo? — perguntou ela. O punho dele se ergueu.
Depois: — A que estação chegaremos? — sem o chamar de Nick,
como ele sugerira.
—
Está pretendendo ir para. . . onde?
— Há uma casa na Gloucester Road onde aceitam australianos.
— Minha cara, da maneira como fala, eles parecem prisioneiros em
liberdade condicional.
— Mandamos amigos para lá. Se essa falhar, existe outra
semelhante na Cromwell Road.
— Ficaria melhor alojada na North Audley Street. Onde eu aceito
australianos. — Tornou a oferecer-lhe o frasco, em cuja superfície o
sol cintilou, como em um cano de rifle. — Por falar nisso, imagino
que você tenha deixado a inevitável nota espetada no travesseiro —
alguma explicação convincente e inteiramente fictícia, não?
Viajavam agora entre plantações de lúpulo, que iam rareando,
substituídas por hortas. Dois homens em verdejantes hortas
vizinhas aproximaram-se um do outro, amistosamente, por sobre o
muro; também poderiam estar discutindo. 0 céu agora se espelhava
avermelhado sobre a terra, e uma encosta de colina assomava
ameaçadoramente como um naco-de pernil. O capitão Cartledge
tirou cigarros de um maço comum, embora em algum lugar devesse
existir uma cigarreira de prata com iniciais, combinando com o
frasco.
—Nas noites de domingo, eles sempre me reservam alguma coisa —
disse ele. — Sopa, galinha. Refiro-me ao meu casal.
1
"Libertino." Em francês no original. (N. do E.)
Então, havia um casal, que deixava pronta uma refeição fria para o
capitão e dava uma boa esfregadela para polir as iniciais. Bom
trabalho o teu, prestimoso e fiel servo. Capitão, meu capitão. Casal,
meu casal. Capitaneados, acasalados. Haveria lençóis, fronhas e
lenços com iniciais espiraladas, prontas para saltar.
Em seu canto, na penumbra, o capitão estava calmo, acima do brilho
alvo do colarinho e dos punhos — listras apropriadas, como as
características de um cavalo de corrida. Ao contrário do que poderia
ter acontecido, ele não a tocara. Disse:
—
Em todo caso, é melhor que passar uma noite desagradável
na Gloucester Road.
"Em todo caso" colocou a coisa em perspectiva.
O suor porejava na raiz do cabelo de Caro. Se ela perdesse os
sentidos ou a calma, ele estaria tentando um empreendimento
demasiado arriscado. Caro, no entanto, permaneceu distinta,
integral, controlada, em seu assento no banco oposto.
—
Entre outras coisas — acrescentou ele —, a noite é boa
conselheira.
Pela formação da frase, aparentemente Cartledge já havia dito
aquilo antes. O céu se mostrava tanto uma composição rosa-viva de
noite estival, como um arco de monstruosas contusões, dependendo
da maneira como fosse encarado. Agora, cruzavam um labirinto de
vias perto do rio e tinham uma bela vista da Catedral de São Paulo.
Caro estava de pé, estendendo o braço para apanhar sua mala no
bagageiro.
— Era só o que faltava! — exclamou ele, como havia exclamado
antes na estação, e desceu a mala para Caro.
Estavam ambos de pé, equilibrando-se, a poucos centímetros de
distância um do outro, e Caro mantinha as mãos ao longo do corpo.
Seus lábios repuxavam-se ligeiramente para trás, deixando ver os
dentes inferiores; naquele momento, podia ser considerada cruel
como ele.
Ela o fitou no rosto.
— Já fiz amor hoje.
Ele cambaleou para manter o equilíbrio, quando o trem freou ao
chegar à estação, depois oscilou sobre os artelhos, em controle. Era
mais alto que ela uns doze centímetros.
— Estou consciente dos termos. Dá no mesmo; vejamos se não
podemos oferecer-lhe algo isento de tortura. — Olhou em torno do
compartimento. — Está pronta?
Foi o primeiro na plataforma. Seguindo-o, ela o viu erguer o braço
rapidamente:
—
Táxi!
Então, entrou no táxi escuro de Cartledge, enquanto ele ainda
estava dando o endereço.
Segunda parte
Os contatos
14
"Minha querida Caro,
Em Paris há sessenta mil estudantes, a maioria deles no corredor
fora desta sala. Na semana passada, entretanto, o edifício ficou
deserto por causa da Páscoa e calmo como um mosteiro. Minha
janela dá para um pátio cheio de árvores floridas — pilriteiros, uma
olaia, e, bastante próximo, um enorme pé de lilás, desabrochando
em pirâmides arroxeadas. Há um chafariz e — escondido — um
tordo. Durante os feriados, fui com dois colegas franceses às minas
perto de Lille, onde descemos em um poço. O trabalho é feito por
rapazinhos de uns dezesseis anos, com rostos encarvoados,
exatamente como os de Dante, em sua maioria norte-africanos que
não falam francês. Ainda piores eram as choupanas para as quais
depois voltavam, dez em uma choça imunda. Tendo dirigido
petições inúteis ao Ministério do Trabalho em benefício daquela
gente, meus dois amigos os estão auxiliando a formar um sindicato.
Voltamos a Paris, via cemitérios da Primeira Guerra Mundial em
Vimy e Notre-Dame-de-Lorette e um quarto de milhão de
sepulturas.
Trabalho. Penso em você. Não são proposições alternativas — penso
sempre em você. Desde que lhe escrevi pela última vez, fui a uma
exposição de desenho de Leonardo, a revolução industrial de um só
homem. Vi uma boa peça, Le diable et le bon Dieu, assim como Jean
Vilar e Gérard Philipe em Le Cid, um torneio de judô e o senador
Kefauver, pela televisão. Kefauver é bastante desalentador, sabe
Deus, mas aqui sou encarado como o seu defensor, já que há um
antiamericanismo tão fácil e desinformado entre meus colegas.
Detesto unanimidade (ou solidariedade, como perniciosamente é
chamada), e, de qualquer modo, o descuidado culto aos soviéticos e
chineses me entedia — particularmente nesta terra de en principe.
O homem com quem vim trabalhar aqui continua a impressionarme, humana e profissionalmente. É verdade que ele comete erros,
em parte por ter feito tanto. Aqueles que se comprometem menos
podem ser mais circunspectos. (E aqueles que nada empreendem —
seja no campo do espírito ou do intelecto — estão em segurança e,
naturalmente, são os mais críticos acerca de tudo. É muito fácil
denunciar — basta ter má vontade.) Que esforço árduo e persistente
é necessário, descobri, para aprender ou fazer alguma coisa até o
fim — em especial se essa coisa é o que amamos! Uma vocação é
uma fonte de dificuldades, não de facilidades. Fazer já é
suficientemente difícil. Ser, mais difícil ainda. Tanto fazer como ser
demandam um esforço sobre-humano. Bem, por que não? Qualquer
coisa é preferível ao lado mais confortável da linha.
Os estudantes são batatas precoces, forçados a amadurecer, o ritmo
é terrível. Chegam aqui aos dezoito anos, saídos dos liceus, e depois
de um ano alcançam o equivalente a BA1. Todos são 'sérios' e
engagés. (Estou francamente saturado dessa palavra.) O lugar está
entulhado de literatura marxista e, em quatro, um é membro do
Partido. Não obstante, eles passam a noite infligindo brincadeiras
brutais aos calouros e berram como se estivessem no quarto ano,
quando as refeições se atrasam. Embora suas perspectivas sejam
aterradoras, eles são comovedoramente jovens e sérios, quando
vistos no Boulevard Saint-Michel, onde passam todo o tempo livre
de que podem dispor. Fazem com que me sinta ponderado e
deslocado ao mesmo tempo.
O novo governo francês é idêntico ao anterior e cairá com idêntica
rapidez. Terminaremos com a Europa voltando a ser fascista,
'defendida' por um exército alemão com comandantes americanos e
armas americanas, todos ansiando pela travessia do Elba? (Quando
se considera o quanto é real a ameaça soviética, chega a ser
espantoso que a demência oposta de nossa parte quase faça com
que a desacreditemos.) Uma brilhante projeção tem sido a morte de
De Lattre, originando uma leve esperança de estabilização na Indochina. Seu funeral foi uma monstruosa exibição de militarismo —
escolas fechadas, imensos desfiles com Eisenhower, Montgomery, o
gabinete, bandas de música, coros, o clero, tropas, tudo, enfim. Em
câmara-ardente no Arco do Triunfo, na Notre-Dame e nos Invalides.
Um desempenho absolutamente prussiano.
Se Leonardo descobrisse a máquina a vapor, Napoleão soltaria a
bomba atômica, para o clamoroso aplauso francês.
Entre os estudantes e também no caso de meus colegas daqui, é
comum haver um passado de pobreza. Não há charada em torno do
1"Bacharel
em Artes." (N. da T.)
fato, como em nossa terra — nenhuma hipocrisia de parte dos
pobres, nenhuma fantasia de fraternidade por parte dos ricos.
Lembro-me do pessoal da universidade que costumava aparecer em
Ancoats durante a minha infância, adotando nossa maneira de falar
e nossas roupas, para exibir um espírito de companheirismo — uma
condescendência sentimental, sem o menor significado para a pobreza. Ligar-se ao proletariado não quer dizer descer tanto. De que
nos valia sua segurança eivada de culpa ou o insulto moral trocado,
quando eles iam para casa, ao encontro de seus pais empregados —
sua água quente e seus livros, sua música e sua conta no banco, se
não tinham a intenção imediata de dividir nada disso? De que me
valiam seus macacões, se eu daria tudo para ver minha mãe em um
vestido decente? Em si, os farrapos não conferem uma moralidade
maior que a infelicidade que causam.
Os pobres não querem solidariedade com o grupo deles, querem
mudar isso."
(Durante a Depressão, quando Ted Tice tinha nove anos, seu pai o
levara para ouvir um político discursar. Pai e filho ficaram entre a
multidão, nos fundos de um lúgubre salão. Às perguntas do filho, o
pai respondia da maneira habitual: "Cale a boca". O orador era um
jovem liberal de cabelos louros, advogado do distrito, que se
candidatava pela primeira vez. Ele se considerava um dos pobres,
mas até mesmo o menino sabia que os pais daquele jovem haviam
custeado seu curso de direito — enquanto os outros, rapazes e
moças, trabalhavam no moinho, nas fábricas ou docas, com doze ou
catorze anos. Isso, se tivessem sorte bastante para encontrar
trabalho. Dizia-se que aquele jovem tinha um rendimento semanal
líquido de três libras e dez, além de ter apenas um dependente, uma
tia paralítica. Todo o resto ficava para ele. Era difícil imaginar o que
fazia com tanto dinheiro.
Ele parecia ansioso, queria mudar suas vidas. Um homem de pé a
um lado do salão gritou: "Um pouquinho de seu salário mudaria
uma vida, aqui nesse salão, se você o desse". O rosto do candidato
ruborizou-se: "Não é essa a solução". O aparteante tornou a gritar:
"Fico com ela, enquanto você vai pensando em uma melhor".)
Ted Tice levantou-se e foi até sua janela florida. Tornou a sentar-se à
sua mesa e olhou para o que acabara de escrever: "Eles querem
mudar isso". Ainda mais do que mudar, querem vingar-se. Os
homens podem confraternizar cedo o bastante com inimigos que os
atacaram em batalha, porém jamais com irmãos que os humilharam
a sangue-frio. Eles sofrem represálias, devido à própria vergonha —
eis o que forma todos os ódios, na guerra, nas classes ou no amor. E
também eu quero me vingar.
Prosseguiu, em outra folha:
"Você deve ter lido algum comentário sobre o telescópio. Só hoje me
chegou o número do Observer. O velho Thrale jamais se perdoará
por ter-me aceitado em casa. Não obstante, recordo nitidamente o
momento em que o fez e fico grato.
Amenizo meu papel pró-americano atacando ferozmente os Estados
Unidos com o amigo mais agradável que fiz aqui, um jovem físico
americano cuja principal atividade é encontrar garotas. Ficamos
juntos nas noites em que ele não está disposto a obscenidades.
Através dele, conheci uma êtudiante pequena e adorável, uma
primeira bailarina do New York City Ballet, bem como uma jovem
conservadora de museu que auxilia na montagem de uma vasta
exposição de arte mexicana e entende profundamente de motivos
sexuais pré-co-lombianos."
Ted se sentia dividido entre a ânsia de exibir-se a Caro e a
probabilidade de que ela enxergasse através disso. Relendo as
últimas linhas, riscou "adorável" e "jovem", além de eliminar a
bailarina. Reescreveu a página e continuou:
"Outro americano daqui casou-se ontem e fui ao casamento, uma
cerimoniazinha prosaica, em uma capela lateral da catedral
americana. O sacerdote dava a impressão de que não fora pago. Em
seguida, rolou champanha o suficiente para nadar-se nele e fiz jus
ao maravilhoso jantar escutando uma mulher falar-me sobre sua
plantação de frutas cítricas e o chalé que possui em Monterey. E por
mais tedioso que fosse, havia um casal interessante na mesa, um
pouco além — um homem chamado Vail, que subvenciona vários
empreendimentos culturais na América, e sua esposa. Ele se parecia
com Orson Welles (embora não como Cidadão Kane). Sua mulher,
mais magra que qualquer modelo e muito alta, era bonita — um
rosto seco, com olhos redondos. Aqueles dois estavam encerrados
em alguma infelicidade que, por causa de sua inteligência e
aparência, prendia o interesse. Antes, jamais me ocorrera que a
infelicidade pudesse ser interessante, em si; Deus é testemunha de
que a minha não é nada disso, para mim. E imagino que seja com
coisas assim que os romancistas se preocupam.
O tal Vail também se envolve em causas humanitárias e políticas;
ele me surpreendeu, na breve conversa que tivemos, por estar a par
da confusão sobre o telescópio. (Eu devia dizer que pensei bem dele
antes disso.) Tinha acabado de chegar da Tunísia, que, como todo o
mundo árabe, parece estar se dissolvendo em fumaça. Mal
havíamos começado a falar, quando uma viúva rica de Pasadena
nos interrompeu para dizer que certamente agora o mundo estava
indo melhor, com os jovens tão viajados. Vail respondeu: 'Não se
trata de viagens, mas de deslocamentos'.
Por falar em casamento, soube de Paul Ivory. Soube também que
sua peça estreou em Londres. Eu gostaria de saber qual irá durar
mais."
Ted juntou as folhas, para então acrescentar: "Quase me ressinto das
coisas que descrevi, porque elas são a vida sem você. Caro, já faz
tanto tempo! Se eu pudesse ao menos vê-la!" E assinou seu nome.
Colocar uma carta para Caroline Bell no correio era um instante de
esperança e contato, de anticlímax. Ted Tice desceu a escada de
degraus gastos e barulhentos, e saiu para a rua. Após despachar a
carta, procurou caminhar tão depressa quanto lhe permitia a
multidão dos transeuntes, para que a boa disposição não o
abandonasse, juntamente com o calor de seu quarto.
Era crepúsculo, havia estudantes nos cafés. Outros jovens, aqueles
que nem mesmo um café podiam pagar, permaneciam em grupos
na calçada e falavam rapidamente, sem rir. Ted pensou: Isso é
soturno e maravilhoso alternadamente, mas nunca descobrirei por
quê. Pelo menos, não é natural nem fácil, não é desprezível nem
pomposo ou insípido. E, em si, a ausência de intenção de enganar a
si mesmo é liberdade.
O instante de euforia evaporou-se. É degradante fixar sentimentos
apaixonados em outro ser quando existe a certeza de que não pode
haver qualquer pensamento de retribuição. Enquanto caminhava,
Ted Tice levantou a gola do paletó. Como sempre, saíra sem
sobretudo. Um dos homens em cuja companhia tinha ido às minas,
um bretão que ia para a agrêgation, desligou-se de um dos grupos na
calçada e caminhou com ele. Ted pensou em como seu amigo americano faria uma pergunta, "Teve um bom dia?", ou algo de
natureza gentil. Os americanos talvez fossem o único povo ainda
capaz de perguntar como alguém se sente — que ainda imaginava
que esse alguém pudesse sabê-lo ou dizê-lo; ou que supunha uma
mentira afirmativa e despreocupada, alguma demonstração de
obstinada imaturidade, como a deles próprios. Após colocar no
correio sua carta para Caroline Bell, Ted se alegrou com a
emparelhada reticência com o bretão, ali na rua: uma camaradagem
que abordava seu isolamento, mas não sua solidão.
Quando chegaram à entrada do prédio de Ted, um grupo de
estudantes passou por eles, rindo e gritando.
— Todo esse entusiasmo não passa de melancolia — disse o bretão.
Os dois homens recostaram-se contra uma parede tão suja como só
as paredes de instituições de ensino o conseguem ser, como
resultado da pressão de tantas mãos poluídas, de poluídos traseiros
e coxas, ali encostados em discussão ou amor. Além deles, a rua
comprida fluía lentamente em grupos humanos, tensos ou flexíveis;
animados por opiniões, sofrimentos e ânsias. O bretão tocou
levemente o ombro de Ted.
— Lembre-se apenas, meu caro, de que as mulheres envelhecem.
Até outro dia.
Ted tinha mais uma carta a escrever, que não pretendia iniciar
naquela noite — mas foi o que fez, incapaz que estava de trabalhar.
"Foi muito bom ter recebido sua carta e suas notícias. Sim, possuo
uma fotografia — desde que cheguei aqui, tenho passado a maior
parte do tempo e gasto uma parte razoável de meus fundos sendo
fotografado. Não sei o que há comigo, mas todos querem meu
retrato, e em quatro ou cinco cópias: a polícia, a universidade, o
Comité d'Accueil. Para você, não obstante, uma cópia apenas, na
qual pareço o tipo de pessoa que mais detestei em Cambridge. Uma
vez que você vem realmente — boas novas —, tentarei obter entradas para o festival de maio. Estarão levando Wozzeck, de Berg, e
Oedipus Rex, de Stravinski. Haverá bastante bale — o pessoal de
Nova York e o Marquês de Cuevas. Sem dúvida, você deveria ver
Golovin. Quanto ao tênis, todos acham que a grande partida será a
de Sedgman-Drobny, você também acha? Concordo com o que está
acontecendo em casa — Attlee pode contar novamente com meu
voto, da próxima vez.
Preciso terminar um trabalho, portanto, perdoe-me por apenas um
bilhete. Conversaremos em maio. Será ótimo ver você. Comuniqueme a época da chegada. Seu."
15
Na época em que Grace e Caroline conseguiram seu primeiro
emprego — na Harrods e na livraria —, legaram a Dora a maioria
de seu pequeno capital. Ocupada em criá-las, Dora ficara impedida
de ganhar a vida, e parecera acertada aquela recompensa. Tal havia
sido o raciocínio de Caro, pelo menos, de maneira que todo o seu
capital fora transferido para Dora, na nova combinação. Afinal,
Caro podia esperar ter em breve algo semelhante a uma carreira. Já
que o emprego de Grace na Harrods carecia até mesmo dessa possibilidade, por sugestão de Caro ela continuara de posse de metade
do que possuía. Explicado o plano a Dora, houve um desencadear
de forte paixão. Ela nada queria, nunca pedira nada a ninguém,
caminhara a fim de poupar até mesmo uma passagem de ônibus, e a
única coisa de que não abria mão, para ninguém, era sua
independência. "Não serei dependente de ninguém, não peço nada."
Dora se sentira ultrajada — irracional, mas não imprevisivelmente.
Então, somente após vários dias de lágrimas e de implorar
tranqüilidade, ficou estabelecido que ela acompanharia as jovens ao
escritório de um advogado, onde os documentos foram afinal e
emocionalmente assinados. Passou-se mais uma semana antes que
ela voltasse a falar com as duas na forma costumeira ou que consentisse no perdão.
A própria Dora ficou confusa com a indignação que sentira ante o
gesto das irmãs. Com tal atitude, elas a tinham privado, pelo menos
temporariamente, de seus privilégios de vitimização. E até que
restabelecesse suas prerrogativas de desvantagem, enfrentaria um
impedimento. Além do ultraje sofrido, ela providenciou para que a
situação se invertesse apenas brevemente. O evento tornou-se
imencionável, e logo ela falava em viver sem tocar no dinheiro, para
que vocês, meninas, fiquem com tudo, no dia em que me for.
Naquela época, Dora ainda não tinha quarenta anos.
A assinatura referente aos bens acontecera pouco antes de Grace
encontrar Christian, no concerto de domingo — tendo sido
atribuído a isso o ressentimento demonstrado por Dora, naquela
tarde memorável. Meses mais tarde, quando Christian e Grace
ficaram noivos, esta lhe falou sobre o acordo financeiro.
— Pareceu-me o mais justo a fazer — disse.
— Bem próprio de você, Grace — disse Christian, calmamente.
— Você teria feito o mesmo.
Afastando-lhe os cabelos louros da testa, ele ficou mais comovido
do que ela esperaria.
— Eu gostaria de pensar assim.
E agora aparecia o major Ingot, tornando irrelevante o sacrifício de
ambas.
Quando o major levou Dora a Londres, no final da primavera,
Christian disse que ofereceria um pequeno lanche ou almoço em um
restaurante. Seriam apenas ele, Grace, o recente casal e Caro — que
pediria uma folga do trabalho. Então, Christian estava casado com
Grace, sendo a pessoa adequada para tal atitude, mas ele não sentia
qualquer afeição por Dora, a quem já vira em ação, algumas vezes.
Houvera uma cena convulsiva, incompreensível, por ocasião do
noivado de Grace, além de cartas do Algarve, de tempos em
tempos, aludindo à insondável ofensa. Christian acreditava
firmemente (para empregar seu advérbio preferido) que Dora podia
ser mais cooperativa — podia ser chamada à realidade com uma
boa conversa, que, argumentava ele, devia ter tido lugar há muito e
que faria a ela um bem enorme. Mesmo Grace imaginava que ainda
existissem palavras capazes de atingir Dora e que até então, por
incrível que pudesse parecer, não haviam alcançado o alvo. Apenas
Caro reconhecia a exata condição de Dora: uma condição ou um
estado irracional que requeria uma intervenção profissional ou
divina.
O major Ingot era corpulento, embora não no sentido marcial, pois
tinha um ventre volumoso, produto da vida citadina, e queixo largo
e rosado. Da porta do restaurante para dentro, ele parecia a curva
ovalada de uma melancia. Seu crânio era liso, excetuando-se uma
dispersão de fios no cocuruto; os olhos, de um azul ofensivo, eram
os olhos de uma criança embriagada. À mesa, espalhou as mãos
curtas sobre o cardápio, esmagando esse plano de ataque. Uma
aliança de casamento já estava apertada em seu dedo, como um nó
ali amarrado à guisa de lembrete ou o anilho fixado em um pombo
doméstico. Seu pescoço fazia uma espessa dobra sobre o colarinho.
Tudo nele era contido, apertado, uma abundância empacotada e
amarrada. Era difícil imaginá-lo como militar, embora possuísse
uma corpulência indicada para uma mesa de trabalho, que poderia
ser adequada a um general.
Quando Christian o interrogou sobre seu serviço de militar, ele
ofereceu informações esparsas, antes de pedir salada de caranguejo.
No Estoril não se podia confiar na salada nem nos frutos do mar. Na
véspera da partida, Dora passara mal, com um prato de camarões
gigantes. A conta do médico português, com os remédios, chegara a
trinta libras.
— E assim — disse o major Ingot —, foi uma dispendiosa refeição.
— Bruce ficou furioso — Dora contou a eles. — E, em geral, Bruce é
uma criatura paciente.
O major ruborizou-se e a endossou com um olhar irado.
Deviam voltar para Portugal naquele mesmo mês, ainda estava
tudo por fazer no apartamento. Cortinas, estofados — Dora já
estava de posse das amostras. Rastas, o cão labra-dor do maior,
ficara em um canil.
Era difícil imaginar os prazeres do major, difícil inclusive retratá-lo
junto à lareira de um pub no Algarve inglês, dizendo: "Agora,
escutem esta". A retaliação emergia como preocupação principal:
"Eles fizeram a cama, que se deitem nela", "Ele apenas terá que
tomar seu próprio remédio" — fazendo da vida um hospital militar
ou correcional. Na confusão do pós-guerra, o major tivera sorte e,
como explicava, caíra de pé. No salve-se quem puder, alguns
aterravam de banda, outros falhavam no salto.
Ao redor da mesa, as punitivas figuras de retórica do major
despertavam antipatias que eram escassamente coerentes. A
verdade é que também eram reminiscentes do próprio Christian.
Retornar aos camarões estragados por um instante. Se é que posso.
Precisamente por tais motivos, havia um grande futuro no Algarve.
Os residentes britânicos apreciavam aquilo que estavam
acostumados a ter — Twinings Earl Grey, Coopers Vintage
Marmalade. As possibilidades chegavam ao infinito — Tiptree,
Humtley e Palmer, só para dar uma pálida idéia. Por que não dar
uma "facada" nisso? Tampouco as bebidas podiam ser
menosprezadas: Gilbey's, Dewar's.
— Está tudo lá — e o major fazia um habilidoso e rosado gesto de
colher, em cima da toalha da mesa — para ser tomado.
Não, ele não pensava em entrar no negócio de livros.
— O lucro é mínimo. Falando sério, se há algo que aprecio acima de
tudo, é uma boa e movimentada conversa fiada, mas o lucro não
justifica. O turista inglês médio não é um grande leitor. Quanto a
folhetos ou guias turísticos. . . bem, aí a conversa é outra.
Não havia necessidade de envolver-se com os vinhos do Porto. Os
residentes estrangeiros de lá eram, em geral, um grupo de ricaços.
Os alemães também estavam chegando, você ficaria surpreso. Eles
preferiam o Algarve à Costa Brava, que já fora desenvolvida ao
limite extremo. Além do mais, havia um governo estável. Muito
mais, ele lamentava dizer, do que o bando que temos por aqui, em
casa.
— Estes socialistas não ousariam aparecer por lá.
E se aparecessem, em pouco o feitiço viraria contra o feiticeiro.
— Eu não viveria aqui, mesmo que me pagassem!
Podia se ouvir a trovoada. Através das portas envidraçadas do
restaurante, eles viram um dilúvio. Quanto ao primeiro-ministro, o
major continuou:
— Eu não confiaria nele, se deixasse sixpence em cima da mesa — e
girou a moeda imaginária —, enquanto me ausentasse da sala.
Dora manuseava fotografias de si mesma ao sol como se fossem as
cartas de um baralho. O major disse:
— Eu teria tirado mais, porém estou acostumado a gastar a maior
parte do filme com o cachorro.
Christian estava surpreso com a boa aparência de Dora. Sempre
achara que a natureza dela não se revelara muito na aparência, e
agora que a via mais rechonchuda e complacente — e mantinha o
véu de pois, ainda sugerindo uma noiva, voltado para cima do
chapéu — era difícil acreditá-la tão terrível. Devido aos olhos
escuros e ao bronzeado, bem poderia passar por nativa do Algarve
ou do Alentejo, se não fosse pela boca.
Contrastando com a auto-aprovação roliça de Dora, Caro tinha os
olhos encovados, era um pálido e impressionante fantasma na festa,
a despeito do vestido vermelho. Apenas Grace parecia realmente
em seu papel, o de uma doce e jovem matrona, sem nenhum lado
sombrio.
— Bruce tem um faro! — dizia Dora. — E conseguiu algumas peças
extraordinárias. Majólica, tapetes antigos. . .
— É o que digo a mim mesmo — acrescentou o major. (Ocorreu a
Christian, como um aviso, que tal frase geralmente precedia uma
mentira.) — Posso entrar em qualquer loja de bricabraque e escolher
a única coisa que vale a pena. — De novo, uma exibição dos dedos
curtos e grossos. — Evidentemente, lá se tem que barganhar.
Quando ficou estabelecido que a barganha era feita a contragosto,
houve uma pausa. Christian estava pensando que, na Inglaterra, um
cavalheiro não usaria aliança de casamento.
Dora recomeçou:
— Caro está com ótima aparência. E feliz. — Todos então se
viraram para Caro, que segurava seu copo de vinho. — Ela precisa
ir lá, visitar-nos. — Dora imperava. — E testar seu português.
— Explicou para o major: — Ela tem queda para idiomas.
Caro sorriu de leve, só para ser gentil.
Christian estava pensando: Um anel de sinete — bem, aí seria
diferente. Uma outra conversa.
O major declarou que a queda para idiomas era incomum, em se
tratando de ostralianos. Ele tinha um amigo em Brisbane,
estabelecido no comércio de frutas secas e nozes.
Christian acendeu um cigarro e desejou que seu parentesco com o
major não fosse o de cunhado.
Dora acentuou que, para ele, seu idioma já era o bastante.
Ao fundo, o major contava uma história sobre uma enfermeira
australiana, em um hospital militar. Em realidade, ele até conhecia o
soldado com quem acontecera o incidente.
Quando chegou o café, Grace levantou-se desajeitadamente, de
xícara na mão, como se fosse propor um brinde. Seu rosto e a testa
brilhavam, acima de uma blusa com flores de lavanda. Então pôs a
xícara no pires, tão deliberadamente como se esta, e não ela,
estivesse precisando de cuidados — e desmaiou.
Grace ia ter um filho.
O teatro londrino onde era encenada a primeira peça completa de
Paul Ivory tinha um pequeno foyer que, no final da matinê daquela
tarde, esvaziava-se lentamente por causa da chuva. As mulheres
avançavam arrastando os pés em fila indiana, enquanto alguns
homens idosos esperavam sob o toldo, imaginando o que viria a
seguir. Caroline Bell parou a um lado, abrindo seu guarda-chuva,
ao mesmo tempo em que olhava para uma rua espalhafatosa,
através das portas de vidro.
Paul entrou, vindo de uma pequena porta interna, perto da
bilheteria: ele próprio um ator esperando a deixa. Vacilou, ao ver
que a multidão continuava ali. Foi quando avistou Caro, de costas
para ele, com o rosto obscurecido, como que virado
deliberadamente.
Com a mão na porta que acabara de abrir, Paul Ivory ficou parado,
um homem controlado, sob uma acusação. A injustiça era que, não
apenas a mulher havia sido colocada em seu caminho, mas também
que, não estando ela consciente disso, ficara com ele a escolha
quanto a falar ou não. Mesmo enquanto registrava a injustiça, Paul
permaneceu quase fisicamente influenciado pela visão de Caro e
também pela autoridade deliberada, distinta, com que o destino a
tinha novamente apresentado. Paul medira seu esquecimento de
Caroline Bell pela rápida corrente de mudanças e realizações nos
últimos meses. Ele não se limitara a deixá-la, mas a deixara para
trás. No lugar em pé, destinado a ela no teatro da existência de Paul
Ivory, Caro podia observar pensativamente o desempenho dele e
aplaudir. Agora, vendo-lhe a cabeça de lado, ele não tinha qualquer
escolha e devia agir por compulsão. Aproximou-se com uma certa
sensação de exaltação, obedecendo a um impulso, não
necessariamente favorável a ele. Obedecia à própria necessidade,
como se esta fosse virtude.
Tudo isso porque uma jovem morena estava de pé junto à porta,
com um guarda-chuva fechado nas mãos.
— Caro.
Ela se virou, então, e ficaram lado a lado.
Estando ainda recentes as próprias sensações, Paul notou o espasmo
de surpresa e a seqüência de rápidos, contraditórios impulsos.
Houve ainda o reconhecimento de que ela dirigira ou provocara
aquele risco, vindo ver sua peça — e um ímpeto que respondera à
compulsão dele, mas rigidamente contido. Os lábios de Caro se
fecharam em uma curva deliberada, que Paul não tinha visto antes,
porque era derivada de sua deserção.
O saguão agora estava quase vazio. As luzes tinham sido apagadas.
Os dois formavam um par obscurecido, de pé junto às portas.
—
Pois não? — disse ela, como se interpelada por um estranho.
Não obstante, tremia em seu impermeável, a tal ponto que sentia as
camadas separadas de suas roupas, a anatomia pulsando
delicadamente no interior. Da mesma forma, sua mente lutava,
trêmula, no âmago do evento.
— Foi bondade sua ter vindo, Caro.
— Gostei de ter assistido à peça.
— Eu raramente venho aqui. Houve uma modificação no elenco, o
papel de Mandy, o filho tuberculoso, de modo que decidi ver como
seria.
Era uma fala automática, para preencher aqueles vazios. Ela nunca
tinha visto Paul em traje de passeio. Quanto a ele, achou-a com uma
aparência extraordinária, olhos grandes e pele translúcida: um
encanto imenso. Esperava tê-la deixado para trás, em seu passado.
As impressões iam e vinham nele, como rápidas marés.
— Gostaria de ver os bastidores? — perguntou Paul. Caminharam
por um corredor de caiação imperfeita.
— Cuidado com os degraus.
O palco estava marcado — um risco de giz, uma flecha impressa. A
cortina, de um vermelhão sujo e rançoso, estava abaixada, havia o
lúgubre mobiliário do último ato. Em uma época em que
Shakespeare era representado em modernas vestimentas
suburbanas ou jaquetas de couro, a peça contemporânea de Paul
Ivory, passada na classe trabalhadora, era desempenhada em trajes
reais. Papai e Mamãe surgiam como tiranos do palco, coroados e
majestáticos em púrpura e ouro, enquanto a prole de vassalos se
cobria com blusas de lã e roupas de trabalho. Essa disposição
nitidamente óbvia havia sido chamada de toque ou golpe de gênio
pela imprensa.
Caroline Bell acompanhou Paul por um sombrio labirinto, nunca
baixando os olhos. Quando pararam diante de uma porta, ela jogou
os cabelos para trás, de maneira que seu rosto ficou inteiramente
visível.
Um homem de macacão abriu a porta. Paul exibiu seu sorriso franco
e agradecido.
— Obrigado, Collis.
Seguiram por uma cutra passagem e ele bateu à outra porta. Caro
foi apresentada ao grande ator, que disse:
—
Faça isso outra vez e arranco-lhe a pele! Dirigia-se a um
afetado rapazola que tirava uvas de
uma cesta enfeitada de fitas e não replicava. A bordada vestimenta
real pendia de um cabide na parede.
— Sinta-a — disse Paul.
Até mesmo uma única dobra era de difícil manejo. O ator disse:
— Isso dá uma perfeita idéia da cruel soberania.
Ele havia retirado a pintura do rosto e agora usava uma camisa de
fazenda fina e uma calça folgada, de tecido atoalhado. Um
aquecedor escaldante sibilava a um canto. Caro entreabriu o casaco.
— O que achou da cena do extrato de carne? — perguntou-lhe Paul.
Antes que ela pudesse responder, o rapazola das uvas disse:
— É o pedaço mais forte da peça.
— Nunca pensei que uma vendedora de loja conhecesse a palavra
"edipiana".
O ator riu.
— Já analisamos esse detalhe. Lembre-se de que ela trabalhava em
uma livraria.
— Acho um pouco indigesto — disse o rapaz —, o rei morreu, viva
o rei, etc. Fora isso, é legal.
O ator perguntou a Paul:
— Conder se saiu bem, não acha?
— Já disse isso a ele. Ficará no papel. Mandy tem que parecer um
sujeito muito doente, de forma que salte aos olhos, eis tudo.
Era de se notar que Paul sorria menos com os atores, que, afinal de
contas, eram profissionais.
— Conder não conseguiria parecer doente o bastante para satisfazer
a Valentine — disse o ator.
Valentine era o rapazola das uvas. Essa referência à sua inveja,
embora excluísse a intrusa — Caro —, era, no sentido de todas as
exclusões, dirigida a ela. Os homens trocaram um sorriso.
No corredor, a rainha-mãe passou por eles, lenta e majestosamente,
mostrando um comprido e brusco perfil, pálpebras e cílios
carregados de tintas variegadas como um pavão, repuxadas até a
raiz dos cabelos: a proa de uma trirreme grega.
— Os artistas nunca vêem ninguém mais além deles próprios —
observou Paul.
Ele havia feito a coisa certa — ou astuta — ao expor Caro a seu
empreendimento, convocando seus auxiliares. Perguntou:
— Está trabalhando naquele escritório?
— Estou. Tive um meio dia de folga, havia um almoço para minha
irmã.
— O mesmo e velho elenco. — Confirmava a sua vantagem. Já
atingiam a porta da rua. — Comigo incluído. — Pousou a mão na
maçaneta e recostou-se à parede, não a detendo, em realidade. —
Eu também, Caro.
Por trás dele, havia aforismos mais ou menos obscenos, tanto
escritos como riscados na parede de tijolos caiados. Ela ergueu o
rosto, inexpressiva. Adiantou-se, mas não poria a mão sobre a dele
para girar a maçaneta e vacilou, ereta e impedida. Paul percebeu
que ela não podia falar. Caro tornou a fazer um gesto para a porta,
sem parar de fitá-lo, como o cativo que vigia ansiosamente,
procurando a fuga. Havia a duradoura, irritante e tentadora
impressão de que ela se dirigia a um objetivo além do pequeno e
egoístico drama de seus próprios desejos, dos desejos de ambos.
— Você sempre sentiu um certo desprezo por mim — disse Paul.
— Exato.
— E amor também.
— Exato. — Uma vacilação, para ela, era o equivalente a um dar de
ombros. — Agora você tem uma esposa para dar-lhe as duas coisas.
Ficaram enfrentando-se, um diante do outro. Paul retirou a mão da
porta.
—
Caro! Era só o que faltava!
A figura de retórica pareceu comovê-la e, por um instante, ela deu a
impressão de que poderia rir. Novamente, ele fez valer o que tomou
por uma vantagem:
— Seja mais piedosa!
Ela também se recostou na parede caiada e fechou os olhos.
— Como pode esperar piedade, se não concede nenhuma?
— Estas paredes estão repletas de citações sujas, de um modo ou de
outro.
Houve silêncio enquanto ela ficou recostada ali, austera, com o
guarda-chuva fechado. Ergueu-se e passou por ele, então, a fim de
abrir a porta pesada. Atrás dela, Paul disse:
—
Suas costas ficaram inteiramente brancas.
Então, com a maior naturalidade do mundo, ele lhe limpou as
costas do casaco com a mão. Depois passou-lhe os braços pela
cintura, pousou os lábios em sua nuca e disse:
— Oh, Deus!
Caminharam pela rua molhada. Paul segurava o cinto frouxo do
impermeável de Caro e parecia guiá-la através do trânsito pesado
daquela hora — sem puxar, mas estabelecendo contato e domínio,
de maneira que ela o acompanhou como um animal submisso em
uma trela ou correia. Na esquina, ele fez sinal para um táxi e deu
um endereço ao motorista. Quando entraram no carro, disse:
— Podemos dar uma espiada em meu novo endereço. Estou
arrumando uma casa que comprei. Você me dirá o que acha.
Pegou-lhe a mão quando se sentaram no táxi — literalmente pegoua, pois ela ficou jazendo na sua tão sem reação como um cinto de
casaco. Caro se sentou em silêncio, fitando-o com uma expressão
que não era taciturna nem expectante, mas sobriamente atenta; e,
por uma vez, um olhar onde a ternura e a apreensão eram grandes e
inseparáveis, emprestando excessiva e insuportável intensidade à
vida daqueles momentos. Paul já vira aquela expressão antes, na
primeira vez que tinham ido juntos para a cama, na estalagem além
de Avebury Circle.
— É aqui. — Paul inclinou-se para diante, a fim de falar com o
motorista. — Pode deixar-nos aqui. É uma rua sem saída —
entrando nela, é impossível sair.
A chuva havia parado. Era uma casa estreita, de fachada lisa, uma
faixa severa de tijolos entre duas construções estufadas como peitos
de pombo e com pórticos. Junto ao meio-fio, um homem trabalhava
no motor de um carro estacionado. Cumprimentou-os com um sinal
de cabeça e continuou cantando:
"As rosas estão florindo na Picardia, Mas nunca houve uma rosa
como você".
Paul usou uma reluzente chave nova. Havia odor de tinta, de
argamassa e madeira verde. Papéis pardos espalhavam-se pelos
assoalhos e em todas as janelas havia riscos formando um X, como
avisos de peste. Os degraus íngremes eram cintilantemente brancos.
O quintal dos fundos estava enlameado e entulhado de restos lá
deixados pelos operários, embora uma pilha de lajes indicasse que
seria pavimentado e plantado, no momento devido. Uma pia de
porcelana clara fora posta na cozinha, cintada e forrada de papel,
pronta para ser encaixada no lugar: um paciente de ataduras em um
posto de pronto-socorro.
O motivo hospitalar repetia-se na sala de refeições. Panos brancos,
usados pelos pintores, jaziam sobre os cavaletes e uma mesa. O
cheiro de tinta era anti-séptico e anestésico.
— Tertia está aqui? — perguntou Caro. Pegando o touro pelos
chifres. Paul empurrou delicadamente uma porta pintada, com a
ponta do dedo.
— Tertia vai ficar no campo até que isto esteja pronto para recebêla. — Até mesmo uma casa requeria o aviso antecipado de Tertia. —
Você é meu primeiro convidado.
A sala de visitas abrangia todo o pavimento seguinte, mas ainda
assim era estreita. Caro caminhou até a frente, depois até os fundos.
Tornaram a subir. Paul acendeu um abajur sem cúpula.
— Aqui em cima é a minha pousada.
Aquele era o aposento superior e o maior, pois não tinha mais
escadas para cima. Das janelas viam-se as casas da frente, depois
um bloco de apartamentos. Havia uma fileira de árvores que
forneciam proteção no verão, pelo menos assim disse Paul. Vários
tapetes estavam enrolados e amarrados sobre o piso nu. As paredes
estavam lisas, as janelas tinham sido limpas. A um canto, havia
lustres por colocar, maçanetas de portas em uma caixa de papelão.
Um par de colunas de mármore já decorava a platibanda da lareira.
Tinha sido feita a ligação de um telefone, embora este permanecesse
no piso: uma janela ficara a meio caminho nas corrediças, por causa
da tinta fresca, e o aposento estava frio.
Com outra chave reluzente, Paul abriu um armário embutido.
— Vamos tomar um drinque.
Havia um embrulho na prateleira de cima do armário e uma pintura
emoldurada, caída de lado, na de baixo. Paul mostrou a tela a Caro.
— Segonzac é um pintor mediano.
— Nem todo artista pode ser o máximo.
— Evidentemente. — Ela se esforçou em explicar sua intenção,
como por uma necessidade de boas maneiras: — Sem dúvida existe
uma veracidade — um estado de confiança, se preferir — que
valoriza inclusive os talentos menores. Algo como o que a sra.
Thrale disse sobre seu pai — que ele não era um grande poeta, mas
que era verdadeiro.
Paul deixou a tela de lado, uma vez que perdera a oportunidade.
— Bem — disse —, sente-se. Beba à minha casa nova. Ficara
aborrecido ou um tanto magoado por Caroline
Bell ter recordado seu pai. Ela se sentou na pilha de tapetes. Viu
Paul pegar um frasco de prata com sua mesma expressão sardónica,
como se ela fosse rir.
— Não há copos — disse ele. — Teremos que usar a tampa. Ainda
mais; teremos de partilhá-la. — Estendeu-a a ela: — Uma taça de
amizade.
Caro bebeu. Não devolveu a tampa a ele, mas a deixou a seu lado,
sobre as tábuas recentemente enceradas.
— Ei, meu piso novo! — exclamou Paul, recolhendo o pequeno
recipiente e esvaziando-o. — Quer mais?
— Não. Tinha gosto de lata.
— De lata, uma ova! Isto é prata de lei. — Sentou-se nos tapetes ao
lado dela. — Precisa dizer o que acha de minha casa nova.
— Há muito pouco espaço.
— Ora, está estragando tudo!
— O que sobrou para estragar?
O telefone tocou. A campainha explodiu no quarto vazio,
ricocheteando nas paredes e no teto como uma rajada de balas. Paul
precisou ajoelhar-se para falar.
— Sim, é aqui mesmo, mas eu gostaria de saber como conseguiu
este número. . . Escute, se vai sair nos jornais esta noite, é melhor ler
para mim. . . Muito bem, pode anotar o que vou dizer: não vou
responder aos comentários do sr. Whatsit. Não dou respostas à
maldade e considero o que o sr. Whatsit escreve a quinta-essência
da vulgaridade. . . Foi o que eu disse. Naturalmente: Q-U-I-N-T-A,
tracinho, depois essência. . . Certo, exatamente como baunilha. Em
verdade, a palavra significa "substância divina". Por favor, quer ler
novamente?. . . Então é isso. . . Bem, teria que ser após a minha volta
da Espanha, para onde embarco amanhã, digamos, pelo fim de. . .
Certo, está bem para mim. Telefone-me, então.
Paul desligou o telefone. Levantou-se e ficou com as palmas unidas,
olhando para Caroline Bell, como se ela necessitasse de solução;
recriando a disposição de ânimo com que a levara até ali.
— Vai mesmo viajar para a Espanha amanhã?
— É claro que não. — Ele olhou em torno, à procura do frasco. —
Tomemos mais um pouco disto com gosto de lata. — Estendeu o
copinho a ela. — Qual o sabor agora?
Ela bebeu um pouco e devolveu o copinho.
— Agora é como se tivesse suas iniciais.
— Você ficou infernal, Caro. Costumava ser. . .
— O quê?
— Angelical. Só que muito menos bonita. Enfim, é o que acontece.
Agora, fale sobre minha casa, minha peça.
— Você não quer opinião, quer aprovação.
— Não quero a sua aprovação.
Houve outra detonação da campainha do telefone. Paul tornou a
ajoelhar-se para atender.
— Sim, este deve ser Flaxman cinco. Não, lamento, mas ela não está
aqui. De qualquer modo, posso transmitir-lhe o seu. . . Já lhe disse,
ela não está, mas posso. . . — Ante uma interjeição, Paul ergueu ou
endureceu a voz, para ficar de acordo com o que dizia — uma leve
contenção nas pálpebras indicava que era demasiado educado para
fechá-las em exasperação, ainda que momentaneamente. — Já lhe
disse claramente que a sra. Ivory não está aqui!
Disse "sra. Ivory", ao invés de "minha esposa" ou "Tertia", como um
membro do Partido, que. poderia transformar solenemente a Rússia
em "a União Soviética". Parecia cômico, agachado no chão,
conquanto ereto em sua dignidade.
— Diga a eles que viaja para a Espanha amanhã ■—■ disse Caro.
— Evidentemente, não vou ficar aqui — Paul aga-chou-se ainda
mais — ouvindo esta. . . — Firmou o olhar e depois desligou o
telefone tão bruscamente que caiu de quatro. Levantou-se, batendo
nas calças para limpá-las. ■— Desligou na minha cara, o imbecil.
Pensava que. . . fingia pensar que eu era um empregado.
— Foi porque você disse "sra. Ivory" daquele jeito.
— Caro o via interrogar-se sobre o telefonema, quem telefonara e a
sra. Ivory. A digníssima Tertia. — Como era a maneira de falar?
— Oh. . . culta.
De maneira alguma a sra. Ivory aceitaria um amante de classe
inferior.
Na rua, mais abaixo, o homem continuou cantando, em voz aguda e
instável, como um disco velho:
"Mas há uma rosa que não morre na Picardia, Ela é a rosa que
guardo em meu coração".
Paul fechou a janela.
— Se isto lhe dá algum prazer, é realmente esta a situação.
Estava falando a respeito do telefonema.
— Então, é mais perturbador do que você esperava.
Aquilo mal encerrava uma pergunta, e, ao erguer preguiçosamente
os olhos de sobre a pilha de tapetes enrolados, Caro podia ter sido a
mostra mais absoluta de indiferença. Sua especulação quanto a
coisas estragadas pela honestidade nada produzira: a honestidade
deve ser honestamente tencionada, senão sua ocorrência é inútil.
Paul, no entanto, considerou por um momento, antes de dizer:
—
Isto cria um novo grau de isolamento.
Ele mostrava sua mais sincera admissão de descontentamento, e sua
voz, quando isenta da afetação, tinha um tom amadurecido,
ressonante, quase belo. A clareza de seus olhos, que ameaçavam
tornar-se prismáticos como os de Tertia, de novo se matizavam com
o natural ressentimento.
— Sem dúvida, isto acontece porque se mantém uma falsa
aparência pública, ao mesmo tempo. Ouso dizer que nada há de
novo nisto.
Mesmo a última frase não mostrava zombaria. Paul pousou o pé na
pilha de tapetes, perto da mão de Caro, e prosseguiu:
"Que eu saiba, todos os maridos são como eu; E cada um com quem
falo sobre sua esposa É apenas um bom dissimulador de suas
mágoas Como eu. Quisera eu sabê-lo, porque a rareza Agora me
aflige".
Tornou a sentar-se com Caro nos tapetes.
— Alguém se espantaria por essa peça nunca ser encenada estes
dias?
Ao lado do gélido drama do casamento de Paul, desempenhado em
seu próprio e interessante cenário de sucesso mundano, a mágoa de
Caro devia empalidecer para um ligeiro toque de experiência, que
seria cansativo exibir. Ela queria ser instruída, não questionada;
queria que lhe dirigissem interpolações conhecidas: "Enfim, é o que
acontece"; "Algo que precisamos corrigir". Paul, e não Caro, interpretaria o grau de significado em seus respectivos lotes. Isso
decidido, ele se pôs a falar intimamente de sua vida à pessoa que
dela mais fora excluída — a fim de readmiti-la à intimidade, embora
não à vida.
Ele ergueu a mão para pegar a dela. Então, pareceu pensar melhor a
esse respeito: uma pequena indecisão contida em uma maior.
— Imagino que nisto haja um interessante conluio. Decepcionando
um ao outro, eu e ela concordamos em decepcionar um público
maior, em outro nível.
— E você sente prazer nisso?
— Sempre gostei da peça contida na peça — sorriu ele. — Tive uma
idéia. Vamos para a Espanha amanhã.
— E mandaremos um cartão-postal para esse homem.
— Quem?
— Nós dois.
A gargalhada dele retiniu em altos e baixos, como a campainha do
telefone. Marcas gêmeas de pontos trançados imprimiram-se
duramente nos cotovelos de Caro, quando ela se apoiou nos tapetes.
— Eu continuei a amá-la. Através de todas as coisas interessantes
que aconteceram comigo. E você me ama.
— Amo.
— A melhor política é a franqueza.
— É uma expressão desprezível. Como "o crime não compensa".
As pálpebras de Paul tornaram a apertar-se como antes,
irritadamente.
—
Vamos ter agora um discurso sobre retórica?
Ela se levantou, sem ouvir; seu desligamento não objetivara dar
lição alguma. Pegou seu guarda-chuva a um canto e saiu do quarto.
O primeiro lance de escada, que ela desceu ligeira e agilmente, era
estreito demais para que Paul lhe passasse à frente. Quando
conseguiu agarrá-la no patamar, pousou a mão na dela.
— É claro que não vou deixá-la ir!
Falou com brandura, como que censurando o capricho de uma
criança; entretanto, sua mão era quente e vacilante, como ele mesmo
percebeu, assim que a tocou. Os pequenos degraus íngremes
elevavam-se à frente deles, um penhasco de face alvacenta, que
poderia ou não ser escalado de novo.
— Deixe-me ir embora daqui.
— Escute, não era o que queria? Quando foi ao teatro e depois veio
aqui?
— Isso não significa que tenha sido o melhor para
mim.
— Creio que já passou por portas suficientes por hoje.
— Deixe-me ir embora. Não é assim que eu queria que fosse. Deixeme seguir minha vida ou, pelo menos, ser como eu era. Ao invés de
ser o que tenho sido por todos estes meses, desde que o conheci.
Embora suficientemente maldosas em si, as últimas palavras não
saíram candentes, mas como que pronunciadas por alguém há
muito distanciado da fala e da sociedade humanas, alguém que
agora articulava desajeitadamente ásperas realidades. Em Paul, não
obstante, provocaram nova tensão, e a luminosidade mortiça da
lâmpada mais acima, como um luar de palco, mostrou sua face
pálida — não tão másculo, não tão jovem.
—
Você me encara como se eu fosse a sua fraqueza — disse ele.
—
Toda a minha fraqueza está destilada em você. Caro tinha o
dom de interromper o fluxo da vontade
de Paul, de maneira que o aspecto dele se debilitou, como acontece
com todos os seres, inclusive animais, que perdem a convicção. O
resultado oposto é que a própria Caro se sentia mais perto de Paul
em tais momentos, menos surpresa por amá-lo.
O clímax da seqüência foi que Paul, com um instinto para as
flutuações de resistência, tornou a abraçá-la, passando os braços
pelo interior do casaco aberto, como que penetrando na proteção
que a cercava. O guarda-chuva de Caro caiu sobre as tábuas nuas,
com um baque inábil. Ela não ergueu os braços para ele.
— Que frieza! — disse Paul. — Como você está fria! Ficaram assim,
imóveis, exceto pelos movimentos das mãos de Paul no corpo dela
— leves ondulações nas quais a luz brincava nebulosamente.
Recuando, ela disse:
— Por que você desejaria isto?
As costas dela voltadas para os degraus que desciam. O toque
ecoante da voz, palavras nuas como tábuas de assoalho.
—
Não sei. — Um contágio de franqueza, a melhor política. — É
a prova de tudo em que descreio.
Ela quisera ter dito: "No entanto, você acredita em Deus", mas não
podia implicar Deus em toda aquela trapalhada.
Paul Ivory descansou a palma contra a parede, junto à cabeça dela,
apoiando-se ali à espera da capitulação. Sobre a parede lisa, a
sombra do contorno dos dedos era enorme: estava levando a
melhor. A luz tornava sua figura flexível, mas ainda assim metálica,
cor de peltre. Não é freqüente que Vénus passe diante de uma
estrela tão brilhante e a oculte.
Ele deixou uma pequena distância entre ambos, de maneira a poder
apreciar a capitulação.
Tinha-lhe aberto o vestido, e a faixa do corpo exposta no interior
das roupas era curiosamente chocante. Havia o impermeável e o
corpete vermelho desabotoado, depois a listra secreta de branco. Ao
contrário de tantas imagens de Caroline Bell que, ultimamente, ele
pretendera preservar, aquela se fixaria para sempre em sua
memória: a parede nua, os degraus para cima e para baixo, aquele
vestido vermelho. E o brilho do seio, que ela deixou solenemente
revelado, como uma confissão.
15
"Você me perguntou sobre a peça de Paul Ivory. Só fui vê-la o mês
passado. Fiquei impressionada, talvez até surpresa, pela facilidade
com que ele maneja o ambiente da classe operária. Creio que você já
suspeitava — alguns dos efeitos espúrios e o final oportuno,
inteligente, que nem por isso deixa de ser comovente. Parece que
vai ficar muito tempo em cartaz, de maneira que poderá vê-la,
quando voltar da França."
Caro parou de escrever e leu a passagem acima. Muito sincera e
judiciosa. É tão mais fácil parecer sincero quando o tom é
depreciativo!
Sentada à sua mesa no escritório, Caro recordou a peça de Paul
Ivory e como, no final do último ato, por um instante a platéia
permanecera em silêncio, após sua provação. No teatro, aqui e ali
um ou outro estalido, um leve estalar, como se ouve nas olarias,
entre peças cozidas esfriando do calor do forno. E então, o aplauso
devastador.
"É ótimo que possa ir à conferência de Roma, antes de voltar para cá
— li algo a respeito nos jornais. De Roma, recordo um palácio
projetado segundo o horóscopo de um nobre — isto é, decorado
com representações de planetas e deuses pagãos. Mera astrologia,
mas talvez você consiga vê-lo mesmo assim."
Desta forma, ficou assegurado que Ted Tice passaria suas horas
mais felizes em aposentos com afrescos, às margens do Tibre.
"Mal haverá tempo de tornar a escrever-lhe, antes que você volte
para a Inglaterra. Obrigada pelo convite para
jantar, será formidável. Então, até daqui a um mês, a partir de hoje."
Caroline Bell colocou a carta no correio ao meio-dia, a caminho de
casa. Sábado era dia de meio expediente em sua repartição e ela fez
uma parada, a fim de comprar mantimentos para o almoço de Paul.
Naquela época, estava morando em um apartamento mobiliado de
último andar, alugado de uma amiga do escritório, que fora
designada para o estrangeiro. Ficava perto do mercado de Covent
Garden, em um edifício que, fora disso, era destinado a gráficos e
editores.
O meio do dia chegou glorioso às estreitas e fuliginosas paredes de
tijolos de Maiden Lane', expandindo-se até o mercado com
pretensões arquitetônicas. A cidade se elevava ao momento do sol.
E Caroline Bell sentia-se grata por uma leveza de corpo que nunca
experimentara antes, e que sabia ser sua juventude. Caminhou com
sacos de papel nos braços, sorrindo ao pensar na perdida juventude,
descoberta à amadurecida e adulta idade de vinte e dois anos.
Paul estava à sua porta. Esperou que ela chegasse onde estava para
então inclinar-se no degrau e abraçá-la. Com as sacolas de papel e
um ramo de flores vermelhas, ela parecia um verdadeiro embrulho.
— Por que esta mulher sorri?
— Eu pensava em vida adulta e adultério.
— Engraçado, também eu pensava em adultério. Está com a chave?
Ela a entregou. Subiram uma escada coberta de linóleo, passaram
por portas fechadas para o fim de semana. Em um prédio antigo
como aquele, a poeira se instalava rapidamente, e a abertura das
pequenas firmas a cada segunda-feira era um mero retardamento,
surpreendente a cada vez, do esquecimento ordenado e definitivo.
— Na Inglaterra — disse Paul —, a tarde de sábado é um ensaio
para o fim do mundo.
Quando pararam em um patamar para recuperar o fôlego, ele
confessou:
— Estas foram as melhores semanas de minha vida.
O apartamento era um vasto aposento com janelas em toda a
extensão lateral e uma clarabóia suja no extremo oposto. Uma
parede era coberta inteiramente por livros em prateleiras
empenadas e o assoalho irregular era ocultado por um grande
tapete azul, quase um farrapo, no qual ainda podiam ser
discernidos traços do desenho avermelhado, como gases industriais
em um céu de crepúsculo ou manchas de sangue removidas com
imperícia. A decrepitude do teto, das prateleiras e do assoalho
reproduzia-se em um sofá que vira melhores dias e permanecia de
costas para os livros, coberto por uma colcha nova e azul. Havia
uma bela e antiga mesa, escarifiçada, além de duas cadeiras. O
único quadro era o anjo de Sevilha de Caro, em uma parede, perto
da porta da cozinha.
Tudo era surrado e gasto, até mesmo o céu enodoado. Os livros
emprestavam humanidade, como se espera que façam. Do
contrário, poder-se-ia dizer que o ambiente era sombrio — ou
lúgubre.
Paul sentou-se sobre a colcha limpa, com as mãos pousadas nos
joelhos. Caro chamou da cozinha.
— Está com fome?
— Estarei.
Ela desligou o fogão abandonado, voltou e ficou de pé ao lado dele.
Paul estava virado para a parede, examinando os livros.
— Está com uma biblioteca aqui. . . Larousse, coleção de Grove, o
que é isto?. . . Bartlett.
— É a prateleira de referência.
— E nós fornecemos a erótica. — Paul a puxou para o sofá, fazendoa ajoelhar-se enquanto ele se deitava. — Esta é a nossa prateleira,
este sofá. Esta cama teu centro é, estas paredes, a tua esfera.
— É o nome de uma sinfonia, a Erótica.
"— Eis aqui algo que procuro. . . — O livro era tão pesado, que ele
precisou sentar-se novamente e puxá-lo com as duas mãos. Abriu-o
sobre os joelhos de ambos, empoeirando a colcha com um pó
avermelhado. — Impossível obtê-lo atualmente. Posso usá-lo no que
estou trabalhando.
O livro era uma edição de peças antigas.
— Bem, você poderia tomá-lo emprestado. Acho que poderia.
Caro ergueu o livro de seus joelhos e perambulou pelo aposento.
Abriu mais as cortinas e colocou o vaso de anémonas na mesa.
Depois tirou a roupa.
— Para ficar com ele, quero dizer — disse Paul.
— Não é meu, compreenda.
Caroline Bell entrelaçou as duas mãos no alto da cabeça. Seu torso
espichado se tornou autoritário e vulnerável ao mesmo tempo.
Paul deixou o livro cair no chão, ao lado do sofá, e se deitou,
observando. E, à luz velada, com uma antiga densidade de livros
atrás dele, poderia ter sido o motivo para uma ilustração vitoriana:
o corpo jovem reclinado em azul e vermelho, o braço com a manga
branca da camisa pendendo para um livro caído. Childe Harold, The
death of Chatterton. Era bem o que Caro dizia.
— Obrigado. Agora, venha cá.
Ela se aproximou da cama e ficou junto dele.
— E pensar que isto espera por mim, dia e noite — disse Paul.
Pegou anéis do cabelo basto de Caro e os espalhou em raios escuros,
em torno da cabeça dela. — Cabelos como crina.
— Meu amor. Meu amante — disse ela.
— Lembra-se da primeira vez, perto de Avebury? Eu lhe disse que
nunca sentia profundamente. Ou o suficiente. Pois quero dizer-lhe
agora que o que sinto por você é o máximo que já senti por alguma
coisa ou alguém.
Ela lhe tocou o rosto. Naquele dia em Avebury, ela tocara a mão
dele sobre o revestimento da cabeceira da cama — e Paul havia dito:
"Seja qual for o significado de suficiente".
Por vezes, Paul ainda a achava com aparência de estrangeira — e
com isso queria dar a entender que Caro nunca lhe pertencera
inteiramente.
— A posse é noventa por cento legal — disse ele. Entretanto, isso foi
muito mais tarde, quando estava
deitado olhando para o aposento empoeirado, pensando que a
juventude era uma proteção, porque aqueles momentos especiais,
de langor e roupas de baixo sobre cadeiras, em outras circunstâncias
pareceriam um presságio da mais profunda fraqueza. As flores
agora estavam espalhafatosas, vermelhas e insípidas.
— Eu estava dormindo — disse ele.
— E eu olhava para você.
Ela podia estar querendo dizer que velara seu sono, mas isso não
ocorreu a Paul, que mostrou sua ligeira tensão facial de desprazer
ou alarma.
— É enervante sermos vigiados enquanto dormimos. É assim que os
homens perdem tudo — cabelos, cabeças ou ainda pior.
Não lhe contaria como ele mesmo a observara enquanto dormia, na
noite em que ela fora à sua casa nova pela primeira vez. Ficara
observando sua respiração e seus leves movimentos de sonho, a
pele tão transparente, que lhe permitiria examinar formas interiores,
os pequenos e complexos órgãos reprodutores, com sua capacidade
para modificar o mundo. Quando o sol nasceu, ele observara esse
fenômeno — suficiente na sua própria beleza, de um modo que
dificilmente se acreditaria na necessidade de serem acrescentados
raciocínio, articulação e fraqueza humana — muito menos a
capacidade para acasalamento.
Não lhe contaria isso, para não aumentar ainda mais o poder que
ela possuía.
Deixou a mão cair para baixo, ao lado da cama, perto do chão.
— Posso levá-lo, então?
Caro sabia que se referia ao livro.
17
Na repartição pública onde Caroline Bell trabalhava, havia uma
moça chamada Valda. Relevante era o fato de ser chamada de
Valda, ao que ela objetava. Nenhuma das outras mulheres de lá
objetava a ser Milly, Pam ou Miranda para seus chefes, os senhores
Smedleys e Renshaw-Browns. Nenhuma das outras mulheres
objetava, porque isso as tornava jovens.
Por aquela época, os próprios homens não eram mais Bates ou
Barkham, um para o outro, mas imediatamente Sam ou Jim.
Aqueles que tinham nomes irredutivelmente formais, como Giles
ou Julian, pareciam inclusive perigosamente atrasados e
condenados à obscuridade. Havia um homem de mais idade no
Planejamento que chamava seus subordinados de "senhor" — "sr.
Haynes", "sr. Dandridge" —, como o comandante de um velho
navio dirigindo-se ao seu primeiro-comissário ou contramestre. Não
obstante, entre as mulheres também ele se permitia um ocasional
Marge ou Marigold, embora em casa chamasse a sua faxineira de
sra. Dodds.
Quando Caro perguntou:
— E se eles fizerem um verdadeiro amigo, como o chamarão?
Valda respondeu:
— Eles procuram situar as amizades fora do trabalho. A nova e
compulsória congenialidade entre os homens,
pelo menos no conceito de Valda, era uma perda igualmente
partilhada. Ao contrário do insulto inequívoco de June ou Judy.
Logo após sua chegada, Valda chamara a atenção sobre si. Seu
pequeno sr. Leadbetter, o funcionário administrativo, saíra do
cubículo onde trabalhava, de orelhas em pé, segurando um botão e
perguntando se ela podia pregá-lo. Aquilo, estimou ele, não
demoraria nem um minuto. Valda consentiu polidamente.
Deixando seus papéis de lado, tirou de uma gaveta da mesa uma
sacolinha caseira contendo agulhas e linhas de cor. Com o paletó do
sr. Leadbetter aberto em seu colo, enfiou a linha no buraco da
agulha e logo estava costurando. Leadbetter ficou de pé, espiando-a
trabalhar. Vestia uma camisa de listras azuis, as calças lhe
chegavam às axilas e pendiam de suspensórios de lona, também
listrados, antigos e fabricados para durar. Era agradável despir a
armadura e observar a simpática Valda em sua humilde e feminina
tarefa. Quando ela terminou, quando enrolou o fio e o rebentou, ele
ficou grato.
— Obrigado, Valda. Não tenho jeito para essas coisas. Acabaria me
espetando todo.
Era importante demonstrar apreço. A isto, Valda replicou, ecoando
os próprios e benevolentes pensamentos dele:
— São pequeninas coisas que uma pessoa faz por outra.
Na semana seguinte, Valda entrou no gabinete de Leadbetter, que
lia um penúltimo rascunho e lhe pediu para trocar a fita de sua
máquina.
O sr. Leadbetter encarou-a fixamente.
— Não tenho jeito para máquinas — disse ela. O homenzinho ficou
desconcertado e aborrecido.
— Nunca precisou trocar uma fita antes? Não foi treinada para fazer
essas coisas?
— Não lhe tomaria nem um minuto.
— É melhor pedir a uma das moças para explicar-lhe como se faz.
Aquilo era incompreensível.
— Elas sujarão as mãos — disse Valda. — É muito fácil de fazer.
Ele entendeu. Saiu e pediu a uma das outras moças — as jovens de
verdade —, irritado:
— A srta. Fenchurch precisa de alguém para ajudá-la com a
máquina!
Foi a primeira vez que ele não a chamou de Valda, mas o respeito
foi apenas um resultado do ressentimento. A segunda moça sorriu
para ele com graciosa timidez e com terror para Valda, e
imediatamente se debruçou sobre a máquina, como se esta fosse um
berço.
Chegado o momento oportuno, o sr. Leadbetter escreveu na ficha de
Valda que ela tendia a ser agressiva quanto a ninharias. "Tendia" era
o código oficial para nada deixar pela metade, ir até o fim.
Havia um pequeno aposento interior, semelhante a uma copa, onde,
pela manhã e à tarde, aquelas moças se revezavam para fazer o chá.
Uma lista fora afixada à parede, onde estavam anotadas as
exigências de todos os homens: sr. Bostock, fraco com açúcar, sr.
Miles, forte e puro. O Leadbetter de Valda preferia uma infusão de
flores de camomila, que ele comprava na Jackson's, em Piccadilly; a
infusão tinha que ser preparada em um recipiente separado e
precisava ser coada. Outro aviso alertava contra folhas de chá na
pia. O aposento estava em mau estado e não tinha ventilação. Havia
manchas no linóleo e um cheiro de biscoitos mofados. Em uma
parede salpicada, a tinta descascava, em virtude das exalações de
uma chaleira elétrica.
Por vezes, quando Valda preparava o chá, Caro arrumava as xícaras
para ela, em uma bandeja marrom e arranhada.
Valia a pena ver a imponente Valda de longas pernas medir, com
desdenhoso escrúpulo, as flores para a beberagem especial do sr.
Leadbetter (atada ao cabo do recipiente havia uma pequena
etiqueta: "Deixe ficar por cinco minutos"). Também era interessante
ouvi-la desfiar as instruções: "Sr. Hoskins, sacarina. Sr. Farquhar,
suco de limão". Ela enchia o indeterminado quartinho de sarcasmo e
decisão, provocando um frêmito maravilhado de medo entre as outras mulheres, pela certeza de que, se um daqueles homens entrasse
ali, ela não fraquejaria um só instante no desempenho de seu papel.
Quando Valda se referia aos homens, de maneira mais geral, era na
suposição de partilhada e calamitosa experiência. Nenhuma das
outras mulheres tomava parte em tais discussões — o que seria não
apenas indelicado, mas escarneceria de suas deferentes
convivências com o sr. Isto ou Aquilo. Além do mais, temiam que
Valda, se encorajada, pudesse dizer algo físico.
Observando as colegas que se enfileiravam para a saída, à noitinha,
Valda comentou com Caro:
— O rebanho que muge serpenteia lentamente pelo prado.
Havia outra facção masculina no escritório — a de jovens
envelhecidos, que falavam com amargura sobre divisão de classes e
o direito a oportunidade ou à falta delas. Para estes, igualmente,
Valda não tinha paciência.
— Eles nem mesmo acreditam que existem e esperam que alguém
complete o serviço em seu lugar, de graça. — Ela pousava a lata de
biscoitos e desligava a chaleira elétrica. — Oh, Caro, é verdade que
o homem comum está eternamente disposto à ofensiva, mas ele
conta com muita gente do seu lado. É o homem incomum que deixa
todos irritados.
Valda também dizia a Caro:
— Você se sente inteiramente desleal em relação à sua experiência,
quando depara com o homem de quem poderia gostar. A essa
altura, mal imagina como poderia fazer um acordo decente, é como
ir ao encontro do inimigo. E então, vem a espera. As mulheres
precisam lutar para acabar com aquela espera imbecil na
extremidade de um telefone que nunca toca. O "receptor", como é
chamada a nossa parte dele.
Ou então, girando lentamente na mão direita o bule de chá
transbordante, como um atleta que faz aquecimento, antes de lançar
o disco:
— A mulher tem que se vestir, arrumar o cabelo, as unhas. Unhas
das mãos e dos pés. E, depois disso, você se torna uma refeição que
eles comem, enquanto lêem o jornal. Eu lhe digo que cada um
daqueles dedos que pintamos é mais um prego em nossos ataúdes.
Tudo isso era indiscutível, e inclusive corajoso. Entretanto, era
também um mapa, do qual aposentos, horas e faces humanas não se
erguiam, no qual inexistia qualquer florescer de generosidade ou
descoberta. As omissões podiam constituir a vida, em si, a menos
que o mapa fosse encarado como um substituto para o percurso.
Pelo menos, tais eram as objeções levantadas por Caroline Bell.
Valda, por seu turno, considerava-a como uma possibilidade
perdida. Caro poderia ter feito qualquer coisa, mas preferia o limbo
comum do amor sexual. Quem quer que tivesse dito: "Quando
procurar mulheres, leve seu chicote", aludia a algo profundo e
profundamente desencorajante.
Valda vigiava Caro e pensava dessa forma. Pensava: Oh, sim, que
eles lhe mostrem seu chicote ou alguma atração comparável.
18
Quando Paul Ivory fez uma viagem de dois meses à América do
Norte, escreveu de Los Angeles para Caroline Bell:
"Minha querida, ficarei satisfeito em ir embora daqui — não por
causa da gente do cinema e da fumaça dos escapa-mentos ou dos
cemitérios ilimitados, que fazem Stoke Poges assemelhar-se a
manchetes, mas simplesmente por haver descoberto que só posso
conseguir uma carta sua em cada lugar que visito. De maneira que,
quando a recebo, é hora de seguir em frente. Tendo desejado a vida
inteira conhecer este país, eu agora o varo loucamente, à espera de
sua próxima carta. Uma trama diabólica de sua parte, com a qual
acho que nunca chegarei a ficar quite.
Quando recebo suas cartas, elas me comovem até o coração — um
órgão que, no meu caso, afinal foi você que inventou. Acho estranho
ser afetado pela sabedoria que você mostra, quando ela é escassa no
que me diz respeito. Por essas cartas, procuro acompanhar seus
estados de ânimo, tendo a lua como um controle independente. No
entanto, existe sempre aquela bela solenidade — dirigida a quê? ao
mundo? a mim? — que age como um cinturão desmagnetizador (é
uma coisa que eles colocam nos navios, a fim de desmagnetizá-los
contra as minas e o radar inimigos). Descubro que não quero que
você conserve qualquer independência ou proteção em relação a
mim, em especial na forma de bom caráter.
Tendo dito isso, confesso que minha equanimidade sem
precedentes deste último ano é derivada da sua, como bem deve
saber. Trata-se de um tipo de contágio, um dos riscos dos prazeres
sexuais.
Estas linhas estão sendo escritas à meia-noite, em uma
enorme cama de um quartinho acima de um jardim — parte de uma
suíte providenciada por meus patrões daqui. É justamente o quarto
que eu imaginaria, tanto que procuro colocar dentro do quadro o
fator final e mais importante — mas não funciona. Existe também
uma sala de espera branca, um terraço com plantas maravilhosas,
um banheiro e até mesmo uma diminuta cozinha. Entretanto, o
principal é a cama, que coloca o mundo em perspectiva.
Estou acabando de voltar daquela espécie de jantar denominado
stag1. (Como nos apressamos em reivindicar nossa condição!) O
monarca deste vale estreito mal se dirige a mim, o que se supõe seja
um bom sinal. Todos fazem questão absoluta de manter a tradição,
de maneira que exibi um bocado de sorrisos do tipo que você
detesta. As coisas podem ser realizadas aqui, desde que não se
espere conservar a alma imortal — fui instantaneamente separado
da minha, quando cheguei; imagino que ela, ou alguma coisa
semelhante a ela, me será devolvida à minha partida, pela
encarregada do guarda-roupa. Por outro lado, não há muito que se
ouvir ou questionar, mas bastante a expor. (Foi Conrad quem disse
que o ar do Novo Mundo é favorável à arte da declamação, não
foi?) Isso significa que existe uma fórmula e que devo ajustar-me a
ela.
De resto, a Califórnia oferece o máximo contraste imaginável entre
as obras de Deus e as devastações do homem. A Califórnia é uma
bela mulher de língua obscena.
Semana passada, no hotel em Washington, encontrei Christian
Thrale, que estava lá para uma conferência, como talvez você saiba.
Simpatizei com ele mais que de costume, mas não tenho certeza se
isso aconteceu por razões intrínsecas ou porque pude dizer seu
nome.
Estou chocado e impressionado pelo amor que sinto por você."
1 Gíria americana: jantar apenas para homens. (N. da T.)
19
Em agosto do ano seguinte, Caro estava sentada em uma elegante
sala de chá, esperando Ted Tice. Aquele restaurante, em uma loja de
departamentos de Londres, dava para Piccadilly de um lado, onde a
luz era discretamente velada. Algum ruído que subia do trânsito do
Circus era abrandado para o rumor pré-guerra por paredes de
solidez antebellum.
Admitindo apenas sons semelhantes, o recinto somente abrigava o
que havia de decoroso. Todas as mesas eram ocupadas por
mulheres. Como fiscais, as garçonetes permaneciam atentas ao
desempenho, limpando contidamente alguma sujeira ou
recolocando um garfo caído. Algo não desagradável, uma
segurança de quarto de bebê, acompanhava tudo isso. Não
obstante, em tal cenário, era possível detestar-se as mulheres —
detestar-se seu gênero ondulante, imperioso e de timbre agudo,
seus peitos, traseiros e penteados, suas pregas, franzidos e bolsas de
mão atulhadas: todos os pertences, naturais e assumidos, de seu
sexo. Nesse ambiente estúpido, elas mal poderiam ser encaradas
como pessoas, ao contrário do que sucederia com homens. Não
obstante, elas inclusive tentavam ser tolas, santificando todos os
tópicos pela veemência com que os tratavam.
Caro sentiu a própria anormalidade: ser a única que observava, a
única a não falar, a única que não queria particularmente um carro,
um tapete ou um serviço para doze pessoas. A única a quem
faltavam um lar e proteção, mas que ainda assim não era livre. À
mesa vizinha à sua havia duas irmãs — esguias, calmas e distintas,
ambas com cabelos cor de mel e olhos claros, alongados; a mais
velha, que usava um pequeno anel de noivado, de safira, e a mais
nova, que tinha dezessete anos. As maneiras entre ambas eram
perfeitas — delicadas, corteses, leais. Ofereciam-se cardápios e
açúcar polidamente, como se não houvesse qualquer laço de sangue
entre elas. Se alguém podia ser assim, valia a pena renunciar ao
temperamento.
Quando Ted chegou, o recinto de mulheres se compôs. Enquanto
passava entre elas, via-se que elas renunciavam à frivolidade e
tentavam cessar de remexer nas bolsas. Era um poder que ele vinha
adquirindo: parte de uma terceira possibilidade não prevista por
aqueles que se perguntavam se Edmund Tice venceria ou
fracassaria.
Desde sua volta da França, ele estivera trabalhando em Cambridge,
passando novamente a viver em aposentos alugados com mobília.
Uma dose de precoce reconhecimento não fora prejudicada por sua
atitude em relação ao telescópio proposto, uma vez que outros
haviam, inesperadamente, aderido à sua posição. Uma mulher que
ele conhecera durante seu trabalho fora durante alguns meses sua
amante, mas voltara recentemente para Jodrell Bank. No decorrer
de um outono e um inverno, os dois haviam feito amor aos sábados,
mantendo-se distantes pelo resto da semana — um arranjo não
diferente de um casamento insípido. Quando essa jovem partira
para Manchester, chegara quase às lágrimas, ao mesmo tempo em
que oferecia a Ted um pequeno sorriso e um meneio de cabeça,
como que a dizer: irremediável. Ted percebeu que ela o considerava
um amante egoísta e sem inspiração, e não se importou de lhe dizer
por quê.
— Que lugar curioso para um encontro!
Ted parecia mais corpulento do que antes e mais ereto. Seu cabelo,
já com entradas, ainda se erguia em espessos anéis louroavermelhados. O sulco vertical era mais profundo em seu cenho. Ele
deixou o jornal em uma cadeira vazia e sentou-se. Quando olhou
em torno, foi como se previsse um final para tal recinto e suas
mulheres; como se soubesse de planos esboçados para convulsionar
aquela cidadela. Tornava-se claro que o elegante salão logo se
transformaria em um café com auto-serviço. Isso só ficara evidente
após Ted chegar e avaliar a situação com um olhar.
Quando em tais lugares, às vezes Edmund Tice imaginava pessoas
da alta burguesia em cidadezinhas chuvosas e presbitérios úmidos.
Visualizava famílias comedidas e gentis, seus jardins, seus animais
de estimação com nomes literários; as prateleiras envidraçadas com
volumes de Sir Lewis Morris ou Sir Alfred Comyn Lyall; A luz da
Ásia, prêmio escolar, com letras em alto-relevo na capa imitando
couro. Ele devia saber que desaparecer é diferente de apenas
morrer, que ser aniquilado não é o mesmo que ser morto. Alguma
coisa — lembrança, crença — que não desaparecera antes estava
para morrer ou, de qualquer modo, extinguia-se com metade da
rapidez, exterminada por aqueles cujas atitudes haviam sido
aprovadas e conhecidas, embora talvez não fossem virtudes
maiores. E ele desempenharia sua parte nessa destruição e, como os
outros, lamentaria quando tudo estivesse certeiramente acabado.
Ted vinha regularmente a Londres para ver Caro.
— Gostei de caminhar através destas ruas cinzentas, sabendo que
era para vê-la. — Uma simplicidade que não exigia resposta. —
Diga-me o que fez o dia inteiro.
— Ouvi queixas alheias. — Caro fez espaço para um prato de
docinhos coloridos e suspiros que pareciam conchas espiraladas. —
Não que as queixas deixem de ser reais.
— Aí está o problema com as queixas. Em geral, costumam ser
justificadas. — Depois que pediu o chá, Ted perguntou: — Lá existe
alguma coisa que a preocupa?
— Sinceramente, não. E não no sentido que você quer dar.
— Ninguém nunca deixa o emprego?
— Os homens, nunca. As mulheres, em geral quando se casam.
— A menos que você se case comigo, com franqueza, eu a prefiro
nesse buraco fatídico. — Ted pensou que ela iria se exasperar ou
sorrir, mas Caro não foi atingida pelo comentário, que permaneceu
entre ambos. Ele prosseguiu, direto, consciente da fatal
sincronização: — Meu trabalho não é assim. Ele me é necessário e
propício. No entanto, você é tão necessária à minha vida como o
conhecimento ao meu trabalho, mas não tive sorte quanto a isso, e
Deus sabe que eu nunca serei realmente completo ou feliz sem você.
— As pessoas não podem ser possuídas como as informações.
Ela não era combativa, nem mesmo agitada. Estava calma, em
resultado de alguma grande reserva de alegria, adquirida e
antecipada, que só poderia ser amor.
A descoberta foi como violência no recinto róseo, trivial e
razoavelmente inofensivo, que até agora não conhecera maior
convulsão que a da quebra de faiança florida.
Ted sentiu que aquilo podia não ser coisa nova. Entretanto, ela se
tornara descuidada, não se preocupando em dissimular. Hoje,
demonstrava a segurança de um acrobata,
elevando-se para sua aventura com graça, e desperdiçada coragem.
Assim, ficava tudo explicado. As mãos e os cabelos dela
explicavam-se por si mesmos, o braço encurvando-se para o interior
de uma manga e se tornando o pulso suave de uma mulher
apaixonada: tudo aquilo desejado, manuseado e esperado por
alguém, oferecido a alguém. Ted repisou isso com doentia
impotência, com repulsa.
Ele estava certo — e no entanto receoso de um engano obsessivo —
sobre a identidade de seu amante.
— Você está fazendo com que eu seja indelicada — disse ela.
Lamentava-o e não sorria, mas permanecia ali, com aquela outra
vida fluindo por ela, tornando-lhe a face rosada e a dele, pálida. Ted
observou o brilho mortiço da pele, quando desaparecia por entre as
roupas; pensou que o corpo dela, desconhecido para ele, já estava
mudando.
Quando Caro olhou para o relógio, ele disse, sem se conter:
— Não vá ainda.
— Já estou um pouco atrasada.
Como um detetive, ele reparou na insensibilidade, na indiferença da
pessoa que ama ante a não amada. E nada há que eu possa fazer
para modificar ou interromper alguma coisa. Ela pode destruir-me e
nada posso fazer. Não posso impedi-la de dormir esta noite com seu
amante, nem de gostar disso e dele.
A incapacidade era injustamente vexatória para ele, como a
impotência sexual, pois estava relacionada a alguma humilhação
imensa e contingente — talvez a impossibilidade de toda a
humanidade de prever o caos ou proteger-se contra ele.
Quando se separaram, ele tomou um táxi para a Liverpool Street,
onde esperou uma hora por seu trem, incapaz de ler ou de ligar
para um amigo a quem prometera telefonar. O teto da estação
formava um céu de fuligem guarnecida de chumbo, com suas vigas
e encaixes insolúveis. Nas plataformas, as pessoas andavam em
círculos, como refugiados. Ted Tice revolveu e revolveu as mesmas
impressões, enquanto os mesmos slogans as interceptavam, dos
quadros de avisos. Era impressionante a recusa do tempo em passar
e, sem independência de julgamento, ele registrou a multiplicação
de momentos naquela hora. A sordidez intensificou-se, os
passageiros à espera pareceram ganhar idade, nada e ninguém era
jovem ou gentil, nunca o havia sido. De seu banco imundo, ele via
como as pessoas se esgueiravam ou vagavam, personagens do
Realismo, sem dúvidas ou remorsos, sem quaisquer sensações que
merecessem as lágrimas dele.
Embarcando finalmente em seu trem, Ted Tice desejou que toda
afeição chegasse ao fim, se aquilo era uma amostra.
— Olá. — Partindo de um hábito que caracteriza o amor retribuído
ou o ressentimento, Paul agora raramente usava o nome de Caro. —
O carro está logo depois da esquina.
Seguindo pelas ruas acinzentadas, ela esquecera Ted Tice e,
mentalmente, já dizia a Paul: Estou feliz em vê-lo.
Tendo chegado naquele dia, após uma quinzena na Itália, Paul
estava queimado de sol. Homens e mulheres que passavam
olhavam para ele, para sua saúde cara e importada, observando
também o par que eles formavam. O mesmo havia acontecido
quando haviam passeado juntos pela primeira vez, em uma estrada
rural. A presença de Paul, ao contrário do que acontecia a Ted, fazia
com que as pessoas se esquecessem de si próprias, ao invés de se
lembrarem. Além disso, tendo agora uma peça chamada Equinócio,
Paul às vezes era reconhecido por estranhos.
Quando estavam no carro, Paul segurou-lhe o pulso por um
momento.
— Como estava Roma? — perguntou Caro.
— Barroca. — Uma névoa fuliginosa umedecia o pára-brisa. — Esta
manhã eu estava sentado ao sol, no Pincio.
— Foi uma pena partir. — Ela desejaria ter dito: Estou tão feliz de
ver você!
Ele sorriu.
— Como você está solene! — Dirigiu cuidadosamente, parando
para que três colegiais passassem. As crianças levaram os dedos aos
bonés, dirigindo-se a Caro, como lhes fora ensinado. — Eles pensam
que você é a rainha Mary — acrescentou Paul.
— Certamente eu não estaria sentada na frente, com o motorista.
— Agora, escute uma coisa: você tem que ser boazinha comigo,
porque hoje, menos de uma hora após a minha volta, recebi uma
proposta inesperada. — Mencionou um nome e, como Caro
revelasse ignorância, prosseguiu, com irritação: — Nos últimos dez
anos, foi o único diretor importante que se apresentou.
"Apresentar-se" intimidava, com seu sentido de confissão: "Alguém
que corresponda à descrição, por favor, apresente-se". "A menos
que alguém se apresente, toda a classe ficará detida após as aulas."
Como se aquele homem importante — que Caro agora identificava,
através de reportagens na imprensa — fosse alguém que desejasse
levar a culpa.
Quando Paul terminou de contar sua história, eles tinham chegado
a Covent Garden, e saíram do carro. Dentro de uma ou duas horas,
já em sua própria casa, ele a repetiria para Tertia, que, por estar
casada com um homem de renome garantido, receberia o fato como
parte do que lhe era devido.
Subiram a escada para a moradia de Caro. Paul agora possuía sua
chave do apartamento. Virando-a na fechadura, disse:
— É agora que você precisa ser boazinha comigo. Entretanto, foi
claramente invencível aquela noite, e
confundida por causa dos tributos pagos. Era inútil tentar uma
inversão, propor a Paul um estado de ânimo — Paul, que detestava
sentir-se dirigido, que às vezes nem mesmo tolerava a mera
recomendação de um livro, que ficava zangado se Caro, em sua
melhor aparência, desse a impressão de forçar o interesse dele. A
menor reivindicação sobre as afinidades de Paul podia ser
repudiada com feroz energia, como uma espécie de desafio, quando
ele se mostrava naquela disposição de espírito, sentindo-se
pressionado.
Insistindo em tal caminho, às vezes ele podia também ferir-se
acidentalmente.
Caro jazia vestida na cama e Paul se sentara ao lado dela,
preocupado. A mão dele lhe girava sobre o seio, porém mais pela
força de um delicado hábito, acariciando um animal doméstico
distraidamente. Sobre a colcha a palma de Caro permanecia aberta,
virada para cima e estendida a um ledor da sorte.
Ela o fitava.com um amor semelhante à perda de consciência.
Paul meditava na peça que poderia escrever para aquele homem
que o abordara inesperadamente.
— Hoje é difícil surpreender alguém. Não o digo em um sentido
vulgar. A falta de surpresa que surge com a idade, individualmente,
agora ocorreu a toda uma população. Imagino que isso tenha
começado com a Primeira Guerra Mundial. Por que deveríamos,
você ou eu, por exemplo, ficar surpresos com alguma coisa
atualmente?
— Ainda é possível ficar-se surpreso com a pessoa que atua.
Alguém que conheçamos bem ainda pode surpreender-nos com um
ato nobre ou monstruoso.
— Mesmo assim, amor ou ódio podem abrandar a situação. —
Naquela noite, Paul estava imparcial, e até mesmo clínico, no
tocante a ódio e amor. O mundo, ao ser-lhe dócil, havia satisfeito
seus desejos por esse dia, e suas energias presentes eram
canalizadas de tal maneira, que a gratificação sexual, em si, era
sublimação. — A capacidade de surpreender é uma forma de
independência. E um sentimento de posse pode ser tão forte, que
não admitirá semelhante revelação.
Caro comentou, sem qualquer estratégia de surpresa:
— Eu e Ted estivemos falando sobre possessividade. Tomei chá com
Ted Tice.
Paul não respondeu. Entretanto, uma hora mais tarde, acrescentou:
— É difícil sentir interesse por Tice. — Talvez a idéia de Ted Tice
não lhe tivesse saído do pensamento. Levantando-se, acrescentou:
— Odeio esta parte. Meias e camisa. Ir embora.
— Ir para casa.
— Você pode poupar algum homem disto — disse Paul — não se
casando com ele. — Rápido com as meias e a camisa, ele cantarolou
com intenção — uma máquina ligada, embora não ainda em
movimento. Tornou a sentar-se na cama, ao lado dela. — Sabia que
os russos sempre se sentam por um momento antes da partida?
— É a única hora em que você se senta.
— Céus! Lamentando-se como a amante clássica. Paul sabia que ela
nunca resistiria à sugestão de que
podia estar começando a atacar os nervos dele. E não queria que ela
ficasse muito certa de seu amor; poderia afirmar que esse amor era
uma perda recorrente que os unia.
— Oh, mas eu sou a amante clássica.
Ele lhe segurou as mãos. Aquilo dava a impressão de impedi-la de
causar algum mal.
— Não seja crítica. Até parece uma professora.
— A amante clássica. — Os dois riram, mas então ela disse: — O
que será de nós?
— Quem pode dizer?
Aquilo provocou um ressentido medo — como se um médico de
confiança de repente se saísse com "Agora, compete à natureza" ou
"Estamos nas mãos de Deus". Assim como Paul garantira eminência
a Tertia, também prometera domínio a Caro; e agora, quando ele
finalmente o exercia, não podia desdizer-se.
Nessa noite, os votos conjugais eram os mais fortes.
A cronometragem de Caro era fatalmente insistente, como a de Ted:
— Deve existir um final para a desilusão, em alguma parte. Em
resumo, é preciso que haja verdade.
— E você acha que a necessidade humana de desiludir não é
também parte da verdade?
— Da realidade, não da verdade.
— Precisamos de um teólogo e de um semântico para que decidam
sobre isso. — Ele sorriu, ainda lhe segurando as mãos. — Fico
contente por eles não estarem aqui. — E prosseguiu, de maneira
mais razoável: — Qualquer dia você vai querer todas as cartas na
mesa. Tinha esse encanto enigmático antes, capaz de tudo.
— Disso é que fui capaz. — O amor se tornara sua maior distinção,
talvez a única. — Nem toda capacidade é adversa, como a "aptidão
para assassinar".
Paul lhe soltou as mãos, como uma mostra de resignação: coibições
eram inúteis, de qualquer modo ela poderia cometer violência.
— Eu quis dizer que você costumava espantar-me.
— E como devo espantá-lo agora? — Uma vez que era forçada a
manter a existência dele em um certo nível.
Paul riu.
— Conte-me algo interessante sobre Ted Tice.
Um silêncio que era também uma vacilação tornou o momento
interessante. Para a mulher, o hiato era uma sensação recordada.
Certo verão, quando ajudava no jardim, em Peverel, ela recolhera
um rato ou coelho morto com a pá: um peso inanimado que diferia
daquele que nunca tivera vida.
— E então? — Ele não queria revelação nem tampouco intrusão em
quaisquer méritos que ela conservasse para si mesma. E isso
poderia ser nada mais que a sagrada custódia do pecado de mais
alguém. — Muito bem Sheherazade?
Paul deixou o casaco cair e tornou a acomodar-se ao lado de Caro. E
então ela lhe contou como Edmund Tice respeitara o cientista
alemão que era seu inimigo.
Paul Ivory escreveu para a mãe:
"Minha querida Monica:
Foi muito perspicaz de sua parte ficar em Barbados. Tivemos quatro
(os patriotas poderiam reivindicar cinco) dias excelentes, desde que
você partiu. Como o verão agora está terminado, a Inglaterra tem
pouco a antecipar, como sempre. Em verdade, gosto desta estação,
restolho esbranquiçado nos campos e os bosques começando a
enferrujar. Disto bem pode deduzir que estive no campo, tendo
ficado alguns dias com Gavin e Elise. Minha cunhada continua
assumindo o comando — enquanto Gavin fala, ela explica ad alta
voce o que ele realmente está querendo dizer. É como um filme com
legendas.
De fato, isso me forneceu a semente de uma peça — o eclipse de um
homem que se liga a uma mulher de temperamento, inclusive de
gênio (não é Elise, evidentemente, como você deve imaginar). Eu
poderia intitulá-la 'A carne una'. Em conseqüência, estive
ponderando acerca de fantasmas como Messieurs Récamier, de
Staël e de Sévigné, e o sr. Humphry Ward. O que você acha?
Naturalmente, não sei o que isso provaria — sem dúvida, nada
além de que, em quaisquer termos, o casamento é um inferno.
Sua informante — ou delatora — foi acurada ao pensar ter-me visto
na inauguração da retrospectiva Pinero. Uma peça má: segundo me
disseram, não podia ser omitida, mas creio que deveria ter sido. Em
seguida houve uma festa, à qual o primeiro-ministro compareceu
brevemente, parecendo muito doente: o Mar-Verde Corruptível.
Sua amiga também estava correta ao relatar-lhe que tenho sido visto
com a mesma mulher em várias ocasiões recentes ou menos
recentes. Pensei que tal constância antes a tranqüilizaria do que a
perturbaria. Como escreveu Lorde Byron — embora não à mãe,
creio: 'Não tive uma prostituta este meio ano, confinando-me ao
mais rígido adultério'.
Seu filho que a estima."
Caro permanecia de pé junto às janelas do dormitório de Paul,
enquanto ele, na lareira, manuseava — não nervosamente — uma
coluna de mármore com veios rosados.
Tertia Ivory estava grávida.
Tertia se encontrava no castelo: Tertia em seu baluarte. Segure-se
com firmeza, a corrida é para os rápidos. Em algum lugar, além do
dormitório de Paul Ivory na cidade, uma paisagem tremulava, o
castelo se avolumava em sua inexpugnável elevação ancestral.
— Você sabia das possibilidades desde o início — disse Paul.
Excluir o amor era fortificar-se. Ele devia isso, pelo menos, a seus
legítimos descendentes.
Para verificar-se como a paixão pode debilitar, bastaria um só olhar
para Caro.
— Não imaginava que você exigiria tanto. Ou que eu o daria —
disse ela.
Ambas as declarações eram falsas. A boca de Caro se tornou
desgraciosa com a incompreensão, com a compreensão. Seu corpo,
imóvel, expressava um esforço pouco atraente.
— Então, não é esse o seu temperamento? — Desli-gando-se, se não
inteiramente censurando: um médico que atribui a doença a causas
emocionais, quando lhe ignora o tratamento. — Sei que é duro. —
Paul se mostrava clemente, afagando o delito de amar.
— Duro?
Era melhor que ela não tivesse ouvido palavra tão cáustica. Paul
disse para si mesmo que enfrentaria um mau momento com Caro e,
certamente, acataria seu ponto de vista. Ele temia o mau momento
como quem teme o decurso, não o resultado. Sua mãe certa vez lhe
dissera: "As coisas verdadeiramente terríveis são aquelas que não
podemos modificar, com as quais estamos comprometidos
indefinidamente". (Ela poderia ter dito "interminavelmente",
embora não fosse esse o seu estilo.) O sofrimento presente de Paul
não pertencia àquela espécie condenada. Ele podia prever um final
para Caro.
Há muito o quarto de Paul havia sido inteiramente mobiliado —
tapetes estendidos, poltronas em suas posições, quadros
pendurados e cortinas abertas ao lado de um vaso de flores de
tecido branco, em uma janela. Tudo era mantido em perfeita ordem
— embora, por um descuido, as flores às vezes apresentassem
douradas partículas de poeira. No toucador, alinhavam-se as peças
de um conjunto de prata — escovas e espelhos de mão, de um tipo
fora de moda, até mesmo antigo, cada uma adornada com um
brasão. No armário embutido estavam as roupas de Tertia que
agora, durante algum tempo, ela não poderia usar. Tais objetos
eram precisos e luziam. Ou podiam embaciar-se, inclusive deixar de
existir, enquanto o homem e a mulher permaneciam ali.
Paul continuou ao pé da lareira, aguardando a explosão de Caro.
Ele não gostava que o deixassem esperando. A tempestade que se
avizinhava o poria em liberdade: o que Caro dissesse dele, a ele, a
colocaria em erro perpétuo. Para Paul, a violência degradante da
emoção pendente de Caro representaria a escapada.
— Agora estou de fora — disse ela.
Ele a ajudou com o casaco. Seu gesto convencional era uma
verdadeira despedida. A compostura dos outros sempre o
diminuía, e a dela, naquele momento, negava-lhe a ofensa de uma
cena. O fato de ter amado Caro, mais, muito mais do que já amara
alguém, emprestava estatura àquela mulher: ela tanto podia ser
única como inauguradora. Paul se ressentia dessa posição histórica
que Caro estabelecera para si mesma, no ímpeto da existência que
ele levava; por tal motivo, gostaria de vê-la rendida.
Caro relanceou os olhos pelo quarto, não para vê-lo como se
apresentava pela última vez. Nada ali testemunhava a sua presença.
Seus olhos pousaram em Paul, com um questionamento mais
sombrio do que ele jamais suportara. Então ele se virou para o outro
lado, não querendo ser tentado a alguma admissão que pudesse
recear.
Desceram um atrás do outro, ambos recordando aquela primeira
cena no patamar; Paul evocava sua mão enorme, a mão do chicote,
uma sombra na parede. Mentalmente, também via o impermeável
pardo e as dobras de tecido vermelho, divididas, afastadas sobre o
seio dela. Seria daquela vez em diante que a imagem se repetiria
para ele — vívida o bastante naquele momento, fazendo-o quase
duvidar de que o rosto atual de Caro se refletisse num sombrio
espelho no vestíbulo, um rosto que tinha a cor da nudez: a nova
Caro que ele criara, a quem estava agora oferecendo os toques
derradeiros.
A boca de Caro era uma ferida que talvez nunca cicatrizasse.
Apenas por ficar de pé junto dela, Paul ainda esperava provocar a
tempestade de lágrimas que o libertaria formalmente, como uma
dissolução de votos. Nunca a tinha visto chorar, exceto de alegria.
Então, em perfeita obediência a seus desejos, como que por uma lei
da natureza, Caroline Bell fez um gesto primitivo de abandono e
pronunciou o nome dele. Depois chorou, alto, sem ao menos cobrir
o rosto.
20
"Lamento mais do que posso dizer", começava a carta da sra.
Pomfret, "ser portadora de más novas. Não obstante, imagino que
você desejaria saber."
O major tinha deixado ou abandonado Dora. E, uma vez que agora
se declarava insolvente, não lhe proporcionava qualquer amparo.
Dora permanecia no apartamento do Algarve para estabelecer a
posse, mas, fora isso, estava sem fundos. Parecia que, infelizmente,
o capital dela havia sido transferido para o nome do marido, no
início do casamento, estando, portanto, irrecuperável, na opinião do
sr. Prata, sem dúvida o melhor advogado da província.
"A maior preocupação dela é que você continue feliz e não fique
aborrecida com isso. Melhor do que eu, conhece o orgulho violento
de Dora. De qualquer modo, ela está em estado lastimável, e
afirmei-lhe francamente que escreveria para você. Sem intenção de
preocupá-la além do devido, evidentemente tenho a obrigação de
comunicar-lhe que ela falou, e por várias vezes, em acabar com a
própria vida."
Caro telefonou para o escritório de Christian, pois Grace esperava o
segundo filho. Depois que lhe deu a carta, ele ficou silencioso por
um momento, antes de comentar:
— Isso já era de se esperar. Caro, a culpada.
— Pode-se fazer alguma coisa através da embaixada?
— Tem sido minha firme política não misturar o oficial com o
pessoal. Nada de envolvimento, eis a minha posição. — Foi a vez de
Caro ficar em silêncio. Christian logo acrescentou: — Estou certo de
que compreende. — Em sua formalidade reprovadora, ele bem
poderia ter dito mais: "Caroline".
Uma obscena ausência de decência provocou um pânico
infantil, como se uma maçaneta de lavatório ficasse emperrada, sem
girar.
— Não tem nada a sugerir?
— Não posso imaginar de que modo eu poderia intervir a esta
altura. Sem saber mais.
No espaço agora formado para a elocução, Caro disse:
— Então, eu irei.
Isto estabelecido, o alívio deixou Christian cordial.
—
Parece o melhor, se não lhe causar problemas. Que confusão!
Falarei com Grace esta noite e telefonarei para você, amanhã bem
cedo.
Naquela noite, ele disse a Grace:
— Sua irmã causa mais problemas que uma casa de marimbondos.
— E acrescentou: — Estou me referindo a Dora.
Grace tremia.
— O que fará ela, sem dinheiro?
— Pode arranjar um emprego, como milhões de outras mulheres.
Assim, pensará menos em si mesma, para variar. Talvez até seja
bom para ela.
O que era bom para Dora, no entanto, já há muito tinha acontecido.
— Ela não daria para trabalhar em um escritório. Christian então
soltou:
— Se não fosse a grandessíssima tolice de entregar a ela o seu
dinheiro, nada disto estaria acontecendo agora. — Grace ficou
trêmula e Christian se levantou e começou a caminhar pelo
aposento. Homens altos e de ombros estreitos começam a encurvarse relativamente cedo. — Entregar a ela. De bandeja. Simples, assim!
— Ele apanhou uma revista e a deixou cair, à guisa de ilustração. —
Sempre achei uma loucura.
— Caro entregou tudo.
— Aquilo já foi uma grande asneira, mas é problema dela. O que me
irrita é o seu envolvimento nisso.
Grace havia dobrado as pernas debaixo do corpo, no sofá, e
mostrava o corpo absolutamente disforme.
— É injusto! Eu sou tão. . . — quase disse "culpada". — Estou tão
nisso quanto ela. Foi Caro que me fez ficar com a metade.
— Muito magnânima, uma vez que tudo foi idéia dela.
— Não.
— Permita que lhe refresque a memória. Foi você mesma quem me
contou. — Christian se deixou cair em uma cadeira. Sua voz estava
rouca com o que havia sido ensaiado durante anos. — Além do
mais, isso é bem próprio dela. Caro tem essa noção sobre si mesma.
— Que noção?
Como se ela não soubesse.
— De ser diferente. Ou melhor. Ela se concebe como alguém que
tem grandes atitudes. — Um movimento circular da mão e do
braço. Christian podia ter respeitado essa característica em uma
pessoa de reconhecida posição, mas quem era Caro — uma
australiana que trabalhara em uma loja — para ser tão magnânima?
Virulento egoísmo! — Inseguro quanto à propriedade no uso da
palavra "virulento", acrescentou: — Mania de grandeza!
— Devem existir manias piores do que essa. — Grace não dispunha
de vocabulário para argumentar, apenas tinha consciência,
confusamente, de que era geral a antipatia por qualquer pessoa com
um sentido de sina — mesmo que tal sina fosse pouco mais que
uma mostra de preferências. Os Thrales fitavam seu tapete cor de
creme, suas poltronas de brocado e sua imagem de Dick Turpin, de
Staffordshire, objetos dos quais todo o encantamento já se fora
irremediavelmente. — E como Caro pode abandonar o escritório?
— Sem dúvida, tem férias vencidas.
— São apenas alguns dias. E ela ia à França.
— Lamento, mas Caro terá de aprender que não pode fazer tudo.
— E quanto ao dinheiro? Como pagará a passagem? Seu salário é
insignificante. Além do mais, há Dora.
Christian aproximou-se e sentou-se ao lado dela, em uma poltrona.
— Escute, Grace. Você faz com que eu pareça um Scrooge. Um SeiLá-o-Quê. Legree. Eu lhe direi o que faremos, quando a situação
estiver mais clara. Ou esclarecida. Eu me recuso, terminantemente,
a comprometer-me de antemão, às cegas, com qualquer das — a
palavra que estava sondando era "imbecilidades" — idéias absurdas
de Caro. Ao telefone, ela obviamente conseguiu a passagem sem a
menor dificuldade — afinal de contas, não é tão cara assim. E seria
de estranhar se alguém como Caro não conseguisse enganar sobre
sua receita, ao longo dos anos — é possível que ficássemos
surpresos. O negócio é que eu e você temos responsabilidades.
Temos filhos, o que não é o caso de Caro nem de Dora.
— Preferimos ter filhos para nossa completa felicidade. E Caro tem
sido criticada junto com Dora, sem se considerar a sua felicidade. —
Era uma resposta que a própria Caro podia ter dado. — Além do
mais, Caro terá filhos seus, um dia.
Tal suposição era perturbadora. Christian imaginava que Caro se
casaria um dia (recordava o insosso Tice, que se portara
mesquinhamente quanto ao telescópio), mas não chegara a incluir
filhos. Em seu alarma, Christian não podia saber que aquela era a
última resistência de Grace, e estava a ponto de vacilar, surpreso e
receoso. Entretanto, naquele momento ela entregou os pontos,
esgotou-se em um acesso de frágeis, inevitáveis e femininas
lágrimas.
— Oh, Chris, que situação a de Dora! Pobre Caro! Imediatamente
ele passou os braços em torno dela e
não houve necessidade de mais.
— Grace, pobrezinha! — Finalmente, acrescentou: — Você sabe que
aprecio Caro.
Grace enxugou os olhos, enquanto o significado fluía lentamente de
volta, como uma mancha, espalhando-se no tapete creme, em
almofadas de sarja, miraculosamente reinfladas, em um par de
pratos de Spode, pendurados em uma parede, que readquiriram seu
envolvente feitiço.
— Imagino que Dora volte para a Inglaterra — disse Grace.
Christian ainda não se pronunciara, mas estava decidido a que,
quando retornasse a Londres, Dora ficasse sob o amparo de Caro.
Era o lógico, as duas irmãs trabalhavam, uma economia no aluguel,
etc. Ele estava firmemente decidido a isso, como se fosse uma causa
moral ou um alto ideal. O próprio Christian ficaria surpreso ao
refletir que se vingava pelo espectro do fecundo casamento de Caro.
Depois do jantar, ele se sentou em sua poltrona habitual, com os pés
reclinados em uma banqueta acolchoada. Era o seu costume à noite
— não de todo um divertimento, mas um intervalo entre dias de
trabalho. E, de fato, naquela posição, com as pernas espichadas no
ar, de certa forma assemelhava-se a uma carroça ou carreta sem os
arreios, nos varais. Recostada nas almofadas do sofá — segurando
um livro que, curiosamente, parecia pesado demais para ela —,
Grace de repente voltou a chorar. Christian tornou a sentar-se a seu
lado.
— Por favor, não diga mais aquelas coisas para mim!
— Que coisas, por Deus?
Ela agarrou o livro e soluçou descontroladamente.
— Coisas como "Permita que lhe refresque a memória".
Pela manhã, o sr. Leadbetter, o funcionário administrativo, disse a
Caro:
— Lamento, mas terei de negar seu pedido de licença por motivos
familiares.
Entre as funções do sr. Leadbetter, incluía-se a de defender a escassa
reserva de boa vontade para com os funcionários da seção. Caro
nada disse.
— Vejo que deu a seu pedido um caráter de urgência, srta. Bell —
disse ele, apanhando um papel amarelo. Leu um parágrafo ou dois
da solicitação. — Naturalmente, sinto muito que sua irmã, ou
melhor, sua meia irmã esteja em dificuldades domésticas. Mas se
abrirmos uma exceção, acabaremos tendo dificuldade para manter a
disciplina.
O cubículo sem janelas de Leadbetter assemelhava-se a um elevador
ampliado — um daqueles que, nos hospitais, acomoda padiolas ou,
nos museus, transporta estátuas. No caso presente, o espaço era
quase totalmente ocupado por uma mesa de metal, da qual
Leadbetter parecia o encarregado ou guardião: Desce? Ele segurava
o documento, um crachá amarelo à altura do peito. Seu cabelo era
prematuramente grisalho, uma antecipação à aposentadoria.
— Está compreendendo isto, não?
Os silêncios de Caro estavam irritantes naqueles dias.
— A licença é concedida para emergências — doença, digamos, dos
pais ou do marido. E, naturalmente, morte.
Embora ela estivesse com a carta da sra. Pomfret na bolsa, seria
impostura expor a morte permanente de Dora.
— Por outro lado, srta. Bell, tem direito às suas férias anuais. —
Leadbetter consultou outro papel. — Permita que lhe refresque a
memória. Já tem uma semana de férias vencidas. Sugiro que
consulte seu supervisor, a fim de saber se pode ser liberada por uma
semana, com curto aviso prévio. — Agora que ele se livrara do
problema, sem dispor do pequeno, caro e fortemente racionado
fundo de compaixão oficial, ficou bastante solícito, como Christian.
— Espero que consiga resolver a situação a contento.
Quando Christian telefonou, Caro disse:
— Tenho alguns dias de férias anuais. Já vencidas. Na hora do
almoço, ela fez um empréstimo em um
banco, usando sua pensão como garantia. Retirou um salário
adiantado e comprou escudos. Quando retornou ao escritório,
Valda lhe comunicou:
— Um homem telefonou.
A expectativa de Christian tornara Caro arredia, até mesmo em
relação a Valda. No entanto, quando apanhou o recado escrito ficou
sabendo que Ted Tice passaria aquele dia na cidade.
À noite, Ted a levou ao aeroporto. Ele tinha um pequeno carro de
segunda mão, que morria na menor subida. No carro, Ted
perguntou:
— Você tem dinheiro para isso?
— Consegui algum.
Os aviões voavam muito baixo e ruidosamente. Ao logo da estrada
havia anúncios luminosos de refrigerantes e polidores de sapatos.
Às luzes mutantes do trânsito, o perfil de Ted cintilava em verde,
depois vermelho e azul.
— Se precisar de alguma coisa, é só falar comigo.
— Edmund Le Gentil.
— Meu receio é que você nunca vá precisar do que posso
proporcionar.
Ele não queria imputar altos motivos a sua própria ansiedade por
ela e tampouco menosprezar um egoísmo inseparável do amor. Já
vira como as pessoas se tornam cruéis ao falar a si mesmas de sua
compaixão pessoal: nada nos torna mais duros do que isso.
— Caro — perguntou —, quando é que me permitirá livrá-la dessas
pessoas terríveis?
Ela mal poderia suportar aquilo, se Grace fosse incluída.
Ted Tice observava um sofrimento que nada tinha a ver com Dora.
A pele de Caro deixara de parecer luminosa. Seu corpo ficara tão
esguio, que era impossível imaginar a força que ainda devia residir
nele. Tais mudanças não lhe davam esperança porque, em seu
sofrimento, Caro ainda pertencia tanto ou mais a outro homem.
Ele nunca cessava de admirar-se ante o desperdício. Tantos
sentimentos elevados em ambos os lados, mas nenhum deles
transferível.
— Hoje é o meu trigésimo aniversário — disse Ted. — Se antes não
fui jovem, jamais o serei. — Com isso, queria dizer que aceitava
quaisquer termos. — Também hoje foi o dia da decisão final para a
instalação daquele telescópio em Sussex.
No portão de embarque, ele a beijou. Era a primeira vez que a
abraçava, mas aquilo mal fazia diferença, pois toda a substância
dela estava neutralizada pelo sofrimento. Nos braços dele, o corpo
de Caro era tão leve e desapaixonado como um vestido.
Um ônibus que partiu de Lisboa ao alvorecer conduziu Caro através
de campos estranhos até uma cidadezinha provinciana. A zona
rural foi substituída por novos blocos residenciais e ruas
movimentadas pela atividade matinal. Calçadas eram lavadas com
água de mangueiras, persianas eram escancaradas. O sol ainda não
esquentara, o ar continuava isento de vapores poluídos. Ao longo
dos meios-fios, carros estacionados, como animais de carga,
esperavam pela partida. A mais prosaica vitrina era exótica; uma
exibição de utensílios culinários, instalados em prateleiras coloridas,
era um altar pagão.
O bloco de apartamentos na Rua das Flores se chamava The
Chisholm, e poderia estar localizado em Hammersmith. Dora jazia
em uma cama, um volume estupidificado. A cama ao lado, vazia,
era evitada pelos olhos, como se fosse um ataúde aberto.
— Eu lhe dei tudo, e é por isso que ele me odeia. Todos sempre me
odiaram. Você também me odeia. Por que insisti? Por quê? Bem,
finalmente agora chegou o fim.
Era quase possível ouvi-la através das paredes. Caro foi à cozinha e
ao banheiro, voltando com aspirinas e chá, além de um brioche
comprado na estrada. O rosto de Dora era uma caveira, de olhos
fundos e vermelhos, uma boneca agitada de madeira em uma
exposição, a primeira boneca a ser feita na Austrália colonial. Às
vezes ela se debatia, em outras ficava inerte. Em certo momento,
deu um grito, como o clarão de um relâmpago:
— Eu queria morrer!
Caro lhe trouxe a bandeja com a refeição.
—
Como se eu pudesse comer alguma coisa! — lamentou-se. —
Conseguiu isto na casa do outro lado da rua?
Depois que tomou o chá, sentou-se, recostada num travesseiro
encharcado, e a cada pergunta girava a cabeça de um lado para
outro. Seus cabelos escuros pendiam em desalinhadas e compridas
madeixas.
— Tudo acabado. Não tenho nada. Será que entende isso? — Ela
não podia tolerar uma negativa. — Estou lhe dizendo, não há mais
nada, tudo se foi! Pode perguntar a
Ernesto Prata. Quem é ele? — acrescentou, em outro acesso de
lágrimas. — É o melhor homem da província.
Sua cabeça girou de um lado para outro no travesseiro, como se a
batesse contra uma parede. Caro mudou a fronha. Fez ovos
estrelados. Na cozinha, apoiou a testa contra um armário de fórmica
cor-de-rosa.
— Não se preocupe! — disse Dora, do quarto. — Não a incomodarei
por muito tempo.
Mais tarde, naquela manhã, Caro telefonou para a sra. Pomfret, que
informou que estaria lá por volta da hora do chá. Dora pôs um
vestido de seda e espichou-se no sofá da sala de estar, com um saco
de papel pardo contendo doces, a seu lado.
— Todos vocês estarão melhor, depois que eu me for. Caro ficou de
pé em um estreito balcão. Ao fundo, as
antenas de televisão assemelhavam-se a caracteres chineses, eram
uma rede de mastros e encordoados, em um porto antigo. Além dos
apartamentos e bangalôs de tijolos, via-se um lago verde, na manhã
avançada. À direita do campo de golfe, um velho jardim cintilava
como civilização. Nos pomares, amendoeiras remotas como
lembranças felizes. Ela pensou na maneira como traíra o segredo de
Ted Tice com Paul Ivory. Mais tarde, Paul lhe dissera: "Foi bom terme contado isso". Agora, nada a impedia de imaginar o pior sobre si
mesma.
— Você pode pensar, por um momento apenas, o que significa
procurar trabalho, na minha idade?
Caro voltou para a sala.
— Eu trabalho.
— Você é jovem. — A cabeça de Dora se tornara veemente outra
vez. — Percebe que não tenho ninguém?
— Eu também sou sozinha.
— Você tem amigos.
— Você tem a sra. Pomfret, aqui.
— É engraçado como sempre consigo atrair um ou dois — disse
Dora. — Alguém que se afeiçoe a mim. Não sei por quê. — Ela
permitiu que Caro lhe passasse o pente pelos cabelos. — Não sei o
que faria sem Glad Pomfret. É minha única amiga. — Glad Pomfret
fora lá, uma hora após a partida do major, embora fosse seu dia de
bridge. — Nunca tive alguém que fizesse isso para mim. No
entanto, não parece demais para você.
Desde o começo, Glad Pomfret soubera o que ele era, mas não
quisera interferir. Aliás, seu próprio marido não havia sido grande
coisa mas estava morto.
— Câncer no coração.
— Nunca ouvi falar nisso.
— No ventrículo direito. Era um homem grandalhão — disse Dora
—, mas no fim definhou muito.
Caro podia ver nitidamente Sid Pomfret em um leito de hospital,
um monte de borracha desinflada. Dora tinha o poder de provocar a
deliqüescência diante dos olhos dos outros.
— Eles o abriram, mas o coitado estava condenado. Não demorou
muito a morrer. — Dora suspirou. — Esses é que são felizes!
— A sra. Pomfret virá com uma srta. Morphew ■— disse Caro.
— Não confio em Gwen Morphew. — Dora baixou a cabeça, a fim
de que Caro pudesse fazer o coque em sua nuca. — É a
acompanhante paga de Glad. — Ernesto Prata, Glad Pomfret e
Gwen Morphew eram como o elenco de uma peça. Por outro lado, o
major se tornara, simplesmente, ele. — Levou as antiguidades, as
peças. Levou até mesmo o rádio. Se você pudesse ver-lhe o rosto! A
crueldade impressa nele! A crueldade!. . .
— Dora, não chore mais. Seus pobres olhos!
Dora, no entanto, agora se lamentava pela crueldade.
— Nada consegui dele. Nada! Tenho sorte em estar viva!
Caro passou os braços em torno dela e pouco faltou para que se
reiniciassem as lamentações de um passado distante: Por favor,
Dora, oh, Dora, não fique assim. Em qualquer carícia, Dora saberia
usar seu poder repressor. Por maior que fosse a sua fragilidade,
Caro fora irremediavelmente escolhida para o papel da pessoa forte,
aquela que vence sem esforço; Dora seria a vítima, a fraca vítima
digna de pena. Não havia inversão de papéis nisso, apenas uma
mudança de tática. As duas tinham feito a mudança em pleno ar,
como dois alpinistas que, no instante crítico, passam entre si a corda
que os alçará do abismo.
— Este lugar horrível! E eu tão sozinha! Se pudéssemos voltar a
Sydney — gemia ela —, .onde fomos tão felizes! . . . — A
tranqüilidade se tornava emoção. Após um instante, ela
acrescentou: — Pelo menos, Grace teve juízo e ficou com a metade.
— Foi a única referência de Dora à perda da irmã no desastre: Grace
era respeitada por sua previsão, Caro havia sido a tola. — Grace é
tão feliz, tem tanta sorte! Christian é digno de confiança, alguém a
quem se pode apelar. Nunca tive ninguém assim. Ninguém.
Ao transformar Caro em tola, a respeito da transferência do
dinheiro, o Destino se pusera ao lado da avareza e do cálculo. O
Destino estava a favor do major, de Christian e de Clive Leadbetter,
esquecendo os que eram corretos. Caro tinha que se espantar com
isso, com a injustiça.
A sra. Pomfret chegou às quatro, com um amplo vestido de lã
turquesa e um turbante da mesma cor. Havia um camafeu entre as
dobras do tecido. A srta. Morphew era magra, cor de ardósia, e
exibia um leve tremor.
— Ernesto Prata é o meu homem — disse Glad Pomfret, referindose ao advogado. — O melhor da região.
A sra. Pomfret preferiu uma cadeira de espaldar reto, por causa da
coluna. Caro trouxe mais chá e as sobras do brioche, juntamente
com alguns biscoitos encontrados em uma lata. Um quarteto de
pombas brancas, soltas de um jardim, revoluteavam fora das
janelas. Dora observou que, segundo se dizia, os pombos
transmitiam hepatite virótica.
— Haverá trabalho aqui para Dora — perguntou Caro —, enquanto
o assunto estiver sendo resolvido?
A sra. Pomfret respondeu, pessimista:
— É uma pena que ela nunca tenha aprendido o idioma. Eu
consegui pegá-lo, embora as circunstâncias fossem diferentes. — Ela
proferiu as expressões "bom dia" e "boa noite" em português. —
Afinal, não é tão difícil assim. — O idioma português poderia ter
sido hepatite virótica ou algum objeto à margem da estrada, para
que alguém os recolhesse casualmente. A sra. P. ajeitou as dobras
do tecido turquesa. — Até a srta. Morphew conseguiu pegá-lo.
Mostrando-se atingida, Dora disse, do sofá:
— Li em algum lugar que não se pode aprender um idioma após os
trinta anos. Pelo menos, corretamente.
A sra. Pomfret dirigiu-se a Caro:
— Naturalmente, Dora não pretende seguir uma carreira como a
sua. . .
Caro retrucou, desalentada:
— Sou apenas uma funcionária mal paga de um escritório horrível.
O sorriso da sra. Pomfret era a própria tristeza.
— Compreenda, isso parece demais para ela — disse. Dora gemeu,
ao entender. A srta. Morphew se inclinava
para pegar outro biscoito.
— Dora foi imprudente — acrescentou a sra. Pomfret —, ao
transferir tudo para ele. — Todas empregavam "ele" ou "dele", em
deferência a Dora. Até mesmo o nome Bruce Ingot teria sido uma
declaração de traição. — Uma mulher nunca deve se desfazer de
seu capital. Nem mesmo em benefício da pessoa mais próxima e
querida.
— Dora confiou demais — comentou a srta. Morphew.
— Ele me convenceu — gemeu Dora.
Era difícil imaginar o major com disposição de ânimo para cortejar
alguém. Mais fácil era acreditar que jamais cortejara coisa alguma,
com exceção do desastre.
— Esqueçam-me! — uivou Dora. — Estou decidida a não
incomodar ninguém.
A srta. Morphew ajudou Caro a tirar os pratos. Na cozinha, ela
abriu a torneira e disse, sem olhar na direção da outra:
— Prata está envolvido com o major. Procure Salgado, na Rua do
Bom Jardim.
Quando finalmente ficou decidida a pensão de Dora, ela
permaneceu no Algarve, durante o inverno.
"Como bem pode imaginar, anseio ir embora deste lugar horrível",
escreveu ela a Caro, "ir para longe desta gente cuja fala não entendo.
Felizmente, a Inglaterra ainda significa alguma coisa, mas bem
poderia agüentar o inverno aqui, já que nunca o tornarei a ver.
Além do mais, é aconselhável suportar até a primavera, uma vez
que não confio em Manuel Salgado." Mais tarde, ela escreveu que
rompera relações com Glad Pomfret. O principal era que Caro continuasse totalmente feliz.
— Eu tinha certeza de que algo seria resolvido — disse Christian.
Ao encontrar Caro no corredor, o sr. Leadbetter lhe recordou que
sua porta estava sempre aberta para ela.
Em uma tarde de domingo, Nicholas Cartledge telefonou para
Caroline Bell.
— Será que nunca a verei novamente?
— Não.
— Procurei-a várias vezes.
— Estive em Portugal o mês passado.
— Você é que tem sorte.
21
Nas noites e fins de semana do inverno, Caroline Bell passeava
sozinha pela cidade, indo a labirínticos subúrbios da zona norte ou
sul. Após tais expedições — às quais nunca faltava a esperança
improvavelmente salutar de um encontro face a face com Paul Ivory
—, ela voltava para casa às vezes molhada, sempre com frio. Então,
após tirar os sapatos, ficava na cozinha, tentando esquentar-se perto
do fogão.
O pagamento do empréstimo bancário fizera-a adiar a calefação
para o inverno. Ela sabia que muita gente havia queimado peças
finas de mobiliário durante o inverno no tempo da guerra. Sabia por
que os homens lhe dirigiam a palavra nas ruas. Sabia ainda de
muitos atos de destruição e sobrevivência, anteriormente
incompreensíveis.
Parada na cozinha, pensava: Que país frio!
Caro jazia em sua cama gelada e olhava para a clarabóia, que era
uma lâmina de gelo amontoado. Ficava na escuridão ou à luz do
luar, recordando como, certa noite do ano anterior, chegara do
trabalho e encontrara Paul sentado à sua mesa, escrevendo.
Lembrava-se de como ele se levantara e a abraçara, perguntando:
"Como se sente, encontrando uma luz acesa e alguém à sua espera?"
Ele pousara a boca em seus cabelos e dissera: "Eu gostaria que
Tertia não existisse". Agora era Caro quem, por conveniência
própria, ele desejaria bem distante.
O amor não tinha sido inocente. Era estranho que o sofrimento
devesse parecê-lo.
A mente de Caro perambulava inutilmente no silêncio, ansiando
tanto por dar como receber. Uma sensação de perda formava uma
tensão cética em seus olhos, seus seios e em seu estômago. Sua
mente vagava no silêncio como um navio no disco do oceano que
representa o globo.
De joelhos, ela disse:
— Meu Deus!
Eram remotas as possibilidades de misericórdia. Deus era
impotente, apenas Paul podia ser misericordioso. Deus nada tinha a
propor, exceto uma renúncia que significava a própria
desintegração dela.
Havia ainda a morte, que não provocava qualquer comoção, mas
que de tempos em tempos rompia o silêncio com um reverberar de
bronze.
A criança Caro, Dora Bell inculcara uma obrigação moral de
considerar o mundo abominável e de prontamente falar em dar
sumiço em si mesma, em protesto. Esta corrupção era agora
reconsiderada pela mulher Caro como, possivelmente, uma
tradução barata da verdade sagrada. Para Dora, a morte havia sido
uma recorrente e ostensiva recordação da existência. Para Caro,
apenas a morte, despercebida, seria suficiente.
Como Paul, com quem havia outras semelhanças, a morte tinha sua
própria chave e esperava o regresso de Caro, à noite. Seu espectro
não apresentável podia ser socialmente claro quando havia visitas
— cujas monótonas e racionais trocas existenciais pareciam
manifestações de uma normalidade grotescamente desinformada,
tão dignas de pena quanto o papel de parede floral em um edifício
desmoronado ou o piano intacto em um aposento bombardeado e
sem teto.
Houve aquela tarde, a tarde de domingo, em que Cartledge
telefonou, dizendo: "Você é que tem sorte".
Sem dúvida, a insensibilidade era imensurável. A própria Caro
havia passeado com Paul em um cemitério e pilheriado sobre
suicídios. Jazendo em sua cama não consagrada, ela se perguntava:
"Terei vindo aqui para morrer?"
Caroline Bell via o quarto se encolher, no início da escuridão. A
clarabóia formava uma incisão de cinza mais pálido.
Tive um sonho no qual eu jazia em uma comprida encosta. Então,
uma grande pedra, maior que as pedras de Avebury, rolou em
minha direção. Eu a via chegando e não podia levantar-me, porém
não tinha medo. Quando ela chegou mais perto, virei o rosto em sua
direção, como para um travesseiro, como se fosse finalmente
descansar.
Uma dor tão horrível como a morte de alguma outra pessoa. Trazia
desordem ao problema. Nenhum problema, a morte sem
problemas. Certa vez, durante duas semanas, pensei que estava
esperando um filho de Paul e receei contar a ele. O ato da morte não
tinha nenhuma existência hipotética — ou, tendo sua hipótese em
todos, devia ser sancionado para obter significado. Então, o
significado é total, como para nada mais.
Um fenômeno conhecido como Black Drop.
Um fenômeno não menos do que lógico. Existem condições para
morrer, assim como condições para viver. Vénus para esconder o
sol.
Não me lembro de ter vindo para o saguão. Tão terrivelmente
quente! Aquilo era impossível, então? Não mais como a morte de
outra pessoa, agora é como a minha própria. Nada mais de
pensamentos, a coisa em si, em si mesma. Escuridão, escuridão
como jamais tive.
Ao voltar do trabalho, certa noite, Caroline Bell encontrou uma
carta do major Ingot. Levando-a para cima, colocou-a sobre a mesa,
enquanto acendia o gás para seu jantar. Depois, sentou-se para lê-la.
Não tirou o casaco, por causa do frio.
O major pedia que fosse feito um acordo. De outro modo, as
perspectivas eram negras.
"Não tenho as suas vantagens", escreveu o major. E "dia após dia,
havia uma discussão ou choradeira. Quando não ambos. Era tanto o
choro, que jamais se viu igual. Você não acreditaria, não pode
imaginar. Ela vivia falando, um dia em morrer, no outro em
desaparecer, até quase me convencer a fazê-la cumprir a ameaça, e
sem engano". Na miséria, as pretensões sociais do major tinham se
dissolvido, ou talvez ele acreditasse que a linguagem sem afetação
pudesse atingir Caro. O major não podia imaginar que sua
capacidade de observação estava em precárias condições.
Caro entregou a carta a Christian, que lhe disse que logo ajustaria
contas com o major.
— Vou enviar uma palavrinha através da embaixada. Afinal,
sempre existem certas vantagens, quando se tem acesso aos canais
oficiais.
Chegada a primavera, Dora partiu em um cruzeiro para Capetown
com uma nova amiga, Meg Shentall, a quem conhecera no Algarve,
em um salão de chá chamado O Lusitânia.
Em um parque sem canteiros ou regatos, sobre ondulações de folhas
de novembro, Caro estava caminhando sozinha. Os galhos
estilhaçavam um céu esbranquiçado, a casca de árvores antigas era
encordoada como os tendões de um velho vigoroso. Em uma tarde
livre, obtida como recompensa por horas extras de trabalho no
escritório, ela fora até lá sem objetivo, mal percebendo as ruas que
se entrecruzavam em seu mudo delírio privado. No interior do
parque, aquela falta de objetividade a deixou inquieta, e ela ficou
fisicamente constrangida, com os ouvidos doendo de frio, os pés
deslizando em dunas de folhas. O cheiro da terra era pútrido,
eterno. As cores desbotadas ofendiam, a melancolia era plena, total:
a natureza surpreendida em um ato de apagar.
Ela parou na alameda, com os ombros caídos e as mãos erguidas, a
fim de proteger as orelhas geladas; imóvel e espiando. Poderia ter
sido tomada por uma mulher horrorizada ante algum cruel
espetáculo. No entanto, a pessoa solitária que se aproximava lia
uma carta e ainda não a tinha visto.
Que Paul e Caro devessem encontrar-se dessa forma, por acidente,
talvez parecesse um ato calculado de um destino que se encarniçava
contra vidas indefesas. O que, em retrospecto, teria sido razoável —
uma vez que, ocasionalmente, encontravam-se por acaso quando
eram amantes, e o parque era território familiar — naquele instante
surpreendia com predestinação. Nisso, ambos eram egoístas e
humildes — os dois encarando-se na alameda cerimoniosa, as folhas
desviando-se e movendo-se no chão ou caindo inertes, as cascas
senis dos troncos, a diminuta claridade alvacenta.
Paul entrou no cenário trazendo cor ao ambiente lívido — cabelos,
casaco leve, pernas das calças. Caro baixou as mãos da cabeça nua,
mas ele já a vira naquela atitude e atribuiu a si mesmo a causa do
gesto de aparente terror. Paul estava vindo de um demorado
almoço no hotel que dava para o parque. O documento que
segurava era um contrato, no qual fórmulas mágicas — "a seguir
designado como" ou "pagável em dólares dos Estados Unidos" —
garantiam a sua segurança. Penetrando tais defesas, Caro irrompeu
como claro ou escuro, elementar. Ele lhe viu duas coisas distintas no
rosto: que, tendo, perpetuamente conjurado a visão dele em
fantasia, ela podia não ter certeza de que tal homem fosse ele e
quase se julgava mentalmente perturbada; e que ela temia exasperálo com um encontro do qual não tivera culpa — a respeito do qual
ele poderia lhe dizer: Será que nunca vou ficar livre de você? O
próprio silêncio dela era o terror silente de desagradar. Assim como
um homem poderia imaginar nua uma mulher vestida, também
naquele momento Paul viu Caro quase descarnada, os pulsos
descobertos, trêmulos como o crânio de um recém-nascido. O medo
ou êxtase dela o atingiram com incomum vergonha, como se o
encontro o expusesse em uma colossal mentira, como se aquele
encontro, em si, fosse verdade.
Observando os dois, poder-se-ia pensar que tivesse sido planejado
— a maneira como se encaravam, o homem com o papel enrolado
na mão, a mulher esperando. Poder-se-ia imaginar, sem dúvida, um
encontro, não a separação da qual eles procuravam tornar-se
dignos.
Poderiam ter se sentado em um banco ou sobre as folhas úmidas,
amontoadas aqui e ali em elevações tumulares. Se eles se sentassem,
contudo, haveriam de tocar-se. Alguma reticência, que mal poderia
ser considerada honra, impediu que Paul fizesse isso. Ele continuou
segurando o contrato, comprimido e agora esquecido — embora,
alisado, mais tarde, ele pudesse tornar-se imperativo —, e esboçou
um breve gesto. Talvez tenha falado, dizendo: "Caro". Enquanto ela
observava, da desesperada extensão de sua agonia. Ambos
convergiam de extremos, eram dois comandantes opostos que se
encontravam, enquanto suas forças se trucidavam, um encontro não
para fazerem as pazes, mas para trocarem uma grande, conhecida e
egoística tristeza, antes de tornarem à batalha: um silêncio de dois
minutos, seu breve armistício.
À distância, uma mulher de capa de chuva parou para libertar um
cão de sua coleira vermelha — um esguio cão branco, manchado de
negro, que logo correu para eles e ficou parado, ofegante e de
pernas afastadas, esperando ordens. Até mesmo aquele animal,
para quem o parque mortal significava o paraíso, espiou, sentindo o
que não era comum. Embora o cão saltitasse de um lado para outro,
eles não se distraíram. O cão latiu um pouco, reprovando todos
aqueles que não eram gentis com os animais. Sua dona chamou:
— Split! Split!
Paul e Caro se moviam lentamente pela alameda, enquanto o cão
rodava em torno da circunspecção de ambos, rodeando-a como a
uma presa, antes de perder o interesse e disparar em frente, a fim de
ser novamente preso à coleira.
Eles eram duas pessoas que se conduziam bem em meio ao ultraje,
elevando-se acima dele.
As árvores se moveram pelos dois, em procissão. De pé, junto aos
portões trabalhados porém abertos, Caroline Bell tinha as mãos nos
bolsos do casaco, e, se pretendia algo, era ficar no parque, que se
tornara um cerne de resistência nesse momento, a sua armadura. De
pé, estava novamente cônscia de seus ouvidos, que doíam, embora
seu corpo, por outro lado, se houvesse dissolvido em uma ascensão
e queda de respiração e sangue. Era mais simples ficar ali e
permanecer livre de explicações.
O cão encontrara um rato ou uma toupeira morta, e o farejava.
Saindo do parque, Paul caminhou pela extensão do Mali e, em
seguida, tomou um táxi para casa. Em seu vestíbulo, deixou sobre
uma mesa o contrato com as respectivas garantias amarrotadas e
pendurou o casaco em um cabide. A sala de estar estava pálida
como o céu frio — paredes, tapete e poltronas, tudo na condição
desbotada denominada neutra. Duas pequenas telas de Sisley,
encimadas por lâmpadas fluorescentes, explícitas como etiquetas de
preço, apareciam exauridas de cor como se deixadas ao relento, na
chuva. Nesse aposento acinzentado, a esposa de Paul estava sentada
num poial de janela e olhava através do que poderia — ou não —
ter sido a turvação de lágrimas.
— Tertia — disse Paul, com delicadeza bastante para qualquer um,
quanto mais ele.
22
Em seu quarto, Caroline Bell mergulhava em longo sonho,
recordando vistas, episódios e sensações, ou linhas já lidas, embora
não os ponderasse. Era como uma velha, ruminando o longo, longo
passado. Começava a ver homens e mulheres como sobreviventes
iguais a ela: bons dissimula-dores dos próprios desgostos que, com
poucos indícios de pesar, haviam contido, assimilado ou colocado
em uso a respectiva destruição. Via aqueles que tinham suportado o
pior, nem todos se portando com nobreza ou coerência. Não
obstante, involuntariamente todos se haviam tornado parte de
alguma afirmação de vida mais profunda.
Embora a dissolução do amor não criasse heróis, o processo em si
requeria algum heroísmo. Havia o risco de que a resistência
pudesse se parecer a uma façanha. O risco já surgira antes.
(Aos dezenove anos — quando viajava na Espanha como babá —
Caro passara uma semana em Granada, com a jovem e antiquada
família inglesa que a contratara. Um amplo balcão guarnecia o hotel
em toda a sua extensão, perto do Alhambra, dando para a Sierra
Nevada. Diretamente abaixo desse balcão, havia uma acentuada
descida para a cidade, no fundo do vale. Nas manhãs cristalinas e
nos fins de tarde, os hóspedes do hotel se sentavam em
espreguiçadeiras, na presença branca das montanhas, e pediam que
lhes trouxessem mantas ou xícaras de chá. Folheavam livros da
biblioteca do hotel — onde títulos e autores, há muito esquecidos
nos respectivos países, assentavam-se no exílio. O ambiente de
sanatório não era dissipado pela proximidade de monumentos
mouros e jardins de rosas perfeitas. Era como se houvéssemos
morrido e ido para o céu.
Ao jantar, no refeitório eduardiano — onde o patrão
de Caro às vezes anotava, com seu punho enérgico e saliente, os
anos dos vinhos ou os nomes de pratos, podendo também garatujar
o número de sua suíte no rótulo da garrafa de sherry —, havia um
trio que tocava em uma alcova tão discretamente, que mesmo
seleções ciganas se tornavam recatadas. Todas as noites, da entrée à
sobremesa, aquele trio composto de piano, violino e violoncelo
prosseguia triste e suavemente com Adelaide, Caprice viennois e o
Arabeske, de Schumann; ao café, eles reiniciavam, com uma seleção
de The land of smiles. Então, um punhado de hóspedes aplaudia,
funebremente.
A cadeira que Caro ocupava ficava de frente para a violoncelista —
uma mulher de uns trinta anos e com uma pele branca que, no peito
e nos pulsos, contrastava com o crepe preto das roupas, sugerindo o
palor do torso sob um vestido volumoso como o traje de uma freira.
Aquela mulher estava visivelmente passando de jovem madona a
devotada solteirona, em calma renúncia. De vez em quando, seus
olhos escuros encontravam os de Caro melancolicamente, com distinta ternura, parecendo firmar um elo. Como que declarando: Eu e
você não fazemos parte dessa luta enervante e degradante.
A cada noite, a suave confiança da violoncelista na disposição de
Caroline Bell para renunciar às suas reivindicações frente ao destino
lançava sua mortalha. Mais tarde, no quarto do hotel, a jovem se
contemplava ao espelho e tentava descobrir por que havia sido
escolhida como alma gêmea. Em certos estados de ânimo, uma
reação deprimida exibia a perspectiva de décadas solitárias, castas e
ineficazes. Em outras ocasiões, uma imagem vital e colorida no
espelho obliterava a pálida aquiescência da violoncelista e a ameaça
daquele corpo de cera, em seu escuro envoltório.)
Em certa manhã de primavera, ainda muito cedo, o telefone tocou
na mesa-de-cabeceira de Christian Thrale, e ele ficou sabendo que
seu pai sofrera um ataque cardíaco brando. Com perfeita
compostura, sua mãe forneceu detalhes, enquanto Grace se apoiava
em um cotovelo e uma criança despertada chamava do quarto
vizinho.
— Pegarei o das oito e vinte — disse Christian.
Sefton Thrale jazia em um leito de hospital, em Winchester. Sua
firme expressão empalidecera, o maxilar entalhado era um queixo
barbado, a respiração, um trabalhoso suspiro. Aos pés da cama, a
esposa ouvia um médico dizer:
— Há um leve comprometimento.
Era como se o doente fosse um objeto avariado em uma loja, com o
valor agora diminuído. Havia um anteparo na beira da cama,
semelhante a uma pequena cancela. Ele viu o teto, o biombo branco;
sobre uma mesa, uma tintura vermelha de anémona.
Charmian aproximou-se e colocou a mão sobre a dele.
— Você vai ficar bom — disse.
Os olhos dele fizeram um esforço, era uma criança amedrontada,
tentando ser corajosa. O ímpeto da existência enfraquecera, e ele
podia estar indicando que, afinal, tudo aquilo tinha sido uma
impostura.
— Christian logo estará aqui — disse ela novamente. Ele sabia quem
era Christian, mas o nome o atingiu
como uma estranha escolha. Lembrava-se de todos indistintamente
— um borrão de Christian, Grace, Tertia e muitos outros, de quem
sua esposa era o representante autorizado. Todos eles tão
afortunados, comparados a isto.
O homem rico em seu castelo, o pobre em seu portão.
Quando ele acordou da vez seguinte, Christian já chegara. Sefton
Thrale recordava que aquilo lhe fora prometido e ficou confiante
por sua capacidade de poder lembrar-se.
— Eu sabia que você. . . — começou, terminando em uma longa
exalação — ia chegar.
Não obstante, Christian entendeu que seu pai pretendera dizer "eu
sabia que você viria", e ficou comovido.
A esposa dele permaneceu aos pés da cama e lhe tocou
delicadamente o contorno dos pés, para em seguida cobri-los com
uma colcha.
Nos dias e semanas seguintes, o velho que ele agora definitivamente
se tornara recuperou-se bastante, fez progressos com a terapia e
começou a distinguir, entre as enfermeiras, aquelas que apreciava e
as que detestava. Quando os médicos chegavam, ele expunha
pequenas críticas e algumas queixas. Como uma bola lançada a
grande altura, deu seus últimos e reduzidos giros.
Em função de sua própria fraqueza, ou para compensá-la, ele
começou a notar sinais de envelhecimento em Christian — ombros
encurvados, indícios de um ventre que se avolumava, e um gesto
que desenvolvera, de passar a mão pelo rosto e pela testa, como se
afastasse uma teia de aranha.
Sefton Thrale ignorava por que tais detalhes o deixavam satisfeito,
mas os observava com indiferente auto-indulgencia, não se
esforçando em ignorá-los ou achá-los tocantes. Os médicos tinham
dito que tudo quanto o divertisse lhe faria bem.
Na época de Pentecostes, ele já conseguia escrever uma nota
ocasional aos amigos. Sua caligrafia, que sempre fora minúscula,
aumentara ante aquele primário florescer de realidade. Ele não
ponderava os próprios erros nem pensava nos inimigos com
tolerância: a esta altura, admitir qualidades em seus adversários
seria reconhecer o erro cometido em relação a eles.
No verão, permitiram-lhe que voltasse para casa, e, em Peverel, foi
contratada uma enfermeira para acompanhá-lo à noite. Foi ela que o
encontrou morto, em certa manhã de setembro, quando ele parecia
ter superado a fase crítica. Os obituários não foram tão extensos
quanto poderiam ter sido, mas houve um notável funeral e, de
Londres, chegaram pessoas de trem para acompanhá-lo. A
cerimônia, como uma boa baldeação, esperou pela chegada do trem.
Houve música, houve flores. A congregação ficou de pé, ajoelhou-se
e cantou. Um diminuto e jovem ministro atraiu uma razoável dose
de atenção com um texto dos Gálatas, bem como dos inevitáveis
Coríntios. Durante outras partes do ritual, observou-se que o arco
do coro pertencia ao final do período normando, um exemplo
primitivo na Inglaterra, e também foi notada uma nota de lavagem
a seco ainda pregada ao casaco de um empregado que indicava os
lugares na igreja.
A mãe de Tertia, com alguns anos de viuvez, sentou-se na parte
central de um banco de frente: o cinzento torreão de seu chapéu
com véu parecia lanternas de alguma solene abadia ou catedral.
— "Mesmo assim, nós, quando crianças, estivemos em servidão, sob
os elementos do mundo."
Com esse texto, a vida de um cientista foi engenhosamente
panegirizada, enquanto Grace Thrale evocava, sonhadora, a
servidão infantil de incêndios nas matas, secas, o Murrumbidgee
inundado e o frio vento do sul fustigando Sydney, após um dia
escaldante. Ela segurava a mão enluvada da sogra, sabendo que
Charmian Thrale lhe permitia fazer isso por civilidade e também
para não parecer ingrata. No entanto, aquilo poderia dar uma idéia
de condescendência, inclusive ser uma forma de mostrar que o
equilíbrio afinal fora rompido. Grace pensou em Sefton Thrale com
leniência; seu sogro havia sido afável com ela, na medida em que o
temperamento dele o permitia.
Ultimamente, Grace via seu filho pequenino — Hugh, o segundo —
pegar a bengala do avô, quando o velho se sentava debilmente em
sua poltrona, para girá-la, balançá-la ou atirá-la, em inocente
brincadeira. Uma pontada de remorso era dirigida mais a si mesma
ou à humanidade que a Sefton Thrale, desaparecido tão
abruptamente.
Agora ele estava com seu amor, em sua fria sepultura.
Na extremidade do banco, pressionada contra uma multidão em
torno de um pilar, Caro ficara recordando Robert Browning:
"Há um grande texto nos Gálatas, Que, se nele tropeçarmos,
ocasiona Vinte e nove diferentes condenações, Uma garantida, se
falhar a outra".
Tais condenações eram distintamente dadas como adultério,
fornicação, luxúria e semelhantes, e ela havia praticado todas. Era
uma curiosidade, quase um pensamento indolente, saber-se tão
grande pecadora. A perdição carecia de peso, comparada à
laceração do amor perdido. Ao lado disso, a morte de um velho era
mera distração. Ela premiu a face contra o arenito gelado, como
fizera certa vez na infância, inclinada para uma placa de faiança, em
egoísta desolação, sem saber que a mudança estava ao seu alcance.
"Existem também corpos celestes e corpos terrestres: mas a glória
dos celestes é uma, e outra, a glória dos terrestres. Há uma glória do
sol, e outra glória da lua, e outra glória das estrelas: porque uma
estrela difere em glória de outra estrela."
A congregação levantou-se pela última vez, e Sefton Thrale havia
superado o pior, para sempre: sua mortalidade tudo mitigava, pelo
menos por algum tempo. Pobre velho! As críticas de Ted Tice agora
pareciam demasiado exigentes. A morte podia colocar facilmente os
vivos em erro, por mais corretos que eles fossem.
As costas de Christian eram as costas do homem que assume
seriamente sua responsabilidade. Em louvável controle, era também
visto por seu louvável esforço: já, na postura e no jeito, deixara de
ser um filho.
O professor Thrale deixou uma herança maior do que qualquer um
teria previsto. Embora sua viúva tivesse ficado com o usufruto de
Peverel enquanto vivesse, além de um rendimento adequado,
virtualmente tudo foi legado a Christian, que, dessa forma, ficou em
excelente situação financeira. Explicando o testamento a Grace, ele
disse:
— Acho que devemos conservá-lo para nós.
Christian aludia ao conteúdo legal, mas poderia ter sido
interpretado mais explicitamente.
Terceira parte
O Novo Mundo
23
Por toda Londres as jovens se levantavam. Vestiam pijamas
listrados, floridas camisolas Viyella, camisas de algodão, que elas
mesmas costuravam e embainhavam confusamente, ou de puro
náilon, a que fora acrescentado um velho cardigã para aumentar o
calor. Eram jovens que empurravam as cobertas da cama para um
lado e buscavam os chinelos. Atavam o cinto dos robes e enfiavam
grampos nos cabelos, introduziam a moeda no medidor e
colocavam a chaleira sobre o bico de gás. As que moravam juntas
empurravam-se umas às outras para fora do caminho, dizendo: "E
ainda é terça-feira". As que moravam sozinhas bocejavam e ligavam
o rádio ou a televisão. Algumas diziam preces; uma cantava.
Seria difícil dizer o que elas possuíam menos — passado, presente
ou futuro. Seria difícil dizer como ou por que suportavam aquilo, o
quarto gelado, a caminhada na chuva até o ônibus, o escritório onde
não tinham perspectivas e nenhum divertimento. Fins de semana
lavando o cabelo e roupas de baixo, indo ao cinema em pares
melancólicos. Para algumas, aquelas que, em outras circunstâncias,
jamais fariam aquilo, era o seu destino, decretado por mamãe, papai
e uma falta de fundos ou de sentido empreendedor. Outras tinham
vindo do fim do mundo para fazê-lo — haviam chegado de
Auckland, Karachi, ou Jo'burg, tendo economizado durante anos
apenas para tal finalidade, tendo espremido ou bajulado os pais de
rostos marcados pelas lágrimas, para conseguirem algum dinheiro.
Nem todas eram muito novas, mas todas — ou quase todas —
ambicionavam um vestido novo, um namorado e a vida doméstica
subseqüente. Entretanto, nem duas delas eram idênticas, o que
significava uma vitória da natureza sobre as ciências de
condicionamento, publicitárias e de comportamento — nenhum
triunfo, mas uma conquista contra as probabilidades.
Naquele Ano-Novo, Caroline Bell estava entre as mulheres que
despertavam.
Caro tinha sido aprovada em outro concurso e se mudara para
outro apartamento, onde havia tetos altos e correntes de ar devido
às grandes janelas. Ao saber do endereço, Christian comentara:
— Eu não sabia que houvesse algo barato por ali.
— Fica em cima de uma loja — explicara Caro, para tranqüilizá-lo.
Pela primeira vez, ela possuía uma mesa e duas cadeiras que lhe
pertenciam, bem como um tapete indiano cor de ouro.
De manhã, ela estava fechando uma das janelas, puxara-a para
baixo e pousava as duas mãos nos fechos. No peitoril interno havia
um salpico de fuligem e pingos de tinta branca. Um galho florido de
marmeleiro, trazido por Ted Tice na semana anterior, fora posto em
um vaso de vidro. Caro permanecia de pé à sua janela do segundo
andar, vestindo um robe verde e pensando nas mulheres, das quais
era uma — aquelas mulheres despertas, mas ainda sonolentas, que
se levantavam por toda Londres.
Do outro lado da rua, um homem na calçada ergueu os olhos para
ela; olhava da mesma forma rápida e fixa que ela espiava para
baixo. Ele parecia ter atingido seu destino, e poderia ser uma
personagem de algum conto de espionagem, montando guarda a
uma casa fatídica: um homem corpulento, alto, imóvel em seu
abrigo azul-escuro, de pé, com uma bengala negra, os pés afastados
e a cabeça descoberta erguida, de cabelos escuros, confiante em que
a casa — ou o mundo — se renderiam ao cerco.
Caro se inclinou, ele olhou. Não era grande a distância entre o corpo
arqueado dela e o daquele homem inexorável. Os olhos de ambos
encontraram-se, como poderia ter acontecido em um aposento.
Houve uma imobilidade momentânea e complexa, até que, com
uma mostra de normalidade, Caro ergueu as mãos e rompeu o
feitiço.
Ele fez uma mesura graciosa, como se fosse originário de alguma
nação galante, a França ou a Itália. Reiniciaram seus movimentos
interrompidos, cruzando ruas ou aposentos. Os pés descalços de
Caro sobre o tapete amarelo, seus dedos finos tirando um vestido
de um cabide; a mão larga do homem erguida para um táxi.
Todas as jovens de Londres estavam arrepiadas, esperando o
ônibus. Algumas haviam tricotado agasalhos de lã marrom que não
lhes assentavam, com luvas da mesma cor piores ainda. Outras
seguravam um ovo cozido, ainda quente, dentro da luva — para
esquentar a mão e ser comido frio na hora do almoço, no lavatório
das mulheres. Àquela hora, Londres inteira estremecia, esperando o
ônibus.
No escritório de Caro, nesse dia havia uma delegação da América
do Sul. Quatro exilados tinham ido interceder por seus
companheiros aprisionados: que uma mensagem do governo fosse
enviada, apenas uma mensagem, propondo clemência. Pedidos de
tal natureza não eram incomuns, quando havia execuções
programadas em outras terras. O incomum era que a mensagem
fosse despachada.
Desta feita, havia quatro solicitantes — ou peticionários
— e um homem dos Estados Unidos, que lhes respaldava a causa.
Apenas eles cinco e Caro foram pontuais na sala de reuniões. O
inverno do norte esbatia as faces de verão dos quatro exilados como
lívida doença; sem traços característicos, eles eram os mais sujeitos
àquela atual contingência. Mais tarde, poderiam tornar-se diferentes
pela eloqüência, mas agora permaneciam como um amálgama, uma
equipe. Suas roupas eram demasiado leves e excessivamente coloridas, muito americanas, para lhes serem favoráveis ali. Apenas o
homem de Nova York estava bem-vestido, com um abrigo azulescuro aberto sobre um bom terno de flanela.
Era o homem da calçada da Mount Street.
Ele cruzou a sala para deixar o abrigo e a bengala em uma cadeira
vazia. Disse a Caro:
— Esperemos que seja um bom augúrio.
De novo, ele mostrava uma graça natural, embora não de uma
graciosa nação.
Oito homens iam ser enforcados. Ou fuzilados, não estava bem
claro. Dois funcionários agora entravam na sala, com seu ar de
meticulosa benevolência, pressagiando recusa. Para sermos
absolutamente francos, não achamos que a intervenção do governo
de Sua Majestade pudesse ser útil. Por outro lado, temos que levar
em consideração a longa e singularmente íntima cooperação entre
nossas duas nações.
O americano declarou que justamente aí residia a questão. Era o
porta-voz, um homem público que criara algo
— talvez uma fundação ou uma orquestra, um museu, podendo
ainda ser tudo isso. Residira durante algum tempo no país latino em
pauta e, recentemente, fora aconselhado por via oficial a não voltar
para lá.
Deram-lhe atenção porque era rico e não provinha de
um país turbulento como o dos outros peticionários — ou os
próprios auditores. Em vista disso, mostraram-lhe consideração,
embora ficasse claro que ele não tinha autoridade. Quando
descreveu certas torturas, os dois funcionários ficaram
desconcertados, retraídos e fascinados, como se estivessem
discutindo o ato do amor em público. Os quatro companheiros do
indivíduo começaram a tornar-se discerníveis, novamente coloridos
pelo sentimento: velhas fotos em sépia, cujo brilho pouco natural
havia sido aplicado externamente. Um deles era baixo e atarracado.
Outro, exaurido e idoso — inclinado para diante a fim de oscilar o
corpo, como se sentisse dor. O terceiro apresentava feições andinas
fortemente coradas e dentes em mau estado, inferiorizados por um
pequeno molar de ouro. O quarto, que era alto e bem-apessoado,
tinha cabelos crespos e arruivados, com as densas sardas de uma
extravagante pigmentação. Seus compatriotas se voltavam para ele,
tornando-o um líder.
Esse homem sardento possuía vastas propriedades —■ lavouras e
pastagens. Em seu caso, uma possibilidade de interesse próprio
confortava seus ouvintes funcionários, introduzindo um elemento
de racionalidade. Ted Tice observara certa vez que um ato
independente de humanidade é o que menos a sociedade se pode
permitir.
A distinção naqueles homens era o fato de pedirem em benefício de
outros. Isso lhes emprestava uma autoridade que as autoridades
jamais teriam. Aquele que se inclinava para diante tinha um enorme
e cintilante alfinete na gravata florida e seus dedos alisavam aquela
espécie de amuleto. Entre os lábios, com um cigarro apagado, havia
um lápis. Os dois olhos apresentavam uma secreção remelosa, como
um velho cão.
Caro sabia que não havia solução para aquilo. Já ouvira na véspera:
é algo inteiramente fora de questão, permitiremos que eles se
apresentem, não haverá um fim para isso se interferirmos em
assuntos internos, uma interferência provocará mais mal do que
bem. Houvera ainda um telefonema para Washington, que resultara
na resposta: "Contraproducente".
— Qualquer perda de vida é sempre algo a ser lamentado. Se pelo
menos estivéssemos em condições de ajudar. . . Sou franco em
dizer-lhes que lamento muito sua situação, muitíssimo. Falo de um
ponto de vista estritamente pessoal. Não obstante, devo indicar-lhes
que, quanto às acusações existentes de abusos físicos, naturalmente
nada pode ser verificado.
— Mesmo se apresentarmos um homem sem os testículos?
— Não irá convencer-me perdendo a calma, sr. Vail. O americano
estava tranqüilo.
— Não tem o direito de censurar-me. E eu tenho o direito de ficar
aborrecido.
Ele tornara presente algo mais que orador e ouvinte; algo mais que
meros homens.
E se as famílias dos condenados fizessem um apelo pessoal?
Infelizmente, o parecer era de que isso não faria a menor diferença.
Não correra a notícia de que o papa. . . ?
Evidentemente, aquela era uma opção que Sua Santidade poderia
escolher. Não recebemos qualquer indicação em tal sentido.
Soubemos que o secretário-geral das Nações Unidas cogitava numa
intercessão.
— Sem dúvida, vocês estão brincando.
Um silêncio, exato e jurídico, estabeleceu que a sentença havia sido
pronunciada. Você será conduzido deste tribunal a um local de
execução. O latino que se inclinava tornou a sentar-se, como que se
recuperando de um desmaio ou tontura, e a impressão de uma
convulsão era reforçada por uma seca nódoa branca em cada canto
da boca e pelo lápis alojado entre os dentes. O peticionário
atarracado tinha o rosto na claridade, o que tornava visíveis marcas
de varíola e vasos capilares. Os quatro se tornaram inexpressivos no
silêncio irresistível. E a manhã terminara.
Os quatro exilados partiam para outro último e desesperançado
encontro. A realidade deles intensificava-se com a derrota,
destacando-os conclusivamente dos dois funcionários fictícios que
os tinham recebido. Marcas variólicas e alfinetes de gravata
cintilantes haviam sido investidos com certa grandeza ou, pelo
menos, reservavam-se para uma exposição de maior importância.
Ao escoltá-los até a saída, um funcionário confidenciou, em voz
baixa.
— Eu desejaria ser Deus.
Pronunciou frases semelhantes, para depois, no lavatório dos
homens, lavar as mãos e enxugá-las em uma toalha de papel.
O homem de Nova York foi detido por um funcionário superior:
— Tenho certeza de que houve um entendimento à hora do almoço.
— Um desentendimento, então.
Desta feita, a consternação foi real. O almoço fora na companhia de
um membro do gabinete.
— Se quiserem ter a gentileza de esperar, enquanto dou um
telefonema. . . Por favor.
Os peticionários não haviam suplicado pela vida de seus mártires
com tanta despreocupação. Não, infelizmente ele estava atrasado
para outro compromisso, e foi embora.
Os documentos tinham que ser guardados em uma pasta vermelha,
e Caro foi indicada para isso. Ficou também subentendido que
deixaria a sala em ordem, com seu instinto de dona-de-casa, que,
aliás, nela era mínimo. Caro ficou de pé junto à mesa, com as mãos
úmidas apoiadas em sua superfície, e teria soluçado ruidosamente,
se não fosse o inextirpável receio das atitudes grotescas de Dora.
Naquele lugar, a incriminação e a infelicidade próprias de uma
velha solteirona cresciam nela; estar sempre ansiando por algum
acesso de decência que jamais ocorreria naquele contexto
assemelhava-se a uma frustração sexual. O fato de seus pensamentos acompanharem quatro homens pouco simpáticos em uma
rua fria era uma quebra de contrato com aquele lugar, da mesma
forma que aconteceria com um soldado em luta que demonstrasse
uma afeição pessoal e inofensiva pelos que combatem em linhas
opostas. Havia regras de combate, pelas quais a vitória era dos que
podiam apresentar-se sem nenhuma angústia na realização.
— Esqueci isto aqui. Era a bengala do homem.
Ele deixou a porta maciça se fechar às suas costas, e ficaram os dois
frente a frente, na atitude do começo da manhã. O homem
caminhara um bom trecho, antes de dar por falta da bengala, e
trouxera ar fresco consigo. Embora tocando a face com os dedos,
Caro mal ficou envergonhada, porque o episódio matinal tinha sido
mais vergonhoso do que lágrimas.
O homem corpulento sentou-se na borda da mesa e o frio se evolou
de suas roupas de boa qualidade. As mãos amplas ficaram
pousadas nas coxas.
— Podemos ir a algum lugar, fora daqui? Estavam passando pelo
trânsito e o barulho de uma rua.
O restaurante ficava no andar de cima, havia um pub no térreo. Era
um lugar que sempre estava cheio, porque turistas vinham observar
o governo comendo. Está com sorte, senhor, tivemos uma
desistência. Ele poderia estar acostumado a sorte daquela espécie.
Sentaram-se junto à janela, em uma ligeira faixa de sol, e Caro
pensou: Agora ele me decepcionará. Agora ele dirá: Oh, também
posso ver o lado de vocês neste assunto.
— São uns pobres coitados — disse ele. Estendeu-lhe o cardápio,
que era uma folha estreita
datilografada. Toda a sala estava ocupada por homens, com exceção
de Caro.
— Quando é que morrerão? — perguntou ela, referindo-se aos
prisioneiros.
— Dentro de um ou dois meses.
— Quase pior foi o pânico sobre o almoço — disse Caro.
— Ou melhor.
Ele sorriu. O rosto de mastim tinha rugas nas pálpebras e na boca,
agora em descanso, mas que poderiam ser postas em uso. Seus
cabelos escuros, já ficando grisalhos, caíam soltos pela testa. O
corpo, demasiado grande e indolente para a cadeira pequenina, era
o de um homem ativo, que aprendera a esperar: uma incongruente
paciência que talvez preocupasse quem procurasse saber o que
poderia ser reprimido.
— Há homens que passam a vida dizendo a si mesmos que chegará
o momento em que demonstrarão de que são feitos — disse ele. —
Então, o momento chega e eles demonstram. E ficam o resto de seus
dias explicando que aquele não era o verdadeiro momento nem o
verdadeiro eu.
— Pelo menos, poderiam pensar quão cedo, historicamente, essas
coisas se retraem. Como meus colegas de hoje, por exemplo.
— 0 temperamento britânico, em particular, nunca foi de
especulação. No final, Arquimedes prosseguiu com seu teorema,
porém Drake continuou atirando bolas de madeira.
— Alguns homens — ou muitos deles — comentou ela — tanto têm
de Arquimedes como do soldado que o matou.
Ele lhe tomou o cardápio. Era um homem com pouco mais de
quarenta anos. Uma veia encordoava-se no dorso de sua mão.
Havia o relógio de pulso, um punho de camisa listrada, a manga de
flanela cinzenta. Ele a viu acompanhar tais detalhes, que Caro
ponderou tão cuidadosamente como se vestissem um braço
projetado de uma parede desmoronada: pistas para o indescoberto.
Chamava-se Adam Vail.
— Como é seu nome? — perguntou ele. — Já conheço seu endereço
— acrescentou, pronunciando a última palavra, "address", à maneira
americana.
Os dois funcionários da manhã tinham entrado, inevitavelmente, e
estavam comendo arenques miúdos.
— Eles a culparão, durante o almoço — disse Vail. Já se podia vê-los
fazendo isso, acima das fatias de
peixe fino. Não desejando acreditar em nenhum controle moral,
ficavam aliviados ao atribuírem algo impudico a alguém. Da
perspectiva do arenque, os braços de Vail em torno da borda da
mesa pareciam oferecer um abraço, no qual jazia Caro.
Aqueles dois homens estariam comentando que ela dormira com
ele, sendo capazes de anotar aquilo em uma ficha, para assim
acalmarem os próprios sentimentos. Cônscios da imaginada
intimidade lançada sobre ambos, ele e ela sorriram francamente, e
sua intimidade aumentou.
No hotel cujas extremidades de chaminés podiam ser vistas das
janelas de Caro, Adam Vail tinha dois grandes e sombrios
aposentos com pesadas cortinas. Na sala de estar havia jacintos
colocados em um espesso vaso redondo de vidro, sobre uma mesa
baixa, ao lado de um sofá semelhante a um zepelim de brocado.
Cartas jaziam empilhadas em uma secretária, juntamente com
catálogos de pinturas em cores lustrosas e um monte de embrulhos
ainda por serem abertos.
Uma tela, em moldura trabalhada, pendia entre as janelas.
— Um negociante de quadros espera que eu acabe gostando deste.
Você é a primeira a percebê-lo, pois todos o consideram parte do
mobiliário do hotel. Não estou bem certo se sua nota seria boa ou
ruim.
Postou-se junto a uma mesa sobre a qual havia copos e garrafas em
uma bandeja e ficou observando Caro se mover pelas sombras
dispendiosas do aposento. Viu a manga vermelho-escura acentuarse à luz da lâmpada e a corrente em torno de seu pescoço. Vail a
vira duas vezes, na janela e no escritório, solitária, familiar, mas não
resignada. Mentalmente, reencenou o momento em que erguera os
olhos para a janela, atraído pelo ramo florido no vaso.
Ela não possuía nenhum setor desocupado de sentimento objetivo.
Vail supôs que os homens achassem irritante ou formidável aquele
seu ar de quem aguarda algum evento solene, que talvez fosse
diverso do enfoque que imaginavam.
—
É um quadro sem expectativa — disse ele. Ao observá-la,
pensava como em certas grandes telas cada partícula de luz é usual,
rotineira, sendo um milagre ao mesmo tempo, o que nada mais é
senão a precisa verdade. Acrescentou: — Certas pinturas
transmitem a própria expectativa da vida.
Ponderou que a maioria dos homens dificilmente ousaria tocá-la, ou
apenas o faria com raiva, porque ela não simulava que coisa alguma
fosse casual. Em decorrência de tal idéia, era pouco lisonjeiro o que,
aparentemente, ela desejava pôr de lado.
Ele despejou bebida nos copos e falou sobre o quadro. Entreabertos
na fala, seus lábios eram dessemelhantes: o inferior, protuberante e
conclusivo; o superior, fino, delicado e ponderado, a ponto de
sugerir fraqueza. O que, sem dúvida, era melhor que o contrário.
Caro Bell sentou-se no estofado adamascado, segurando um copo
de vodca, com o homem Vail a seu lado. Os dois estavam com os
pés espichados na direção das flores e da mesinha baixa, em
calçados de idêntico e fino couro marrom. Era de notar que ambos
tinham excelentes calçados.
— De que está rindo?
— Da democracia dos sapatos.
A lâmpada desenhava pregas aveludadas na manga e no colo de
Caro. Através da porta, a luz baixa mostrava chinelos alinhados
sobre um pequeno tapete branco. Haveria um lençol
cuidadosamente dobrado para trás, um bom robe à espera sobre a
colcha, livros novos ao lado de uma cama: tudo isso uma forma de
liberdade, desde que ele assim o quisesse. Mesmo quando Vail
girava o corpo para pegar um lenço ou apanhar cigarros, era um
movimento não-inglês, que sugeria energias, opiniões, conceitos,
afinidades e panoramas novos. Nele havia uma alteração de tempo,
o reacertar de um relógio mental. Tudo o mais era aquele tempo de
ontem.
Em breve, ele e ela desceriam para o jantar, como hóspedes de uma
casa de campo. Ele sugeriu que no domingo dessem um passeio de
carro, caso ela estivesse livre.
— Um giro, como vocês costumam dizer, não? Acha
que me sairei bem, dirigindo pelo lado errado destas estradas?
— Claro que sim. E ninguém mais diz "giro", há anos. Exceto,
possivelmente, Sefton Thrale. Ela concordou
— gostaria de visitar Fens. Havia muito desejava fazê-lo.
O vaso de flores estava sobre um telegrama aberto em cima da
mesa. Através da água, o texto impresso aumentava, amplificado
desequilibradamente: "E EXECUÇÂO INEVÍ-tável", como uma lição de
declamação.
— Letras pequenas ficam maiores, se vistas através de um vaso com
água — disse Adam Vail. — Foi Séneca quem descobriu isso. Um
conceito básico da óptica. — Acrescentou: — Séneca está repleto de
boas coisas.
Pegou o vaso pela borda e o afastou. As letras recuperaram sua
insignificância: insetos impotentes, que haviam aterrorizado
quando sob um microscópio.
Havia a foto de uma adolescente na cômoda de Vail, no hotel.
— É minha filha — explicou ele. Notava-se a semelhança entre
ambos, porém não se davam bem. — Josie me responsabiliza pela
morte da mãe. A acusação geralmente toma outros rumos com a
idade. Pelo menos, assim espero.
— Em uma carteira, havia a foto de uma mulher magra, vestindo
calças compridas e uma blusa de malha. — Minha mulher suicidouse. Minha mulher tirou a própria vida — acrescentou, como em uma
rima1.
— Sente-se culpado?
— Ela vivia dizendo isso, quero dizer, que morreria. Teve todo tipo
de tratamento. Finalmente, tornou-se difícil saber como manejar a
situação.
Como Dora: Eu sempre posso morrer, acabarei morrendo.
— Ambos os lados saem perdendo — comentou Caro.
— Teve alguma pessoa chegada, nesse mesmo caso?
— perguntou ele.
Certa vez, ele dissera que possivelmente seria comentado que os
dois se viam.
1
No original: "My wife took her life". (N. da T.)
— De qualquer modo, farei com que não seja prejudicada, em
nenhum sentido.
— Quem nos vigiaria?
— Meus conterrâneos e os seus. Porque hoje em dia um homem
sem qualquer interesse pessoal é considerado um revolucionário.
— Você simplesmente se manteve fiel aos princípios proclamados
por eles.
— Aí está o que significa uma moderna revolução.
— Naquela primeira manhã, quando você estava na rua, parecia
uma figura de contos de espionagem.
— Se puderem, eles transformam tudo em contos de espionagem.
— Por que precisa de bengala? — quis saber ela.
— Tenho o hábito de levá-la quando vou a lugares perigosos.
Vail estendeu-lhe a bengala e o seu peso surpreendeu Caro, como
um opinião inesperada. Ele a tomou de volta e pressionou o punho,
a fim de mostrar a lâmina.
Então, aquele homem de paz saía armado com uma espada!
Havia a foto de uma casa caiada, luzindo ao sol: limoeiros e
vinhedos. À distância, uma cidade branca, manchada pela pobreza
e pelo tempo.
— As ilhas Lipari.
— Oh, então é assim que se pronuncia. . .
— Quando Josie era pequena, chamava-as de ilhas Slippery1. — Ele
recolocou a foto no lugar. — Você verá as ilhas. — Depois
perguntou: — Há mais alguém que a ame?
—Está com sorte, senhor. Houve uma desistência. Nada teria sido
mais sedutor ou imprevidente que a
receptividade daquele homem, sua generosidade de espírito: farei
com que não seja prejudicada, em nenhum sentido; talvez algum
conhecido seu tenha passado por isso; você verá as ilhas.
Aquela era uma noite de extraordinário silêncio.
1"Ilhas
Movediças", em inglês. (N. do E.)
—Que horas são?
Caro tinha um relógio ao lado de sua cama.
— Quase quatro.
— Então, eles já se foram.
No dia seguinte, haveria um breve parágrafo, em uma folha interna
de jornal: EXECUÇÕES LEVADAS A EFEITO.
Caro deixou a cabeça cair no ombro de Vail e respirou fundo, para
que seu seio pudesse encher a palma dele.
— O que você pensava — perguntou ela —, naquela primeira
manhã, na rua?
— Previa tudo, menos você.
24
Christian Thrale acreditava-se possuidor de uma sensibilidade
especial, no tocante a pinturas. Nas galerias em que a arte havia
sido sabiamente institucionalizada, ele caminhava e fazia pausas,
como todos os demais, porém acreditando que tinha um olhar mais
penetrante que os outros. Então, quando eles seguiam em frente, ele
continuava parado, visivelmente absorvido além do que seria
normal.
Ele também considerava que havia uma maneira inglesa de apreciar
obras de arte (e nisso estava absolutamente certo). Não comentava o
fato, mas o sentia. Termos como "a Vénus Rokeby", "o vaso
Portland" ou "os mármores Elgin" para ele tinham mais sentido que
o significado passageiro de propriedade. Eles sumarizavam uma
custódia adequada e pareciam estabelecer uma situação desejável.
Christian não dava muita importância a coleções particulares,
exceto quando a magnitude as tornava impessoais. Embora se
sentisse mais feliz — ou mais seguro — nos grandes museus, de vez
em quando comparecia, como costumava dizer, a uma exposição de
empréstimo, mas isso era raro. Quando — recusando o catálogo —
ele entrou nas salas atapetadas de uma galeria privada, em um
sábado de frio cortante, estava fugindo a um hábito, do mesmo
modo como tinha, no Albert Hall, oito anos antes, atraído Grace
para sua órbita e modificado várias vidas. Novamente se tratava de
uma questão de trabalho num fim de semana, a visão de um poster,
e ele sozinho. Agora, o próprio poster tinha sido intitulado
Retrospectiva. Uma lembrança vaga de tudo isso lhe passou pela
mente quando avistou Caro, cuja súbita materialização tanto teve de
surpreendente quanto de inevitável.
Caro continuava ali dentro com seu casaco vermelho e estava com
as mãos frias enfiadas nas mangas. O cabelo
lhe pendia até os ombros, em indecorosas madeixas e anéis negros,
os lábios estavam pintados de escarlate. Sustentava o peso do corpo
em um dos pés, como uma dançarina em posição, e atrás dela se
postava um homem alto e forte que, a julgar pela estabilidade,
poderia ser seu acompanhante. (Por algum tempo após o evento, a
recordação de Christian produziria a imagem de Caro, em pé
daquela maneira, com o homem Vail às suas costas, pronto para
erguê-la.) Na tela diante deles surgiam as cabeças de duas
mulheres, ardentes, uma encarando a outra, mas não à mesma
altura.
— Pois é isto, então — dizia Adam Vail, naquele momento.
Ele emprestara o quadro, que era propriedade sua. Christian os
observava do outro lado da sala. Permaneceu paralisado, tolhido
pela imobilidade deles. Quando se moveram, também ele foi
liberado e se moveu na direção dos dois.
Adam Vail inclinou-se para diante, a fim de ver o quadro.
— Acho que lascaram a moldura.
Enfiou a mão no bolso superior, procurando os óculos. Havia gesso
nos pontos em que deveria existir dourado. Vail pousou o indicador
no lugar e imediatamente aproximou-se um empregado.
— Por favor, senhor, não é permitido tocar nos trabalhos. —
Quando Vail recuou, ele acrescentou: — Desculpe-me, senhor, mas
é assim que acontecem acidentes.
Ao vê-los novamente sozinhos e sorrindo, Christian chegou mais
perto. Então, sentiu-se em desvantagem. Geralmente, via Caro em
sua própria casa, onde ele ocupava
— não querendo aprimorar demais a descrição — o assento do
motorista. Agora, antes mesmo de abrir a boca para falar, foi
tomado de uma sensação de intrusão ou irrelevância. Perguntou-se
se isso se devia apenas ao ato da abordagem, não querendo atribuílo ao poder da beleza de Caro naquela manhã.
Em um esforço para estabelecer o domínio, beijou Caro
— o que não era tão necessário, e ele sentiu que isso não passara
despercebido a ela.
O fato de que o homem que estava com ela fosse americano
tampouco proporcionou a costumeira vantagem. Vail não falava
ruidosa ou didaticamente sobre si mesmo, nem fazia gestos
deselegantes, mesmo quando provocado. Tal compostura de fala e
mãos alertou Christian contra qualquer usual limitação de sua
postura em conversa: a honestidade de Vail receberia transparência
em retribuição, a qualquer preço para aquele que lhe respondia. Por
tudo isso, cresceu nele uma necessidade de expandir-se, ao evocar
uma recordação de Caro, anos antes, quando ela o compelira a
mostrar-se à altura de um de seus momentos: em realidade,
acontecera em uma tarde de verão, quando ele levara flores
amarelas para Grace.
Agora, os três estavam voltados para a pintura, e em pouco
Christian se absorvia inteiramente, como era seu hábito, indo além
do normal. Caro ia falar, quando ele disse — e a frase foi contrária
ao melhor julgamento dele:
— Claro, vocês jamais conseguirão fazer-me gostar desta série.
Evidentemente, eles nem haviam tentado. Após um momento,
Christian acrescentou:
— Esta peça tem autoridade.
Sabia ter dito "autoridade" porque o americano lhe trouxera essa
palavra à mente. Havia outros americanos na galeria, elevando
vozes dogmáticas, perambulando e fendendo o ar com mãos
desconfiadas, as feições contorcidas por uma imprudente
veemência. Contudo, tal não era o caso deste outro, que nem
mesmo o aceitara como antagonista. Christian agora recordava ter
ouvido o nome de Adam Vail e sentiu uma rápida, injustificada
angústia, como se Caro houvesse levado a melhor sobre ele.
Lembrou-se de um artigo de revista onde Vail, ao lhe perguntarem
se se julgava um homem-mistério, respondera: "Não mais nem
menos do que qualquer outro".
A apresentação no catálogo da exposição havia sido escrita por um
crítico de peso — ou importante, ou brilhante. Caro leu uma frase e
perguntou:
— O que significa?
Vail olhou por sobre o ombro dela.
— Eles acham que, pensando bem, tiveram algo a ver com a pintura
dos quadros.
Os três vagaram pelas salas, mais ou menos juntos. Christian não
emitiu mais opiniões, mas tentou uma série de pensamentos
bombásticos: Enfim, eis como é a terra, do jeito que o vento sopra.
Ele vira a maneira de Vail olhar por sobre o ombro de Caro, com o
corpo não chegando a tocar o dela: lã cinza separada da vermelha
por uma vibração. Após algum tempo, Christian disse que
precisava ir embora e os deixou, dando em Caro um outro beijo
brusco e fora de propósito.
Caminhou para casa perturbado por uma sensação — aguda mas
assim mesmo forte — próxima ao desapontamento. Possivelmente
tinha imaginado a cunhada talhada para alguma catástrofe que
justificasse ou redimisse a cautelosa ordem da existência dele —
uma culminação, inclusive trágica, que somente ela parecia apta a
provocar. Ou talvez ele houvesse desejado, para o máximo bem
comum, vê-la afundar em insípida domesticidade como outras
mulheres, mergulhar nisso como as donas-de-casa mergulham,
exaustas, em poltronas, ao anoitecer. Christian detestava a idéia de
que ela e Vail fossem amantes, menos pela imaginada carnalidade
do que por Vail ser um homem de personalidade, resoluto e rico. A
satisfação de Christian em dispensar compaixão a Caro provinha
diretamente da necessidade, da pobreza dela. Não existia nenhum
poder agora em deixar Caro agir bem e alegremente, por si mesma.
Como um luxo, ele se permitiu um pensamento honesto: eu poderia
tê-la ajudado.
Em casa, Christian ocupou a poltrona habitual. E seu filho menor o
escalou como se ele fosse um brinquedo qualquer no playground.
Certo dia de maio, Caroline Bell solicitou uma hora extra para o
almoço e foi atendida. Quando voltou ao escritório, soube no
corredor, pelo sr. Bostock, que Valda se recusara a preparar chá ou
fazer sanduíches, fosse na hora do chá ou em qualquer outra.
Quando Caro entrou no gabinete do sr. Leadbetter, ele lhe pediu
que fechasse a porta. Abandonando a esferográfica em cima da
mesa, Leadbetter deu a entender que o assunto era pessoal. Em
verdade, ele apanhara a caneta de plástico apenas para fazer o gesto
de deixá-la a um lado. Entrelaçou as mãos.
— Talvez possa esclarecer-me, srta. Bell. — Apertou os dedos
afastados e então os fechou, como se fosse jogar cama-de-gato. — A
srta. Fenchurch tem alguma queixa?
— Ela não gosta de servir. É uma imposição.
— E isso não é algo absurdo? O fornecimento de. . . ah. . . víveres
como parte aceita de suas funções?
— Por quem foi aceita?
— Por cada mulher aqui dentro, exceto a srta. Fenchurch e, agora
percebo, também a senhorita. Se houvesse um descontentamento
mais amplo, todas as moças o teriam manifestado. Em geral.
— E, em geral, a maioria das pessoas necessita que lhes apontem
seus motivos de descontentamento. Comumente, no início apenas
uma pessoa faz isso.
Conforme contou a sua esposa nessa noite, o sr. Lead-better poucas
vezes ficara tão vexado.
— E não acha que essa é uma atitude desprezível e egoísta? Afinal
de contas, os homens deste departamento desistem da hora do
almoço e permanecem em suas mesas, para um trabalho extra. Às
moças, apenas pedimos — ordenamos — que os ajudem a cumprir
tarefas extraordinárias pesadas.
— Os homens nada fazem que diminua seu amor-próprio. Ficar em
suas mesas, pelo contrário, exalta esse amor-próprio.
— Noto que está extremamente defensiva.
Não tendo sido acostumado a tais maneiras de falar, Clive
Leadbetter as descobrira em anos recentes. Às vezes dizia
"extremamente defensivo", às vezes "extremamente agressivo" — o
que vinha a dar no mesmo. Igualmente, acusava: "Não estará sendo
um pouco positivo demais?" ou "Negativo demais?" — proposições
intercambiáveis e irrespondíveis, que nunca deixavam de
confundir. Ele não imaginava o que as pessoas queriam dizer,
quando falavam que o idioma estava em declínio.
— Mantenho a minha análise de sua atitude — disse Caro.
Os dedos libertados de Leadbetter caíram sobre o mata-borrão com
um tapa sincronizado.
— Não acha este incidente absolutamente grotesco, srta. Bell?
— Sei que qualquer adesão a um princípio pode ser chamada de
grotesca e mesmo forçada a parecer como tal. Pelo menos, por
algum tempo.
— Considera isto um princípio? Uma tempestade em uma xícara de
chá!
— Como disse o sr. Bostock, em um bule de chá. Ele agora estava
rubro, como metal incandescente. (Para
sua mulher, diria nessa noite: "Não me incomodo nem mesmo com
insultos, mas não tolerarei abusos verbais!")
—Uma vez que considera sua posição tão insatisfatória, srta. Bell,
talvez devesse considerar seriamente seu retorno à. . . ah. . . Nova
Zelândia.
Em uma longa pausa, ela o fez sentir sua força superior e o fato de
que a mantivera durante anos, vivendo de caridade.
— De fato, eu vim para entregar-lhe a minha demissão. A boca de
Leadbetter se abriu e fechou — como um
cavalo de freio.
— Posso perguntar-lhe os motivos?
— Vou me casar.
Então, ele a odiou — por sua liberdade, sua aparência e felicidade,
por aquele comentário sobre o bule de chá. A metralhadora
emperrou: as palavras não passaram de murmúrios balbuciados.
Não obstante, desde que ela só podia garantir sua liberdade pela
intervenção de um homem, ele sorriu finalmente e fez seu último
ataque:
— Eu já imaginava que algo assim estava para acontecer.
25
Grace Thrale estava saindo da Harrods através do departamento de
tapetes, que tinha o espaço e a solenidade de uma catedral. Havia
corredores formados entre as pilas-tras espaçadas do prédio, e
espessas fileiras de tapetes enrolados jaziam de pé ou deitados,
como colunas caídas em um templo. Tapetes Wilton empilhavam-se
sobre os Axminster, compondo plataformas florais. E Grace sorria,
embora não por causa daquilo.
— Grace! — Ted Tice emparelhou com ela, em um transepto
marroquino. — Veio fazer alguma queixa?
Ela estacou e parou de sorrir.
— Ted!
— Como vão os garotos? Ela tornou a sorrir.
— Terríveis. — Caminharam, tornaram a parar. — Vai ficar na
cidade por algum tempo?
— Apenas hoje. Preciso de alguns apetrechos para minha nova casa.
Estou vivendo sozinho. — Seu colarinho estava amarrotado e o
peitilho da camisa mostrava a marca ogival de um ferro de passar
desajeitado. Ele ergueu seu embrulho. — Acabei de comprar um
binóculo.
— Quer dizer que, de vez em quando, costuma olhar para a terra.
— Somente nos salões de concertos. — Ted estava jovial: Ela
contará a Caro que nos encontramos. — Telefonei para Caro, mas
ninguém atendeu.
Grace nunca o vira tão seguro de si, tão confiante. Talvez ele
pensasse que o tempo estava a seu favor. Ela ponderara tudo isso
em um segundo, enquanto falavam de seus filhos. Então, soube que
iria contar.
— Tem um minuto de folga, Ted? Vamos nos sentar um pouco.
A expressão dele imobilizou-se instantaneamente em apreensão,
devido ao sentido para más notícias desenvolvido na infância.
Grace sentou-se sobre uma coluna caída de lã cor de rubi. Ali perto,
uma paródia rosa-choque de tapete persa estava sendo desenrolada
por um vendedor, embora não para a prece.
— Ted. . . — Grace nunca usara tanto o seu nome. — Ela vai
escrever hoje para você.
Naquele instante, Grace mostrava certa semelhança com Caro, como
sempre quando os assuntos se tornavam sérios. Ted o percebia, pela
maneira de virar a cabeça e entrelaçar as mãos. Se pusesse os dedos
na nuca de Grace, sentiria os tendões proeminentes, como os de
Caro.
— Ela vai se casar — disse ele.
— Sente-se. — Era como uma anfitriã recebendo.
— Prefiro ficar de pé. — O herói vitoriano sobre o tapete, ou os
tapetes.
Um vendedor parou e começou a mostrar um de dois e setenta por
três e sessenta.
— Obrigada, estamos apenas olhando. Encarando-se, Grace e Ted
criavam uma tensão não
facilmente absorvida em meio a tapetes. Ele se limitou a perguntar:
— Quem?
— O nome dele é Adam Vail, um americano. — Grace conseguiu
uma trégua descrevendo Vail, como se nesse processo esperasse
deixar Ted Tice à vontade. Divagou: — Ele é cortês e interessante.
Muito forte, quero dizer, de caráter.
Isso atingiu Ted, mas, em realidade, Gracé fazia uma comparação
instintiva com seu marido, em termos de contraste.
— Sei quem é — respondeu Ted.
Ele pensou: Estou me portando bem, mas o fato é que a notícia
ainda não me penetrou. Grace balbuciou:
— Quarentão, muito simpático, virão à Inglaterra com freqüência.
O rosto de Ted Tice foi jovem pela última vez, como dizem que
acontece na morte.
— Quando será?
— Bem, logo, dentro de duas ou três semanas. A gente precisa
arrumar, eles precisam arrumar a documentação. Por não serem
ingleses, entende? A gente — eles — irão a Caxton Hall. Onde
casam estrangeiros. Dora tem que voltar, ela está em Malta, com sua
amiga Dot Cleaver.
Há uma filha, a filha de Adam, que virá de Nova York. Tem catorze
anos. Quinze.
Grace se perdia em mil detalhes e em pouco seria deixada
absolutamente só com a angústia de um homem. Um vendedor
passou por eles, acompanhado de um cliente.
— Nós temos em verde-pálido ou limão. Também podemos
conseguir em tangerina.
Aquele casal estava absorvido, eram duas criaturas felizes.
Caro teria sabido o que dizer: não a coisa certa, mas a verdadeira.
Ela teria dito a verdade ou manteria um silêncio franco. Ao aceitar
ser a meiga entre as irmãs, domesticada e tratável, Grace nem de
longe tivera a intenção de isolar-se. Gostava de ser meiga e de que
os outros a achassem meiga, mas acreditava que mantinha em
reserva uma generosidade ainda não aflorada, de complacência
mais difícil — o que agora teria que ser posto em uso. O sofrimento
de Ted não lhe passava despercebido. Em verdade, a imaginação de
Grace brincava ocasionalmente com tais assuntos, em algum
império austro-húngaro do coração. Entretanto, era-lhe impossível
despertar o verdadeiro instinto através do qual avaliaria o
sofrimento dele ou o confortaria. Então, de repente, receou que
pessoas meigas pudessem ser dotadas de pouca imaginação.
A qualquer dia do ano, Grace Thrale recebia o sorriso, quando na
rua, de algum casal de idade ou alguma jovem mãe guiando seu
ruidoso rebanho: saudada, por assim dizer, como um espírito de
natureza idêntica. Caroline Bell jamais atraía tão deleitosa
cumplicidade. Por vezes, Grace desejava que o mundo não se
mostrasse tão seguro a seu respeito, tão confiante de que o tédio a
reclamara. No entanto, em sua existência diária, ela temia o menor
desvio do hábito, como uma interrupção que poderia originar o
caos. Grace desejava a aventura não mais do que Dora desejava a
paz. Ela não se convencia, como acontece a algumas mulheres, de
que possuía capacidade para uma vida totalmente diversa, dirigida
por exaltadas e injuriosas paixões: Grace sabia perfeitamente como a
praticada conformidade de seus dias gratificava seus desejos
pessoais. Enfim, podemos aferrar-nos à segurança e, ainda assim,
achá-la tediosa. Em seu apelo inicial, a segurança oferecia um
excitamento que era quase romance, mas esse socorro poderia
desgastar-se, como qualquer outro.
À noite, guardando pratos e talheres, esta Grace ainda
dourada suspirava mentalmente para si mesma, vendo-se uma
dona-de-casa atarracada, com uma corcunda de viúva rica.
— Se quiser, podemos subir e tomar chá — sugeriu a Ted Tice.
No andar de cima do prédio, havia um lugar onde as mulheres se
sentavam entre seus embrulhos e podiam pedir chá com leite ou
limão.
— Grace, minha querida, você estava com pressa quando nos
encontramos. Permita-me descer com você.
Ted Tice via — mas isso era incidental para seu estado de espírito —
que Grace Thrale, antes sua tímida aliada, trocara de lado e o
rejeitara, substituindo-o pelo vencedor Vail. Ele queria sair daquela
ampla e indistinta solenidade, daqueles sarcásticos tapetes e das
perguntas mecânicas dos empregados. Grace levantou-se, e os dois
avançaram pelo departamento de luminárias, encaminhando-se
para a escada.
— Ou podemos conseguir em pele de cabra — bocejava um
vendedor, atrás deles.
Ted estava cônscio de um conjunto de veludo azul — não, apenas a
gola de veludo, sendo o restante de lã pintalgada, um conjunto que
tinha tudo a ver com a vida e os costumes de Grace, como a gótica
denúncia do ferro de engomar na camisa dele. Ted lhe identificava o
corpo, convulsionado duas vezes pela maternidade e novamente
refeito, bem adaptado como aquele conjunto de lã, heroicamente
normal. Também ele mantinha o movimento e o equilíbrio, embora
rasgado em pedaços; até dissera, delicadamente: "Minha querida".
No andar térreo, passaram pelos fardos de tecidos que agora as
mulheres não usavam mais — georgette, crepe grosso, seda chinesa.
Havia um cheiro seco e sério de material que devia ser medido,
cortado e costurado. Um homem de preto media tecidos
habilidosamente.
— Três metros e meio, senhora? Uma voz aguda
perguntou:
Onde ficam os retalhos? Grace seguiu em frente, através de uma
série de pesadas portas de vidro. Compradores entravam e saíam,
manejando as portas de um lado para outro, nos movimentos
formais de sua dança: "Quiou". "Quiou." No exterior, uma tarde fria
denunciava a estação, meramente por sua relutância em escurecer.
Um corpulento porteiro, usando insígnias de guerra, fazia sinais em
código para táxis; um trio de músicos de rua, em velhas roupas de
brim, cantarolavam sobre Tipperary, enquanto um quarto estendia
um boné caqui, lastrado por uma única e centralizada meia coroa.
— Detesto esses cantores — disse Grace. — Vamos caminhar um
pouco.
Moveram-se ao longo de vitrinas, onde manequins em roupas
estampadas erguiam braços alaranjados contra cenários tropicais,
em extasiante e vital contraste com as pálidas matronas que
passavam apaticamente.
— Tenho certeza de que estou atrasando-a, Grace. Ela não podia
suportar aquelas boas maneiras ou o
pensamento de que esse homem, em sua crise, pudesse dispensarlhe um tratamento cortês, como o oficial agonizante poderia
pilheriar com um tagarela subordinado, em um campo de batalha.
Grace encostou-se a um painel envidraçado onde estavam expostos
artigos de praia e o olhou no rosto, procurando compensar, em um
momento, anos de obstinada insipidez.
— Não será melhor para você do jeito que ficou? Agora, cessam as
falsas esperanças. Talvez seja terrível no início, mas. . . — A bolsa
escorregou pela alça até o cotovelo de Grace e ela pegou o próprio
casaco pela lapela, com ambas as mãos, mostrando tanta veemência
como se agarrasse as lapelas de Ted. A lembrança de Dora surgiu
fugaz em sua mente. Que eu não soe como Dora: Tenho certeza de
que você será feliz. Disse, então: — Agora, você está livre.
A cicatriz do cerzido nas luvas de Grace ficou impressa no cérebro
de Ted. Brincos de pérola espiavam, os olhos brancos como de
peixe. Havia uma faixa de echarpe estampada, inane, e a gola azul.
O malogro tinha olho de pintor, assinalando ao caso um significado
arbitrário — como Deus.
Ted pensou que, realmente, se sentia muito melhor fora da loja.
Estava totalmente entorpecido lá dentro. Afinal de contas, o
claustrofóbico edifício proporcionara uma espécie de abrigo, com
suas avenidas assemelhando-se ao planejamento de uma cidade,
suas prateleiras e bandejas transbordando de vida diária, seus
subúrbios chamados Chapelaria e Miudezas, em memória da
infância. Na rua aberta, Ted Tice enfrentava um problema e
experimentou a leveza de corpo que acompanha o perigo físico.
Atravessaria aqueles momentos como um dever, em preparação
para a fase seguinte, a conscientização que iria invadi-lo e torturálo.
O que quer que ele tivesse pensado uma hora antes, enquanto
comprava o binóculo, ou mesmo alguns minutos atrás, ninguém
que o visse agora seria capaz de considerá-lo um jovem.
Tomando uma das mãos enluvadas de Grace, ele a colocou contra
seu paletó, onde ela, afinal e timidamente, lhe agarrou a lapela. Os
brincos atacaram, margaridas de seda amedrontaram-se na echarpe.
Atrás dela, uma palmeira prateada de plástico era recortada como
um raio zigueza-gueante.
— Tudo o que fiz foi esperar por ela. O que farei agora será por
causa dela. — Ele deixou a mão de Grace cair e a bolsa escorregarlhe novamente pelo braço. — Acha que isso é liberdade?
— Nem sempre é assim.
Grace pensava que uma mulher não lesaria o futuro com
semelhante proclamação. Caminharam de volta à esquina, onde os
compradores entravam e saíam pelas portas. Os cantores agora
passavam para Danny boy, a meia coroa solitária no boné, os pennies
astutamente sacudidos sob o forro. Fora Christian que falara a
Grace desse truque.
Cruzaram a entrada para o subterrâneo. Havia vibração na rua, era
uma respiração do subsolo, fluindo da boca do poço. Uma mulher
de carnadura vermelha vendia raminhos de urze a pessoas que
subiam ou desciam os degraus, mas não se aproximou daqueles
dois que permaneciam de pé e calados. Grace pensava que a gente
devia saber quando algo não oferece mais esperanças.
No ar despejado pelo túnel, eles se viraram e encararam-se.
Trocaram o olhar de duas pessoas que, tendo carregado um peso
imenso até uma parada arriscada, agora o depunham ao chão e seus
olhos se encontravam. Grace fora até ali, a distância máxima a que
podia chegar; Ted desceria sozinho.
A fotografia mostrava um queixo substancial e olhos de mastim, a
face inexpressiva, como se a intrusão apenas tentasse ou reforçasse a
resistência. Um parágrafo seguinte mencionava um casamento
anterior e uma filha. Um homem corpulento, agasalhado com um
sobretudo, de pé em um pórtico ermo.
A seu lado, Caro era uma noviça na vida pública. Embora não
trajasse vestes nupciais, ainda assim tinha o ar indiscutível da
recém-casada. Onde o retrato fora cortado, o dorso das mãos dos
dois se encontrava — a mão direita dela contra a esquerda dele, não
entrelaçadas, mas transmitindo a mensagem privada, para que o
mundo inteiro visse.
— Aqui também há um. — Tertia sabia para o que Paul estava
olhando e ergueu ligeiramente a sua página, para mostrar-lhe uma
imagem indistinta. — Mostra o casal deixando o edifício.
No jornal de Paul, Caro era uma datilografa australiana; no de
Tertia, uma funcionária superior. Noticiava também que o casal se
conhecera durante os trabalhos para um empreendimento
humanitário, iniciado pelo governo britânico.
— Finalmente, aquela terrível irmã conseguiu despachar as duas
moças. Dora ou Flora, eu a vi uma vez, na casa dos Thrales. Tem-se
que dar tal crédito a ela. Trouxe-as para Londres e as lançou.
— Elas não são as irmãs Gunnings, compreenda. Ainda assim, ele as
viu mentalmente, daquela maneira
exata — beldades do século XVIII em seda pastel, com penteados
em curva ascendente e olhares translúcidos, tomando Londres de
assalto, tornando-se a Sensação. No jornal de Tertia, Caro tinha os
olhos baixos, era uma mancha acinzentada, que nem ao menos
carregava flores. O homem era grandalhão, uma fisionomia nada
inglesa, de cabeça grande, pesada, impassível. Agora, Caro era
aprovada, valiosa: uma obra obscura, atribuída recentemente a um
mestre. Tertia trocou de jornal com Paul.
— Flora-Dora acertou seu tiro no escuro — disse, para ver até onde
ele se importava.
— Prefiro pensar em Caroline Bell com bilhões.
— Jamais alguém disse que esse Vail tinha bilhões.
— Afinal, de onde vem o dinheiro dele?
— Gado de corte.
— Aqui diz bauxita. Seja lá o que for isso — Paul elaborou: —
Coberturas com paredes repletas de Pkassos, iates, aviões
particulares, limusines. . .
— Guarda-costas — disse Tertia. — E amantes. Paul dobrou o jornal
para lê-lo — perfeitamente, como
um funcionário faria no trem.
— De qualquer modo, o astrólogo não a conquistou.
— O que significa "de qualquer modo"? — perguntou Paul.
Tertia virava as páginas com seus gestos rudes. No andar de cima,
uma criança chorou, riu, falou, depois murmurou, representando as
idades do homem. Tertia respondeu, subitamente:
— Nick Cartledge. Aquele que costumava hospedar-se conosco.
Ela podia, finalmente, estar protestando.
— O que foi feito dele?
— Morreu.
— De quê?
— Problemas do fígado.
— Bem. . . Não há dúvida de que ele se esforçou para
isso.
Tertia baixou o jornal. Nicholas Gerald Wakelin Cartledge. Para ela,
tinha sido uma morte prematura. Comentou:
— O velho roué. . .
Com isso, tentava afastar a mortalidade, em si, mas permaneceu
transformada na mulher que havia conhecido o morto. Após algum
tempo, Paul disse:
— Essa palavra significa "supliciado na roda".
— Ele não é nenhum Febo Apolo — disse Dora a Dot Cleaver —,
como você bem pode ver. — Ela diria Febo Apolo, Palas Atena ou
Vénus de Milo, distinguindo tais imortais pelo título completo, sem
os terrenos "lindo" ou "bela". — O retrato deles saiu simplesmente
terrível. E os instantâneos não ficaram melhor. — Ela os mostrou. —
Eu havia recebido uma pancada da porta do carro, pode-se ver a
dor de meus olhos. — Naquele dia, Dora se havia mudado para o
apartamento vazio de Caro, que estava cheio de flores.
— A esta altura, eles já devem andar pela Itália.
— Quando fui a Roma pela primeira vez — comentou Dot Cleaver
—, fiz tudo o que podia. Tudo. Com um livro-guia, fiz tudo. Bem,
isso agora terminou, e apenas procuro divertir-me. Absorve-se mais
de um lugar agindo assim.
Dora soltou um suspiro que influenciou todo o aposento. Após
algum tempo, comentou que mesmo o rio mais esgotado de algum
modo acaba chegando ao mar em segurança.
— Uma xícara de seu excelente chá? — Dot Cleaver arqueou as
sobrancelhas, o corpo e o pulso, pegando uma asa de porcelana que,
em si, era um ponto de interrogação.
— Depois, eles seguem para Nova York.
— Oh, claro! Lá eles terão tudo o que desejarem, todos os seus
interesses, livros, peças, música. . .
Dot Cleaver tinha ido recentemente a um recital arrebatador, mas
não conseguia recordar o programa.
— De qualquer modo, será difícil arranjarem tempo para vê-la.
— Por que se incomodariam? Não os censuro.
No momento, a grande ambição de Dora era ser rejeitada. Aquilo
significaria o ponto culminante de sua longa alienação, a
justificativa de sua formidável crença em inimizade, ingratidão e
todo um acúmulo de erros. Inclusive, já havia dito a Caro: "Não
fique pensando que tem a obrigação de me visitar". Seus processos
de checagem, agora perfeitamente afiados, nunca descansavam. A
provocação se tornara a base de suas relações com o mundo.
E Caro havia dito a Grace:
— Ela está curiosa para saber quanto ainda agüentaremos sem
explodir.
Ele destacou a página, dobrou-a e tornou a rasgá-la ao longo da
dobra. Então, recortou a fotografia e a legenda com a tesoura. Tais
atos metódicos pareciam ter alguma finalidade, e, ao completá-los,
Ted mal podia acreditar que ficara com uma foto do casamento de
Caroline Bell. A legenda que a acompanhava, embora redigida
convencionalmente, não era muito compreensível — como se escrita
em caracteres unciais ou cirílicos.
Ele examinou o esbatido e pequeno retrato, à procura de alguma
coisa familiar que lhe permitisse uma reivindicação. Entretanto, as
roupas de Caro eram novas, inadequadas para a ocasião. Na mão
esquerda, ela segurava um pequeno objeto, sem dúvida não um
livro de orações e mais acertadamente uma bolsa. A fotografia o
banira por completo, rejeitando associação: uma crueldade extra,
quando os bens de Caro sempre o haviam encantado — um cinto de
seda verde, um caderno de apontamentos com capa de tecido azul,
um prato branco onde ela colocava laranjas. Na foto, Caro dava
meia-volta, abandonando todos eles.
O recorte ficou sobre sua mesa de trabalho, agora mais amplo do
que o supérfluo e constringente material de onde fora extraído. O
aposento inteiro parecia incapaz de confiná-lo ou de conter a ofensa.
Ted Tice colocou a mão direita em cima dele e pendeu a cabeça —
como um espectador, cônscio de que sua postura inclinada requeria
uma frase datada, à guisa de legenda: "Ele fracassou". Um homem
adulto e cabisbaixo oferece uma tola visão, mal parece ser um
homem.
Não havia ninguém com quem precisasse escusar-se. A obrigação
era o primeiro detalhe apagado pelo pesar.
Ted Tice pensou em sair e andar até ficar cansado. Ou então
embebedar-se, como um homem desiludido em uma história.
Entretanto, sem se mover, contemplou seu suéter, o boné e uma
echarpe listrada — coisas externas, em cuja racionalidade não
tornaria a acreditar.
26
Assim, Caroline Bell foi residir em uma casa na Cidade de Nova
York e tomou o nome de Vail. Do alto da casa, que se situava em
uma fileira de edificações baixas, com fachada de pedra arroxeada,
tinha-se uma vista do céu. Para o sul, uma cordilheira de arranhacéus obstruía o sol da tarde, certamente, como os montes Taígetos
fazem com que a escuridão chegue mais cedo a Esparta. Os
aposentos não eram numerosos, mas relativamente grandes, porque
paredes divisórias aqui e ali haviam sido removidas. Adam Vail
nascera naquela casa.
Eram vários os objetos sobre os quais Caroline Vail nunca poderia
desejar jurisdição ou firmá-la. Poltronas, livros, quadros, um
biombo chinês, uma pasta de couro que se desgastava sobre uma
mesa de trabalho, um pires de jade, um conveniente mas feio.
abajurzinho ao lado de uma cama — cada coisa era habitual, exceto
a própria Caro. Ela contribuíra com quatro caixas de livros, um
prato trincado de Palermo e um anjo pintado em uma tábua
andaluza. De tempos em tempos, ela olharia para aquelas
lembranças ou para suas roupas nos armários e gavetas, a fim de
acreditar.
Uma fotografia da época a teria mostrado mais hesitante que
outrora. O processo de adquirir equanimidade trouxera suas
próprias dilacerações, como também algum sacrifício.
Vários homens lhe escreveram, por motivo de seu casamento:
"Querida Caro, o homem que a ganhar será um felizardo"; "Espero
que ele perceba a sorte que teve". Havia um toque de alívio, por eles
próprios não terem assumido o privilégio. A liberdade que ela
adquirira ao deixar toda uma nação entregue à própria sorte havia
sido, se não elo-giável, também natural.
Nas ruas retas, a sra. Vail procurava modificar aquela
cidade, tornando-a a imagem de outras, descobrir suas fontes de
continuidade e consolo, seus lugares de glória e refúgio. Quando
isso se revelou impossível, ela seguiu extravagâncias, manias e
formas obscuras de complacência, assim como maneiras flagrantes
de auto-afirmação e conformidade. No tocante à moralidade, a
moda era indiscriminada, conferindo o mesmo peso ao capricho e à
convicção. Um enxamear incessante de pessoas era antinatural,
ridículo e determinado, como a aceleração de um filme antigo.
Havia anonimato e extrema solidão, mas pouco sonho e nenhuma
paz. Os apartamentos eram camarotes nos grandes transatlânticos
ancorados ao longo das ruas.
A cidade expunha suas condições como um teste: os que se
revelavam aptos nas energias que ela possuía tornavam-se
iniciados; os restantes deviam fracassar, partir ou esbanjar uma
força irrelevante.
Nos prédios modernos opostos à casa dos Vails, todos os
pavimentos térreos eram ocupados por consultórios médicos. Ainda
de manhã bem cedo, homens e mulheres idosos chegavam sem o
café da manhã, para tocar aquelas campainhas. Fora isso, havia
pouco espaço para relacionamento no pequeno quarteirão e poucas
crianças. Os sinais de vida associavam-se freqüentemente a morte
ou miséria: à noite, carros de bombeiros e ambulâncias eram
ouvidos nas avenidas próximas e a lanterna giratória de uma
viatura policial circulava sua luz amedrontada por aposentos
particulares; comboios de caminhões rodavam deliberadamente aos
solavancos, como os aprovisionadores de um exército de vanguarda. No inverno, os pneus dos carros giravam, estridentes, sobre
a neve suja, e destroços abandonados se fundiam em fendas geladas
de todos os imensos mas não contínuos edifícios.
O panorama era esplêndido, os detalhes, soturnos. A obscuridade
gerava ou facilitava uma falta de contato. Quando chegou o verão,
os plátanos embaciaram a vista das janelas de Caro, tornando
completa a reclusão.
Nas primeiras semanas, Caro ficava na cama ou estirada em um
sofá, lendo ou simplesmente quieta. A casa silenciava com a
imobilidade da moradora, que não era langor, mas renovação.
Enquanto isso, Adam Vail caminhava rapidamente pelos cômodos e
corredores adjacentes, subindo e descendo com agilidade as escadas
de toda a sua vida. Os hábitos do lar emprestavam flexibilidade a
seu corpo, que era pesado no repouso ou no amor.
A casa tinha um leve cheiro de plantas e polidor, de óleos usados
para preservar livros ou móveis. No começo, Caroline Vail percebeu
esse cheiro, que não conseguiu redescobrir mais tarde. No quarto de
sua enteada havia um perfume de loção de calamina e também
cremes para peles adolescentes e pílulas contra dor; havia livros de
histórias em quadrinhos, dois violões e discos de ópera italiana.
Havia também livros sobre animais de países distantes — Etiópia,
Quênia. Estes pertenciam à morena Josie, que, quando da chegada
de Caro à cidade, tinha ido para a África, em um safari com a
família de Myra, sua colega de colégio.
— Myra é uma má notícia — disse Adam. Ajustadas à moldura do
espelho de Josie, havia fotos
de mãe e filha.
Una, a irmã de Adam, apareceu para almoçar. Era atraente, com um
ar de elegante descrença. Fumava cigarros até a metade e, ao
desfazer-se deles, sacolejava uma corrente de ouro no pulso. Sua
risada, iniciada com forte clangor, extinguia-se abruptamente,
incompleta. Olhou para Caro mostrando um franco interesse, que
poderia ser gentileza. Ela estava tendo um caso com um burocrata.
— Meu amigo é diplomata — contou a Caro. Empregava o termo
"diplomata" como diria arquiteto,
um termo cuja desonra ainda não o atingira. Nessa noite, quando o
amante lhe perguntou: "Que tal a noiva?" ela se deixou cair em uma
cadeira e cruzou as pernas: "Bem". Após algum tempo, acrescentou:
— Não é, no caso, a segunda sra. de Winter — ela acendeu um
cigarro, por fim. — A recém-casada é okay. Cabelos escuros, olhos
escuros, uma morena avantajada. Vinte e tantos anos, talvez trinta.
E nada tem de imbecil. Conversa, ri, mostra dentes britânicos. —
Hansi continuava ocupado com um problema de palavras cruzadas,
Una abandonou o cigarro ainda fresco e disse: — Intolerante.
— Intolerante quanto a quê?
— Pessoas como eu. — Pegando sua bolsa, Una disse: — Ama
Adam.
Tirou da bolsa uma diminuta caixinha esmaltada. Na mesa a seu
lado havia caixinhas similares, arrumadas em fileiras.
Hansi preparou drinques e deu um a Una. Ela fez um ligeiro
movimento com o copo na direção dete e, com a outra mão, ergueu
a caixinha.
— Trouxe-me um presente. — Estendeu-o a ele. — Adam deve ter
lhe contado. — Bebeu alguns goles e então apanhou a caixinha que
estava com Hansi. Colocou-a na mesa, ao lado das outras,
acrescentando: — Perspicaz.
— Pergunte-me alguma coisa — disse Adam Vail. De noite, eles
acordavam e faziam amor. — Você nunca tem perguntas.
— Agora devo aprender o que não chega através de perguntas.
Certa tarde, quando ela lia, espichada em um sofá, Adam chegou e
a tomou nos braços.
— Não entre em declínio.
— É uma ascensão.
Ele, então, ficou em pé e se movimentou pela sala, fazendo ruído
com objetos, batendo gavetas, amarrotando um jornal. Sua esposa
continuou lendo, lamentando que um homem tão cortês chegasse a
tal ponto, e um tanto surpresa quanto ao fraco controle que ele
mostrava. Bastaria Adam esperar e ela lhe daria a felicidade
perfeita. Era para isso que Caro reunia energias, como também para
objetivos mais adequados.
Una resolvera passar o verão no estrangeiro. Já que se divorciara,
ela comentou que finalmente poderia ter um grande verão.
— Durante oito anos, fiquei pregada à cruz de East Hampton!
Una fazia tilintar um novo bracelete. Seu rosto atraente mostrava
um dispendioso resplendor e ela usava o que os antigos romanos
chamavam de jóias de verão. Pouco mais tarde, do Mediterrâneo,
ela e Hansi enviavam um cartão-postal com bangalôs cor-de-rosa
em uma praia.
— É um lugar para milionários no fim das forças — disse Adam.
— Por que milionários deveriam sempre estar no fim das forças?
— Existem aqueles que podem se dar a esse luxo. — Ele lhe tocou o
rosto. — Você parece ótima.
— Estou começando a perder as forças.
Na rua, Caro tomou o braço de Adam e parou para olhar. Uma
mostra de profissionalismo em máquinas e prédios era reproduzida,
com menos sucesso, nas pessoas: a existência se voltara para os
peritos.
— Nós — ela se referia a pessoas de todos os demais lugares —
seremos sempre amadores, comparados a isto.
— Nosso grande e secreto temor — disse Adam — é que a América
venha a se tornar um fenômeno, ao invés de uma civilização. Daí,
em parte, a escala, a insistência, a necessidade de demonstrar os
grandes mistérios obsoletos ou benéficos. Queremos que nossa
concupiscência seja amada e chamada de bela. Queremos receber a
homenagem devida ao amor. — Adam entrelaçou os dedos da
esposa nos seus. — Daí também uma compulsão de nos
justificarmos. Como eu, neste momento.
— Entretanto, se os próprios americanos dizem tais coisas. . .
— Apenas não vá concordando com tudo isso. — Vail riu. — Oh,
Caro, nós somos muito piores, ou talvez melhores, do que você, por
enquanto, imagina secretamente.
Adam a levava para visitar um amigo que morava na 149 th Street.
Ao voltarem para casa, ela perguntou:
— Por que alguém deveria suportar isso? Una, que voltara da
Sardenha, disse-lhe:
— O negro americano está superajustado ao seu problema.
— Mas não por muito mais tempo — declarou Adam.
Certa noite de setembro, Caroline Vail sentou-se junto a uma janela,
com um livro de poesias.
— Por que não lê em voz alta? — pediu Adam. Ela começou,
dizendo algumas linhas em voz aguda,
pouco coerente e estranha:
"Rochas primevas formam a margem íngreme da estrada, E muito
elas viram lá, primeiro e último, Do transitório na longa ordem da
Terra; Mas o que elas registram, em cor e sombra, É — que nós dois
passamos".
Ela baixou o livro e desviou o rosto, sem sair do lugar.
— Triste — falou. — É por isso que estou chorando. Adam afagoulhe a cabeça e os ombros. Quando passou
os braços em torno dela, o corpo de Caro mal podia ser visto.
— Quem sabe por que ela chora. . . Quem sabe por que Caroline
está realmente chorando?
No outono, Grace escreveu que Paul Ivory fizera um tremendo
sucesso com uma peça chamada A carne una. Ela também
informava, mais timidamente, que Ted se casara com a filha de um
cientista. Em breve chegava uma carta de Ted com a mesma
informação e um novo endereço. Ele esperava que Caro e Margaret
pudessem conhecer-se um dia. Escreveu: "Aqui, entre os jovens,
sentimos um apego à nossa época, que é como um substituto para o
patriotismo: um penhor de imaturidade. Para qualquer coisa, em
termos de esclarecimento, precisamos de gente que não possua contemporâneos".
Quando Ted escreveu "os jovens", Caro perdeu o próprio direito à
juventude.
Por falar em esclarecimento, prosseguia Ted, o grande telescópio
havia sido inaugurado, no sul da Inglaterra, com uma cerimônia a
que a rainha comparecera. Devido à total ausência de visibilidade, a
realeza nada mais pudera conseguir senão uma demonstração de
brumas.
Dora escreveu que Gwen Morphew havia conseguido dinheiro
misteriosamente e deixara Glad Pomfret com as mãos abanando.
Sempre era melhor esperar-se a ingratidão, de modo que nada mais
a surpreenderia. Dora, a quem Caro agora podia proporcionar uma
casa perto da de Dot Cleaver, falava de dificuldades domésticas.
Não queria ser um aborrecimento para Caro em sua felicidade, e,
afinal, tudo se resolveria de algum modo. Ela aprendera uma coisa,
e pela maneira mais difícil, e essa coisa era não incomodar ninguém.
— Quase chega a ser verdade — comentou Caro — que ela não é
um incômodo em minha felicidade.
Caro levou a enteada ao recital de um grande violonista. Quando
voltavam para casa, Josie disse:
— Foi legal. O que pude ouvir do recital.
— Na próxima semana, conseguiremos lugares melhores.
Ela levou Josie ao balé.
— Myra foi assistir a dois jogos hoje — disse Josie. Com isso, queria
dar a entender que Caro fora favorecida. Se houve tal concessão a
Caro, o motivo foi outro.
Adam Vail fez uma viagem ao Chile e ao Peru.
— Da próxima vez você irá comigo — prometeu a Caro.
Una disse à cunhada:
— Adam está obcecado. Você já deve ter percebido. Está obcecado
pelo sofrimento dos outros. Trata-se de algo que você terá de
enfrentar.
— Já enfrentei aqueles que não se preocupavam em absoluto.
Ela não via por que explicar a Una que havia fracassado. Certo dia,
no entanto, Una disse:
— Acho isso formidável — e amarfanhou um lenço de papel.
Caro jazia em um leito de hospital, em conseqüência de um aborto,
e Adam Vail voou para casa, vindo de Lima. Quando Caro fechou
os olhos, a escuridão restaurou-lhe a existência privada.
— Agora, vou ter de machucá-la — disse alguém.
A dor era uma extensão da experiência, demasiado nova e
espantosa para ter interesse intelectual. No escuro, podia ser Paul
inclinando-se sobre ela: "Agora, vou ter de machucá-la". Como
outro sofrimento, a separação da enfermidade tanto era irrealidade
como realidade plena, afinal. Certa vez, ela permanecera afastada,
em um corredor quente, e contemplara a própria morte.
Na escuridão, seus pensamentos eram redistribuídos, por entre
deslocamentos de esperança.
— Seremos dois a partilhá-lo — disse Adam.
— Não era isso o que eu queria partilhar. Quando Caro melhorou,
Josie lhe disse:
— De qualquer modo, fui ambivalente. Eu me senti bastante
ameaçada.
A confiança na própria simplicidade podia inspirar uma crueldade
dificilmente crível. Josie se irritava com freqüência e, se contrariada,
baixava a cabeça e chorava:
— Estou me sentindo constrangida.
Sua maior arma era a própria fraqueza, o maciço desânimo, ante o
qual tudo cedia. Havia o temor de que Josie também apelasse para a
morte, como seu instrumento letal. "Tenho tanto medo!", dizia,
insuflando o temor a Deus em todos eles.
— Ela não devia procurar classificar tanto suas emoções.
— Está querendo que ela renuncie à sua condição de americana? —
disse Adam. — Josie crescerá, ficará adulta.
Caro recordou esperanças infantis, centralizadas no septuagésimo
aniversário de Dora: "Teremos de afastá-la antes disso".
Somente Una repelia os ataques de Josie ocasionalmente e não se
impressionava com as lágrimas da garota.
— Morda sempre, guria, e acabará sendo mordida também — dizia.
Depois disse a Caro:
— Você captou a mensagem.
— Mesmo aquelas mensagens que ela ignora estar enviando.
Josie possuía aqueles olhos que se notam nas jovens com problemas,
olhos que fitam de esguelha, mesmo quando diretos. Ela possuía a
inanição que anuncia a auto-absorção espiritual. Já estava
montando um sistema de acusação, ante a apreensão do fracasso.
Para Caro, Josie declarava o óbvio:
—
Você não é minha mãe!
Para ficar certa do ferimento, ela gostaria de ver o sangue.
—
Antes de mais nada, não tenho idade bastante para
isso.
Caro explicou a Una:
— A crença de Josie em sua inocência é sua garantia para causar
mal.
— Como a América — retrucou Una.
Quando sozinhas e juntas, Myra e Josie zombavam de Caroline Vail
— sua voz, suas maneiras e opiniões, seu hábito de tocar o cabelo.
— Ela não pode ter filhos — disse Josie à colega.
— E por causa disso está querendo mandar em você. Pois bem, diga
a ela que corte essa.
Caro podia sentir o desejo de que fosse afastada. Desde muito,
percebia que Josie pensava nela com ressentimento, da mesma
forma que, inclusive agora, ainda percebia Ted Tice pensando nela
com amor.
—
Será que não vê a maneira como ela a usa? — disse Myra a
Josie.
Se dependesse de Myra, Josie nunca se imaginaria capaz de ser um
objeto de afeição. Tudo era claro, como se a garota fizesse uma
queixa: a indelicadeza ensaiada, o olhar direto e de esguelha, a
duplicidade da frase explícita. Em presença de Myra, Josie precisava
exibir-se:
—
Como pode falar uma besteira dessas, Caro?
Na ausência de Myra, a garota era fielmente abusada, a fim de ter
algo para queixar-se.
Não há nada como o desejo de agradar para criar semelhante
inverdade nas pessoas.
Myra estava de olhos baixos, e o cabelo liso lhe escondia as faces.
No momento, ela estava forte, porque consumia a vida de outro.
Caro gostaria de saber que Benbow particular havia levado Myra
para o fundo.
—
Ela confunde desconfiança com discernimento — disse
Adam.
Caroline Vail viu-se inadequadamente imune ao julgamento de
Josie. Desejava apenas reprimir a garota em seus piores assaltos,
certa de que, quando se lesa alguém, é impossível suportar a
presença de tal criatura.
Em segredo, Caro repisava na necessidade de libertar-se
emocionalmente e podia ver como a indiferença era capaz de
tornar-se sedutora. O que Josie tomava por exposição da parte de
Caro havia sido uma oferta de confiança — um teste em que a
garota fracassara, uma vez após outra. A confiança seria oferecida
repetida, mas não indefinidamente.
Adam tocou o braço da esposa:
— Talvez você se preocupe mais do que demonstra.
— Quando percebemos que alguém está tentando magoar-nos, a
ofensa dói menos.
— A menos que você ame esse alguém.
Adam esperava que, um dia, Caro pudesse quase amar Josie, como
ela amava a cidade — através da contiguidade e da experiência
partilhada. Para ele, seria uma pena se somente fossem amados os
dignos de amor.
Tendo visto o interesse da filha pelo universo transformado em
inveja e desconfiança, ele gostaria de dizer: "Foi sua mãe". No
entanto, sentia a indelicadeza e a inexatidão de acusar sua esposa
morta, que ainda lhe vinha à mente como a havia conhecido, em
irresistível juventude e beleza.
Quando jovem, Adam Vail tinha admirado como intelecto o instinto
plausível de sua primeira esposa para os erros humanos, não vendo
nisto o presságio do desastre. Ele, que acima de tudo desejava ser
racional, aliara-se ao despropositado, no interesse dela. Para
demonstrar-lhe fidelidade, absurdamente colocara outros em
dificuldades. Um dos motivos disso era o seu orgulho, que o
impedia de admitir a própria indefensabilidade; outro era a força
persuasiva dos antagonismos de sua esposa: honesta em sua alucinação, ela se livrava dos equívocos da sanidade. Aos poucos,
tornara-se evidente que ela precisava de mais um inimigo e somente
ele permaneceu para preencher o papel. Parecia ser isto o que ela
pretendera: durante todo o tempo em que Adam se imaginava
confortando-a ou ajudando-a a recuperar-se, sua esposa estivera
preparando a condenação de ambos. Então começaram as ameaças
de morte, para chamar as atenções desgarradas do mundo. Para
quem a profere, a ameaça é um vício que requer crescente dosagem.
Os espectadores, por outro lado, são lentamente imunizados.
—
Não há maior tirania que um estado permanente de
desespero — disse Adam a Caro.
Ele, que se considerava um homem, tornou-se vulnerável como
uma criança intimidada ante a primeira esposa. Ela atuava sobre ele
como uma doença alastradora: todos os elos saudáveis com a vida
eram infidelidades a serem canceladas. A maturidade dele se
amortecia dia a dia, fazendo-o recair em taciturno estupor, do qual
o único despertar esporádico era o desejo físico. Com medo, ele
sentiu sua vontade contrair-se, ficar cada vez menor, até
transformar-se em uma dura e enrugada noz em seu peito. Ele
desejara magnitude, mas era uma pequena e dura substância em
uma concha.
No pesadelo de sua enfermidade, ela era muito forte e ele, muito
fraco.
Adam Vail começara a sonhar que estrangulava sua esposa louca e,
portanto, não culpada. Também sonhava com a própria asfixia. A
insuficiência de espaço e de respiração se tornou uma preocupação
das horas despertas: nas ruas, ele abria caminho por entre
multidões, incapaz de ampliar o passo ou seu eu em dimensões
plenas.
Um dia, ela chegou ao alto da escada e o chamou pelo nome. Tinha
a mão escura.
— Charlotte! Charlotte! — exclamou ele.
— Eu me machuquei.
O sangue fluía de um talho profundo. O horror dele foi tanto pela
liberação, pela desobrigação, como pelo evento.
A esposa o salvara por chegar a tal ponto que, com todos os seus
compromissos, ele não podia segui-la. Foi então que Adam
aprendeu a paciência agora aparente e renovou laboriosamente seus
laços com a vida. Não culpada, em virtude da insanidade, ainda
assim sua esposa era incapaz de inocência.
Por vezes, a loucura pode propiciar acesso a uma espécie de
conhecimento, mas não é uma garantia.
— Temos que atrair Josie — disse Caro.
Ela se suavizara com nova juventude e estava contente. Se isso
podia acontecer-lhe, por que não a Josie? Certa vez, havia dito a
Paul que essa condição não precisava ser adversa.
Como uma prece, o otimismo foi justificado quando o pai de Myra
foi transferido para a Califórnia, levando toda a família.
Hansi, o amante de Una, tinha uma suíte no Carlyle e uma ajuda de
custo para diversões. De tempos em tempos, voava para Delhi ou
Tóquio, a fim de assistir a um congresso que, jovialmente,
designava como inútil. Era comum vê-lo com um livro na mão,
qualquer livro, que servia de apoio para as palavras cruzadas que
também carregava. As palavras cruzadas eram o seu único esforço
mental. Hansi costumava dizer, sobre si mesmo: "O velho Hansi
estava na pior, quando Deus, em sua infinita misericórdia, criou a
conferência internacional. Que essa negociata providencial,
imprevidente e peculiarmente iníqua, destinada a sustentar os
degenerados morais e mentais de nosso mundo moderno, floresça
para sempre!"
Era com dificuldade que Josie se continha, às vezes nem isso.
Enquanto Hansi ficava decifrando anagramas, ela lhe criticava os
sapatos, as malas de viagem, o abrigo de vicunha e o Mercedes
cinza, sua suíte no Carlyle e um arranjo ilegal que tinha algo a ver
com bebidas grátis. Hansi ria, bocejava e ponderava um
palíndromo.
Apenas uma vez ele rompeu o silêncio.
— Aos vinte anos, um homem que dirige inativamente um
palavreado oco e bombástico contra a injustiça social é uma
promessa; aos trinta, um demagogo. Aos vinte e cinco anos, eu,
Hansi, identifiquei a aproximação da era da demagogia e então me
fechei em copas. De fato, nesse ínterim, comecei a beneficiar-me da
indústria organizada da demagogia internacional: essa idéia cuja
hora soou. Tenho minha forma pessoal de ineficácia, mas não a
enfeito com moralidade. Recuso' ombrear-me com aqueles que
arengam a respeito de reformas para as quais nunca levantarão um
dedo. Vivemos a idade da boca aberta e do dedo abaixado; daqueles
que falam mais rápido do que o suficiente para que o mundo os
entenda. Não é essa a base de toda a política moderna, para não
mencionarmos os batalhões dos socialmente cônscios que, do
mesmo modo, jamais verão a ação? Quando for escavada a nova
Pompeia, encontrarão a intelli-gentsia agachada e petrificada no
chão, de boca aberta para denunciar o materialismo, tendo dentro
dos bolsos, petrificados, seus ajustamentos embutidos para o custo
de vida. Eu, que, no devido curso, morrerei, não vou saudá-los.
—
E que diabo tudo isso quer dizer? — perguntou Josie.
Adam respondeu:
— Hansi receia que a falta de objetividade e o estilo bombástico
andem juntos.
— Devo corrigi-lo — disse Hansi. — Eu não receio, eu sei que é
assim. Nenhum processo de reforma é comu-mente considerado
plausível desde que envolva o sacrifício de uma hora de sono, de
um dia de pagamento ou de uma oportunidade de fazer ainda mais
escarcéu. Afirmo isso, não como uma disposição moral, mas uma
disposição real. Reforma, meus caros, nada tem a ver com
estandartes e bombas. É o trabalho mal pago, a pobreza, a solidão, a
composição de cartas à luz do lampião à meia-noite e o comprometimento em esforços ignominiosos com uma máquina
copiadora. Reforma significa anos passados no conhecimento
profundo de temas áridos e incompatíveis. Reforma é desistir de
banquetes, feriados e sexo, é ter tempo para estudar
minuciosamente documentos implacáveis em um porão. É ser
ignorado, insultado e isolado, possivelmente ser eliminado em uma
manobra de governo. Reforma é concentração e resistência. A
reforma, meus caros, ou qualquer mínima partícula dela, não é mais
desejada a esse preço, por nossos modernos altruístas, do que é pelo
bom e velho Hansi. Minha intenção, como a deles, é arrancar de
meus empregadores o máximo dinheiro possível, ligar meu hi-fi,
entregar-me a meus apetites e prazeres, dormir longa e
profundamente todas as noites. Ao contrário deles, no entanto,
minha intenção é declarada abertamente. — Hansi desdobrou seu
acrostico duplo. — Falo em termos gerais, e aceitaria prazerosamente qualquer provada exceção.
Josie comentou que nunca ouvira droga semelhante.
— O que ele disse é lógico — afirmou-lhe Adam. — Aqueles que
criticam continuamente a realização dos outros precisam realizar
algo por si mesmos, ou se tornarão ridículos.
— Ainda assim — disse Caro —, o que realizassem poderia ser
simplesmente ganhar caráter.
Como sempre, pensando em si mesma, notou Josie. Para ela, era
insuportável que alguém se distinguisse apenas por seus
pensamentos.
— Sem dúvida — replicou Hansi —, mas as pessoas de caráter
tendem a guardar suas opiniões. Posso confirmar, e
conclusivamente, que elas não são encontradas expondo-se no
circuito demagógico. Como exemplo do mencionado caráter —
disse ele a Josie —, veja seu próprio pai. Ele nunca me censurou.
Algo que considero muito agradável.
27
Retornando de dez dias na Sicília, Ted e Margaret Tice encontraram
uma casa que ficava muito à mão. Isso permitia que Ted fosse para
o trabalho e voltasse a pé, e que sua esposa caminhasse até um
estúdio que alugara para pintar, juntamente com outra jovem, uma
musicista. Naquela época, a vontade de pintar não era muito forte
em Margaret, pois ela achava que tinha tudo o que queria e devia
ser feliz. Não obstante, embora sempre representasse um esforço ir
ao estúdio, ela se sentia perfeitamente à vontade, uma vez lá, a
ponto de passar da hora, só interrompendo o trabalho quando
ouvia a violoncelista subindo a escada. Ela ignorava o que
encontrava naquele aposento desolado e sem calefação, e embora
relacionasse a serenidade da sala a seu casamento, não podia
descobrir onde jazia essa relação entre as duas coisas. Isso aconteceu
anos antes de ela perceber que a escada, a sala, o cavalete, as telas e
os tubos de branco de zinco simbolizavam a segurança.
Em suas pinturas daquela época, formas sombrias representavam os
fenômenos da terra ou dos sonhos.
E assim eles montaram casa, e cada um podia percorrer a pé a
distância até a segurança. Os pais de Ted os visitavam, assim como
os de Margaret. Cabides foram aparafusados no lugar, lâmpadas
foram escondidas em abajures e jardineiras nas janelas, um amigo
derramou vinho no Piranesi desenrolado, que tinha sido um
presente de casamento. Margaret fazia as compras e Ted pegava
livros na biblioteca, a caminho de casa.
— O nosso Ted leva o casamento a sério — disse a mãe dele a
Margaret.
O mais certo, no entanto, é que Ted se dedicara a isso e o fazia
meticulosamente. Agora, mostrava pouco pendor para envernizar
estantes de livros ou martelar coisas em casa,
mas era visto trabalhando diligentemente com pincéis ou uma caixa
de ferramentas. Também ele ficara à mão, à maneira de tudo o mais.
A auto-suficiência surgiu completa, um treinamento para
sobrevivência em uma ilha deserta.
— Ted atirou-se à vida doméstica — disse a mãe de Margaret. —
Em verdade, mergulhou nela.
Uma vida que poderia ter sido um abismo. Os hábitos eram
estabelecidos e, dentro de um ou dois meses, pareciam de toda uma
vida. De vez em quando, Ted apanhava ou largava um jornal, com
um gesto além de sua idade.
Percorrendo fases de julgamento, Margaret Tice foi primeiro uma
recém-casada, depois uma jovem dona-de-casa, em seguida uma
futura mãe. Depois, seria forçada a falar de escolas, juntar-se a um
clube de tênis e a um comitê. Podia-se ouvi-la falar, como se fosse
outra mulher qualquer: "Jamais uso amido de milho" ou "Faço a
limpeza à medida que vou me movendo pela casa". Margaret sentia
isso acontecer a ela, como sintomas de uma doença branda, e não
oferecia resistência. Entretanto, com incompreensível nostalgia de
uma vida que nunca vivera, sabia que tudo teria sido sutil e
profundamente diferente se o marido a amasse muito.
Certa noite, no primeiro verão de seu casamento, eles foram jantar
em casa de um colega de Ted. Para tais ocasiões, as esposas dos
cientistas eram treinadas na auto-supressão — exceto aquelas que,
elas próprias cientistas, pudessem também tomar pé na conversa de
lareira. Outras, como Margaret, deviam munir-se de uma desculpa
gentil ("Ela pinta", "Ela é música"), mas esperava-se que fossem
ignoradas.
Em tais reuniões, Ted freqüentemente se mostrava sombrio,
desligado. Respeitado pelos colegas, era apreciado somente
algumas vezes. Em seu relacionamento com assistentes, dispensava
uma justiça fria e indubitável — quando eles talvez preferissem
uma parcialidade mais humana e censurável. A mesma força
objetiva era ainda menos bem-vinda, se manifestada em uma sala
de estar.
Em seu trabalho, Ted passara algum tempo estudando um objeto
fracamente azulado, possivelmente uma estrela. Acabara de voltar
de Palomar, onde a controvérsia sobre o "desvio para o vermelho"
havia agora começado. Sabia-se que ele tinha coisas a dizer, mas
que preferia não dizê-las ali. Tal concepção de reunião divertida era
incongruente.
O jantar fora oferecido a um físico que recebera um prêmio famoso:
um monólito idoso, de corpulência rude e rosto seco, que presidia
conferências lugubremente e dava ao governo influentes conselhos.
Sua taciturna importância era implacável. As mulheres que
tentavam conversar com ele ouviam as próprias vozes se elevarem
até um guincho agudo: era como riscar o nome em um monumento
histórico. Mesmo sentado, ele continuava lembrando algum objeto
maciço. Arriado pesadamente em uma poltrona azul, usando um
coçado paletó cinza com reforços de couro marrom nos cotovelos,
ele agora parecia um navio de guerra enferrujado. Quando
Margaret Tice apareceu a seu lado, ele se ergueu ligeiramente das
ondas, expondo uma linha plimsoll1 marcada pelo cinto arqueado.
Samuel Plimsoll, político britânico (1824-1898). Em 1876 fez votar um ato de navegação
(Merchant Shipping Act), tornando obrigatório o uso das marcas de flutuação máximas,
que foram batizadas com o seu nome (plimsoll). (TV. da T.)
1
Ted espiou sua esposa: ela era uma encosta de verde em uma
cadeira de espaldar reto, com os olhos cheios de civilidade e a mão
lisa sobre o joelho. O velho navio de guerra começou gradualmente
a falar com ela: falar era o conceito dele sobre dar atenção.
Aceitando o monólogo, Margaret recebia o que raramente tinha: o
interesse indiviso de um homem.
Era uma noite quente, as janelas se abriam para um jardim. Ted se
recordava da iluminação noturna, tantos verões atrás: a mesa e a
conversa dos jovens; duas moças, ambas bonitas, uma delas uma
gazela. Deixou a conversa sobre quarks e quasars, como que
despertando, para ouvir sua esposa falar — era a respeito de algum
livro que o velho mencionara.
— Sim, eu o li pela primeira vez em uma época em que me sentia
infeliz, mas tenho voltado a ele freqüentemente. Ainda o acho. . .
"Uma época em que me sentia infeliz." O que estaria ela conjurando
ou exorcizando com tais palavras, sentada ali, em sua tranqüilidade
verde? Ted sentiu ciúmes daquela infelicidade e desejou ser a causa
dela — porque quem mais poderia reivindicar a melancolia de
Margaret? No devido tempo, ela se levantou e foi conversar com
uma amiga. O físico também se levantou, agitando sua bandeira da
caveira e ossos cruzados.
—Se quer saber, Ted, achei sua esposa uma mulher de grande
discernimento.
Sem saber o que responder, Ted olhou sua esposa cruzar o
aposento: uma mulher de grande discernimento. Se ela discernisse o
que havia freqüentemente em meu coração, se soubesse o que às
vezes sonho. . . Desejou persuadir-se de que Margaret também
podia ter segredos, dando-lhe recursos que poupariam a ambos.
Alguém chegou até a janela aberta e atirou fora um cigarro já
fumado, acertando com precisão um pequeno lago escuro no
jardim. Houve o cintilar, o chiado e um breve protesto de insetos ou
de um sapo.
O velho físico ficou perto da janela, erguendo rapidamente o cinto.
Recordava uma noite de guerra, quando permanecera no teto do
Savoy como vigilante contra o fogo. Em vermelho e branco, o rio
negro refletia as chamas e holofotes, a terra saltava e estremecia com
o impacto e recuo dos armamentos. E um avião em chamas desceu
girando do céu, expulsando seu piloto, que mergulhou em seu fogo
separado. O aparelho explodiu em fragmentos antes de atingir a
terra, mas o homem em chamas foi atirado ao rio, que — como se
ele fosse um toco de cigarro — chiou ao apagá-lo para sempre.
O velho recordou como, no final daquela noite, ao invés de voltar
para casa-, tinha ido ao apartamento de sua amante, uma mulher
culta com cabelos amarelados. Agora, morta havia muito. Ela lhe
guardara um pouco da própria ração, mas ele não conseguira
comer. Sentara-se na cama, com o rosto nas mãos, dizendo: "O som
daquilo. . . Ainda posso ouvi-lo!" Em verdade, já experimentara
coisa pior — e, como jovem oficial, com piolhos rastejando em seu
corpo enquanto ele, rastejando na lama, atacara a Linha Hindenburg. No entanto, naquele alvorecer, sentou-se em uma cama e
chorou. "Posso vê-lo." O busca-pé incendiado. "Posso ouvi-lo." A
carne mergulhada.
Ted Tice escreveu a Caroline Vail que passaria por Nova York, a
caminho de Pasadena, onde ficaria algumas semanas. Caro
respondeu: Venha almoçar, a qualquer preço. E, na manhã em que
ele chegaria, saiu a fim de comprar flores.
Era um dia de dezembro, frio e muito claro. Ted desembarcou do
táxi em uma esquina e caminhou os últimos poucos quarteirões. Na
rua de Caro, as casas eram idênticas no início, dispendiosamente
uniformes — com números negros ou dourados acima da entrada,
painéis de vidro gravados a cada lado das portas. Em sua maioria,
as portas também eram negras, com um próspero brilho
envernizado; uma ou duas haviam sido pintadas de vermelho. O
último grupo de casas era menos regular, e quando chegou à de
Caro, Ted a achou animada e graciosa — um filho vivaz entre pais
carrancudos. Ted jamais conseguiu extrair a verdade daquele feitiço
— se a casa era realmente distinta ou se tinha essa qualidade apenas
porque, para ele, guardava um encanto incomparável.
Parou no último degrau, mais desanimado do que anos antes,
quando esperara na chuva, em Peverel. Pensou: Isto agora não
ficará mais fácil, será ainda mais doloroso. Por uma faixa de vidro,
avistou um piso encerado, espelho, parede branca; um pequeno
quadro de cartas de baralho e uma garrafa de vinho. Desta vez, o
jornal sobre a mesa era tão explícito quanto a natureza-morta. Um
porta-chapéus, de louça azul e branca, era um monumento. Ir e vir à
vontade, para sempre, por aquela porta, significava não
simplesmente uma felicidade a ele vedada, mas encerrava um tão
vasto significado, que mal parecia admissível a alguém.
Tal encantamento teria sido pueril, se não fizesse parte da
desamparada obsessão de um homem.
Ele tocou a campainha, expectante, como se algo estivesse para ser
decidido — quando todas as decisões há muito haviam sido
tomadas.
Um rumor apressado de passos nos degraus, e Caro, que em toda a
sua vida jamais correra antes para ele, escancarava a porta e sorria.
Estava alta, corada, forte e bonita, Seu rosto amplo se tornara mais
largo e mais doce. Uma corrente de ar quente expandiu-se do
corredor. Ted avançou um passo e abraçaram-se. Caro passou os
braços em torno dele, o corpo descansou contra o seu, em pura
amizade.
—
Oh, Ted, você está ótimo!
Era verdade. O sulco na testa e a ruga nas pálpebras tinham
adquirido distinção — o sulco agora seccionado por uma ruga
horizontal.
Ted entrou e tirou o cachecol.
— Estava ansioso para que este dia chegasse.
A casa parecia cheia de luminosidade, até em seu mais remoto
interior. No solstício, o sol penetrava não apenas frontalmente, mas
também obliquamente, por uma janela dos fundos.
Uma jovenzinha de cabelos lisos saiu de uma sala e ficou parada,
olhando, postando-se como o faria um animal doméstico, para
avaliar uma visitante. Não como se postara Caroline Bell um dia,
em uma escada, presidindo a vida dele.
Ted viu a felicidade de Caro. Caro a conquistara, e luzia com ela.
Daí por que correra ao encontro dele — podia ser generosa com ele,
como para com todos os demais.
— Com licença — disse ele, e assoou o nariz.
O ar quente do interior da casa fazia seus olhos brilharem.
Mais tarde, Adam Vail comentaria:
— Gosto dele. Parece um auto-retrato mutilado por Van Gogh.
No fim daquele inverno, Adam e Caro voaram até Londres. Houve
dias inteiros de chuva com granizo, o balanço de pagamentos estava
insistentemente desequilibrado e dois novos livros haviam sido
publicados sobre Guy Burgess e Donald Maclean. Edifícios altos
subiam, frágeis, mas todo-poderosos.
Dora fez uma cena após outra. Ela as guardara como tesouros. A
parte boa remanescente em Dora queria que as duas irmãs
seguissem em frente e vivessem. A outra, a Dora que prevalecia,
detestava a evasão de ambas e fora frustrada na esperança de que
elas três, juntas, diriam da vida: "Que terrível!"
— Nunca pedi nada a Deus — disse a elas —, mas digo obrigada.
Outra noite vi uma paraplégica na televisão e pensei que, enfim,
tenho que ser grata por alguma coisa.
— Viemos aqui para vê-la, Dora.
— Há cinqüenta e duas semanas no ano. Vieram para passar duas
delas.
Havia algo de treinado naquelas frases que vinham a calhar, em sua
presteza, sua concisão, acompanhadas do olhar fixo que havia sido
polido diante de um espelho, algo que trazia desespero à alma de
Caro. Ela ansiava proporcionar a Dora a famosa e esquiva paz.
— A paz não lhe faria bem. Ela está terrivelmente entediada —
comentou Adam com Caro.
— Acontece que os dias dela são cheios de drama. Dora está sempre
tomando satisfações com Dot ou Daph.
Era como uma mensagem em Morse1.
— Sua irmã é do tipo para quem a morte de Sardana-palo seria
insuficientemente fértil em acontecimentos — disse Vail.
Caro levou Dora até Kew.
— Você adorava camélias — disse Dora. — Naquele tempo.
Caro quis negar as camélias, como se elas fossem uma armadilha.
Envergonhada disso, gostaria de explicar que desejava partilhar sua
paz de espírito, ao invés de oferecê-la em sacrifício.
Kew não serviu para sanar a situação. Dora agora pretendia ir para
a Nova Zelândia, onde tinha uma amiga em Palmerston North.
— Trish Bootle precisa de mim. — Era outra das separações de
Dora. — Sou necessária lá.
Adam disse que lhe conseguiria uma passagem no melhor navio.
— Qualquer coisa, desde que fiquem livres de mim.
— Você terá uma passagem de volta. Dora comentou
com Dot Cleaver:
— É a solução mais fácil: preencherem um cheque. Informado da
situação por Grace, Christian disse:
— Vail será um tolo, caso se envolva nisso.
No fundo, Christian se alegrava por Adam cuidar de Dora. Era
como se fosse algo que um americano devesse fazer, como
Empréstimo e Arrendamento, ou o Plano Marshall.
—Já suportei essa carga o bastante — ele disse a Grace.
Naqueles dias, Christian refletia sobre a idade, e receava assumir
responsabilidades com a decrepitude dos outros.
1
Trocadilho fonético: dots and dashes, pontos e traços (— . — . —.)(N. da T.)
Dora caminhava para os cinqüenta. Suas pernas estavam ligeiramente arqueadas, ela perdia a silhueta e os atrativos. A cada
semana seu cabelo ficava mais grisalho. A mãe dele se tornava o
que, em sua opinião, era uma preocupação, sozinha na velha casa,
com apenas uma mulher que trabalhava durante o dia e um gato
vermelho chamado Hots-purr. Estaria muito melhor em um lar.
— Ela tem um lar — respondeu Grace, quando ele lhe falou a
respeito disso. — Você quer dizer uma instituição.
Comemorando uma demonstração de preferência ocorrida há
muito, Christian disse para si mesmo que, ficando com Grace, havia
feito a escolha acertada. Vira como as pessoas fracassavam, ciando
vazão ao impulso. Em todos os sentidos, era graças à sua prudência
que nada de terrível lhe acontecera
28
Somente em um verão dos anos 60 é que algo terrível ou, de alguma
forma, lamentável aconteceu a Christian Thra-le. Ocorreu enquanto
Grace estava em Peverel com os filhos — o que sugere a natureza da
ocorrência. Grace mal ficara ausente o bastante para que sua falta
fosse adequadamente sentida, quanto mais agudamente; e, sem
dúvida, essa ausência não fora longa o bastante para que Christian
telefonasse, uma vez que ela era frugal em tais assuntos.
Iniciava-se uma noite de terça-feira e Christian estava de pé à janela
de seu escritório, observando o brilho sedoso das luzes que se
estendiam harmoniosamente sobre Londres: olhava para florestas
de folhas espalhadas como mãos abertas, para colunas e portadas
brancas, para ruas que cintilavam como rios. No parque, podia ser
entrevista uma faixa relvada, uma pincelada de água, as empinadas
agulhas azuis dos definíos. A noite carregava a marca de um êxito
extraordinário, magnificentemente consumado após inúmeras e
grosseiras tentativas.
Christian apreciava não apenas o maleável êxtase do pôr-do-sol,
mas a novidade de seu imenso prazer pessoal nisso. Tinha apenas
olhado para fora, sem nada esperar, além do tempo. Embora o
trânsito ribombasse, a luz mnemónica possuía uma qualidade de
silêncio — mas ainda assim não parecia um simples fato da
natureza, posto que mal se sentiria a existência de tal radiancia sem
uma cidade semelhante para comparti-la. Havia nisso um
envolvimento humano, como em alguma momentosa passagem de
saudação ou despedida humana do mundo.
Além do mais, Christian estava cônscio de si mesmo contemplando:
um homem alourado, com altura e inteligência acima da média —
não obstante, sempre mantendo ao
alcance a toca de segurança da média; a medida, de preferência,
pela qual podiam ser mensurados saídas e excessos.
Uma porta se abriu às suas costas. Ele não se virou, satisfeito em ser
descoberto no ato de inspeção e reflexão: um homem alourado, de
ombros estreitos, que mantivera a perspectiva. Na infância, como
acontece a tantas crianças, Christian se definira como sensível. E,
como acontece a tantos adultos, não fizera quaisquer reajustamentos
nesse sentido, à luz de estímulos posteriores. Nos assuntos do
escritório, costumava avisar: "Se perdermos nosso lado humano,
estaremos liquidados". Não obstante, em outras ocasiões, ele dizia:
"Temos que traçar o limite em algum ponto" e "Não me compete
dizer".
Uma crise explodira e, que sorte, Thrale, você ainda está aí. Estava
sendo convocada uma reunião, uma vez que havia telegramas a
serem remetidos nessa noite. Que sorte!, pois Talbot-Sims tinha
acabado de descer pelo elevador.
Christian não podia sentir: Que sorte!, ao pensar em Talbot-Sims
precipitando-se para casa como se sua vida dependesse disso,
voando livre através de Londres, no que ele visualizava como um
conversível, embora se soubesse que Talbot-Sims costumava viajar
exclusivamente de metrô. Debruçado sobre sua pasta de mesa com
desenhos de salgueiros, ele reuniu papéis e, com relutância,
assumiu a expressão solícita que normalmente apresentava sem
dificuldade.
Christian Thrale agora se elevava em sua profissão. Aqueles que
acompanhavam sua carreira comentariam: "Christian está
crescendo", como se ele fosse um bolo ou massa de pão. Não diriam:
"Ele irá longe", o que teria sugerido temperamento, mas, de tempos
em tempos, confirmariam sua gradual ascensão: "Christian subiu".
A sala de conferência dava para o parque. Apenas a sala se voltava
para lá, porque os homens presentes se concentravam em uma
mesa, em documentos ou no companheiro, quando não em si
mesmos. Olhavam para a superfície lustrosa daquela mesa como se
olhassem para um tanque. Revividos por uma rajada fresca de
importância, eles faziam ruídos, murmuravam, riscavam fósforos e
comparavam relógios — porque houvera um atraso. As
estenógrafas de primeira classe haviam encerrado seu trabalho e, de
algum modo, tinham-se amontoado com Talbot-Sims naquele alçapão de fuga do elevador para baixo — e a decana, srta. Ratchitt,
ficara em casa esse dia, com uma crise hepática —, de modo que
estavam à espera de uma moça que viria estenografar a reunião.
Aquilo era uma agravante, e cada minuto se tornava precioso.
Quando ela apareceu, foi como os delfinios. Para essa emergencia,
tinham-na chamado no toalete das senhoras, onde ela se preparava
para ir embora — talvez, quem sabe, para uma saída. Naqueles
preparativos, a moça soltara inteiramente os cabelos, que eram
louros como trigo maduro, e não tivera tempo para tornar a prendêlos. Limitara-se a penteá-los para trás, e eles caíam sobre seus
ombros esguios, deslizando espinha abaixo. E até o pior dos
homens ali presentes, cujas naturezas eram variadas, admirou
aquilo. Christian não recordava tê-la visto antes, nos locais de
encontro, no elevador ou no corredor. Entretanto, talvez ficasse
diferente, com os cabelos soltos.
Quando ela entrou, foi como os delfinios.
Ela se sentou em uma cadeira pesada — que ninguém, falando sem
exagero, puxou como gentileza. Como nunca haviam puxado a
cadeira para Ratchitt, de qualquer modo o contraste os deixaria em
evidência. Por trás do véu de sua expressão, Christan Thrale olhava,
fascinado. Os movimentos tímidos e deliberados com que ela
depositava seu bloco de notas pautado sobre a mesa e o dobrava
impediam que um lápis extra rolasse. O cotovelo pousado na mesa,
a cabeça inclinada, as longas pestanas voltadas para a página,
evocavam a estudante que havia sido pouco tempo antes.
Em volta do tanque, a tremulação intensificou-se, antes de ir
desaparecendo cerimoniosamente. Era um momento ritual, como se
o solista jogasse para trás as abas do fraque, sobre a banqueta do
piano, ou fixasse a almofadinha protetora entre o queixo e o
Stradivarius. Senhores, podemos começar. Não preciso acentuar
que esta reunião será efetuada sob o máximo sigilo, e espero que
isto tenha ficado claro para a srta.. . . Lamento, mas não sei o seu.. .
Cordélia Ware.
Srta. Ware. Muito bem. O gabinete concluirá suas deliberações
dentro de uma hora e fomos informados disso.
A bandeira de cabelos caiu para diante. Um braço se ergueu para
jogá-la inutilmente sobre o ombro. Uma página se virou com
rapidez. Uma gazela na sala. Louça em loja de macacos1. Tudo frágil
e claro, face, orelhas, pulso e a suave curva azulada da cintura ao
ombro.
Tendo em vista os acontecimentos da semana que passou, o
significado de tal decisão dificilmente pode ser superestimado,
assim como suas conseqüências a longo prazo. Sublinhe esta parte,
senhorita — creio que não recordo o seu. . . Senhores, o tempo está
contra nós.
Ela registrava na ata. Os minutos voavam, era ela que os absorvia.
Cada momento era precioso e o tempo estava contra nós.
Christan recordou linhas:
"Como posso eu, a jovem lá de pé, Minha atenção fixar Em políticos
romanos, Russos ou espanhóis?"
O verso terminava: "Ah, se eu fosse jovem novamente e a tivesse em
meus braços". Ele recordou isso também. Quando a gente aprende
alguma coisa ainda jovem, nunca mais a esquece. Somos tão velhos
quanto nos sentimos. Outra página se virou, e o pulso se arqueou
ansiosamente. O mesmo gesto de jogar os cabelos para trás. O
tempo estava a favor dela. Usava um relógio de pulso redondo e
barato, com pulseira de fita preta — grosgrain, era como diziam na
propaganda. Ela o estava afundando, ele adernava como um navio.
Ó Cristo, estou na rocha Cabo-Polegada2. Isto é ridículo, e também
muito injusto. Anos de feliz casamento não podem, decididamente,
naufragar em tais sulcos ou recifes, como está subentendido aqui. A
Espanha este ano e a excursão a Avon, em 63. O escritório é real.
Entretanto, não ao extremo que o efeito desta moça parece insinuar.
E assim, Christian caminhou, ziguezagueando por uma estrada de
cabelos amarelos e flores azuis. Seus companheiros de bordo
podiam ter estado presos ao mastro, as orelhas obturadas com cera.
Eles se agitavam, eles zumbiam. Eles manejavam vigorosamente os
cordames. Eles conheciam os cordames. Quanto ao aspecto
humanitário, seria enunciada a mais profunda preocupação. Não
obstante, isso será feito confidencialmente, a fim de não exacerbar
um já delicado. Eles chegavam à fase de reclinar-se, com as gravatas
1 No original: "China in the buli shop". Inversão do dito "A buli in the china shop" (um touro em loja de louças), equivalente ao nosso "macaco em
loja de louças". (N. da T.)
2 No original: Inchcape Rock, trocadilho fonético com Inchkeith, ilha rochosa existente no Firth of Forth, foz de um rio escocês. (N. da T.)
fora do lugar. Uma precaução sensata, Bickerstaff. Uma boa indicação, Barger. A pertinácia aplaudida como na escola — nesta
ocasião, sem Christian entre os alunos inteligentes.
Não adiantava segui-la, quando finalmente ela foi dispensada, a fim
de datilografar em alguma sala, onde as luzes agora eram acesas e
as faxineiras teriam que ser excluídas. O conteúdo das cestas de
papel seria incinerado. Extingue-se o fogo na duna e no
promontório. Os capitães se fundem, partem os chefes.
Vagando por um corredor cinzento, Christian foi detido por um
colega esbranquiçado, chamado Armand Elphins-tone. Por vezes,
Christian havia dito a Grace: "Não me dou bem com Elphinstone",
acrescentando: "Acho que a culpa é minha".
Elphinstone fez tilintar moedas soltas nos bolsos das calças
amarrotadas. Ele encolheu os ombros vestidos de tweed e salpicados
de caspa, listrados por fios caídos dos cabelos.
— Eu gostaria de saber, bem, por que somos sempre tão
desorganizados. Não houve preparação. Essa reunião podia ter sido
marcada para pelo menos uma hora mais cedo. Claro. Não sei como
podemos encarar a junta permanente. — Nos bolsos de Elphinstone
percutiam sixpences invisíveis, com um molho de chaves formando
os instrumentos de sopro. Ele desviou os olhos. — E mandarem essa
moça desarrumada!
Então, ele também. Até o branquicento Armand. Não adiantava
ficar por ali. Elphinstone parecia ter estragado tudo.
No dia seguinte aconteceu algo mais. A secretária de Christian
estava saindo para suas férias de verão.
— E quem eles têm em mente para substituí-la? — perguntou
Christian, mas já sabendo a resposta.
— Vão enviar-lhe uma moça do escritório geral. Ensinarei a ela o
principal. Uma certa srta. Waring. Ou Ware. Naturalmente, quando
eu voltar, encontrarei o caos por aqui.
No primeiro dia, ela usava um vestido gasto de veludo marrom, o
cabelo puxado e preso. Christian foi um homem de poucas palavras,
durante toda a manhã, entregando isto ou aquilo para três vias: isto
tem prioridade, faça aquilo em rascunho. Só conseguiu manter essa
postura até a hora do almoço. À tarde, procurava sondá-la e pedia
sua opinião. Ela estava sentada, anotando uma carta ditada, e ele
mal podia crer que a tinha ali, à sua terna mercê: Christian se sentia
mais terno do que misericordioso. Ao vê-la fechar o bloco de notas,
disse:
— Espero que não tenha sido retida até muito tarde, na outra noite.
Ela ergueu os olhos, inexpressiva. Christian sentiu que se expusera.
— Na noite da proclamação do gabinete.
— Eu perdi o trem. Moramos em Dulwich. — Hesitou, como se
transgredisse os interesses dele, oferecendo tanto como resposta: —
Uma das moças me deixou ficar em sua casa.
— Espero que não tenha precisado cancelar alguma coisa.
— Era o aniversário de meu pai.
Que vida oferecemos a estas criaturas!, refletiu Christian — não sem
gratificação. Podia identificar certo prazer em afastar o pai dela,
com quem se nivelava necessariamente — tem-se que ser cônscio
dessas coisas — na condição de rival. Os olhos dela eram límpidos,
virados para cima, quase circulares, pálidos como vidro cinza. A
voz dela, como o vestido, parecia pele de gamo, uma coisa excelente
em uma mulher. O pai dera àquela filha o nome de Cordélia.
Quando a ouviu datilografando, Christian pretextou algo para ficar
de pé algum tempo, junto da mesa dela. Havia algo quase sexual
naquilo, como a relação entre tenor e acompanhante, ela sentada e
subordinada, ele de pé e comandando. Cordélia exalava um odor
adocicado de talco ou xampu. Seus dedos, enegrecidos pelo
carbono, nervosos pela proximidade dele, viraram seis vias de papel
para apagar um erro. Um Manual de estilo — que estilo poderia
existir em tudo aquilo? — estava aberto com instruções de insano e
infinito tédio. Tenho a honra de ser, senhor, de Sua Excelência
humilde servidor. Na superfície da mesa, uma camada empoeirada
de raspas de borracha, sobre os arranhões e pingos deixados por um
bando de secretárias anteriores desaparecidas .
Excelência e honra. Com menos satisfação, Christian perguntou-se:
Como é que aturam isto?
Quase pousou a mão naquele ombro de veludo marrom.
Bem de perto, podia sentir a suave curva de vida amoldando-se à
sua palma — e, no mesmo instante, afastou-se, desejou-a em
segurança e livre do mal que lhe causaria, enquanto ela, tão ansiosa
e inocentemente, se inclinava em sua tarefa de apagar.
— Essa é de primordial importância — disse ele. — O resto pode
esperar.
De sua sala, ouvia-a dedilhando ruidosamente o teclado, girando o
rolo, em arpejos de sentenças, o andante de um trecho com
reentrâncias. Uma exclamação de enfado por uma nota em falso.
Era curioso que uma máquina pudesse reproduzir a ansiedade da
pessoa que a manejava. O globo imaginado do ombro aveludado
permaneceu palpável na sua mão ainda em concha, formando
aquele contorno.
A noite crescia, como a aurora. A cidade a inalava como um suspiro
de imenso alívio. Uma onda de excita-mento fez Christian levantarse da mesa e chegar à janela — onde a metrópole jazia novamente,
indefesa e expectante, sob um crepúsculo fenomenal como um
eclipse. Um homem cauteloso teria espiado através de óculos
especiais ou de um buraco recortado em um cartão. Christian
espiava a olho nu. Ele era alguém que ainda podia ver o céu. Que
conhecia seu Yeats. Seu Freud.
Não era em vão que tais nomes vinham precedidos pelo possessivo.
Christian ficou tentado a perguntar-lhe, francamente, se queria
jantar com ele. Mas não; não assim de chofre, logo na primeira
noite. Que houvesse um intervalo decente e que o tempo ajudasse.
Havia prodigalidade nisso — eles tinham tão pouco tempo!
Mentalmente, Christian disse "eles" — e não pôde achar
injustificado este recente pronome.
O dia seguinte foi quente. A cidade escancarava as janelas,
enquanto Christian ia de carro para o trabalho. Rodando em direção
às torres de Camelot. Como por determinação, ela usava o vestido
de centáureas azuis — seria? — e soltara os cabelos. Ele ouvira dizer
que as moças nesse ano passavam os cabelos a ferro, a fim de usálos compridos e lisos, mas não acreditava que isso se aplicasse a ela.
Não poderiam fazê-lo sozinhas — talvez as mães as ajudassem.
Christian tentou imaginar a pequena cozinha em Dulwich, limpa e
asseada como um alfinete novo, a mãe de corpo disforme em um
avental estampado e ela com a cabeça apoiada na tábua de passar.
Era como uma execução.
Seria fácil retê-la após o expediente. Não havia dificuldade em forjar
uma crise — muitas crises naquele lugar eram forjadas —,
retardando algum memorando para a tarde. Quando ela voltasse de
seu apressado sanduíche às duas (ele supunha um sanduíche, dada
a pressa), então atacaria. Às seis estavam sozinhos, ele relendo
atentamente, ela martelando a máquina. Christian levantou-se e foi
ao banheiro dos homens para arrumar-se. Correu água da torneira,
correu um pente, correu um olho crítico. Sorriu no espelho quadrado, que estava rachado de lado a lado. Caminhando de volta
pelas inertes galerias cinzentas, podia ouvir ainda a máquina
batendo, como um coração.
Entre várias, havia escolhido a magistral asserção:
— Eu a levo de carro para casa. — Naturalmente, esperava que ela
não ficasse muito surpresa. — Enfrentemos o fato — com esta
interpolação, Christian reprovava habitualmente uma forte
tendência a ser negligente; — teremos que ficar aqui pelo menos
mais meia hora. Aliás, bem poderíamos — conclusão previsível —
comer alguma coisa em qualquer lugar, e depois eu a levaria a sua
casa.
Julgou captar uma leve hesitação — não a chamaria de desconfiança
— misturada ao espanto dela. Não obstante, a moça devia estar
satisfeita, inclusive excitada. Uma jovem que passava os dias
virando folhas de carbono aceitaria com prazer qualquer
divertimento. De Sua Excelência, o humilde servidor.
Não que ele se encarasse como algum divertimento.
— É muito gentil — respondeu ela, sem lhe causar qualquer
aversão.
Ela estava no carro a seu lado. Cruzaram um rio, o rio, após um
chablis e linguado de Dover. Não estava escuro, em absoluto. À
frente, o nivelado common 1 era uma inocência de retardatárias bolas
de críquete, (erriers sem coleira e casais idosos, ocupando bancos em
segurança. (A trapaça teria lugar mais tarde, com o cair da noite.) E
as árvores, no entanto — ele nunca sentira isso antes —, aquelas
árvores, como nuvens, como biombos, como enormes buquês. Ela
conseguia isso: primeiro, centáureas azuis, agora árvores. Dríade de
asas leves, faia verde, Rima, a jovem-pássaro que era o tipo dela, a
ninfa constante que era seu nome, Tess de . . . não, nada disso:
Tessa. Tudo isto em Clapham.
Ele teria gostado de parar o carro, de vez em quando, só para olhar
as árvores, e então a tomaria nos braços, quase incidentalmente.
Não obstante, era necessário o intervalo decente. Ela havia falado
tão pouco, tudo correto e nenhuma tolice. Estava ainda imóvel,
olhando para a noite e as árvores com a cabeça voltada para o
encosto do banco, embora não reclinada nele. Continuaram
rodando, ao longo de avenidas suburbanas, pelas quais ele sentia a
gentileza.dispensada a um amigo de infância que não prosperara.
— Dobre para a esquerda, no colégio. Ele dobrou.
— É bem aqui, à direita. Esta.
Christian esperara uma fileira de desmoralizados jardinzinhos, três
Área existente em uma aldeia ou perto dela, de gramado sem muros, e que pode ser usada
por todos em geral. (N. da T.)
1
degraus na entrada, um pórtico de vidro opaco que sobressaía
melancolicamente do tijolo. Não podia ter ficado mais irritado se ela
o tivesse desapontado deliberadamente. Não que a casa fosse
grande: era uma casa atraente, branca, mas século XVIII, margeada
de fúcsias, ao longo de um breve crescente de cascalho bem-tratado.
Entretanto, era uma casa precisamente do tipo que ele e Grace
tinham visto e decidido que não podiam comprar.
Havia luz em todas as janelas. Era como uma casa em festa, descrita
em um romance: "feérica". (O próprio Christian preferia apagar as
luzes, quando não em uso.) Ou era um navio, festivo e solene, com
todas as velas e todos os estandartes flutuando. No andar térreo,
uma cortina de seda enfunava-se atrás de janelas francesas, como
uma vela principal.
Christian parou diante da porta. O carro amesquinhou-se diante do
brilho da casa. Ele recordou brinquedos de plástico no banco de
trás.
— O senhor vai entrar.
Ela era quase social em seu próprio território.
— Está ficando tarde. Tenho que voltar. Mostrava-se rude, pois a
casa era uma ameaça. Podia
sentir o olho do pai sobre ele, via-se piscando diante das luzes,
exibido como em um posto policial. Devo avisá-lo de que tudo
quanto disser. . .
Ainda assim, ouviu-se anunciar:
— Fica para outra vez.
Desajeitadamente, inclinou-se à frente dela para abrir a porta,
pousando a mão sobre a dela, que pressionava com ineficácia, como
se selasse um contrato.
— Para cima e empurre — disse. Depois: — Bata com força.
Um terrier escocês precipitou-se pelos degraus em direção a ela,
todo focinho, patas e cauda abanando. Christian a ouviu dizer:
— Aqui, Hoots! Aqui, Hootsie! — em uma espécie de êxtase.
Voltou para a cidade em confusão. Estivera preparado para seu
papel, jovial mas contido, dono da situação na modesta casa de
begónias e cozinha como alfinete novo, ajudando-os a vencer a
timidez. Estava até pronto para um possível irmão socialista, cujos
despeitados desafios poderiam ser graciosamente colocados no
devido lugar. Entretanto, não distintamente preparado para a posse
niveladora de Lowestoft, Regency, edições encadernadas, um
desbotado mas valioso tapete Samarkand; e, talvez, um atribuído-aHoppner, acima da lareira original.
Ele detestava, acima de tudo, a sensação de ter escapado por pouco.
Não podia deixar de associar sua presente impetuosidade ao
primeiro encontro com Grace. De fato, haveria ou não uma
reconhecida condição chamada complexo de Cofetua? Ou teria ele
maquinado aquilo?
Chegando em casa, telefonou para Grace. A ligação, que podia ter
sido uma ajuda, deu em nada. Uma vizinha viera visitá-la, era tarde
demais para fazer as crianças virem ao telefone, um momentinho,
que preciso desligar qualquer coisa. Jeremy tinha se mostrado cético
sobre a autêntica Távola Redonda — que haviam pago para ver,
nessa manhã — e Hugh ficara emburrado.
— Alguma novidade no escritório?
— Essa confusão na África nos deixa sobressaltados. Enfim, sempre
existe o secretário de Estado. Estamos com falta de pessoal, como de
costume. Deram-me uma secretária provisória.
— A srta. Mellish foi embora, então?
— Haverá um caos quando ela voltar.
Christian desligou e tirou os sapatos. As venezianas estavam
arriadas, para evitar que o chintz desbotasse. A partitura de Grace
jazia dobrada sobre o piano fechado. Christian podia ver a Mansão
Ware, coroada por seu velame branco. A moça inclinada, a portada
iluminada como um palco. O rosto e as mãos dela animados de
amor, quando alcançou o cão que lhe arranhava os tornozelos e os
joelhos. Podia ouvi-la falando, em sua voz de gazela articulada;
chegava até a sentir o próprio roçar do pêlo do animal. Christian
mal podia esperar pelo dia seguinte.
Na manhã seguinte, ele guardou os brinquedos de plástico no
porta-malas do carro. O tempo se mantinha bom, o intervalo
decente ia correndo. Uma sensação de quase abandono de sextafeira animou o departamento, como se existisse pela frente algo
além de um fim de semana inglês. Até na África havia uma
calmaria, onde os crocodilos preguiçavam em águas madraças,
entre muralhas de bambus imóveis.
A visão de Cordélia Ware, em um estampado rosa de flores
primaveris, dispersou a derrota de Dulwich, exorcizando o espectro
do Pai Inspetor-Detetive.
Apenas Elphinstone estava resfriado. Naquela noite, voaria para
uma importante conferência em Bruxelas e estava preocupado
quanto aos efeitos da cabina pressurizada em seus ouvidos.
Christian parou junto da mesa de Elphinstone.
— Tudo bem?
Elphinstone tossiu. A princípio fleumaticamente, como uma ignição
defeituosa, o motor engasgando e engasgando, até pegar. Ele puxou
um lenço do bolso, com o nervosismo de quem procura uma
bandagem.
Virando-se, Christian olhou para duas fotografias emolduradas, que
pendiam da parede, ao lado do mapa: o avô de Elphinstone em traje
diplomático e uma festa de casamento dos residentes britânicos,
certa vez organizada por Elphinstone, no cemitério inglês de Capri.
O mapa era tão antigo, que a índia era rosa.
Por fim, Elphinstone respondeu:
— Não há nenhum problema comigo.
Disse a palavra "problema" com sarcástica ênfase, deixando bem
claro que sabia ser um americanismo.
— Sabe que estou de plantão amanhã. — Christian ia ficar
trabalhando no fim de semana. — Caso aconteça alguma coisa.
Elphinstone era pura compreensão.
— Você não está aproveitando nada do verão. Sinceramente. Está
perdendo seu fim de semana. — Ergueu o lenço grumoso até o rosto
e olhou para Christian por sobre o tecido, como um bandido. — E
trabalhando até tarde.
Christian afastou os olhos das trolhas, dos sorrisos e dos agitados
dentes-de-leão do cemitério inglês e os baixou para Elphinstone.
— Não tem importância.
Depois que ele saiu, Elphinstone tornou a assoar-se no lenço e o
estendeu para secar no peitoril da janela.
Ignorando tudo isso, na mais pura inocência, Cornelia Ware
levantou os olhos de sua papelada mal-ajambrada, quando
Christian ia entrando — o olhar dela um refrescante contraste com o
de Elphinstone. Sentado à sua mesa, ele começou a assinar papéis,
que atirava vingativamente em caixas. Sentia raiva, mas também
certo triunfo. Os olhos de Elphinstone acima do lenço enorme eram
algo de se ver. Um incompetente, um tolo insuportável que nos foi
imposto, sejamos francos, porque seu avô negociou um desastroso
tratado em 1908. Deus, se o público soubesse!
A tarde foi se gastando, gastou-se. Firmemente aliviado do lastro
das saídas antecipadas, todo o andar se tornou animado, flutuante.
A srta. Ware — Cordélia — trouxe para ele o papelório que entrara.
A bonança persistia, estendendo-se sobre continentes, amainando o
vento nas velas da África. A súbita atividade funcional oscilava
ineficazmente, indo e vindo nas calmarias do globo. Havia cópias
para informação e o texto de uma fala ministerial que não seria mais
transmitida devido à mudança de circunstâncias. Havia papéis nos
quais se lia SEP , subsecretário de Estado permanente, e em que a
ação não era considerada nem requerida. Havia ainda um cartãopostal dos rochedos de Etretat, enviado pela srta. Mellish: Espero
que tudo vá bem.
— Mellish está no país de Monet.
— Ela também me mandou um.
Eram os mesmos rochedos: Esqueci de mencionar, deixe o
arquivamento para quando eu voltar.
Ficaram parados, cada um segurando um cartão-postal, um passe
de saída, enquanto o tempo se escoava.
Ele não podia ser enganado por aquela calmaria. O telefone tocou.
Era de uma pessoa que, em um departamento paralelo, ocupava
posição equivalente à sua.
— Escute aqui, Thrale. Não estamos entendendo o caso na
conferência de Bruxelas.
— O que mais vocês querem? Estamos enviando um de nossos
melhores homens.
— Não se preocupe muito, meu velho. É apenas uma questão de
comunicação.
A palavra "comunicação" recebera o tom maroto que Elphinstone
emprestara a "problema". Fazendo uma careta para a moça,
Christian agitou o fone, em uma mostra de exasperação. Jamais
cometera impropriedades com a srta. Mellish. Estava febricitante
pelo fim do dia — ou seu início. A voz ao telefone zumbiu, atraída
irresistivelmente para o jargão, mas não desejando ficar com a
responsabilidade.
Com uma esferográfica impaciente Christian traçou, sobre a pasta
da mesa, os contornos do cartão-postal colorido, seu carnet de bui.
Então, imediatamente ela disse:
— Se não houver mais nada. . . — e já segurava a bolsa.
Tinha um cardigã escarlate no braço e dizia: Até logo, sr. Thrale.
Nunca ocorrera a Christian que ela pudesse sair imediatamente, por
vontade própria. Antes que pudesse desligar, Cordélia já se fora e
no corredor não havia mais ninguém à vista.
Perdendo a cabeça por completo, caminhou em largas passadas, a
fim de parar o elevador.
Somente Elphinstone estava parado entre as portas do elevador,
pronto para mergulhar. Sorriu para Christian por sobre o ombro e
levantou os dedos, no sinal da vitória. Era como se fosse dar um
salto de pára-quedas. Quando desapareceu, sua mão pousou sobre
o coração, à procura da corda de abertura do pára-quedas.
De volta a seu gabinete, Christian parou à janela onde tudo havia
começado. Não estava bem certo do que pretendia, mas,
definitivamente, não era a perspectiva de perambular através de
uma noite fracassada. Com um último clangor de arquivos e
gavetas sendo fechados, tudo caiu em silêncio. Por toda Londres,
havia moças entrando e saindo de carros, enquanto homens mais
novos se inclinavam para elas, dizendo: "Para cima e empurre".
Casais transportavam bandejas e sugeriam: "Você traz o gelo", e a
mobília da Harrods para jardins finalmente estava ao ar livre.
Somente Christian permanecia inconsolável, à janela de seu
gabinete.
Se não fosse pelo suéter escarlate, talvez não a tivesse localizado.
Ela atravessava a rua abaixo, caminhando devagar e tomando a
direção do parque. Bem, podia estar indo para o metrô — mas
ninguém caminha assim para um trem, erguendo a cabeça para o
céu e jogando o cardigã casualmente sobre um ombro. Ela tinha
pernas esguias e calçava sapatos sem salto. Como todos os seus
movimentos, o andar era fascinante.
Ele saiu da teia, saiu da névoa. Em três passadas, estava junto da
mesa, batendo gavetas, agarrando caneta e óculos. Ainda teve
suficiente presença de espírito para aferrar um envelope com
documentos para o fim de semana, à guisa de um ponto de apoio.
Na rua, quando a teve à vista, procurou controlar-se, mantendo na
imaginação o sabor daquele deleite. Espreitando-a, sentiu uma
segurança de felicidade que raramente experimentara como adulto
e que era incompatível com a infância. Christian se apaixonara
como jovem, depois como homem novo, pronto para aceitar esposa.
Entretanto, nada como agora, quando, absolutamente fora de
qualquer contexto, não representando forças senão aquelas além de
seu controle, espiava Cordélia Ware em um frenesi de ternura, algo
que se confundia entre a adoração e a condescendência.
Alcançou-a quando ela ia entrando no parque. E houve a
personificação de amistosa surpresa: Não vai para Dulwich? Ela
explicou que a tarde estava muito bonita, o parque também.
Passaram juntos pelo portão. Vagaram por rampas de flores
iridescentes e entre árvores cornalinas. Cruzaram uma ponte e
sentaram-se em um banco vazio. O envelope do escritório, cuja
cálida e enchumaçada sensação se tornara repugnantemente viva na
mão de Christian, agora estava acantonado em seu outro lado, como
um cúmplice super-zeloso.
Ali havia um amplo repouso, a terra toda relva, o céu todo
firmamento, embora por causa de aves aquáticas altercassem
crostas arremessadas e um jornal passasse por eles, com uma
manchete atroz. Em algum ponto, lá no alto, Elphinstone estava a
salvo em um avião, engolindo com força para proteger os ouvidos e
pegando uma bala extra da bandeja oferecida, a fim de permanecer
no lado seguro.
Ela se sentou ereta, não como se estivesse em uma sala de aulas no
ginásio, com os dedos entrelaçados sobre o joelho cruzado. E, com a
tarde em seus cabelos e na pele pálida, tudo era luz. Cordélia o
fitava, grave e pronta a ouvi-lo. Como a musa: paciente, mas
acessível apenas àqueles que agiam com boa fé.
— Janta comigo?
Por enquanto, era o tom mais humilde que dirigia a ela. Flores
rosadas elevaram-se em seu seio estampado.
— Se não houver problema — disse ela.
Christian não sabia como tratar aquele apelo à sua autoridade e o
ignorou. Tudo agora parecia possível. O mundo inteiro, como o fim
de semana, estava diante deles. Ele não esquecera que Cordélia
certa vez passara a noite na cidade, com uma amiga. Já naquela
época, arquivara a informação para possível uso futuro.
— Não a esperam em casa?
— Eu telefono.
Christian não queria saber o que ela diria. Para o diabo com o Pai
Inspetor. Os dois ficariam sentados entre a grama e o céu enquanto
houvesse claridade e depois ele a levaria para jantar em um
lugarzinho situado perto da Duke of York Street, onde costumava ir
nos dias de correspondência de última hora.
Ele havia descontado um cheque pela manhã.
A ilimitada expansão de possibilidades irradiava nova tolerância
sobre cada coisa mortal: as amortecidas buzinadas do
empreendimento humano que chegavam até eles, soando na rua, o
guincho desagradável de uma ave imoderada, quase a seus pés, o
casal no relvado próximo, cujas ondulações sob um impermeável
aberto eram como uma lasciva piscadela em direção a eles; os
duques de ferro e almirantes de pedra, fixados no topo de pedestais
e colunas. Tudo apropriado a esta terra, inclusive os oficiais da
guarda em suas túnicas Mao de vermelhão e barretes afro, bem
como o distante reticulado de um arranha-céu que se elevava,
contra cuja ereção ele havia, nos últimos tempos, assinado uma
petição.
Christian afastava-se de insignificâncias, como acontece àqueles que
sentem uma felicidade ou pesar imensuráveis. Sua preocupação
com a importância o inadequara para a grandeza: era um homem
de influência apenas delegada, mas, naqueles momentos,
compreendia o grande coração dos heróis.
A tarde se passou nesse estado de espírito. Christian tomou o braço
de Cordélia no primeiro sinal verde e só o soltou quando chegaram
ao restaurante. Durante o jantar, ele discorreu sobre a Espanha,
onde ela nunca estivera.
— Não adianta negar, Madri é o Prado!
Falou depois sobre as Hébridas, onde ela estivera. Christian ficou
sabendo que a casa de Dulwich fora do avô e que havia mais três
irmãos, além de um tio ensurdecido por quinino em excesso,
durante uma década em Bengala. Além do terrier, havia um gato
franjado, chamado Ruffles.
Tudo isso — os Grecos, os Couillins, o tio e o gato felpudo —
desfilou em brilhante parada, através do espaço, em um estreito
aposento.
Caminharam de volta ao carro pelas ruas amplas e pelas praças
imensas construídas em tempos mais limitados. Apenas um ou
outro veículo passou por eles. Nem uma só alma subiu os degraus
dos clubes adequados ou surgiu das pequenas portadas com
petúnias das grandes corporações. Era possível ouvir-se uma
passada ou gargalhada, por toda a extensão daquela nobre e não
terrena avenida.
Christian abriu a porta do carro para ela e a ficou segurando, mas
de maneira a bloquear a entrada de Cordélia.
— Preciso ver você.
— Eu sei — disse ela.
Ele deixou a porta se mover, e ela pendeu lentamente, abrindo-se
como uma veneziana de uma casa abandonada. No assento traseiro,
de onde havia retirado objetos infantis naquela manhã, Christian
arremessou seu envelope recheado de falsos documentos. Apertou
Cordélia Ware nos braços.
Eles — eles — tiveram quase três semanas, antes da volta da srta.
Mellish. E, por sorte, a sorte se manteve. Como o tempo. A África
continuava quiescente. Os pais de Cordélia partiram para
Dordogne, e Grace considerou que a quinzena extra faria um bem
imenso às crianças.
O próprio Elphinstone, embora tendo voltado de Bruxelas, estava
fazendo um prolongado tratamento dentário.
Christian Thrale conduziu Cordélia Ware, por seu perfeito e
pequenino cotovelo, através de solitárias ruas noturnas e a abraçou
em bancos de parque. Encostava o rosto contra a cabeça inclinada
de cabelos lisos e presos, para então, tomando as tranças douradas
— não havia outro nome para elas —, desfazê-las em mãos
incrédulas. Retribuindo, ela deslizava os braços em torno de seu
pescoço ou lhe aproximava a palma do rosto e a beijava. No
Hillman Minx de Christian, eles cruzaram e recruzaram o Rubicão,
na Ponte de Battersea. Alea jacta est. Como haviam sonhado fazer,
sentavam-se entre as árvores elegíacas.
No tocante a Christian, esses momentos deleitosos deixavam, de
modo totalmente literal, algo a ser desejado. Embora a aparência
virginal daquela jovem o tivesse atraído de início, Senhores, o
tempo está contra nós — mas a favor de Grace, consultando
horários de trens, e da srta. Mellish, no vapor que partia da cabeçadcponte na Normandia.
— Sou feliz apenas em estar com você — disse ela. Deslizava a mão
no braço dele, em um de seus gestos frágeis e precisos. —
Decentemente, não pode se queixar disso.
Ele riu.
— Então — disse —, indecentemente me queixo. Seria incomum ela
pertencer ao tipo pouco decente —
as jovens daquela época nada tinham disso. Pelo menos, não
quando se conhecia uma delas.
Christian não saberia dizer qual postura de Cordélia mais o
deliciava, se quando profundamente encurvada ou esguiamente
ereta. Ou qual de seus movimentos, castos e extravagantes, como os
de uma bailerina. Cordélia tinha aquela maneira de olhar. . . não se
poderia dizer "confiante", exatamente, mas de alguém que
"acredita". Ela solicitava um julgamento. Fazia perguntas simples,
como legítima curiosidade, como querendo descobrir de que modo
o mundo girava. A aparência, os apelos, as perguntas, tinham o
efeito de designar responsabilidade. Christian apreciava ser o
formulador de constituições, o dispensador de inalterável lei.
— Seu método socrático — disse a ela, tomando entre as mãos
aquela face erguida e que lhe sorria, da estatura que tinha sido a ele
conferida.
Cordélia não perguntou o que queria dizer aquilo, mas manteve
firme sua imperscrutável franqueza. Era difícil ver como um olhar
tanto podia ser uniforme como erguido.
Nunca, em quaisquer circunstâncias, ela usou seu primeiro nome, o
nome de batismo. A observação de Christian a esse respeito causou
um ligeiro mal-entendido.
— Achei que você não gostaria disso no escritório — disse ela.
Christian havia imaginado, como lógico e natural, que Cordélia não
o trataria pelo nome no escritório. Há certas coisas que não
precisam ser ditas.
Um dia, ela perguntou:
— A desilusão o perturba?
— De certa forma, para minha surpresa, não — respondeu ele. Não
podia ficar apenas nisso, e acrescentou: — Apenas não gosto de ferir
os sentimentos alheios.
Não estava querendo aludir aos dela.
Foi apenas no final da última semana que ele teve, como se costuma
dizer, jeito para lidar com ela. Os Thrales moravam em um
crescente de residências vitorianas, que um dia tinham sido da cor
do marfim, robustas e ligeiramente irregulares, como uma boca
cheia de dentes fortes. Agora, no entanto, elas estavam descascadas,
riscadas, recapeadas e haviam se tornado uniformes. Foi ali que,
trancando portas e puxando cortinas, Christian finalmente se deitou
em seu leito matrimonial com Cordélia Ware.
Em verdade, a questão das camas não pôde ser dignamente
resolvida. Seria a das crianças ou a dele. Nesse sentido, ela fez uma
de suas perguntas:
— Você se incomoda?
— Em absoluto. — Acrescentou: — De qualquer modo, este é o meu
lado.
É curioso como o abandono gera precaução. Foi naquela mesma
noite que ele começou a esclarecer-se.
— Jamais esquecerei isto. Nada do que aconteceu — disse ela.
Certamente, para empregar sua própria frase, Cordélia não podia se
queixar decentemente daquilo.
— Sentirei um ciúme horrível do homem com quem você se casar —
disse ele. — Aliás, já o odeio.
Ela ficou contemplando o teto, de olhos arregalados, como se não
conseguisse fechá-los. Após um momento, perguntou:
— Como ficaremos, daqui por diante?
— Minha querida, eu não sei. — Afinal de contas, ele não era um
oráculo. Ela olhava para cima, esquadrinhando os céus. — Iremos
tocando de ouvido — ele soltou o americanismo com a entonação
de Elphinstone.
No dia seguinte, Christian telefonou para Peverel. Grace estivera
em Winchester e vira a sepultura de Jane Austen.
— Eu gostaria que você estivesse aqui, Chris.
— A única coisa que aprecio é Orgulho e preconceito.
— Estou me referindo a este verão. Nunca mais será tão bonito!
Seus dias e noites afastados, seus prazeres divididos o deixavam
pesaroso. Grace mencionava o close1, as rosas, o labirinto de
torrentes e os prados além da escola. Segundo ela, a vista de Peverel
sobre o vale naquela manhã era, em suma, esplendorosa. Ele a
interrompeu:
— Não posso ficar falando tanto. Isto está custando um dinheirão.
Durante três semanas, Christian havia se sentido um explorador em
sua cidade nativa. Não porque tivesse levado Cordélia Ware a
muitos lugares, a menos que se contasse uma vez a Chiswick, uma
outra a Greenwich, e à Wallace Collection, onde não subiram ao
andar de cima. Sim, porque a visibilidade clareara para ele, como
para um piloto que navegasse na bruma, deixando à mostra tetos e
espiras, jardins e o congestionado fluxo de ruas em excitante e
1
Área em torno de uma catedral, abadia ou escola, em geral cercada por suas edificações
(moradias dos sacerdotes, etc). (N. da T.)
perigosa proximidade; revelando aves em vôo e gatos caminhando
sobre muros. As curvas da terra e da água haviam se tornado
pontos de referência não mais considerados seguros. Acima de
tudo, ele percebera na forma humana a doce glória dos olmos e
carvalhos de Battersea: vira os homens como árvores ambulantes.
Agora, em uma segunda-feira repleta de normalidade, uma manhã
de donas-de-casa chamando o açougueiro ou vasculhando bolsos de
calças antes de enviá-las ao tintureiro, Christian viajava mais uma
vez pelo metrô. E a srta. Mellish havia chegado cedo, estava
verificando o trabalho acumulado e ainda por fazer, enquanto
murmurava:
— Não estou muito certa.
— Conseguimos ir tocando para diante. — Lealmente. — E,
considerando-se as circunstâncias, acho que não fomos tão mal.
A srta. Mellish, que não tivera sorte com os fruits de mer e cujo
retorno a enchera de afeição pelo Château Gaillard, sentia-se
condescendente.
— Ela tem boa vontade. E isso é muito, nos dias de hoje.
Christian concordou.
— Naturalmente, não é como contar com a senhorita.
— Apenas uma questão de experiência, sr. Thrale. No começo, eu
tinha tão pouca prática como essa moça. A mesma coisa. Todos
temos que começar por algum lugar.
Christian poderia chorar, ao ouvi-la dizer aquilo.
Trouxeram-lhe mais tarde um formulário para preencher, com
respeito ao desempenho de Cordélia Ware. Ele registrou que ela
mostrava boa vontade, que podia assumir responsabilidades e fazia
um trabalho limpo e bem-cuidado.
Grace voltou para casa trazendo uma pesada mala e um pote de
cerâmica com mel de lavanda. Os dois meninos estavam de mãos
vazias. Jeremy pôs jazz na vitrola; Hugh irrompeu por todos os
cômodos, deixando tudo em tumulto:
— Onde está Bimbo? Não consigo encontrar Bimbo!
Todos os assuntos foram trazidos à luz, postos em ordem. Exceto
Cordélia Ware. O vertiginoso espaço ilimitado centraía-se em uma
área decente. Um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar.
Cordélia Ware estava de volta ao escritório geral.
Abruptamente, a situação de Christian tornou-se difícil. Para avaliar
seu isolamento em meio a isso, dever-se-ia saber que Cordélia Ware
havia sido o único episódio não premeditado de sua existência,
desde Grace Bell. Qualquer outra ação precipitada tinha sido
sancionada e requerida pela ordem social e — mesmo quando
levada a efeito sozinha — executada em grandioso concerto. No
empreendimento Cordélia Ware, ele se aventurara por conta
própria. Era uma mutação, como a do peixe para a terra. E
Christian, ofegando no deserto de seixos, sabia-se uma criatura do
oceano e das águas rasas.
Em um livro antigo, aquele era o ponto em que o protagonista
podia acordar, para descobrir que tudo fora um sonho.
Em sua solidão, ele disse: "Sou o culpado". Uma acusação que
raramente encerra toda a verdade. Se Christian atirava a culpa em
algo mais, era, curiosamente, na literatura. Ele culpava — mas esta
não era a palavra — os incitamentos e colorações da linguagem que
haviam colocado visões ante seus olhos e sentimentos em seu
coração. Ele se sentia importunado por ecos que tinham precedido a
dicção, traído por metáforas e exaltações que, adquiridas cedo,
nunca poderiam ser erradicadas.
A literatura era um bom servo, mas um péssimo patrão.
No escritório geral, Cordélia Ware sentava-se ereta diante de sua
Underwood de carro longo. Números orçamentários estavam em
preparação: as máquinas arremessavam-se com violência de ponto a
ponto tabulado, como lançadeiras em uma fábrica têxtil. Ela não se
inclinava mais ansiosamente para a página e, aliviada dessa
ansiedade, ganhara eficiência.
— Aí está você — disse a supervisora. — A experiência lhe fez bem.
Essa supervisora tivera um mau pedaço com os freios em um
cruzamento e agora usava um suporte para pescoço, de espuma de
borracha.
— Uma chicotada — explicou.
Não havia janela. Cordélia olhava para a parede, onde poderia ter
existido uma janela.
De algum modo, e relutantemente, Christian estava a par disso
tudo. Agora, seu tempo não lhe pertencia. A África afinava os
instrumentos: sons desafinados subiam de tetos de zinco e mesmo
dos centros cívicos, forrados de fibra de vidro, onde se esperara que
o ar-condicionado levasse a acordos.
Christian conseguia encontrar-se com Cordélia Ware à hora do
almoço, durante a segunda semana, em um pub bem distante do
escritório. Embora ele tivesse se apressado, quando chegou já a
encontrou lá; se ela tivesse o senso que lhe era nato, não pareceria
tão deprimida. O tempo havia mudado. Agora, as próprias manhãs
eram crepusculares. Por toda parte eram visíveis os sinais do
outono, inclusive do inverno — tardes escuras, espirais de pétalas e
folhas caídas, os mineiros ameaçando greve.
Christian colocou o jornal no bolso do impermeável e sentou-se ao
lado dela.
— O mundo inteiro vai fumegar — avisou ele.
Se aquilo ao menos desse a ela um sentido de equilíbrio... Se, ao
menos, a condição mundial de estopim obscurecesse, minimizasse
ou mesmo tornasse irrelevante seu próprio dilema. . .
— Teremos um inverno amargo — anunciou ele. E ela olhava,
olhava. — Se os mineiros pararem. . . — Não podia dizer se aquele
olhar era firme ou implacável — e não era tampouco inteiramente
desejável. — Claro, ninguém pode negar que a vida dos mineiros é
insuportável.
Se perdermos nossa benevolência. . .
— O povo está do lado deles — disse Cordélia. — Aí está a questão.
— Tépidas shandies1 foram postas sobre o balcão e ele pagou. — Isto
é, eles são heróis. Enfrentar o risco e o poço. . . Todos sabemos que é
aterrador. Em um escritório, nem mesmo isso existe.
Ele não gostou,do que ouvira.
— Não acha que está dramatizando?
Ela se recostou no desenho eduardiano do couro plástico
acolchoado, reclinando francamente a cabeça. Um rapaz no bar
olhou para seu pescoço alvo. Christian pousou a mão no joelho
dela, por baixo da mesa. Perdoe-me, Cordélia; que causa, a sua! Os
olhos dela encontraram os seus imediatamente: Não existe causa.
Christian não compreendia a própria indecisão — ora querendo
isto, ora aquilo. Entendia ainda menos por que a indecisão, no
presente, devia parecer sua única virtude.
Nos livros e filmes, A Mocinha encaminha a situação até um ponto
definitivo. Não nos encontraremos mais, isto é, Adeus, sr. Christian.
Como a maioria das banalidades, via-se agora a fórmula originar-se
em fundamentos. Sem dúvida, Cordélia Ware não iria beneficiar-se
de sua intolerável e recomendável prerrogativa.
Ela pegou um sanduíche coriáceo, cujos cantos levantados
desnudavam uma sardinha esfoliada. Deixou no prato as crostas
duras, com o meio pepino em conserva. Quando saíram, o homem
no bar olhou aberta e ternamente para ela, ignorando a condição de
Christian ou vendo através dela.
Na rua, Christian disse:
— Você arranjou um admirador lá dentro. — Ele não falava de si
mesmo.
— É.
Depois de chamar-lhe a atenção para o homem, ele ficou irritado
porque Cordélia o tinha visto. Obviamente, a qualquer momento ela
irá se interessar por alguma outra pessoa. Tu que passas teus
cabelos, tu que alcunhas as criaturas de Deus, segue o teu caminho.
No táxi, ela se sentou ereta a um canto, com os dedos entrelaçados
1
Mistura de cerveja e gengibirra. (N. da T.)
sobre o joelho. Tantos dedos — sem dúvida, compunham o número
certo, mas aquilo parecia um verdadeiro entrançado de dedos,
dedos. Ao lado dela, a janela estava obscurecida pela chuva
repentina. O táxi escureceu. Cordélia quase o encarava de seu canto,
os cabelos a única coisa brilhante e os olhos com a cor da chuva.
A janela se embaciou como um espelho estragado. Christian disse:
— Estamos chegando.
Ele se perguntava como fazer a necessária separação quando
descessem do táxi, no repentino aguaceiro — ou temporal.
Perguntava-se se, afinal de contas, não amava aquela jovem
incomparável.
Quando ela retornou ao escritório, a supervisora dizia:
— Não temos máquinas suficientes com carro longo. — Elas bem
poderiam estar preparando uma solene procissão. Rolos de papel
pautado eram distribuídos como proclamações. — Se o enrolarem
ao contrário, ele ficará uniforme.
Cordélia sentou-se à sua Underwood de carro longo, de cabeça
baixa, como se desse graças.
Saindo de um elevador, discretamente atrasado, Christian olhou em
torno com a cabeça erguida, um perdigueiro que perdera o faro. Do
escritório geral, chegava o som de máquinas de escrever
trabalhando com medido desespero: últimas mensagens vindas da
ponte. Ele recordou os termos amargos de Cordélia: o risco e o poço.
— De volta às minas de sal.
Era Elphinstone, ele próprio atrasado, chegando de um tratamento
dentário de um canal. Caminharam lentamente. As notícias eram
agourentas. Não poderiam também ter chegado em pior época, com
Barger ainda sob o Mikonos e Talbot-Sims sob a Acromicina.
Elphinstone tinha a última sobre o secretário de Estado.
— Deixou cair um tijolo e perdeu seus mármores. O imperador
Augusto, e daí? — Chegando ao fim de um corredor, deram meiavolta e caminharam vagarosamente, retornando, como uma guarda
palaciana. — Como você sabe, acontece que tive oportunidade de
observá-lo de perto. — Certa vez, Elphinstone se sentara
brevemente no banco dianteiro de um carro no qual havia membros
do gabinete no banco traseiro. — Para ser franco, não existe
discrição. Nenhuma, em absoluto.
Estavam à porta de Christian. Contudo, Elphinstone se deteve,
Elphinstone lamentou.
— Ouça o que lhe digo, Thrale. Não posso alegar que alcancei muito
na vida. Sou franco. No entanto, o que quer que tenha alcançado, foi
por observar os regulamentos. Nunca se é demasiado — ele
começou a dizer "cuidadoso", mas substituiu por "escrupuloso".
Se tais palavras estavam endereçadas a Christian, era discutível. E
ele se envolveu em um debate por toda aquela tarde. A
culpabilidade não sentida por Grace ou Cordélia fora despertada no
que dizia respeito ao escritório. E quanto ao bolo crescente de
Christian Thrale? Era possível que Armand tivesse boa intenção —
e, como um velho amigo, falado em tempo. Ou seria pior continuar?
— com Christian sendo convocado a uma sala silenciosa pela
autoridade, a porta se fechando e um chefe dizendo: "Sua vida
particular, Thrale, é da sua conta, naturalmente", e dando a
entender, claro, que não era.
"E eles se persignaram com medo, Todos os cavaleiros em Camelot."
Entretanto, ele estava deixando a imaginação correr à solta.
Desenfreada.
Sua transgressão fora demasiado breve para provocar aquela
punição tão amedrontadora. Em realidade, era absurdo não se
poder ter um pequeno e verdadeiro amor, sem conseqüências para
o resto da vida.
Especulações razoáveis davam lugar umas às outras loucamente,
repudiadas nos limites da crença. O compromisso mais inócuo se
tornava convocação para a condenação social e profissional. Ele
encerrou as tarefas do dia com a atenção destrutivamente dividida.
Pendurado como um peso morto ao balaústre do metrô, ele pensou:
Isto não pode continuar. Estou me portando como. . . bem, como
Raskólhnikov.
O risco e o poço. Naquela noite ele se manteve perturbado, embora
não deixasse transparecer, durante um espetáculo benemerente
para o qual Grace havia comprado dispendiosas entradas, com
meses de antecedência.
Na manhã seguinte, sucedeu algo espantoso. Cordélia Ware
apareceu em seu escritório. Ela parou à entrada — mais tarde, ele
fantasiou que Cordélia se apoiara contra o batente, mas um floreio
tão grotesco apenas refletia o medo inspirado pelo incidente.
Por um incrível e enorme golpe de sorte, a srta. Mellish não estava à
vista. Christian se levantou de sua mesa — e, nesse ano, parecia que
ele estava sempre afundando naquela mesa ou emergindo dela
como de algum ancoradouro ou lugar de oração.
— Cordélia — disse, procurando evitar que ela se aproximasse. —
Eu talvez não possa. Este não é o lugar mais apropriado. Seria a
última coisa que qualquer um de nós desejaria.
Era hediondo. Pela expressão que mostrava, ela poderia ter feito
qualquer coisa: chorado, gemido, arruinado o rascunho do relatório
que ele elaborava. Christian a tomou pelo cotovelo — a sensação
carregada de impessoalidade quase clínica, como se ela fosse uma
paciente em um hospital — e a encaminhou para a saída. A própria
submissão dela o alarmou. Ele falava, falava.
— Não devemos delatar-nos. Deixar que as coisas transpirem. Não
teria qualquer utilidade. Reflita, Cordélia.
Ela não havia dito uma palavra. Saiu. O terrível diminuiu, com
trabalhosos arquejos, para o altamente lamentável. Uma hora e um
lugar para tudo. Ela não conhece o seu lugar. O posto já havia sido
preenchido.
A mulher era visivelmente neurótica. Desde o início, houvera
aquela insolvida fixação no pai. Considerados todos os pontos, ele
podia congratular-se, por ter escapado por um triz. Nada de falar o
que ela poderia ou não fazer. Seria terrível se. . . mas isso estava fora
de questão. Somente nas peças. Ofélia. A terrível aparição em sua
soleira era, em retrospecto, a sugestão de uma cena louca.
Tudo confuso. As árvores em farrapos, os arbustos desgrenhados
pela chuva. As velas de Dulwich recolhidas e o vento sibilando nos
cordames dos mastros. Era hora de fazer alto, naquele ponto e
àquela altura. Com certa dificuldade, Christian articulou um
encontro com Cordélia Ware após o trabalho. Telefonou para Grace,
acusando a África. Às seis, levantando-se da plataforma de
lançamento de sua mesa, ele podia apenas recordar a si mesmo,
como uma criança, que a essa hora, no dia seguinte, tudo estaria
terminado.
Para resumir uma longa história — sendo essa a maneira como
Christian colocava a questão para si mesmo em anos posteriores, na
sinopse da recordação —, ele se fez claro, de uma vez por todas.
Nada mais poderia haver a não ser o rompimento puro. Como disse
a ela, era a coisa mais difícil que já fizera, em toda a vida. Sou eu o
culpado. Se a magoei, Cordélia. S E , ela disse, e com uma voz. . . Se,
como digo, eu a magoei. Ele nunca vira ninguém chorar antes em
um restaurante — nem mesmo em outra mesa. Era estranho pensar
que, originalmente, tinha sido atraído pela reserva dela.
— Creio que aprendi minha lição — disse ele.
Ela apoiou o cotovelo na mesa e o cenho na mão. Fios de cabelo
descambaram-lhe ao longo da face e passaram sobre a orelha. Em
seu coração, como o inconsciente costumava ser chamado, ele soube
que havia procurado dificuldades. No entanto, odiou cada segundo
daquilo.
Cabia-lhe apenas aceitar a situação. Tentando um discurso racional,
falou a ela sobre o concerto da noite anterior, onde ficara muito
ofendido por interrupções desconexas de aplauso e pelos pedidos
de silêncio que contra-atacavam esses aplausos. O movimento de
censura o reviveu: mais uma vez, o mundo se revelara pouco
merecedor de Christian Thrale.
Ele não mencionou a música.
Ela não pareceu atingida por tais observações. Poderiam ter sido
uma isca para a qual não se içaria.
Houve um instante em que Christian viu transparecer nela, de
relance, que ele era insignificante e patético. Pôde vê-la medindo a
ameaça dele. Pôde também vê-la identificar que a percepção
chegara demasiado tarde, quando já estava presa na armadilha.
Christian agradeceu a Deus por não ter ido de carro e acompanhoua até o trem. Inevitavelmente, tinham acabado de perder um. As
pessoas olhavam em sua direção e depois desviavam a vista.
— Por favor, vá — disse ela. — Vá embora.
Não obstante, ele ficou ali, até o amargo fim. Afinal de contas, havia
sido jovem um dia.
No verão seguinte, Grace Thrale teve seu último e terceiro filho, ao
qual foi dado o nome de Rupert.
Quarta parte
O zénite
29
Na América, um homem branco havia sido baleado e morto em um
carro, e um negro, em uma varanda. Na Rússia, um romancista
emergira do inferno para anunciar que a beleza salvaria o mundo.
Tanques russos rodavam através de Praga, enquanto a América
fazia guerra na Ásia. Na Grécia, as peças de Aristófanes eram
proibidas; na China, os escritos de Confúcio.
Na Lua, o espírito do homem moderno era impresso em solas de
borracha, no mare Tranquilitatis.
No Velho Mundo, a história jazia como uma paralisia. Na França, os
generais morriam. Na Itália, uma população abandonava os campos
para sempre, trocando-os por fábricas de carros ou cardigãs — e os
economistas chamavam a isso milagre.
Manifestantes haviam pulverizado Stonehenge de vermelho-escuro,
com latas de aerossol.
Em Londres, o tempo se tornara aterrador, e a balança de
pagamentos estava à beira do abismo. Havia dois novos livros e um
musical sobre Burgess e Maclean: a Inglaterra estava caquética,
repetindo a anedota única.
Paul Ivory tinha uma nova peça, Ato de Deus, sobre um sacerdote
anglo-católico.
Josie Vail tinha atirado os fichários de um professor assistente pela
janela de um campus. Ela seguira seu guru à índia e vivera dois
anos em uma comunidade no Arizona. Agora, preparando sua tese
de doutoramento sobre técnicas mercadológicas, vivia em
Massachusetts com um rapaz que abandonara os estudos de
sociologia, mais jovem do que ela e que a chamava de imperatriz
Josefina. Seu nome era Burt. Juntos, discutiam as tendências
castradoras de Josie e a necessidade que Burt tinha delas.
— Acho que foi a morte da mãe que a tornou tão convencional —
disse Una.
Burt e Josie referiam-se a seus contemporâneos como os garotos.
Como dispensa de ação, alegavam sua juventude, como se isso fosse
uma desvantagem. Josie explicava que Burt mantinha as próprias
opções em aberto, não percebendo que as opções têm um tempo
certo.
— Eles se desgastam proclamando sua supremacia moral — disse
Una.
Una continuava brilhando. Com o pêndulo da era, ela oscilava de
dia e de noite; luzia em contas e lantejoulas, quando não em jeans
maltrapilhos. Seu nome estava no timbre de muitas instituições
benemerentes, ela possuía uma casa em Vineyard e outra em Puerto
Vallarta. Os cuidados estéticos com o rosto e o corpo, bem como
com as mãos boas e fortes, haviam se tornado um ritual, que seria
demasiado arriscado interromper. Agora, surgira certa solidão para
Una e uma vitalidade ignorada ou sepultada: em seu brilho
dispendioso e na desusada indumentária, ela era como uma mina
abandonada.
As feições de Adam Vail tinham ficado mais esguias. Ele estivera
com alguma doença não diagnosticada. Em sua maioria, os homens
se tornam indeterminados com a idade, mas Vail se reforçava. Sua
paciência e suas energias eram inexauríveis. Em um lugar apinhado,
atraía uma discreta atenção, como poderia acontecer a Ted Tice.
Embora sem olhar para ninguém, os outros olhavam para ele.
Josie ficara mais carinhosa com o pai, a quem visitava, mas não
conseguia evitar a antipatia. Quando ia a Nova York, ficava em seu
antigo quarto, onde se sentava, de pernas cruzadas, à frente de uma
televisão colorida.
— Papai não assiste. Não o censuro, em sua idade já passou da
época. Eu sou jovem, interessada em tudo, certo?
Complacente como uma matrona de cinqüenta anos.
Caroline Vail observava que, para alguns, conhecimento era uma
série de tópicos; para outros, profundidade de percepção. Bocejava
para a própria mentira e para a televisão alaranjada. Josie não era
mais jovem e receava chegar aos trinta; temia trabalhar em sua tese,
quanto mais completá-la. Temia chamar as coisas por seus simples
nomes humanos, em especial quando reagiam com certa forma de
gentileza. Ela não sabia o que adotar, em troca da adolescência.
Agora, quando não fazia mais diferença, Caro quase a amava.
Caro disse que ela e Adam ficariam fora alguns meses, em um país
da América do Sul.
Josie mudou o canal da televisão.
— Vocês têm que fazer isso?
— Não há nenhum risco real, pelo menos no momento.
— Acho que não.
Se pudesse, Josie teria reconhecido que a coragem pode ser
requerida mesmo quando não existe nenhum risco envolvido.
Se pudesse, ela teria tocado a madrasta. No entanto, aquilo se
desenvolvera através dos anos, isso de raramente se abraçarem.
Um homem ficou parado a uma portada branca e olhou para os
Andes. Teria uns cinqüenta anos, cabelos brancos, era magro, com
um andar claudicante que sugeria um defeito ortopédico, mas que,
em verdade, era resultante de pancadas recebidas em uma prisão.
Em outros sentidos, sua aparência era ligeiramente antinatural —
rosado, de lábios jovens e olhos de cílios claros, claríssimos: uma
impressão quase albí-nica, acentuada pelo terno branco.
Tantas das mulheres finalmente atraídas pelo poeta Ramón Tregeár
haviam sentido uma repulsa inicial por sua aparência, que agora a
aversão poderia parecer um prelúdio necessário. Aprisionado em
represália a certos escritos e libertado por uma mudança de
governo, Tregeár tinha vivido dois anos na zona rural. Sendo de
origem urbana, justificava-se com polidas escusas de exílio.
Mantinha a vestimenta perfeita, aquilo o destacava. Além disso,
fizera algo que o colocava além da generalidade dos homens, algo
que desempenhava um papel em sua atração. Havia mulheres que o
amavam pelas degradações que sofrera, bem como por ele haver
resistido a elas.
Arriscar a própria vida por um princípio — e sobreviver — dava
muita força, como uma grande renúncia.
Se o governo atual caísse, como provavelmente aconteceria, Tregeár
provavelmente morreria também — por decreto ou em algum
acidente indispensável.
Na varanda, uma mulher sentou-se sozinha a uma mesa. Nas
proximidades, dois homens conversavam. Não se incomodando
com a exclusão, ela contemplou as montanhas, o vale. Um livro em
seu regaço. Não era jovem, apesar de flexível e esguia, com a basta
cabeleira presa à nuca. Talvez juventude nunca tivesse sido o seu
forte. Tregeár se sentiu atraído, como poderia tê-lo sido — em uma
foto antiga de pessoas famosas — pelo "amigo" não identificado que
fitava além da câmera ou se abaixava para acariciar o cachorro.
Além do mais, eram raras as mulheres visitantes.
Perguntou-se se podia sentar-se a seu lado. Ela ergueu o jornal de
uma cadeira, para que ele ali depusesse o seu chapéu de palha.
Alçados para o homem, seus olhos e sua testa eram belos e seguros.
Ele não pôde ver o título do livro.
O vale, que visto do ar formava um único e imenso estampado
abstrato, ao nível dos olhos revelava elevações e declives
verdejantes. Campos, vinhedos e pomares ofereciam todos os
matizes e tessituras, os troncos das árvores treme-luziam como
pontos costurados expostos, os cursos de água deslizavam. A onda
de cultivo interrompia-se ao pé dos Andes, em uma crista de verde.
Era outubro, primavera, portanto.
Sentada na varanda, Caroline Vail tornou a dizer: Não, não era
como na Austrália. Pensava: Todos estes lugares vistos de relance,
em trânsito. Não conseguia recordar quem lhe dissera certa vez:
"Não é viagem, mas deslocamento". Poderia ter sido Adam ou Ted
Tice.
Bauhinia e jacarandás acumulavam-se nos arredores. Em um jardim
baixo, com flores e arbustos, formando um terraço, um jardineiro
trabalhara toda a manhã. O dono da casa, em um terno de linho,
estava sentado a certa distância da varanda, conversando com
Adam Vail. A bengala de Vail arrimava-se a um cadeira, uma
pincelada negra sobre uma cadeira branca. Folhas de papel jaziam
sobre uma mesa de vime entre os dois homens, e de vez em quando
um deles recolhia uma página e a lia cuidadosamente, antes de
reiniciar a discussão. Falavam em espanhol, e o homem vestido de
linho era o sardento solicitante que Caro vira com Adam, anos
antes, em uma manhã de inverno, em Whitehall.
Três mulheres viviam na casa — a esposa do proprietário, a irmã
dela e uma filha adolescente. Não vinham ficar à frente da casa com
os homens, embora não questionassem o direito de Caro: ela estava
interessada na justiça, portanto, era como um homem. As três
mulheres tinham cabelos negros, eram morenas, estatuescas; três
latinas de faces rosadas, pescoço e ombros pálidos, que protegiam
do sol, corpos para tardes atrás de persianas e noites frias, corpos
macios, como as camas macias onde jaziam. Fisicamente, eram distintas dos criados, indios andinos.
Em seu ambiente próprio, a sra. Vail seria considerada morena. Tais
eram as ilusões de contexto. Haveria lugares — Etiopia, Bali —
onde as latinas embranqueceriam, da mesma forma.
Como eram poucos os visitantes, Tregeár sentou-se ao lado dela e
disse:
— Nunca supus que em minha vida viesse a me dedicar a tais
questões — referindo-se à discussão' na outra mesa. — Nem a
senhora, imagino.
— Bem — disse ela —, não fico surpresa. — Deixou o jornal cair no
chão. — Entretanto, não posso pensar que toda a inação (o que
aconteceu antes e ainda está acontecendo) tenha sido sem
importância.
— Pelo contrário. Essa inação é a realidade que tem o direito de
acontecer. Qualquer esforço adequado contra a injustiça é,
meramente, um acesso para uma confusão mais normal. Quanto a
mim, nada me deixaria mais satisfeito que voltar a discutir coisas
usuais.
Parecia difícil, indiferente, que semelhante homem devesse morrer,
para que Dora ou Clive Leadbetter pudessem desperdiçar todo o
tempo do mundo.
Caro perguntou se ele não poderia abandonar o país antes que o
governo caísse. Ele não respondeu, mas disse, após algum tempo:
— Vicente se comprometeu por minha causa.
A mulher olhou para o proprietário sardento à mesa de vime, a fim
de observar sua qualidade.
— Ele está do lado certo.
— Melhor do que isso, ele não tem lado. Mesmo um lado certo
impõe silêncios enganosos, inverdades requeridas. Como diz o
tímido, existe força — ou segurança — nos números; a
solidariedade, no entanto, é uma extensão de poder, isto é, o início
da mentira. A única solidariedade adequada é com a verdade, se
pudermos descobrir isso. — Tregeár ainda sorriu. Era o sorriso de
um primitivo, que tinha pouco a ver com o que era dito. — Em
qualquer grupo há mestres e seguidores. Mesmo o lado certo
prefere antagonizar o homem que permanece só.
Muito tempo antes, Valda tinha dito: "É o homem in-comum que se
torna o alvo de todos".
— Vicente também tem coragem, porque não sou um homem
famoso. Para a maioria, é mais fácil apoiar uma pessoa eminente em
merecida desgraça do que o indivíduo obscuro que tem estado
errado.
Caro estava ao lado daquele homem obscuro, que se arriscara e
vivera para contar a história, sem constrangimento. Ela disse:
— Também existem aqueles que apoiam os fracos porque se sentem
imerecedores dos fortes. Porque não conseguem homenagear
capacidades maiores que as suas próprias.
Não obstante, ela se perguntava, quem são os fracos; quem são os
fortes? Aquele homem, em realidade, havia demonstrado o
heroísmo que a maioria confina em fantasias pessoais. Em sua
natureza, ele nada deixara para ser contrariado ou exposto. Por sua
causa, era possível contemplar-se a vega1 verdejante como um lugar
onde um homem, pelo menos, conquistara o direito de estar.
— Também há muitos — disse ela — que não se importam se estão
cometendo erros.
— Disse um de nossos poetas: "A desordem também detém seu
encanto". Sua enunciação confere imortalidade, como um
movimento lento faz com que qualquer ato humano seja belo, por
uma aparência de controle. El desorden también tiene su encanto. —
Ele apanhou o chapéu de palha na cadeira e sorriu. — Quer ver o
jardim?
O sol já estava alto. O homem e a mulher caminharam pelo jardim.
Caro se voltou a fim de olhar para Adam, que ergueu a mão e
espiou sua descida azul-clara por entre as flores, em companhia do
repulsivo e encurvado herói. Através do vestido de algodão, era
possível ver-se o formato das longas pernas de Caro em movimento,
como os membros de um nadador.
Um velho cão jazia acorrentado em um retalho de sombra, de língua
pendurada e cauda abanando: um querido bote antigo, batido pelo
tempo e ancorado em porto seguro.
Havia um muro onde jasmins diferentes haviam sido guiados para
o alto, um ou dois deles já despontando em flores. Tregeár chegou
até uma copa florida, enquanto o jardineiro fazia uma pausa para
olhar. As pétalas se sobrepunham ao céu azul.
— Jardineiros e bibliotecários odeiam ver em uso aquilo de que
cuidam.
Ramón Tregeár mostrou o jasmim espanhol, o jasmim-do-cabo, o
jasmim-dos-açores. Havia uma planta imensa em uma tina de
terracota.
1
Terra baixa, bem irrigada e muito fértil. Em espanhol no original. (N. da T.)
— Este é florentino. II gelsomino dei granduca. Um dos Medici, o
grão-duque Cósimo, importou-o de Goa para a Itália, após enviar
expedições para lá, em busca de plantas tropicais. Se recuarmos no
tempo o suficiente, descobriremos que todos vieram da índia ou da
Pérsia.
Em uma manhã daquelas, poder-se-ia amar a terra florida de branco
como se nós — ou ela — estivéssemos na eminência de morrer.
Entregue a si mesma, Caroline Vail podia ter corrido por entre
campos ou jardins.
Um garoto chegou por entre os ciprestes, mantendo uma raquete de
tênis junto ao rosto. Através da vegetação, olhou para eles de
esguelha. Um garotinho vinha mais atrás, em passos curtos e
incertos, gritando: "Andrés". Abaixo das árvores, o jardim
terminava em uma pequena barranca. Homem e mulher viraram as
costas à paisagem e seguiram as crianças pela alameda, subindo os
degraus. O garoto mantinha sua máscara diante do rosto, como um
esgrimista. O cão jazia de lado, agora uma rocha cinzenta,
amarelada devido à idade ou aos liquens. Sobre os cabelos e ombros
da mulher, pétalas brancas aderiam como lascas caídas de um teto
em mau estado.
À noite, em sua cama macia e estranha, a sra. Vail sonhou que
voava sobre montanhas, para finalmente chegar não àquele vale
fértil, mas a uma longa e lisa planície, ilimitada. Muito abaixo,
quadrados e retângulos ocasionais, de difícil cultivo, alinhavam-se
como pinturas colocadas sobre uma parede nua. Pequenas
depressões mostravam-se neuríticas de lama rachada. Nesse ponto,
acordou aliviada por nada ter feito de errado, pelo menos no sonho
De manhã, ela escreveu a Ted Tice:
"Sua carta chegou quando partíamos. Que pena deixar de vê-lo esta
vez! Após algumas aventuras, mais da carne que do espírito,
encontramo-nos entre amigos, em um belo lugar onde a terra ainda
é suprema. Aqui há um poeta que esteve preso e foi torturado por
dizer a verdade. Foi libertado há dois anos. Quando este novo
governo cair, tudo se voltará contra ele. É um velho aos cinqüenta
anos, tem a pele descolorida, os ossos entortados. Caminha como
um atleta que tenha sido acidentado — talvez um artista da corda
bamba que levou uma queda quando fazia seu número sem a rede.
Tem uma bela voz. Seus poemas são muito bons. Tentarei traduzir
alguns de seus trabalhos".
Ela poderia ter encerrado a carta, mas continuou segurando a caneta
e, finalmente, escreveu:
"Querido Ted, estou contente. Não obstante, mesmo neste lugar
silencioso existe o rugido de mau presságio. Como se um avião a
jato passasse acima do paraíso".
Adam Vail chegou até onde estava sua esposa, sentada e
escrevendo. Colocou a mão em seu pescoço, por baixo do cabelo.
Quando Caro se reclinou contra ele, Adam moveu a mão para
diante, sobre o colo, no interior do vestido.
— Você poderia se cansar desta vida e abandonar-me — disse.
— Não acredito no que estou ouvindo.
30
— Gosto deste ecletismo. Na maioria dos casos, o ecletismo é
demasiado sombrio.
— Fico satisfeito.
Ted jazia com os olhos fechados, e quando ela perguntou: "O que é
aquele quadro?", ele respondeu, sem abri-los:
— É um obrigatório grupo de girassóis. Nenhum hotel consegue
licença para funcionar se não tiver um pendurado em cada quarto.
Algo como colocar a lista de preços presa atrás da porta.
— Está brincando comigo. Mesmo assim, gosto deste hotel, é o
melhor. Gosto também do lago.
Ele não lhe estragaria o prazer dizendo que o quarto era mais um
espaço que um quarto, que era geometria sobre o plano do piso. A
um lado, duas janelas expunham o lago, congelado e cinza como
uma janela suja. Trechos degelados de lago eram cobertos por gelo à
deriva. Um vento fustigava o prédio dia e noite, golpeando suas
janelas incrustadas como se batesse tapetes.
— A maior parte de nós trabalha no centro do prédio, as moças,
quero dizer. Isto é, em um lugar sem janelas. Ser indicada para a
conferência foi como sair para respirar, ou coisa assim.
Seria no mínimo polido interrogá-la sobre si mesma, sua vida e seus
pais. O dever social pesava sobre Ted, enquanto ele jazia com um
braço sobre os ombros nus da jovem, porque não queria que ela se
animasse com ânsias e pertences pessoais ou acrescentasse à sua
consciência os detalhes de uma vida a mais. Até falar de tais coisas,
ela permaneceria típica, uma amostra ao acaso; assim que os
mencionasse, embora típica, iria tornar-se singular. No entanto, ele
fatalmente começou: "Como foi que você. . .", abrindo os olhos e
vendo apenas o teto em um quarto obscurecido, do qual
pendia um lustre apagado. Via também a parede com o quadro
recortado e o topo da poltrona verde-ervilha, sobre a qual ela
estendera suas roupas.
Toda a sua infelicidade naquele lugar havia sido típica, uma
amostra ao acaso. A cidade estava condenada por frágil
inevitabilidade — os mais sombrios pensamentos adquiriam um
perceptível caráter e o prazer chegava já pronto, para rápida
saciedade. Ele levara uma moça para o hotel, porque era isso o que
a cidade esperava de sua parte: a solidão havia sido industrializada.
Não obstante, a fornicação, em si, era a própria solidão. Quando, ali,
ele pensou em sua esposa e seus filhos, em seus aposentos pessoais,
eles lhe pareceram saudáveis, era impossível sentir que fossem
banais. E quando invocou a presença de Caro, foi para opor a força
que ela possuía contra uma cidade ou contra o mundo.
—
. . .e depois do que aconteceu, compreendi, hum, que estava
envolvida com coisas negativas, como carências. Quero dizer — o
braço dela girou na escuridão, com a palma para fora —, estava
envolvida demais, entende?
Os cabelos espalhados, o joelho, erguido, o delineado da
sobrancelha e do seio eram adoráveis: quase faziam o quarto ganhar
vida, saindo do plano do piso. Que sorte ela tem, pensou ele, em
escapar impunemente a isto! Possuindo semelhantes características,
ela poderia ser sensível. Uma geração antes e tal episódio
significaria algo para a moça. Ela fingiria até mesmo que significava
algo para mim. Desapontamento foi a única coisa de que fomos
poupados.
— Todos temos nossas depressões. Você é casado, certo?
— Certo. — Essa pergunta, que, mais do que supostamente ela
devia fazer, exigia mais que uma frígida afirmativa, não envolvia
porém maiores explicações. — Ingleses não usam aliança.
— Foi o que ouvi dizer. — Ela lhe tomou a mão e apalpou os dedos,
para, então, inesperadamente, levá-los aos lábios. — Você é gentil,
sabia?
— Não creio que lhe tenha dado muitas demonstrações disso.
— Pois você é gentil. — E, mecanicamente: — Grande. — Colocoulhe a mão sobre o peito bonito e jovem, para dizer, após um
momento: — Casamento feliz, certo?
— Certo — disse ele, sentindo o absurdo da resposta naquelas
circunstâncias, mas desejando desabafar, uma vez mais. — Isto é
muito bom, mas não costumo fazê-lo muitas vezes.
Tudo quanto ele dizia era desinteressante, sentencioso. Dirigia-se a
ela das arrogantes alturas de sua permanente virtude.
— Já amou alguém mais, além da sua esposa?
— Há muito tempo. Antes de me casar.
Caro se transformara no há muito tempo, na lenda.
— Oh. . . isso não conta.
— Sim, isso conta.
— Conta?
— Conta. — Insanamente. Mais uma demonstração das próprias
fraquezas, sou como aquelas pessoas — não como, sou uma delas —
que precisam falar sobre o que as obceca, seus amantes, filhos,
gatos, cachorros, inimigos, patrão, criados, escritório — mesmo
cônscias de que entediam os outros e ficam em evidência. O anseio é
compulsivo nesse sentido, virtualmente erótico. — Talvez seja a
única coisa que conta.
— Poxa!
Ela sentiu, possivelmente, que ficara bem claro qual era seu papel,
pois logo se levantou e apanhou algumas de suas roupas. A água
gorgolejou com força nos encanamentos, um armário emitiu um
ruído metálico, houve dois jatos de desodorante. Quando ela
chegou do banheiro, com as mãos nos cabelos dourados, Ted estava
quase vestido e pensando que nada havia de mais melancólico que
fechar um zíper, à uma da madrugada.
Ele intuiu que ela falaria alguma coisa mais sobre Caro. Havia sido
a única coisa interessante que se passara entre eles.
— Escute — disse ela. — Nós nos relacionamos. Nos comunicamos.
Não acha que nos comunicamos?
Então, também nós estamos fazendo parte do plano do piso: dois
quartos com uma porta de comunicação, para luxúria ou solidão.
Ted sentou-se na beirada da cama.
— Venha cá.
Ela ficou em pé, com as palmas das mãos em seus ombros,
encontrando-lhe os olhos na semi-obscuridade. Um cão de boa
índole, que se aproxima e pousa as patas na gente, a olhar-nos,
tendo em mente sabe Deus o quê, se é que existe alguma coisa. No
entanto, ela perguntou:
— Você nunca mais a viu?
O tom de sua voz baixou, de modo racional, crucial, como se o
jargão — que ela havia empregado mesmo no ato — também em
seu caso fosse uma afetação a ser posta de lado, em troca do
autêntico.
— Umas duas vezes por ano.
— Ainda dorme com ela?
— Nunca dormi com ela. — Proclamava o fato com grotesco
orgulho, porque fornecia a escala de sua devoção.
— Fantástico! — exclamou a moça, parecendo adequadamente
reverente, embora talvez pensasse também: Deve ser biruta.
— Ela regula em idade com você, certo?
— É mais nova alguns anos.
Àquela altura, três ou quatro anos, para aquela jovem, mal faziam
diferença.
— Você devia. . . — disse ela.
— Devia o quê?
— Bem. . . Pelo amor de Deus, a gente só vive uma vez!
Ela supunha que Caro o amava. Ted a afastou e levantou-se,
dizendo, antes que a verdade a atingisse:
— É melhor chamarmos um táxi para você.
31
Adam e Caro voltaram da América do Sul para Nova York durante
uma onda de calor. Houve uma demonstração contra a guerra. No
final de sua rua, uma fileira de cavaletes cinzentos era guardada por
dois policiais em cavalos avermelhados e por outro a pé. Havia o
cheiro de alcatrão ainda recente e do suor de cavalo e homem. A rua
estava rachada, as sarjetas, descuidadas. As árvores tinham sido
podadas ou estavam doentes. A porta dos Vails, que agora tinha
uma complexa fechadura, podia ser aferrolhada por dentro, depois
trancada com cadeado. Tudo isso levava tempo. Quando eles
depositaram as malas no corredor, Vail ligou o rádio, que dizia: "Os
metais não-ferrosos caíram e as ações de algodão compradas a
termo fecharam em alta". Eles podiam ouvir a polícia montada
falando por rádio e, além da barreira, o neutro ulular de uma
ambulância. Na casa trancada, homem e mulher abraçaram-se,
porque um mínimo de segurança pode ser alcançado sob quase
quaisquer circunstâncias.
Havia cartas empilhadas sobre uma mesa. Um jornal dobrado
revelava pela metade um escândalo presidencial: "É um ultraje",
declarava um professor de Harvard, que pedia para não ser
identificado. De Palmerston North, Dora escreveu que jamais
perdoaria Trish Bootle enquanto vivesse, e que estava considerando
seriamente a Irlanda.
— Em sua idade — comentou Caro. — Ir para onde nada é familiar!
Adam respondeu:
— Séneca disse sobre Aníbal — que já velho ofereceu seus serviços a
qualquer rei em guerra contra Roma — que ele podia viver sem um
país, mas não sem um inimigo.
Caro podia ver o epitáfio, fincado em relva irlandesa.
Pela manhã, Caro sentava-se à mesa para traduzir o trabalho de
Ramón Tregeár. Aqueles poemas haviam sido concebidos em uma
prisão. Quando o poeta lhe escreveu: "Mas, então, eu os tinha
apenas na cabeça", ela pensou em Rex Ivory, cavando sepulturas na
Malásia, trinta anos antes. Como Rex Ivory, que no campo de morte
homenageara o Derbyshire, também Tregeár, em sua prisão
infernal, recordara o amor das mulheres.
Tregeár havia dito que, se as coisas fossem bem, logo enviaria as
páginas restantes. E Caro perguntou-se se chegaria a vê-las. O
volume seria intitulado Luz a media-noche.
Alguns meses após, um editor devolveu a ela as páginas de
amostra, com explicações sobre o mercado. Ele notara o título
miltoniano e fizera uma brincadeira literária a respeito do nome do
tradutor: "C. Bell". Outro editor, que havia publicado um estudo
acadêmico sobre literatura dissidente, devolveu o manuscrito com
um comentário sobre o título koestleriano, acrescentando: "Temos
antes a impressão de que fizemos nossa restrição pro bono publico
este ano".
Adam Vail falava ao telefone em espanhol. Ele foi ao outro extremo
da cidade para ser entrevistado na televisão, e apresentaram-no ao
chefe do noticiário da rede, que lhe disse:
— Creio que estamos um bocado violentos, Adam, para fazermos
esta entrevista.
Tendo acompanhado Adam ao estúdio, Caro foi conduzida a uma
sala às escuras onde, segundo lhe disseram, a imagem sairia nítida,
em uma grande tela. Ela se sentou em uma cadeira aveludada, e
esperou. Três homens entraram também e acomodaram-se à sua
frente. Ela os vira no corredor, homens bem-vestidos, com cabelos
pintados de escuro e lentes de contato coloridas. Ignorando sua
presença ali, eles comentaram que os altruístas raramente recebiam
o valor merecido.
— Basta ver-se Stevenson.
—
Stevenson. . . Entrou em órbita nos últimos anos.
Compromissado um dia, descompromissado no outro. Talvez ele
acreditasse realmente que havia essa proposta de paz, de maneira
que se manteve firme.
— Acho que ele caiu por causa disso, dessa proposta de paz.
Acredito que morreu convicto de que se Bundy e Rusk fossem
reunidos em uma datcha, nos arredores de Rangum, Hanói
forneceria as provas.
— Entretanto, ele não pôde ser aprovado na Casa Branca. Rusk o
deteve.
— O que o impediria de pegar o telefone, pelo amor de Deus, e
discar para a Casa Branca? Quando ele pensou nisso?
— No outono de 64.
— Não; eu diria que foi em junho de 65. E ele morreu em julho. Um
mês, então.
— Sessenta e quatro. Quem sabia alguma coisa em 64? Em último
lugar, nosso serviço noticioso.
— Nunca vou esquecer, fizemos um programa sobre Stevenson.
Quando ele morreu. Seria embaraçoso repeti-lo agora — não que vá
ser repetido, que diabo, jamais! Céus, foi o mesmo que nada —
alguns instantâneos, a primeira convenção, a segunda campanha.
Discursos, jogos de palavras, Stevenson perdendo pontos. Perdendo
pontos, meu Deus, caindo e caindo. Um programa de nada. Nem
uma palavra sobre Kennedy, sobre o Vietnam.
— E sobre a baía dos Porcos?
— É o que estou lhe dizendo, nada. Certo, eu divulguei aquilo, tudo
bem, portanto, estou usando um cilício. Só que não mostramos
nada. Quando o programa terminou, chegou alguém com o aviso,
Washington na linha, a Casa Branca ficou muito satisfeita. Pode
apostar que estavam satisfeitos — céus, quando agora penso
naquilo, suspiro de alívio! Nem uma palavra sobre a guerra, nada.
— Kennedy, é dele que estamos falando — Vietnam, os dezesseis
mil. A baía dos Porcos. Encare a coisa. A baía dos Porcos. Sabem se
esse biruta, esse Vail, pretende ressuscitar a baía dos Porcos?
— Lembre-se dos birutas que costumavam tomar dinheiro
emprestado com Ed. Lembre-se de que costumavam aparecer em
seu gabinete: Ed, consegui esta história, Ed, arranje-me dez pratas.
Bem, apareceu esse sujeitinho, Ed disse: Talvez haja alguma coisa
nisto, Sam, você vai até a Flórida com ele. Sam voltou: Céus, Ed, o
cara era doido! Esse doido pensa que Kennedy vai invadir Cuba.
Desta vez comprou gato por lebre, Ed. Meu Deus, que louco!
— Ele não acreditou na história?
— Bem, ele pensou: Por Deus, se isto for verdade. . . Só que ele não
podia acreditar. Mais tarde. . .
— De qualquer modo, não podíamos divulgar o caso, seria traição.
— Estou sempre me perguntando por que a imprensa não fez isso, eles tinham toda a história, o caso da baía dos
Porcos completo.
— Seriam crucificados, não poderiam divulgá-lo.
— Pois sabe o que Kennedy disse a eles, mais tarde? Se vocês o
publicassem. . .
— Certo, se vocês o publicassem, poderiam ter me detido.
— Ter me salvado. Vocês poderiam ter me salvado. Foi como ele
disse: Se vocês o publicassem, poderiam ter me salvado.
— Kennedy, é sobre o que estamos falando. Vietnam. os dezesseis
mil.
— E mais do que isso. As entrevistas. Dean Rusk, Mac Bundy,
McNamara.
— Lyndon Johnson.
— Johnson pensava que fosse a Coréia.
— Johnson pensava que fosse o Álamo.
— Munique, é o que eles viviam dizendo. Céus, Munique! Onde
eles estiveram.
— Ensinaremos esta lição a eles. Esta lição aos homenzinhos
castanhos. Era o que eles ficavam dizendo, daí o motivo de nunca se
poder levá-los até aquela datcha, nos arredores de Rangum. Mac
Bundy naquela datcha, ora, não me faça rir!
— Então, a quem acusaremos? Quem são eles? O Pentágono? Ou
seriam Westmoreland, Abrams, Walt?
— Walt? Deus do céu! Ele foi o único que me disse: Você pode
aparecer com um tiro nas costas. Aquilo foi Cam Ne, nem ao menos
My Lai, foi Cam Ne, e eu perguntei: Onde estão essas pessoas, uma
cidade inteira desapareceu, onde estão as pessoas? Foram
realojadas, respondeu ele, contemplando seu leite, estão em
acampamentos de refugiados, foram dispersadas. No final, ficou
como se o exército dos Estados Unidos não houvesse tomado parte
na coisa, e foi tudo atribuído aos sul-vietnamitas; eles tinham aquilo
em sua lista, juntamente com outras aldeias que não haviam pago o
que deviam, ó céus, meu Deus! Assolá-las, era essa a terminologia,
assolá-las. Portanto, no fim de contas os responsáveis teriam que ser
Rusk e Johnson, não é mesmo? Não seria o lógico? Colocá-los no
banco dos réus? Imagine!
— No fim, Rusk se passou para aspirinas e álcool.
— Eu não sabia sobre as aspirinas.
— Cambodja, Laos, fizeram o Vietnam parecer acadêmico. É melhor
encarar isso. O Vietnam do Sul conseguiu um litoral a leste, eis o
único motivo de agora precisarem dele. Uma vez contornando, uma
vez estando no Cambodja, Laos, que importa a eles? Não se pode
conseguir uma história no Laos. Diabo, consegue-se um bocado de
histórias, mas é um reino de situações míticas. Quem vai arriscar o
pescoço? Não se pode pedir a correspondentes que arrisquem o
pescoço, que americanos morram lá, exceto um bocado de pilotos,
que não temos permissão de mencionar. Excetuando-se um ou dois,
são correspondentes de segunda linha no Laos e no Cambodja. Há
vazamento de informações, todos sabem disso, pode-se descobrir o
que está acontecendo.
— Isso é pular de um assunto para outro. Estamos falando sobre o
que não conseguimos sondar ou sobre o que não temos peito para
publicar?
— Escute, eu posso arranjar mais facilmente trinta e três histórias
sobre uma greve dos Correios na Itália ou sobre a princesa Margaret
Jones do que sobre o Laos ou o Camboja. Além do mais, há o risco, e
quanto ao risco, é a sua palavra contra a deles, Washington entra de
sola, a coisa não aconteceu. Se diz que nada aconteceu, o que você
vai fazer?
— Hum-hum. Veja San José. Nixon disse que nunca viu maior
violência: buracos no carro, pedras, as pessoas jogavam pedras,
Agnew contou, todos eles contaram. Pior do que a guerra. Na
segunda-feira, estavam dizendo que era principalmente violência
verbal. Então, após a votação, talvez não houvesse violência
alguma. Sem denúncias, nada. Suponhamos que eu divulgue uma
história nessa noite, suponhamos que eu diga: marmelada na
eleição. Suponhamos que eu diga: o presidente está mentindo, está
MENTINDO , O que imagina que farão comigo? Ninguém vai assumir
tal tipo de risco.
— Talvez aí esteja o erro. Talvez seja porque a televisão. . .
— Não se trata apenas do governo, nem mesmo do governo. Pode
imaginar os telefonemas, pode imaginar? E não somente dos
telespectadores. Os telefonemas dos patrões, das autoridades.
— Estou dizendo que talvez aí esteja. . .
— E se todos divulgarem? Deixe-me terminar. Se você conseguir
todos os noticiaristas, se conseguir tudo? Boas perspectivas.
— De qualquer modo (uma semana mais tarde, quem se
preocuparia?), ele mentiu, portanto, ele mentiu. Teddy mentiu,
Henry mentiu, Laird mentiu, Helms mentiu, Nixon mentiu
desbragadamente, George Washington jurou que não abateu a
maldita cerejeira. Então, uma semana mais tarde, quem estará se
importando?
— Em ano de eleição, eles se importam como o diabo.
— Não com a guerra. Guerra não é problema eleitoral. Nixon dirá
que lhes demos a maior oportunidade. Desmentindo, afastandonos, não temos culpa. A paz está ao alcance, certo? Olhe para os
rapazes — o arrebatamento morreu com o cartão de recrutamento,
com o risco de suas próprias peles. A economia, o dólar, a grana.
Ano de eleição é assim, o que vale é a grana.
— A honra. Se posso terminar. A honra dos Estados Unidos. Você
não me entendeu, falo sério. A honra é um truque tão bom quanto
outro qualquer. Eis o que Nixon podia fazer. Jogá-la no colo do
público: Eu me atenho aos princípios, vou parar com a guerra.
Saindo. Agora. Jogar ao mundo: Vocês defendem os vietnamitas,
certo? Vocês inventaram a maldita datcha nos arredores de Rangum.
— Ninguém pode propor isso. Ninguém tem essa influência.
— O presidente. Ninguém mais tem essa influência.
— E sobre a influência nesta sala? A influência coletiva.
— Agora faremos uma pausa para o comercial axilar.
— Falo sério. A influência coletiva.
— Seja como for, aí vem a coisa, veja a imagem. Os altruístas
sempre têm algum interesse pessoal. Lembre-se de que não
precisamos rodar isto de ponta a ponta.
Na manhã seguinte, um jornal importante publicou um editorial:
"O sr. Adam Vail executou um engenhoso trabalho em sua
entrevista pela televisão, ontem à noite, ao descrever a 'séria
agressão' praticada contra a América Latina por gigantescas
corporações americanas, segundo suas alegações, com a conivência
e o dissimulado apoio do Governo dos Estados Unidos. Ele
arrancara entusiásticos — e automáticos — aplausos de elementos
irresponsáveis de nossa dividida sociedade. Por vezes, Washington
pode ter agido inabilmente na América Latina, mas o sr. Vail
manejou sua vassoura verbal com exagerada amplitude, quando
sugeriu que esforços clandestinos do Governo dos Estados Unidos
assegurariam, como ele declarou, que pelo menos um líder latino
eleito 'não completaria os cruciais próximos seis meses'. Sua pior
distorção foi a afirmativa de que, em determinadas áreas, a
intimidação dos eleitores foi levada a efeito com fundos de fontes
oficiais dos Estados Unidos. Nos comentários do sr. Vail houve um
elemento de perigosa deturpação, para o qual seus telespectadores
deveriam estar cônscios".
Adam largou o jornal e disse:
— Nunca me agradou ver governo escrito com G maiúsculo.
Antes de sua prisão, Ramón Tregeár deu a um amigo que
abandonava o país a parte restante de seu manuscrito. Quando as
páginas foram entregues a Caroline Vail, ela encontrou uma nota
entre as folhas, endereçada a ela: "Se minha morte for espetacular,
você conseguirá publicar isto. As pessoas tendem a acudir à cena do
crime ou do acidente". O rapaz que levou o envelope contou a eles
que Tregeár havia sido aprisionado em uma ilha distante da costa
da América do Sul, em condições não propícias à sobrevivência. No
fim do ano, soube-se que ele havia sido levado de volta ao
continente, com a saúde abalada, e morrera em uma prisão, na
capital. Foi o sardento Vicente que, do México, escreveu para eles
dando essa notícia, e acrescentou: "Ele passou o cativeiro cativo".
— E ascendeu — disse Adam —, tendo antes descido às partes
inferiores da terra.
A história da morte de Tregeár, quando revelada, mostrou-se atroz.
E, como ele havia predito, resultou em uma acolhida favorável ao
seu trabalho, fora de sua terra natal, bem como na distribuição
clandestina dele na cidade em que nascera, onde, nos últimos anos,
tivera poucos leitores.
32
— Contente por estar em casa?
Margaret jamais fizera tal pergunta antes. Parou diante da mala
aberta, separando o que devia ser pendurado do que seria lavado,
manejando camisas e fôrmas de sapatos. Estirou um roupão em
uma cama. Enquanto isso, Ted Tice também espalhava meias e
gravatas, como condecorações, dizendo:
— Não é uma volta, é uma ressurreição.
— Desta vez, nem tenho certeza dos países em que você esteve.
— Nem eu, neste momento.
Entretanto, não fosse o decoro de desfazer a bagagem. algo que faz
as coisas seguirem por fases, ele teria feito amor com ela ali mesmo,
naquela hora. Se Margaret fosse sua amante, Ted a arrastaria para a
cama. À sua maneira, o casamento impõe formalidades.
Naquela manhã, ainda cedo, Ted atravessara Londres no topo de
um ônibus do aeroporto, aflorando árvores e chaminés e
descrevendo pesados arcos em torno dos pubs de esquina. Como
Deus, ele havia espionado o interior de quintais com espinheiros e
varais de roupas — e através da janela de um sótão, vira a luz fresca
do sol batendo no assoalho e a figura alta, corpulenta, de uma
mulher idosa lendo suas cartas. Um gato preto rastejou entre
cortinas de renda, para instalar-se em um peitoril, estirado como
um pão. Um homem com o boné caído para trás na cabeça e um
relógio de ouro no pulso esguichava água com uma mangueira, em
uma calçada da Fulham Road. Tudo isso podia ser normalidade — a
menos que o que ele deixara, o mundo informe dos aeroportos e
instalações, fosse agora normalidade, enquanto essas cenas
humanas e racionais se reduziam ao anacronismo.
O último segmento de sua jornada fora o melhor: ele nunca se
divertira tanto em uma viagem de trem, sentindo um prazer
consciente em irritações familiares com sujeira e atraso. Sua própria
fadiga lhe trouxera sensações de bem-estar, porque ele cochilou e
acordou, vezes sem conta, para o luxo da tranqüilidade. Sua
presente acolhida à terra natal havia sido excessiva, porque antes a
subestimara. Uma nota de desculpas também correu através
daquela prece matinal de todo o seu distrito doméstico.
— Escute, antes que me esqueça. . .
— Estes são para as crianças, poderia colocá-los em algum lugar?
— Oh, sim, que gentileza! Suas cartas estão na secretária, já me
incumbi das contas.
— Alguma coisa interessante?
— Você verá. Abri um telegrama, mas não era nada. Há alguns
recortes de jornal sobre o anel viário para descongestionar o
trânsito. Viu, nos jornais de ontem, a morte daquele homem que
você conheceu na América?
— Vendler, não? Soube que ele estava próximo do fim.
— Sim, acho que era esse o nome. Podemos tomar chá no jardim.
— Quer que eu leve essas coisas para baixo?
— Não precisa, obrigada. Eu dou um jeito.
Ted foi preparar o banho, depois cruzou o banheiro e entrou em seu
estúdio. Uma obscuridade congênita de cortinas cerradas, de mesa,
cadeira e lápis em suspensão temporária; a secretária, um altar no
qual haviam sido dispostas oferendas de jornais, por seu retorno em
segurança. Era um instante arqueológico, ele poderia dizer como era
aquele aposento sem a sua presença: o momento da entrada, vivo,
em uma tumba.
Tinha na cabeça a frase da música canalizada para seus ouvidos no
avião, e começou a trauteá-la, enquanto permanecia de pé junto a
suas cartas, a gravata afrouxada e pendendo para diante. A
correspondência tinha sido dividida em profissional e particular,
havendo também uma pilha de circulares, recortes, solicitações, e
uma revista dobrada, marcada em vermelho. Embora há muito
esperada, a morte de Vendler ainda era um choque. Nem seria
preciso falar sobre quem venceria uma pequena e mesquinha
disputa que agora teria lugar sobre a vaga daquele posto ou como,
nesse ínterim, seria conduzido o trabalho.
Ted recordou que apreciara Vendler como homem, e estava
consciente de que isso lhe vinha como uma reflexão tardia.
Escreveria à viúva com particular delicadeza, procurando isentar-se
de qualquer mancha ou suspeita de desumanidade.
Não era Vendler quem havia morrido.
Morto na América. De repente, em sua casa, após uma ativa
carreira, marcada por e culminando em, considerado arredio, mas
com amigos leais como, recentemente condecorado, viajado,
resistente, estabelecido, recuperado. Casado duas vezes: a primeira,
e então com uma antiga. . . Uma filha da primeira união.
Sofrera um enfarte. Morto e desaparecido, em um átimo.
Tranqüilamente. Adam Vail jazia em paz sobre uma cama, sua
bengala-espada repousando — ou impotente — em um armário.
O cientista Vendler continuava vivo, sua sentença adiada
temporariamente: ainda útil e apreciável. Era para Caroline Vail que
Edmund Tice escreveria com particular delicadeza.
E a antiga Caroline Bell, onde estaria agora? Para onde escrever-lhe,
expressando seu abalo e sua simpatia? O abalo era bastante real, ele
mal conseguia focalizar palavras ou objetos. Um peso de papéis de
vidro subiu e caiu, ricocheteando no aposento obscurecido e no seu
esbatido reflexo no espelho, pela porta aberta do banheiro. Ted Tice
jamais desmaiara na vida, mas agora se sustinha com a palma das
mãos sobre a secretária.
A banheira estava cheia e a água começava a fluir pelo escoadouro
cromado, abaixo das torneiras. Ele foi até lá e as fechou, resolvendo
aquela emergência secundária, aliviando-se um pouco, dessa forma.
Quando o borbulhar e gorgolejar cessou, houve também um
decrescente fluxo e refluxo de percepção. O espelho mostrava
apenas um reflexo de sentimentos, nem todos vergonhosos ou
desavergonhados: ele jamais encontrara em sua mente um espelho
ou palavras que pudessem refletir a potência ou a dor de sua
obsessão.
Voltou ao estúdio e recolocou os recortes onde haviam estado antes.
Percebia que mudara: seu estado de ânimo da manhã não podia ser
recriado, eles haviam visto o final dele. Não deviam saber que a
mesa fora tocada nesse meio tempo. A manhã havia sido um estado
de júbilo prematuro — horas em que ele havia esquecido Caro e
fora livre.
Suas mãos tremiam horrivelmente. Já havia pensado, por várias
vezes, que seu amor podia ser loucura.
Depois de tomar banho e vestir-se, desceu e foi para o jardim. A
bandeja do chá estava sobre uma mesa à sombra do toldo. Sua
esposa saiu da casa com um gato amarelo-avermelhado no colo e
ficou parada ao sol, esperando sua deixa. A grama estava
ligeiramente crescida, as flores tão delicadamente esbatidas em
cores misturadas, que se poderia pensar estarem se tornando
silvestres, incultas. Era o tipo de jardim que Margaret apreciava; ela
o planejara por completo. Ted o elogiava com regularidade, exceto
por uma parede, onde ela plantara pequenos arbustos, todos
diferentes um do outro. Certa vez, ele havia dito:
—Isto é muito calculado. Parece desapaixonado. Ela considerou
aquilo uma estranha crítica a ser feita
por um homem. Margaret tinha excelente postura, o que a tornava
alta. Era sempre a mesma, calma e distinta, além de inocente, exceto
na medida em que o sofrimento a transformava. Seus cabelos eram
muito claros e brilhavam em pequenos anéis ao sol. Olhos grandes e
azuis, não inquisitivos. Quando se aproximou, chegou o rosto ao
pêlo do gato, oferecendo a carícia que seu marido poderia rejeitar.
Mudou a posição do gato no colo, posto que ele parecia esperar algo
mais. Ted permaneceu sob o toldo, perto da mesa. Ambos estavam
quietos, encarando-se: não unidos, não opostos.
Ele disse:
— Se você conhecesse sua beleza. . .
Até mesmo o gato ouviu. Margaret replicou:
— Se eu conhecesse, o que aconteceria?
— Você faria o mundo balançar.
Os dois sabiam o que ele queria dizer: Você encontraria um homem
que a amasse realmente.
33
Quando Rupert Thrale tinha treze anos e um problema nas costas,
sua mãe o levou a um novo hospital, do outro lado do rio. Depois
que as radiografias tinham sido estudadas, foi novamente Grace
Thrale quem permaneceu ao lado dele em uma sala de espera,
enquanto o garoto folheava um livro sobre marsupiais e testava um
ladrilho frouxo de borracha com a ponteira de sua bota colegial.
Quando, ao nome de Thrale, os dois se levantaram juntos para
serem conduzidos a um consultório médico vazio, caminharam com
os braços se tocando. E, ao se sentarem sozinhos ao lado de uma
escrivaninha, Grace se inclinou para diante, levada por sua
ansiedade, e beijou o garoto. Então, a porta se abriu.
O homem que entrou viu a mãe pendida para a frente, com o braço
estendido no espaldar de uma cadeira, o pescoço curvado em
desamparada solicitude, os lábios nos cabelos do filho, os quais se
confundiam pálidamente com os seus. Nesse instante, ela se virou e
olhou. E Rupert, levantándose, desligou-se da carícia materna.
O que Grace Thrale viu foi um homem robusto, de cerca de trinta
anos, de cores nórdicas — corado, de olhos azuis, cabeleira
brilhante e trajado de branco — parado na soleira de uma porta.
Foi um quadro breve, mas até mesmo o garoto o recordou.
Sentaram-se os três à escrivaninha e o jovem médico disse:
— Não se preocupe.
Colocou uma série de radiografias presas a uma armação metálica e
as iluminou: os segmentos chanfrados, os arcos costáis, a cinzenta
estrutura articulada de uma existência a descoberto, com seu
augúrio mortal.
— Estas são as que chamamos de vértebras dorsais.
Ele apontou com um lápis. Grace olhou para a mortalidade de seu
filho — irrompido todo o tecido respirante, tudo o que fosse móvel
ou adormecido podia ressentir-se ou comprazer-se. Era como se ela
olhasse para o remanescente ossificado, em uma sepultura de
criança.
Teria que haver uma cirurgia corretiva — que era delicada e
raramente executada, envolvendo uma haste de aço inoxidável. Não
afetava o crescimento.
— Prometo a você que ficará melhor do que novo.
O médico se dirigiu ao menino desta forma, animador, em voz
grave e clara, com leve sotaque escocês, incluindo a mãe por um
filamento de experiência que era quase terno. Em outra época, seu
rosto, que revelava cor e gentileza, poderia ter sido belo. Seus
cabelos luziam, dourados o bastante para serem vermelhos.
Quando saíam, ele disse a Grace que ela devia marcar uma
entrevista para vir com o marido.
— Precisamos discutir o caso com o cirurgião. Christian Thrale
estava envolvido em negócios de seu
país, conferenciando em Dar es Salaam. Grace voltaria sozinha na
quinta-feira.
A porta, havia um letreiro saliente: "Angus Dance, médico".
Na quinta-feira, ele iluminou as radiografias e apontou com o lápis.
Disse que aquilo seria difícil, mas tudo terminaria bem. Contavam
com o melhor homem de Londres para o trabalho. Grace Thrale
sentou-se ao lado de Angus Dance, a fim de olhar para as chapas, e,
manuseando uma delas, deixou uma trêmula impressão de dedos
úmidos. Quando o cirurgião chegou, Dance levantou-se e ficou ao
sol, junto à janela, -onde se tornou branco e dourado, um serafim,
um risco de chama.
Grace disse a ele que seu marido estava vindo para casa e que
assistiria à operação.
— A senhora será atendida por meu colega. Estarei de licença nessa
semana. — Percebeu que ela ficou perturbada. — Serão apenas
alguns dias.
Quando o cirurgião os deixou, Dance se sentou para preencher sua
parte em um formulário. Disse a ela que iria à casa dos pais, perto
de Inverness.
— Como está Inverness atualmente?
— Oh, como todos os lugares, cheio de japoneses. — Relendo o
formulário, acrescentou: — Somos vizinhos. Vejo que mora no
Crescent. Eu moro na esquina, no prédio pintado de azul.
Ambos concordaram que não gostavam do tom. Grace disse que
costumava passar freqüentemente pelo prédio, tomando o atalho
pela passagem atijolada — que, anteriormente reservada aos
pedestres, agora vinha sendo violada. Sabia que o médico estava
dizendo coisas convencionais para acalmá-la, e foi acalmada pela
intenção humana dele.
O médico disse:
— Rupert me atropelará lá um dia, em sua bicicleta, e eu vou sair de
lá de maca. — Devolveu a ela o formulário e lhe tocou a manga: —
A senhora está ansiosa, mas não há necessidade.
A operação correu tão bem, que Christian Thrale voltou para Dar es
Salaam em uma questão de dias. O garoto ficaria cerca de um mês
no hospital. Grace ia lá de manhã e à tarde, levando revistas de
histórias em quadrinhos, um quebra-cabeça, pijamas limpos. Havia
uma lanchonete, onde ela almoçava.
— Como estava Inverness?
O dr. Dance carregava uma bandeja.
— O acesso para o Oriente. Fico satisfeito por Rupert estar indo tão
bem.
O corpo ereto dele dava uma impressão ampla, ao mesmo tempo
grave e forçada. Tinha braços curtos e musculosos, com pêlos
ruivos.
Sentaram-se juntos, e Grace transmitiu a gratidão de Christian, em
viagem na Tanzânia, e mostrou-lhe até mesmo uma carta. O alívio
emanava dela em formas de elogio: as enfermeiras eram muito
gentis, o cirurgião, o médico de Karachi. A irmã Hubbar era uma
santa, e Rupert ficaria irremediavelmente perdido com tantos
mimos. Então, disse:
— Bem. . . Não há motivo para estar ouvindo isto, em seus
momentos de folga.
Seus cabelos claros eram esculpidos, caindo de uma divisão central,
em alas sobre as orelhas. De vez em quando, ela os tocava, e um
anel cintilava na mão erguida. As unhas, sem esmalte, tinham o
comprimento adequado a uma dona-de-casa.
— Como foi sua viagem?
Ele disse que sempre tomava o trem. Seus pais levavam uma vida
isolada, mas agora tinham televisão. A casa, que ficava em Black
Isle, era sempre fria, não apenas por falta de calefação, mas pela
austeridade.
— Eles gostam dela sem muitos móveis. Como seria de prever, eu e
minha irmã preferimos o atravancamento. — Havia apenas um
quadro na casa: — Uma foto emoldurada do Tirpitz, que afundou
no dia de meu nascimento. Ou, pelo menos, naquela manhã é que
chegou a notícia de que o tinham afundado.
A irmã dele também era médica e vivia em Edimburgo.
Grace imaginou os dois velhos sitiantes na casa rígida, proferindo
monossílabos como aye, wee e yon '; a irmã solteira, uma corada
pediatra vestindo tweed, provavelmente chamada Jean.
— Eles devem sentir muita falta de vocês dois.
— Meu pai ainda trabalha como consultor. É engenheiro. Então, eu
os visito com regularidade. E Colette irá passar a Páscoa com eles.
Em verdade, é duro para ela, sendo casada e tendo família.
Nessa noite, Grace perguntou, em um jantar a que fora convidada:
— Alguém se lembra em que ano afundamos o Tirpitz? Aconteceu
que Grace Thrale e o dr. Dance se falavam
todos os dias. Havia as radiografias para iluminar e examinar —
cada uma delas tingida com o desabrochar da alta do hospital; havia
a cabeceira de Rupert, havia os corredores e a lanchonete. Certa vez,
ficaram conversando por dez minutos em uma escada. Logo
afastaram os tópicos da vizinhança — a passagem de tijolos violada,
o hediondo novo hotel nas proximidades, que aceitava grupos — e
Grace descobriu que Angus Dance era divorciado de um casamento
de estudantes, votava nos liberais, passara um ano na Colômbia em
um programa de intercâmbio e mantinha um pequeno barco a vela
em Burham-on-Crouch. Ele fizera visitas a penitenciárias de
Wormwood Scrubus, mas agora não tinha tempo para isso. Um dia,
ele estava com um livro sobre as Brontés, em sua mesa de trabalho.
Comentando o casamento, ele disse:
— Atualmente, os jovens não fazem tanto isso. Mais novo do que
ela, ele já se considerava com idade. Grace lhe contou como seus
pais haviam perdido a vida
no naufrágio de uma lancha australiana, quando ainda era criança.
Em seguida — ou assim pareceu, quando ela passou a relatá-lo —,
acontecera Christian. Recontando tais
' Inglês arcaico: "sim", "pequenino" e "aquilo", respectivamente. (N. da
T.) coisas, Grace sentia que sua história era pobre em acontecimentos. Faltavam anos, como se devido a alguma amnésia, de
maneira que o único ato influente em sua vida havia sido o tão
comum de dar à luz. A morte acidental dos pais permanecera maior
que qualquer exploração consciente de si própria, continuando a ser
seu único motivo para causar alguma sensação.
Tal vacuidade poderia ter afetado o crescimento. Comparada à
variedade dele, ela estava fixa, terrestre; presa à terra, em contraste
com o mar aberto de Dance.
Esses diálogos com o dr. Dance eram as primeiras conversas de
Grace. Com Caro, tinha havido uma união inarticulada: o silêncio
da infância, em uma praia de Sydney. Com Christian, havia o
escritório, os três filhos, os padrões e crises dos dias domésticos. Ela
não dissera com muita freqüência: "Eu acho", "eu sinto"; nem sentira
falta disso. Agora, crenças e sentimentos ganhavam corpo
deliciosamente para ela, multiplicando-se. Entre visitas ao hospital,
Grace as ensaiava. Mantinha falas imaginárias com Angus Dance,
trocas fantasmais, nas quais não se sentia envergonhada por brilhar.
Havia uma compulsão para revelar-se e explicar-se, contar, a
verdade pura. Os momentos em que geralmente se sentava junto
dele e examinava as radiografias geraram uma gentileza mútua, que
era a própria prova humana da perfectibilidade. Após essas
ocasiões, havia uma conscientização do esforço — uma boa tensão,
como o corpo poderia experimentar por um ato saudável e
desacostumado.
Certo dia, quando um papel trocava de mãos, os dedos de ambos se
tocaram, mas isso foi tudo.
— Imagino que Angus seja um nome escocês — observou Grace
Thrale.
— É uma versão de Enéias.
Ela não se recordava do que Enéias havia feito, e achou melhor não
perguntar.
Dance a estava mudando. Mais do que tudo, ela desejava equipararse ao nível diferente de generosidade dele — àquela sensibilidade
precisa como um instrumento, mas ainda assim com uma precisão
natural; ao seu bom humor, que era uma forma de generosidade; à.
sua leve e apropriada melancolia. Era a virtude que Grace mais
desejava dele, como se fosse uma honra que Dance lhe pudesse
conferir. Ele podia fazer dela uma mulher honesta.
Se enumerados, os fatos puros do amor de Grace Thrale teriam
parecido familiares, dignos de pena e — para alguns
— inclusive cômicos. Ela estava cônscia disso. A doçura é que era
incompreensível.
Uma vez que a condição a impressionava por ser inata, ela
esquadrinhava sua experiência em busca de um precedente. Travara
conhecimento com um homem em Londres, muito tempo atrás,
antes de seu casamento — um professor temperamental que
freqüentemente desmarcava encontros ou chegava tarde, por quem
ela sofrera durante um frio verão. Somente no ano anterior ficara
sabendo que ele passara a dirigir um estabelecimento de ensino em
Dorset, e procurara seu nome na lista telefônica. Ele não fornecera
qualquer prólogo para Angus Dance. Por outro lado, em contraste
com o professor, Christian parecera um modelo de consideração,
um enamorado responsável, cuja pontualidade, desde o início,
prefigurava casamento. Angus Dance não tinha precursor.
Grace colocou a ponta de uma caneta entre os lábios. Hugh, o filho
do meio, perguntou:
— Por que você fica assim?
— Estou pensando no que contar a papai.
À noite, estava sozinha com Angus Dance, quando se estirava
solitária no escuro, com o braço encolhido em volta do corpo.
Pensava que Christian logo voltaria de Dar es Salaam. Saber que ele
faria amor com ela imediatamente propiciou-lhe mera aceitação.
Uma semana depois que Rupert voltou do hospital para casa, a sra.
Thrale encontrou o dr. Dance na rua. Estavam ao lado de uma rua
em reparos, de maneira que mal conseguiam ouvir-se, por causa da
britadeira elétrica. Grace olhou para a pele clara e corada, a cabeça
castanho-amare-lada dele, sua coloração de meio-dia, enquanto
partículas de concreto explodiam e o pavimento vibrava. A
consciência também vibrou, em alguma escala Richter interior.
— Vamos sair daqui.
Dance esboçou o gesto de tomá-la pelo cotovelo, mas não chegou a
fazê-lo. Foram até a loja de doces e massas, concordando em que a
mulher encarregada era rabugenta, mas os croissants, excelentes.
Quando dobraram a esquina, Grace disse:
— Todos sentimos sua falta.
Ela ouviu seu comentário tornar-se recatado com a trepidação, e um
ligeiro tique surgiu em seu rosto. Ele sorriu.
— Ora, também já é exagero. — Entretanto, acrescentou: —
Também senti falta de todos.
Dizendo "todos", ambos tornavam aquilo possível e diminuíam-lhe
a importância: um pacto, escrupulosamente observado. Na loja,
Grace precisou esperar pelo bolo de sementes aromáticas. Angus
Dance apertou-lhe a mão.
— Os médicos estão sempre atrasados para algum lugar. Espero
encontrá-la novamente.
Depois que ele se foi, a mulher carrancuda atrás do balcão disse:
— Então, ele é médico. Tem um rosto atraente. Quando Christian
elogiou o bolo, Grace comentou:
— Comprei naquela simpática mulher da esquina.
Na primavera, os Thrales costumavam dar uma festa — bebidas e
pequeninas coisas para comer. Denominavam aquele decoroso
evento "nossa falência". Grace estudou a questão em silêncio: eu
gostaria de convidar aquele jovem médico. Poderíamos convidar o
médico de Rupert, que mora praticamente na casa ao lado. Que tal
convidar aquele dr. Dance, que foi excelente para Rupert?
A pergunta, quando finalmente formulada, Christian respondeu:
— Boa idéia.
Ele tinha em mente convidar alguém muito antigo em seu
departamento e imaginou que um médico viria a calhar. Grace
telefonou para o hospital. Dance reconheceu sua voz.
— Alô?
Ele não disse sra. Thrale — e nunca o dissera. Escreveu a data da
festa e o horário das seis às oito.
— É alguma ocasião especial?
— Meu aniversário. Não que contemos aos outros. Ela usou um
vestido novo, que lhe realçava os seios.
Christian comentou:
— Não está um pouco nua? — Com os dedos sobre seu corpo,
desenhou o contorno da seda preta. — Feliz aniversário, Grace
querida.
Embora tivessem contratado um casal da Jamaica para cuidar das
bebidas, foi Grace quem abriu a porta para Angus Dance. Antes de
entrar, ele se inclinou e a beijou na face, murmurando:
— Parabéns.
Entregou-lhe um pequeno embrulho que, mais tarde, ela verificou
conter água de lavanda. Grace estremeceu sob o surpreendente
beijo, do qual se desviou com a impressão masculina de paletó
indelével sobre sua seda e braços femininos. Quando Christian se
aproximou, vindo do começo da escada, substituindo o rosto festivo
pelo sério tema de Ru-pert, ela recuou para a curva do piano, onde
logo Dance a procurou.
— Quem é que toca?
— Eu.
Por esta vez, deixou de acrescentar: "Minha única façanha". Ele se
inclinou para observar a pilha de músicas. Grace colocara Chopin
no topo, desejando impressionar. Viu-o viras as páginas com mãos
grandes e deliberadas; observou-lhe as feições quase espirituais.
Naquele ambiente amador, a autoridade o abandonara e sua
juventude era um choque, um desapontamento. De fato, a
autoridade passara para ela. Estava presidindo sua casa como uma
matrona — seus convidados, seus filhos encantadores: dona da
situação.
Não sabia como dirigir-se a ele, agora que ficara em destaque. No
hospital, as enfermeiras o chamavam de doutor, da mesma forma
que as mulheres com família chamariam seus maridos de pai — ou
papai.
Falaram sobre o centro comunitário, e Grace lhe contou sobre a
exposição de arte que seria inaugurada no domingo.
— Eu poderia dar uma espiada — disse Dance.
Rupert apareceu com o uísque do médico e foram apresentados
outros convidados. Em um espelho oval que haviam comprado em
Bath, ela viu a sala, monótona em encanto floral e, como a
Inglaterra, atapetada de verde, de parede a parede. Viu também a si
própria naquele campo de flores — praticamente indistinta de
almofadas, cortinas e enfeites, os quais não causavam inquietude,
pois faltava-lhes personalidade. No espelho, pôde mais ver que
ouvir seu marido dizendo "Encaremos os fatos", como viu Jeremy, o
louro e adorado filho mais velho, portando-se maravilhosamente.
Viu os anéis em seus próprios dedos e um bracelete que estava no
seguro. Mesmo olhando, ela não podia ver Angus Dance naquele
espelho (ele havia sido levado à sala de refeições, para comer uma
fatia de presunto), e soube que nunca o veria.
O chefe do departamento de Christian tinha uma feição de Mercado
Comum. Depositou seu drinque sobre o Chopin e disse:
—
Não a conheço suficientemente para contar-lhe esta história.
Grace viu a sala marulhar em águas espelhadas: em tão lento
movimento e cores tão pastéis; e, novamente, ela própria —
escudada, enfeitada, protegida e, pela primeira vez, inteiramente só.
Uma mulher corpulenta, em roupas violeta, inclinou-se contra a
platibanda da lareira, purpurejando a visão. O chefe de Christian
disse:
— Agora vem a parte pior.
Grace ouviu distraidamente o final da anedota. Quando ela não
sorriu, Sir Manfred ficou aborrecido e olhou para sua pele branca,
como se dissesse: Você é que começou isto. Pegando seu drinque,
ele se encaminhou para a estante de livros:
— Sou um leitor voraz.
Sir Manfred deixara uma mancha circular sobre um noturno.
Ela viu, ou soube, que Angus Dance retornara à sala. Ao
inspecionar alguns canapés de queijo, ela o viu perto de si,
conversando com uma jovem de cabelos pretos e olhos azuis, que
viera com os Dalrymples.
Ora essa, por que não? Um homem como ele seguramente não
levaria vida de celibatário, abstinente em tributo aos caprichos
românticos acalentados por ela.
— Consegui para você a informação sobre o Tirpitz, Grace.
Era seu amigo mais antigo, de quem ela imediatamente desejou a
morte.
— Não pense que eu lhe falharia. Promessa é promessa. Doze de
novembro de 44.
Grace dobrou as mãos diante do corpo. Vexada.
— Adernado em seu ancoradouro. Nós o tínhamos posto fora de
combate com submarinos miniaturas, no ano anterior, mas a RAF lhe
deu o golpe de misericórdia em 44. Em algum lugar do círculo
Ártico, lá nos fiordes noruegueses, não me peça para pronunciar o
nome do lugar, é uma daquelas palavras com trema.
Angus Dance estava de costas para eles, podendo ouvir
tudo.
— Os idiotas dos alemães o colocaram bem dentro de nosso alcance,
compreenda. Contamos sempre com a imbecilidade. Algo
absolutamente simplório. Bem, isso explica tudo?
— Fico muito grata, Ernie.
Ernie não falava alemão, mas sabia como simular um bom sotaque,
em festas.
— Semprrre ao seu disporr — disse, batendo os calcanhares.
Angus Dance apanhava um cinzeiro para a jovem Dalrymple. Ele
havia dito: "Eles afundaram". Para Grace e Ernie era "Nós
afundamos" — até mesmo a colegial Grace atacara o grande
encouraçado Tirpitz com toda a sua encaracolada energia. Angus
Dance estava fora disso, isento de culpa ou de glória. Por ele, Ernie
e Grace poderiam, à vontade, provocar tumultos à noite em
Mafeking 1.
Grace girou um copo gelado entre as mãos. Ernie correu um dedo
possessivo ao longo da cintada negra do piano, da mesma forma
que Christian havia feito com a borda de seu vestido.
— Ele levou mil homens para o fundo consigo. Sir Manfred
libertava-se de um questionador.
Cidade da África do Sul. Trocadilho com a palavra "mafficking": manifestações públicas
de júbilo, durante uma guerra, por exemplo, quando há notícias de vitória. (N. da T.)
1
— Assim, de improviso, não recordo os números. Por que não
telefona para minha secretária?
Trouxeram caneta e papel.
— Srta. Ware. Não, Waring, não, Ware, Cordélia Ware. É um tanto
autoritária, mas conhece estatísticas de trás para diante. — Sir
Manfred acrescentou um número de telefone e tomou o espaço
diante de Grace. — Sinto muito, mas tenho que ir.
As pessoas a beijaram, uma após outra.
— Adorei sua festa, adorei. Simplesmente, adorei. Angus Dance se
foi em uma onda de partidas, apertando
mãos. Depois de tudo terminado, trouxeram o Spode do lugar
seguro em que o tinham posto. Alguém quebrara uma taça de
cristal lavrado. Jeremy observou:
— Vocês disseram falência.
Dois gatos brancos que miavam foram libertados do banheiro no
andar de cima, porém não tocaram nas sobras. Jeremy e Hugh
recolocaram a arca entre as janelas. Rupert, a quem não era
permitido fazer esforço, ajudou Christian na contagem das garrafas
vazias.
— De quem eu mais gostei foi do dr. Dance. Eu também.
Christian virou a meio a cabeça para Grace e piscou de
leve.
— Quer dizer que temos uma queda pelo dr. Dance, não é? — Ele
havia reunido as garrafas em uma caixa. — Eu também gosto dele.
Ainda mais tarde, dando corda ao relógio de cabeceira, Christian
perguntou:
— Afinal de contas, por que Ernie tagarelava daquele jeito sobre o
Tirpitz? Ou seria o Scharnhorst?
Grace puxava o vestido negro por sobre a cabeça.
— Creio que era o Scharnhorst.
Ele poderia ter telefonado no dia seguinte, agradecendo pela festa,
mas não o fez, embora o telefone houvesse tocado a manhã inteira e
o chefe de Christian tivesse enviado flores.
— Quer dizer então que foi um sucesso — anunciou Jeremy, que
estava ficando mundano.
Grace selecionava a correspondência. Christian disse:
— Nunca vi um ramo de margaridas tão bonito! Grace Thrale agora
embarcava nos primeiros estágios
do amor, sendo o primeiro a simples ânsia, se infinita. Em uma só
manhã, era capaz de ver uma dúzia de Dances nas ruas. Então,
ansiosa por um impossível toque do telefone, cujo tilintar elétrico
reverberava em seu espírito, ela construiu mitos e lendas a partir de
um beijo à porta. Essa foi a segunda fase. A terceira foi a crença em
que todo significado era de sua própria e confusa invenção, e
qualquer reciprocidade da parte de Angus Dance, uma fantasia.
Não havia qualquer revelação para ser feita a ele. Dance vira,
inclusive, seu melhor vestido.
Se ele soubesse, faria alguma piada sobre as diversões de sua vida.
Até mesmo o homem mais bondoso poderia dar boas gargalhadas
sobre o assunto.
O problema era que a própria abundância de seus sentimentos
bastava para a mutualidade. Tanta gentileza amorosa também fazia
com que isso parecesse moral.
As frases se misturavam e alternavam. Se ele fosse à exposição de
arte-, no domingo, ela saberia.
Grace ficou acordada, depois dormiu inquietamente.
— Você tem levantado muito cedo estes dias — notou Christian.
— É o cachorro da casa ao lado, latindo ao amanhecer. Rupert
começou a rir.
— Como um galo.
— Se isso continuar — disse Christian —, falarei seriamente com o
dono.
— Foi aquele fatal e pérfido latido — disse Rupert, e, rindo,
entornou seu café da manhã.
A esta altura, a sra. Thrale cometera adultério em seu coração
inúmeras vezes.
No domingo, Christian levou os garotos a uma exposição de
cavalos. Ele entendia bastante de cavalos — suas dimensões, raças,
acasalamentos, habilidades. Os garotos também sabiam usar
corretamente palavras como ruão, malhado e castrado.
— Devemos estar de volta às seis. Grace disse:
— Eu poderia ir ver a exposição de arte.
Depois que eles saíram, Grace maquilou-se com cuidado. Vestiu um
pesado casaco azul, já velho, mas que lhe ficava bem. Era um dia
úmido e frio, quase sem claridade; nuvens pesadas sugeriam chuva.
Em uma vitrina, ela se viu aconchegando a echarpe ao corpo —
apressada, excitada.
Uma mulher à entrada cobrou-lhe dez xelins. O piso de tábuas sujas
era desnivelado e rangia, enquanto caminhava por ele. Estava quase
sozinha no saguão, mas não conseguia forçar-se a procurar Angus
Dance. Um homem gordo, de impermeável, recuou para ganhar
perspectiva e 'colidiu com ela.
— Desculpe-me — disse.
Havia dois ou três casais idosos que tampouco tinham algo a fazer,
bem como uma jovem deprimida, que talvez fosse um dos
expositores. Em muitos casos, a pintura era em verde e vermelho,
turbilhonando, ou então fora aplicada uma leve camada, em tons
cinza angulares. Grace soube que ele não viria.
Quando saiu dali, já escurecia e caía uma chuva misturada a
granizo. Ela não queria ir para casa; era como se sua humilhação, lá,
pudesse ficar exposta. Recuava de casa como de algum castigo extra
— como uma criança, surrada pelos companheiros, teme a punição
dos pais pelas roupas rasgadas. No entanto, foi caminhando
penosamente, sem nenhuma outra possibilidade. A dor lhe subia do
tórax e descia como granizo, por detrás de seus olhos. Era quase
incrível que não existisse ninguém para confortá-la.
Ela pensou: Minha mortificação. E, pela primeira vez, compreendeu
que a palavra significava morte.
Sozinha em casa, foi ao banheiro e se inclinou sobre as duas mãos
na pia, ponderando. Essa angústia tinha que estar centralizada em
algum outro objeto que não Angus Dance. Tal paixão dificilmente
teria algo a ver com ele — o dr. Dance arruivado, de carne e sangue,
que ela conhecia havia três meses — e, sem dúvida, devia estar
fixada em uma visão. O espelho, por seu turno, a mostrava ansiosa,
exposta, respirando pesadamente. Ela nunca se vira tão real, tão
rara.
Tinha acabado de tirar o casaco quando eles chegaram da exposição
de cavalos, falando de maneira prática sobre baios e castanhos.
Christian tinha sido empurrado, no metrô.
— Talvez eu não esteja adequado à sociedade de massas.
Grace disse:
— Talvez nós sejamos a sociedade de massas.
Segunda-feira era o dia de a sra. Thrale ir ao cabeleireiro.
— Estou com alguns fios grisalhos, Mario — disse ela, e levou a
mão à testa. — Aqui.
Ele lhe tomou a cabeça entre as mãos, debaixo de um foco luminoso,
como se fosse um crânio mantido norma frontalis. Oh, pobre Grace!
Depois de um momento, ele declarou:
— Não é um caso para tintura. — Soltou-a. — A senhora ainda não
precisa tingir o cabelo.
— Não.
— Sendo loura, pode esperar um pouco.
Grace sentou-se em uma cadeira de plástico, e ele acrescentou:
— É pior para as senhoras de cabelos escuros. Quando ela foi
instalada sob o secador, com a Vogue e o
Arquipélago Gulag, ficou impressionada pela imemorial qualidade
patética do lugar. Havia apenas uma jovem presente, exceto a moça
do xampu, com jeans sobre os quadris estreitos e um proeminente
arco peitoral que fazia com que a carne macia de Grace Thrale
parecesse histórica. Grace baixou os olhos para seus braços
pequenos e redondos, contemplando-os como em um retrato de
algum mestre antigo. Pensou em seu corpo, que nunca havia sido
realmente esguio e mostrava um alvo emaranhado das gravidezes,
agora esperando em passividade pela decadência e mutilação. Suas
mãos, crispadas sobre uma revista com o retrato de um homem
bronzeado em uma praia, assumiram instintivamente uma atitude
de resignação. Ela leu: "O Aga Khan em um raro momento de
relaxamento". Naquele instante, contudo, ela se sentiu penetrando
em uma vasta suspensão, solitária e universal.
Nessa noite, Grace sonhou com sua morte.
Na manhã seguinte, encontrou um pretexto e ligou para o hospital.
— O dr. Dance está com um forte resfriado e não veio.
Ela disse que não era importante e desligou. Com o mau tempo
aumentando-lhe a irritação, ela disse em voz alta:
— Eu teria ido lá.
Falava da exposição de arte, o que era perfeitamente verdadeiro. Foi
para o andar de cima e arrumou as camas, pensando com desdém:
os escoceses dificilmente seriam amantes latinos.
O equilíbrio não perdurou. Ao descer para o térreo, havia a mesma
dor torácica, um sofrimento colossal, grandioso, em uma escala à
qual ela, Grace Thrale, de Londres, W8 7EF, dificilmente pareceria
habilitada. Sentou-se na cozinha e pensou: Estou extenuada — e
talvez esteja louca. Ó Deus, preciso romper isto!
Romper, romper, romper. Vocês disseram falência. Ruína.
Em seu isolamento, ocorreu-lhe que os livros poderiam ajudá-la.
Pela primeira vez, reconhecia sua falta de leituras, que nem ela nem
Christian liam — e aí estava a verdadeira descoberta, porque havia
esperado que ele mantivesse um lar literário. Possuíam dúzias de
livros, em estantes que tomavam metade de uma parede, para não
se falar nas edições Penguin. E faziam pedidos regulares à livraria,
dos últimos lançamentos. Em casa, Grace tinha íris Murdoch, bem
como Soljenítsin. Leitores ávidos. Entretanto, um estado de
receptividade, no qual o tormento de outrem pudesse atingir sua
própria alma, e através do qual sua paixão fosse definida e
celebrada — não havia nada disso. Christian se apresentava
confiantemente como um homem de letras:
— Estou lendo Conrad este inverno.
No entanto, Within the tides jazia em sua mesa-de-ca-beceira desde
dezembro. Christian chegou em casa e a beijou.
— Falei com aquelas pessoas sobre o cão que uiva tanto.
— Não devia.
— É claro que devia. Você não pode ficar eternamente sem dormir.
Eles concordaram em manter o animal dentro de casa.
Grace desejou que ele não tivesse dito o animal. Ele deixou sua
pasta cair ruidosamente sobre a mesa do saguão.
— E, realmente, usei a palavra uivar.
No sonho dela, Christian estava chorando.
Grace levantou-se durante a noite e desceu ao térreo. Apanhou O
morro dos ventos uivantes em uma prateleira e ficou perto das janelas,
ao luar, mantendo a vigília incessante de sua paixão. Não tinha o
direito de proferir o nome de Angus Dance ou dedicar-lhe ternura,
mesmo em pensamento — nunca tendo feito tais coisas na vida. Da
mesma forma, poderia ter requisitado Heathcliff ou Enéias. O livro,
uma edição antiga, pesava em sua mão. Sabia que não o leria, mas
seria interessante saber se era possível abrir em uma página
qualquer e encontrar a verdade, como na Bíblia. Passou a mão pelo
corpo e refletiu que seus pés pequeninos eram irresistivelmente
belos, da maneira como assomavam de sob a camisola.
De manhã, Christian comentou:
— Talvez estejamos precisando de um colchão novo. Quando as
margaridas começaram a fenecer, Grace as
jogou no lixo. O cartão, ainda preso às flores, dizia: "Com
homenagem", e tinha um traço a tinta, riscando o sobrenome. Ela
passou água no vaso e recordou:
— Eu não ri de sua piada sem graça. Christian ficou
preocupado, mas disse:
— Evidentemente, você não tem que aceitar insultos para
impulsionar minha carreira. — Monopolizando-lhe os pensamentos.
Após um instante, ele perguntou: — Afinal, como era a piada?
— Eu não a repetiria por nada no mundo.
Os dois riram com vontade. Nenhuma resposta o deixaria mais
satisfeito. A perfeita e protegida Grace. Certa vez, durante umas
férias na Córsega, ele lhe virara o rosto para que ela não visse o
espetáculo, como o denominara, de uma briga a socos.
Mais tarde, nesse dia, ela encontrou Angus Dance na rua. Havia
comprado narcisos para substituir as margaridas e ficou segurando
as flores para baixo, à frente do corpo. Não conseguia pensar no que
dizer, em algo que se nivelasse ao mágico e silente discurso de seu
sonho.
— Está se sentindo bem? — perguntou ele.
— Não tenho dormido direito. — Ela também poderia ter dito: Eu o
amo. — Exceto com pílulas.
— O que está tomando?
Por um momento, ele voltou a ser uma autoridade.
Falaram sobre o forte resfriado que o acometera. E ela lhe levaria
Rupert para um checkup, no fim do mês. A despeito da falta de sono,
a pele de Grace brilhava tanto quanto a dele.
— Tem tempo para um café? — perguntou ele. Assim, Grace Thrale
se sentou a uma mesa de fórmica
e Angus Dance pendurou seu paletó de flanela em um cabide. Ele
usava um suéter de lã pálida, tricotada por sua mãe. Seu cabelo, em
si, já era suficiente para atrair atenção: aquela luminosidade do
norte, o brilho do sol do meio-dia. Os dois mal falaram, embora
inclinados para diante, com delicada presteza, até que a moça se
aproximou para receber o pedido. Tanto o sotaque como um r
estranhamente aspirado estavam mais pronunciados nele. Grace
considerou sua própria fala indistinta e fez um esforço para
expressar-se melhor.
— Tenho me perguntado como você estaria. Consideradas todas as
coisas, era a frase mais audaciosa
que ela jamais pronunciaria. Ficou surpresa com sua voz definida, a
mão firme e eficientemente servindo o açúcar, quando o todo da
Criação, a própria tessitura do firmamento estavam trabalhados,
receptivos e cor de creme, como o suéter dele.
Dance comentou que precisaria ir a Burnham-on-Crouch para ver
seu barco, que estava no estaleiro para ser raspado e levar uma
camada de zarcão. Também havia necessidade de uma nova
calafetagem.
— De qualquer modo, não sinto muita vontade de ir. Os lugarescomuns, as reservas, eram uma realização
em si. As flores perfumadas de Grace estavam entre eles, postas em
um recipiente com água, comprimidas por um barbante verde.
— Como se chama seu barco? — perguntou Grace.
— Elissa. — E abriu espaço para o leite. — Não tenho muito jeito
para navegar — os legítimos são fanáticos. Envolvi-me nisso após
uma experiência ruim. Acho que era um meio de locomoção,
quando tudo permanecia parado.
— Foi quando seu casamento se desfez?
— Não. Isso foi um repúdio posterior. — Ele sorriu.
— Acho que nada disso pode ser muito interessante. Desgostos
muito comuns.
— Para mim não são comuns.
Ela não podia imaginar Christian, para quem a aceitação era
imperativa, falando de suas rejeições ou reconhecendo "meus
desgostos". Mesmo no fascínio daquele café, Grace sentiu o aviso de
que, nisso, Christian era o mais enfermo, o mais indefeso — e que
Angus Dance ficara fortalecido pelos reveses e por sua recusa em
dissimular. Recordou como ele se comprometera de maneira
simples com Rupert, como havia dito: "Eu prometo". Uma
temeridade semelhante não poderia ser exigida de Christian.
Quando ela fazia comparações com Christian, não havia apenas a
deslealdade, mas o fato de que seu marido sempre parecia ganhar.
O dr. Dance ofereceu-lhe bolinhos de leite e passas.
— Diverti-me muito em sua festa. Devia ter telefonado para dizerlhe isso.
Grace pensou no afundamento do Tirpitz e nas flores
comemorativas do chefe, uma encharcada coroa em águas
turbulentas. A menos que esqueçamos.
— Parece que foi há muito tempo.
— Não a vi mais desde então.
Era a fusão do grande com o trivial, que não podia ser mal
entendida. Ele acrescentou:
— No entanto, estivemos tão próximos. . .
Ela ficou calada, inclinando-se para trás, penetrando nas cores e
sombras do aposento: não em plenitude, que mal poderia existir,
mas em voluptuosa calma, em paz. Estava com a mão estirada sobre
a mesa, a manga arregaçada. Era a primeira vez que ele lhe via a
parte interna do braço. Se os desgostos comuns a atingiam,
finalmente, também era atingida por essa perfeição sem
precedentes.
Grace estava sentada ao piano. Virou uma página de música, mas
não tocou. Rupert aproximou-se e ficou a seu lado.
— O que é isso?
— Scarlatti.
Ele quisera perguntar: O que há de errado?
Como uma amante, permaneceu perto o suficiente para sugerir que
ela devia abraçá-lo. Com o braço direito, Grace o puxou para si. Sua
mão esquerda repousava nas teclas.
Inclinou a cabeça contra a parte superior do braço dele. Era como
uma fotografia eduardiana.
— Eu o amo, Rupey.
Era o último filho com quem poderia fazer semelhante coisa — e
isso apenas porque a doença dele fornecera a ambos um
prolongamento, durante o qual muita coisa podia ser passada por
alto. Os dois sabiam disso. Emulando-lhe o ânimo, o garoto ficou
pensativo, lânguido, mas ao mesmo tempo permaneceu onipotente.
— Eu o amo — repetiu ela.
Para que ele lhe respondesse o mesmo, Grace pensou: Então, agora
é assim: eu tentando extrair força deles. Refletiu na palavra
"adúltera" e a considerou arcaica, como ser apedrejada até a morte
— uma palavra intolerante, como negra, judia, costureira ou
poetisa, mas precisa.
Sua mão direita fez soar notas graves: sombrias, separadas,
instruídas. A sala as recebeu desapaixonadamente. Houve um
clique de seu anel no marfim. Ela embalou ligeiramente o garoto
com o braço, e pôde sentir o gesso blin-dando-lhe as costelas
radiografadas. Tirou a mão do piano e passou os dois braços em
torno dele, com os dedos entrelaçados em volta do filho, o seio e o
cenho voltados para o corpo do garoto. Isso era menos semelhante a
uma fotografia.
— O que é, mamãe? — perguntou ele.
Movendo o braço aprisionado, ele pôs a mão sobre as teclas agudas
e fez soar uma série discordante de teclas, acentuando e repetindo
notas altas com veemência. Ela o libertou, mas ele ainda desferiu
alguns últimos e perplexos sons excitados. E ficou ali, quieto e
tocando a mãe, oscilando entre a infância e a sensualidade.
Christian chegou, com papéis na mão.
— O que é isso, um dueto?
O garoto escapuliu e ligou a televisão. As notícias correram sobre
devastações salteadas — Beirute ou Belfast, o Bronx ou Bombaim.
— Preciso falar com você, Grace — disse Christian. Rupert gritou:
— É um programa sobre Pompeia!
Grace e Christian sentaram-se em um sofá que raramente era usado,
por ser de veludo. Ele lhe disse:
— Aconteceu algo importante. Grace Thrale sentiu-se
desfalecer.
— Designaram-me a África!
Ele poderia ter sido Alexandre ou Antônio. O Cipião mais jovem.
Grace ficou olhando apáticamente, e Christian acrescentou:
— O sul do Saara.
Ela olhava através de lágrimas. Lágrimas que nunca brotariam por
Angus Dance, que não necessitava de piedade nem a evocava por
falta de percepção ou ao se expor. Grace chorava por Christian,
insulado na fatuidade isolante dos próprios dias, e então poderia
ter-lhe contado tudo, por pura fidelidade ao significado das coisas.
Disse:
— Meu querido. . .
— Nada existe, absolutamente, para chorar. — Christian lhe tocou a
face, satisfeito. — Eu posso lhe garantir.
A perfeita Grace. Ele desenrolou o gráfico do departamento, que
tinha na mão. Uma pequena caixa, no alto da página, gerava caixas
mais largas abaixo, concebendo intermináveis áreas muradas de
auto-estima. Ele apontou — aqui, e aqui.
— Talbot-Sims será apenas o diretor. Para mim, é a coisa real. —
Quando ele se inclinou para mostrar o pedigree, havia uma área
esparsa e acinzentada, no alto de sua cabeça alourada. — Minha
pouca idade era uma desvantagem — disse ele, tirando uma sujeira
da folha imaculada —, mas por fim eles prescindiram da
antiguidade. — O gráfico insistia em enrolar-se nos cantos, lutando
para voltar à forma primitiva. — Isso fará uma diferença incrível na
pensão.
Grace refletiu se a separação existente entre os pensamentos e os
objetivos de ambos tivera, em alguma época, parecido tão
conclusiva para ele; se ela jamais fora tão grosseiramente relegada.
Perguntou-se se, durante as separações do verão ou quando viajara
para Guernsey, ele talvez houvesse amado ou dormido ■— a
primeira necessidade não impedia a outra — com mais alguém. Era
difícil imaginá-lo suficientemente decidido para tanto, agora que ele
não possuía autoconfiança para ler um livro. Se Christian tivesse
amado outra mulher, Grace seria a primeira a compreender. A
magnanimidade formava uma triste e vasta perspectiva. Ou podia
ser, meramente, uma súplica de clemência, em seu caso pessoal.
Christian passou o braço em torno dela, baixando das alturas onde
funcionários prescindiam da antiguidade.
— Lamento, mas teremos que desistir da Costa Brava. De qualquer
modo, quando eu estiver dono da situação, prometo levá-la a algum
lugar sossegado. — A mente dele disparou, como o noticiário,
através de nações devastadas, buscando uma possibilidade. Tudo
era um pandemônio —
Portugal, Palestina, Tibete: rejeitados, um após outro. A euforia
falhou estranhamente em sua garganta, como se por um soluço.
Mesmo assim, ele acrescentou, audacioso: — Afinal, você me deu
sorte, ao censurar aquele velho imbecil.
Angus Dance chegou à passagem de tijolos quando a chuva
começou. Correu, no mesmo momento em que Grace Thrale,
entrando pela extremidade oposta, também corria, debaixo da
chuva.
Se fosse possível observar-se o encontro de ambos, visto de cima ou
de lado, como numa seqüência filmada, os dois apareceriam
precipitados, em primeiro lugar, as cabeças abaixadas devido ao
mau tempo; depois, diminuindo a corrida, devido à percepção;
finalmente, parando. A parada sendo em si algum ápice de ímpeto,
uma consumação. Encararam-se a um metro de distância, e a chuva
caía nos cabelos de Dance e, como gaze, no casaco azul-calamina de
Grace. Ignorada, a chuva era um testemunho cósmico, mais
conclusivo que um abraço.
Quem os visse diria que eram amantes.
A chuva prateava os cílios de Dance. Ele se continha segurando as
lapelas do paletó. Tinha a expressão desarmada, pura devido à
situação.
— É a isto que chamo estar próximo.
— Sim.
— Devemos abrigar-nos?
Como se já não estivessem abrigados.
Patinhando ao longo do estreito túnel, ele finalmente a pegou pelo
braço. Por não se abraçarem, eles haviam merecido tal indulgência.
Agora estavam parados sob uma marquise, à saída de um
supermercado. E ele disse, dando a Grace mais razão do que ela
jamais tivera, sobre qualquer coisa:
— Você sabe que a amo.
Era a resposta que ela não fora capaz de extrair do próprio filho.
Grace nem mesmo sacudiu a água de seu cabelo ou do casaco;
talvez nunca mais precisasse tornar a considerar sua aparência.
Após alguns minutos, durante os quais a chuva continuou e eles
foram acotovelados por sacolas de compras, ela disse:
— Isso me faz feliz.
Grace achou que diria a verdade simples, agora que era indómita.
Do lado oposto, erguia-se o hotel que hospedava grupos. Dance
falou:
— Seria um bom lugar para conversarmos.
— Podemos atravessar a rua, quando a chuva parar. Sua serenidade
a impressionou, como acontecera na casa
de chá. Ele vacilou, depois decidiu.
— Certo. Terei de telefonar, por causa das consultas. Grace não
insistiu para que ele as mantivesse. Nem
Dance perguntou se a esperavam no Crescent. Quando o céu
clareou, cruzaram a rua.
Ao entrarem no hotel, o homem ao balcão desligou o telefone,
dizendo: "Céus!" Uma confusão de bagagens — malas, sacolas de
golfe, sacos de viagem de náilon escocês — estava empilhada ao pé
da escada. No saguão, que ficava um andar acima, elas poderiam
estar num aeroporto, esperando a partida. As pilastras do prédio
eram recobertas por plástico fino imitando madeira, com pequenos
balcões em torno, para cinzeiros e drinques. Os sofás eram duros e
brilhantes, mas nada tinham de alegres. As cortinas fartas tinham
fios metálicos que lhes emprestavam uma aparência de mau gosto, e
em uma parede havia a decoração de uma cornucópia em mosaicos,
vomitando verdosamente.
Quando eles entraram, um grupo de mulheres vestindo terninhos se
levantava para sair. Um velho, com uma sacola de companhia de
aviação, disse, quase em lágrimas:
— Acontece que eles só tinham em bege!
Grace Thrale sentou-se perto de uma janela, e Angus Dance foi
telefonar. Se não fosse por ele, com que facilidade ela se ajustaria
àquele lugar! A área murada, quase vazia, desfrutava da
subserviência — desinteressava-se da cólera, do espanto e da
tocante crença de seus agregados costumeiros. Não adiantava tentar
isso agora com Grace, que mal via e estava além da
condescendência. Com um desligamento que era outra face da
paixão, ela se interrogou sobre as circunstâncias em que
abandonaria aquele lugar e se jamais voltaria para casa.
Abandonada pela dona, a casa no Crescent era pior que algo
abandonado, extinta a vida que nela existia: o assado ganhando
temperatura ambiente, sobre o balcão da cozinha, uma nota
inacabada para Caro, anunciando a promoção de Christian, um
álbum de rock que era uma surpresa para Hugh e Within the tides
fechado, sobre a mesa-de-cabeceira. Tudo em suspenso, silencioso,
enigmático — pequenas coisas que poderiam ter enfeitado os
camarotes do Mary Celeste ou decorado um programa sobre
Pompeia: insignificâncias, tornadas portentosas pela rejeição.
Levantando-se, ela estendeu os dois casacos molhados em um
assento próximo, para desencorajar. Ficou de pé no vão de concreto
da janela, espiando a chuva, e soube que ele voltara.
Dance sentou-se a seu lado, sobre o duro plástico vermelho.
—
Não há nada a temer — disse. Seus dedos tocaram os dela,
como acontecera uma vez, no hospital. — Eu vou embora. — Era
possível ver-se a cor refluindo, através dos claros e iluminados
níveis de sua pele. — Ofereceram-me um posto em Leeds.
Ela permaneceu com o ar de supremacia, a postura triunfante
requerida por um resultado diferente. Como Grace não falasse, ele
continuou:
— Não precisa pensar que eu tentaria prejudicar sua vida.
Sua vida, que estava disposta a rejeitar: cujos emblemas houvera
dispersado friamente, como poderia ter arrancado os topos de flores
mortas.
— Como se eu quisesse fazer-lhe mal — disse ele. Como se ela não
fosse com ele a um quarto naquele
lugar fazer amor, se Dance assim o quisesse.
Ele a estava fazendo uma mulher honesta. Ela não merecia crédito
algum dos beneficiários, já os tendo repudiado. O amor seria
dissimulado, como algo inútil, escondido, dele. Quando cobiçara os
padrões de Dance, imaginara ingenuamente que fossem
compatíveis com sua paixão. Ali havia outra auto-revelação — a de
que deveria ter pensado que a virtude podia ser ganha tão
rapidamente e por um acesso tão fácil como o amor. Em tudo
aquilo, era difícil dizer onde terminava sua inocência e começava a
culpa.
Perscrutando o rosto exaurido de Angus Dance e seus olhos
obscurecidos, a boca não de todo controlada, Grace Thrale era um
navegante em busca de terra em um horizonte encoberto pela
neblina. Perguntou finalmente, repetindo sua longa lição:
— Isso significa uma promoção?
— Sim, é um progresso.
Esses conquistadores, com seus despojos, suas cidades e seus
continentes — Leeds, África. . . Avançando, progredindo, sempre
em movimento: um meio de locomoção. Apenas ela era
estacionária, em calmaria.
—
Nesse sentido, também é necessário. Não posso continuar no
cargo atual para sempre.
Apenas ela poderia continuar na mesma para sempre. Poderia
verificar Leeds na lista telefônica, como Dorset. A conscientização
era um lamento baixo e prolongado em sua alma. Aqui, afinal,
estava o seu próprio naufrágio — um afundamento além da lancha
afundada de seus pais. Ela poderia ter bradado, mas, em vez disso,
falou o que ouvira em peças:
— Naturalmente, não haveria futuro.
A cor retornou ao rosto dele, como o sangue nas contusões. Dance
se levantou rapidamente e, como se estivessem em um aposento
privado, parou diante da janela de concreto. Depois encostou-se a
uma coluna, encarando Grace, os braços estirados ao longo do
balcão destinado aos cinzeiros, seu corpo resistente compondo uma
arquitetura melhor, um atlante.
— Um homem deveria ter passado e presente, assim como futuro.
— Ele moveu a mão enfaticamente e um prato de amendoins
derramou-se em silêncio. Era um gesto que expunha perda, como se
um fragmento da coluna se desintegrasse. — Pensa que não vejo
constantemente os agonizantes que não viveram? É o que nós
somos, não o que temos de ser. Ou melhor, eles são a mesma coisa.
— Eu sei disso. — Até mesmo seus filhos já estavam escorados no
futuro — suas aptidões para ciências ou idiomas, o que eles
queriam ser; nunca lhes havia sido perguntado francamente o que
seriam agora. Ela disse: — Mesmo aqueles que verdadeiramente
viveram morrerão. É difícil dizer qual a ironia maior.
Tais descobertas eram devidas a ele. Grace se erguia por causa de
Dance e, sem dúvida, logo tornaria a afundar, indiferente.
— Estou chegando aos trinta e quatro anos — disse ele —, e vivo
com demasiada ociosidade. — Grace viu a retidão dele existindo em
um espaço desimpedido, como a casa austera de seus pais. — Você
não pode imaginar — bem, não estou querendo ser indelicado. Só
que você, com sua plenitude — amor, filhos, beleza, bandos de
amigos —, como pode compreender uma informidade como a
minha? Como entender de solidão ou desespero?
Eram temas que ela vira de relance em um espelho.
Grace sentiu o conceito de Dance sobre sua existência encai-xandose nela como um enfeitado, debilitante vestuário, prendendo-a
como uma ratoeira. Recostou-se no rígido sofá e ele continuou de
pé, confrontando-a. Era um contraste alegórico — amor sagrado e
profano: o arrebatamento dela oferecido como profanidade. Para
insistir ou reparar um erro, ela disse:
— Ainda assim, nada houve de mais belo em minha vida que as
vezes em que ficamos juntos no hospital, examinando as
radiografias.
Ele voltou ao sofá e recolocou a mão sobre a dela — um contato tão
essencial e externo como a impressão de dedos em radiografias.
— Era como Paolo e Francesca.
Ela teria de informar-se sobre isso, ao voltar para casa. No entanto,
olhou para a mão sobre a sua e pensou, sem zombaria: Dificilmente
amantes latinos.
— É verdade que não suportaríamos as mentiras — disse ele.
A primeira mentira em Grace tirando o vestido, a cabeça envolta em
negro, sua voz sufocada dizendo "Scharnhorst".
— Em minha vida de casada — disse ela —, jamais cheguei a trocar
um beijo não casto, até aquele com você, em meu aniversário.
Ele sorriu. A perfeita, protegida Grace.
— Há tão pouco riso no amor ilícito! Seja qual for o tema, sempre
deve existir a sensação de rir-se à custa de mais alguém.
O último riso de Grace fora com Christian, sobre a piada de Sir
Manfred.
— Eu sou séria — disse ela.
O beijo, a mentira, o riso — nada tornaria a ser sério, por aquele
padrão de medida. "Eu sou séria", ela havia dito, quando ele sorriu
em decorrência de sua maior experiência e menor discernimento, de
sua contrastante virtude, posto ser ela quem desejava ferir. Olhou-a
no rosto com a solicitude errada. Grace não seria convocada para
testemunhar. Ela recordou como, na Córsega turbulenta, sua cabeça
fora desviada.
— Em um outro lugar — supôs ela —, você superará isto.
— Ainda sonho com uma jovem que conheci aos dezoito anos. —
Ele não se conformaria com as trivialidades dela, não perceberia a
sua verdade. Em Leeds, sonharia com
Grace. — As lembranças esfriam em temperaturas diferentes e em
diferentes velocidades — disse ele. — Olhou em torno, para o tapete
florido e as cortinas com seu brilho de ouropel, para a coluna
salpicada de amendoins e a monótona cornucópia: — Que lugar
pavoroso!
E sua condenação era o prelúdio para a despedida.
— É o mundo — disse Grace Thrale.
— Eu lhe disse muitas coisas em pensamento, mas nunca foram tão
desesperançadas como isto. Nem aconteceram em qualquer mundo
material. — Ele então emendou-se. — É claro que houve desejo —
acrescentou, eliminando tal extravagância. Seu sotaque intrometeuse e ele ganhou tempo para que a fala se recuperasse, dominando a
linguagem como lágrimas. — Estou querendo dizer que, em pensamento, podemos manter uma reserva de esperança, a despeito de
tudo. Não se pode dizer adeus em imaginação. Trata-se de algo que
só se pode fazer em realidade, na carne. Inclusive, o desejo tem
menos a ver com a carne do que com o adeus.
O rosto dele nunca parecera menos contemporâneo. Era uma
daquelas fotografias primitivas, o indivíduo com sofrimento e
consciência.
— Quer dizer que vou perdê-lo.
Era como se ela estivesse se despedindo de um convidado: Adorei
isto, adorei. Adorei você.
— Nada mais posso fazer — disse ele.
Ele retirou o toque refrativo e passou a mão pelo cabelo brilhante,
como se em algum desconcerto normal. Tornou a levantar-se,
apanhou o casaco na cadeira e ficou em pé ao lado dela. Todos esses
atos, sendo executados rapidamente, recordavam que ele era um
perito em litigar com a dor.
—
Eu a deixarei em casa. Vou tomar um táxi.
Sua reversão às frases diárias era mortal. A prova final de que os
homens eram fortes ou fracos.
De pé, encararam-se, como contrários. E quem os observava ficou
aliviado por vê-los normais.
— Ficarei aqui alguns minutos.
Ela não podia considerar o táxi, no qual, resolutamente, ele não a
abraçaria. Entrelaçou as mãos à frente do corpo, no gesto comedido
com que, às vezes, sustinha o desespero. Erguendo a cabeça à
partida dele, era uma criança à beira do caminho que acena para um
carro em velocidade, em uma estrada rural.
Quando Grace chegou à rua, a chuva havia parado e começava a
escuridão. Homens e mulheres vinham de seu trabalho, exaustos ou
animados, todos pálidos. E a rua molhada brilhava com a luz das
lâmpadas nos postes, cintilava mais que o claro céu negro e
estrelado. Motores, vozes, passos e um ou dois transistores criavam
seu tremor geofísico de um mundo em movimento. Essa
demonstração de retomada a apressou, gratuitamente, em direção
aos vitoriosos — a Jeremy, cujo olho precisava ser banhado em água
boricada, à inclinação de Hugh para a matemática, ao súbito
interesse de Rupert por Yeats e à frase de Christian: "Este é o melhor
carneiro em anos". Todos eles iriam deleitar-se com o triunfo sobre
ela, como em pouco descobriria. Eles é que ririam por último, o riso
inocente e aterrador de sua justa reivindicação e de seu lícito amor.
Com tais perspectivas e impressões, Grace Marian Thrale, quarenta
e três anos, permaneceu silenciosa à entrada de um hotel, em seu
surrado casaco azul, olhando para os carros e estrelas, com o
bramido da existência em seus ouvidos. E, como qualquer grande
poeta ou trágico soberano da Antiguidade, clamou ao seu Criador e
perguntou-se por quanto tempo deveria permanecer em uma terra
semelhante.
34
Paul estava escrevendo para sua mãe:
"Minha querida Mónica,
Seria muitíssimo lamentável se você vendesse a propriedade em
Barbados, sem uma idéia definida de instalar-se em algum outro
lugar. Por tedioso que possa ser, e disso não duvido, hoje o mundo
é um dispendioso matadouro, regido pelas leis sobre impostos.
Francamente, não a vejo na Irlanda nem imagino que você
apreciasse a última reapresentação deles da Batalha do Boyne.
Minha peça continua progredindo, embora os anúncios sejam
exclusivamente de má qualidade. Isso deve significar que fui aceito
em cheio pela nação. Talvez seja este abraço de jibóia que me
impeça de prosseguir com novo trabalho. No momento, tenho
desperdiçado bastante tempo ej-inclusi-ve, cheguei a ir ao zoológico
— embora em verdade seja porque Felix pretende rodar um filme lá
e quer que eu o financie. Acho que financiarei — o filho de todo
mundo está fazendo um filme, por que não o meu?
A única outra coisa que me lembro de ter feito ultimamente foi
comparecer a uma festa na casa nova de Manfred Mills. A Victoria
Square sempre foi um lugarzinho difícil e, em seu centro, agora
existe uma elipse de concreto, à maneira de outeiro pré-histórico ou
como se ali houvesse sido cimentada alguma monstruosidade
inamovível, por razões de decência. Tertia não iria, eu levei Felix. O
filho de Manfred — da idade de Felix, mas terrivelmente determinado, com um blue 1 por corrida através do país — recebeunos à escada e disse, com ar decidido: 'Espero que se divirtam'.
Sempre imaginei que algo semelhante seja o Reino dos Céus. No
andar de cima, uma estranha mistura — demasiados suburbanos
discutindo trens e um rebanho de funcionários civis enxameando ao
redor de Manfred, todos obsequiosos e expectantes, como
pretendentes em torno de uma idosa viúva rica. Atentos a cada
opinião emitida por ele. Em outras palavras, uma multidão
absolutamente convencional — exceto por um pianista tão arisco
que só podia conhecer celebridades, um padre católico que
realmente não era casado e um dançarino soviético que ainda não
desertou. Para o evento, Manfred mandou frisar as costeletas e
empetecou-se de correntes. Madeline havia prudentemente
contraído pneumonia e não apareceu.
Entre os funcionários bajuladores estava Christian Thrale, agora
uma caricatura de burocrata. Com ele, tudo se reduz a um boletim
palaciano. Quando perguntei por sua esposa, que costumava ser
bastante simpática, respondeu, com penetrante delicadeza: 'Grace
hoje está indisposta'. Nem posso descrever a pomposidade. Ele
compareceu com a cunhada — uma mulher que conheci bem
tempos atrás, no momento viúva faz alguns anos, e a quem eu não
via há séculos. Veio de Nova York para uma permanência breve, e
ficou hospedada com os Thrales. Ainda atraente — pelo menos em
comparação com os suburbanos e fiscais de impostos —, embora
1
Distintivo (boné, cachecol, etc.) concedido à pessoa que representou sua universidade
(Oxford ou Cambridge) em atividades desportivas. (N. da T.)
oscilando precariamente no limite da distinção, uma armadilha
contra a qual as mulheres nunca são alertadas o suficiente. Quando
jovem, ela já exibia tal perigosa tendência.
O súbito encontro estimulou-me a uma ou duas páginas hoje. Eu
gostaria de fazer algo a esse respeito, embora não apenas outra festa
de pessoas arrebanhadas à maneira proustiana. Além de esse veio já
ter sido explorado a extremos, ainda não sou venerável o bastante
para o último volume de Proust. Não que Proust o fosse. Ele não era
muito mais velho do que eu, quando escreveu aquela festa. Forjoua. Era tão bom no futuro como no passado.
Acho que você agiria com inteligência aceitando o convite de
Washington, uma vez que podemos em breve ter um novo governo
e os parentes de mais alguém instalados na embaixada. Se você for
aos EUA, como planejado, poderia enviar-me artigos de jornais que
conseguir, a respeito do filme Ato de Deus, que estará estreando
nessa época. Meu agente os coleciona, até tê-los todos, e não posso
confiar em amigos para enviá-los, a menos que as críticas sejam
altamente desfavoráveis.
Felix pede que lhe agradeça o cheque pelo aniversário. Procure
desculpá-lo por não escrever pessoalmente, e seja indulgente com
ele.
Seu filho que a ama"
Almoçando com Ted Tice, Caro comentou:
— Paul Ivory estava em uma festa a que fui esta semana.
— Atualmente, Paul deve estar aparecendo bastante.
— É curioso, mas ele não mudou nada.
— Eu ousaria dizer que tem um retrato de si mesmo, putrefazendose em um guarda-louças.
Caro refletiu em como Paul havia permanecido sereno, o sorriso
agora raro e menos intenso. Ele se poupava, como um dançarino
envelhecendo, e ocasionalmente reservava-se o direito de ser quem
se entediava.
—
O filho dele estava lá — disse Caro. — Muito alto e muito
magro.
Um cavaleiro emaciado: cabelos compridos e soltos, uma elegância
de testa e nariz, um refinamento de estrutura. Olhos
verdadeiramente mais opacos que os de Tertia. Simples, talvez de
uma forma egoística. No entanto, a criação pode parecer
decepcionante, como a inteligência. Usava uma camisa branca, de
tecido fino, bordada com flores coloridas, de punhos de renda
franzida; a camisa caía por fora dos jeans bem-talhados, como a de
um saltimbanco. Não usava meias. Poder-se-ia dizer: Que beleza!
Em vez disso, Caro apresentou-se. Os monossílabos eram plantados
como postes de amarração, fechando cada avenida. O rapaz não
havia esquecido o que dizer: ele escolhera um papel que não tinha
falas. Era um tipo frio e, exceto pelos punhos, imperturbável.
Falava-se com ele como a uma criança: "Como é o seu nome, a que
escola você foi?" Seu nome era Felix e iria para algum lugar no
outono — sem dúvida para Oxford ou, indubitavelmente, para
Cambridge. Quando alguém mais se aproximou, ele desapareceu
instantaneamente, de certa forma tornando isso aparente até então.
Uma mulher disse:
— Garanto que será cirurgião; ele tem aqueles dedos maravilhosos,
de pontas encurvadas.
Caro não havia percebido que o rapaz tinha as mãos de Paul. E
quando Paul a procurou, ela lhe observou as pontas dos dedos, a
evidência do amor.
— Vamos nos afastar daquele padre e de sua afetação ecumênica —
disse Paul.
No restaurante, Ted Tice olhava as pálpebras descidas de Caro: a
tragédia não é o amor de breve duração. A tragédia é o amor que
dura.
Foi trazida uma bandeja com peixe à milanesa, dividido entre eles.
Caroline Vail não previra que um dia poderia encontrar Paul Ivory
e não sentir emoção. Ao invés da agitação, houvera a percepção da
imprevisibilidade da vida e da pretensão de Paul sobre suas
lembranças até a morte.
— Cuidado com as espinhas — disse Ted Tice. Depois perguntou:
— Como vai Josie?
Com Caro, ele às vezes gostava de fazer perguntas domésticas, que
o firmavam como seu familiar. E havia lutado a vida inteira para
alcançar, pelo menos, tal grau de intimidade.
Josie viajara para a Suécia com um congresso tarifário, permanecera
lá e ia ter um bebê.
— Irei vê-la em setembro, na Suécia — disse Caro —, depois que o
bebê nascer. Eu gostaria. . . — acrescentou, e fez uma pausa no
óbvio.
Claro, desejaria, intensamente, embora sendo incapaz de imaginar
Adam com o neto. Ela suportava sua perda com tanta compostura
quanto o mundo esperaria de sua parte, sensatamente ou não.
Entretanto, em particular, ainda fazia desajeitados apelos a Deus ou
ao morto, desfigurando a recordação com lágrimas salgadas; no
entanto, em seu pensamento, Adam sempre permanecia calmo. Ela
disse a Ted Tice:
— A recordação é mais do que aquilo por que se barganha. Quero
dizer, se continua assim, esta percepção de passado, passado,
passado, consegue transformar em aflições até mesmo as
lembranças mais felizes.
Sua aparência e a maneira impetuosa de dizer "passado, passado"
estavam tão em desacordo com palavras tristes, que Ted quase
sorriu.
— Não somos velhos o bastante para essa lamentação, Caro.
— Na outra noite, Paul disse que eu beirava a distinção da velhice.
—
Suponho que ficou irritado por você ser bonita.
Ted a observava tirar uma espinha de peixe da boca. No pulso,
tinha um grande e pesado relógio que devia ter pertencido a Adam
Vail. O punho erguido de Caro e seu marido ali em seu pulso
marcavam a passagem do tempo.
Não tenho quaisquer recordações mais felizes dela; no entanto, as
horas em sua companhia foram as melhores.
— E então — disse Caro —, distorcemos a recordação em nosso
proveito, por vaidade ou remorso. Enfim, é o que faço. Não você —
você já nasceu correto e também tem sido treinado na verdade.
Pensava no trabalho dele da mesma maneira vaga de sempre,
imaginando uma grande dose de silêncio e de precisão.
—
Mesmo através de um telescópio, as pessoas vêem aquilo que
procuram ver. Exatamente como fazem a olho nu. Nada fornece a
verdade — declarou ele —, exceto o desejo por ela.
Desviou o rosto, como que envergonhado. Da mesma forma, não
posso dizer que tenho sido verdadeiro com ela; Caro jamais exigiu
de mim essa forma de verdade.
Caro enxugava os dedos, refletindo que talvez a falta de filhos é que
provocasse a volta ao passado. Por outro lado, era difícil visualizar
o futuro do filho de Paul Ivory. Perguntou a Ted:
— Tem um retrato de seus filhos?
Ted apanhou a carteira. Mostrou uma foto de duas adolescentes e
um garotinho, de pé ao lado da mãe. A mulher era clara e um tanto
séria, o menino, moreno, contorcia-se de riso.
— Nunca fomos jovens assim — comentou Caro, sobre as crianças.
Segurou o retrato cuidadosamente, pelas bordas. — Sua mulher é
adorável.
— Ela é totalmente adorável. — Há muito haviam cessado de
surpreender-se por Caro e Margaret nunca se terem conhecido.
Quando ela lhe devolveu a foto, Ted contemplou os retratos por
alguns momentos. — Meu filho é a cara de meu irmão, quando ele
tinha a mesma idade.
Caro esquecera o irmão de Ted Tice, que existira apenas como uma
risca no olho de Ted.
— O que faz seu irmão?
— Ele queria ser fazendeiro, e conseguiu fazer um curso de
agronomia na faculdade. Já faz alguns anos que trabalha a terra, em
um arrendamento em Yorkshire. Labuta como um escravo, mas
também colabora com publicações agrícolas, e escreveu um
respeitado tratado sobre arganazes. Tem uma esposa taciturna, que
trabalha tão duro quanto ele, e uma bonita filha.
(Na festa, Paul Ivory havia dito a Caro: "Meu irmão fugiu com uma
balconistazinha". E ela replicou: "Também fui balconista. Não somos
diminutivos, necessariamente".
Paul sempre despertava certo sarcasmo. As associações de Ted
tinham uma saudável candidez.)
— Sendo assim, ambos fizeram o que pretendiam.
— Em certo sentido. — Ted contemplava a foto, na qual seu filho
segurava um desajeitado cachorro. — O cão se chama Fobos.
Gerado por Marte.
Deixou a foto a um lado e tirou da carteira uma fotografia
amassada, em preto e branco, que mostrou a ela. Sentia curiosidade
em ver como Caro desviaria o assunto.
Contra um segmento de jardim em Peverel, havia a imagem de
perfil de uma jovem, com os cabelos negros caindo soltos, uma das
mãos erguida. Caroline Vail segurou o retrato na palma da mão.
Um ligeiro tremor em sua expressão poderia ter significado receio
ou a contenção de lágrimas.
— Não me lembro desse vestido — disse ela. Devolveu a fotografia.
Então, ela havia sido aquela
pessoa. Em torno da sala, a fantasia da existência abrangeu tudo —
garfos e pernas na mesa, o colarinho listrado de uma camisa e o
macio formigar da banqueta de pelúcia, contra suas pernas.
Ted lamentaria tê-la feito chorar, embora houvesse se esforçado
para isso.
— Quando passar por aqui, em setembro, você me comunica? —
pediu ele.
— Está prometido.
— Não vai voltar atrás? Como uma criança.
— É claro que não. Adorarei ver você.
Um curto lance de escada levava à rua acima deles. Ted ficou
espiando o balançar do casaco escarlate nos joelhos de Caro,
enquanto ela subia os degraus. Também espiou seus sapatos,
reluzentes como vidro negro, e refletiu que nunca a vira descalça.
A tarde agora ia bem avançada. Caro ia tomar o metrô. Ted foi até o
guiché com ela.
— Adeus.
Beijaram-se. Ele viu seu casaco escarlate transpor a borboleta,
mover-se na escada rolante que descia, deslizando, diminuindo,
baixando: uma Eurídice na hora do rush. No último momento, ela
olhou para trás, sabendo que ele estaria lá.
35
Em uma quente manhã naquele início de verão, a sra. Vail estava
sentada no consultório de um médico, fronteiro à casa em que ela
morava. Lia em voz alta o que via em um cartaz. Seus olhos escuros
estavam obscurecidos e dilatados. O médico disse:
— Eu lhe darei uma receita.
— Para colírio?
— Para óculos.
Ela se sobressaltou. O médico tinha cabelos brancos e um hálito
azedo.
— As coisas nos atingem. A senhora não foi sempre uma daquelas
pessoas que conseguem ler o nome de um barco ou o anúncio em
um cartaz? Conseguia decifrar a impressão miúda. Muito bem, as
coisas a atingiram. A natureza não faz exceções.
— Não estamos aqui apenas para agradar à natureza.
— Ela dá vazão a seus ressentimentos em execuções. E tudo de
repente, também. Nós, as pessoas comuns, podemos dizer mais ou
menos como as coisas provavelmente continuarão conosco.
O médico entregou-lhe uma tira de papel e puxou seu bloco de
receitas. Três meses mais tarde, ele morreria em um desastre de
avião, a caminho de um congresso de oftalmologistas, em Roma.
Lá fora, na rua quente, os olhos de Caro lacrimejaram. Ela
vasculhou uma bolsa de mão, adequada a Dora, em busca de um
lenço. A borda da calçada lhe desnorteava a visão. Nesse momento,
um homem saindo de um consultório médico, na porta vizinha,
falou seu nome.
— Justamente você, aqui!
Era como Paul, em um continente estranho, ficando
surpreso pela presença de Caro, precisamente na rua em que ela
morava.
— Você é Paul?
Fez a pergunta como se fosse realmente cega. Ele a olhou enquanto
ela enxugava as lágrimas que lhe embaçavam os olhos, mais
corpulento e sombrio do que Caro podia lembrar.
—
Meu filho está com leucemia — disse Paul.
As lágrimas brotaram dos olhos dele, sem qualquer indução. Ela
ficou parada, com um dedo no queixo, os olhos fechados. O choque
a afetava como um langor.
— Que pesadelo!
— Bastante real, aliás. Embora, de um mês para cá, eu venha
tentando despertar dele.
Estavam parados, não percebendo a rua ou o tempo. As pessoas
passavam e olhavam, como sempre tinham feito. A cidade se
deslocava pesadamente em torno deles, encharcada e exausta.
Paul contou como a doença havia sido descoberta. Levara Felix a
Nova York porque ali havia um médico, um hospital, um novo
tratamento. Tertia chegaria após o 4 de Julho.
Caro pousou a mão no cabelo ardente.
— Quer vir até minha casa? Moro no outro lado da rua.
Agora, era ela quem tinha a chave. Girando-a na complexa
fechadura, falou:
— Não há ninguém em casa. Vim à cidade passar os feriados, para
trabalhar.
A entrada estava fresca. As superfícies eram nuas. Sobre uma mesa
havia uma lista escrita à mão: "Jornal, lavanderia, Gristede". Na sala
de estar, cortinas silenciosamente enfunadas e frouxas sobre um
condicionador de ar. Uma poltrona, um sofá e uma mesa de vidro
estavam sem suas coberturas protetoras contra a poeira.
— Tem alguma coisa para beber? — perguntou Paul. Ele nunca se
interessara pelas condições de Caro e, em
vista disso, podia reiniciar como se tivessem se separado na
véspera, sem exigências de relato sobre a vida nesse ínterim.
Ela também sentiu isso: um reinício. Ou uma culminação.
Paul tirou o paletó e o deixou cair em uma cadeira. Caminhou pela
sala amortalhada, enquanto Caro apanhava uma garrafa e copos. As
distorções de sua visão quase a impossibilitaram de manejar a
bebida. Paul atirou-se no sofá e levou a mão aos olhos, com os
dedos para cima e o braço de manga branca no ar: desgracioso pela
primeira vez
— a perna em confusa postura, o cotovelo torto: um moderno
mecanismo fraturado, mais fácil de ser substituído que reparado.
Quando ele tirou a mão do rosto, Caro entregou-lhe o copo frio.
— O tratamento é drástico — disse Paul. — Ele está sofrendo mais
com isso, no momento.
— Lembro-me do quanto era bonito.
— Com estas novas drogas, há alguma esperança. Ela se sentou em
sua poltrona.
— Onde há esperança, existe suspense.
— O tempo — disse ele —, o tempo que não passa!
— Depositou o copo no chão, ao lado do sofá, onde se formou um
círculo de condensação. A mão de Paul ficou pendurada ao lado do
copo. — E isto pode continuar assim, sempre e sempre. . . aliás, é o
que espero.
Após a morte de Adam Vail, Caro repetidamente procurava saber
as horas e descobria que o tempo mal tinha avançado.
— Ele está a par de tudo?
— Está, e, no momento, mais ressentido do que com medo — disse
Paul. — Em certos aspectos, Felix é como Tertia.
Caro começou a ver Paul mais claramente: a pele ruborizada pela
falta de sono, corada, mas ainda assim cinzenta; os avermelhados
olhos azuis e os cílios de cobalto; a ligeira desordem de colarinho e
gravata. Era bizarro que um homem carregando aquela
preocupação tivesse que fazer a barba, vestir-se e andar pelas ruas
com decência convencional — e que a humanidade esperasse isso
de sua parte.
Apanhou o copo dele e o encheu de novo.
— Vou trazer algo para comer.
— Não. Não vá.
Como se estivessem em sua casa, ao invés de na dela. Paul estendeu
o braço para seu pulso, não o tocando, apenas encostando o copo
nele. Um gesto sem contato, somente o desejo de deter.
— Se não a encontrasse hoje, eu estaria acabado. É a possibilidade
de falar que levanta o ânimo. Ou abaixa.
— O que posso fazer?
— Nada. Fique aqui. Dentro em pouco, terei de ir à cidade
encontrar uma pessoa amiga de Felix, que está pondo em ordem
fotografias — slides de uma viagem que os dois fizeram juntos.
Pensamos que ele se distrairia vendo as fotos, já que não consegue
concentrar-se para ler.
— A namorada dele?
— Felix é homossexual — disse Paul.
Caro se sentou, com Paul rendido ao seu escrutínio. Como nunca,
quando estivera deitado a seu lado.
— É como se a gente nunca houvesse enfrentado um problema —
até agora — disse ele.
Estava chegando aos cinqüenta, mas não aparentava.
— Olhando-se para trás, existe a terrível ignorância. Não saber que
isto nos estava reservado.
— A cólera. . . contra o destino, contra Deus — disse Paul. — Não
apenas nos sabermos impotentes, mas que tudo está no poder de
alguém. . . de alguma coisa. Os médicos e enfermeiras com
autoridade para contar-nos o pior. . ou mentir para nós. Com
autoridade para cometer erros. Sempre detestei qualquer sensação
de poder sobre mim.
Endireitou-se no assento, acendeu um cigarro e o deixou
queimando nos dedos. Um espectador talvez se perguntasse se Paul
recordava quem era Caro.
— Posso voltar amanhã?
— Estarei aqui todo o fim de semana, trabalhando.
— Trabalhando?
— Em uma tradução do espanhol.
— Oh. . . sim. . . soube que fazia isso. — O fato de ele nada ter
perguntado sobre ela, sua vida, sua perda, emprestou realidade a
uma atmosfera de sonho. Tornou um fato a presença dele — algo
material como poderiam ter sido dados estatísticos, ou falar de
dinheiro. — Isto é um cinzeiro? — perguntou ele, e colocou ali o
cigarro. — Então, até amanhã.
Caro o acompanhou à saída. Fechou a porta contra o dia sufocante e
se perguntou se ele chegaria a voltar. Carregou o prato colorido
para a cozinha e o lavou na pia, sentindo um cheiro de nicotina
molhada.
À noite, ela desceu de seu quarto e olhou para as almofadas
amassadas, para o gelo derretido em um copo. Foi à cozinha e viu o
prato de Palermo. Anos antes, Caro buscara a evidência de sua
própria presença naquela casa. Agora, a existência pessoal de Paul
precisava ser provada ali. Quando o sol se ergueu, Caroline Vail
espiou para um céu ferroso, do alto da casa.
Um grosso jornal for entregue, uma nota de Una, uma carta da
Irlanda.
Caro abriu a porta sobre uma onda de calor.
— Pensou que eu não viesse, não?
Pontual como um ator, ele apareceu para recriar a cena ensaiada na
véspera. Tirou o paletó e sentou-se no sofá. Sua camisa estava
molhada sobre o peito e debaixo das axilas, tornando-lhe o corpo
mais esguio, mais visível.
— Onde está hospedado?
Um hotel poderia corroborar a existência de Paul Ivory.
— No St. Régis.
Ela trouxe sanduíches em um prato e uma garrafa de uísque. Paul
não encorajou a gentileza: tinha um favor maior a solicitar. Disse
que Felipe dormira e não sentira dor. Tertia telefonara de Londres.
— A pele dele, os dentes, o cabelo. . . O cabelo cai aos punhados,
como palha — disse Paul. Segurou o copo entre as mãos,
acrescentando: — Aquele lindo cabelo. . .
Após algum tempo, disse:
— Você talvez fique surpresa por eu me preocupar tanto com
alguém.
O que havia de novo nele não era o amor, mas a responsabilidade.
Palavras, embelezando um estado de espera. À claridade lívida, o
rosto de Paul era uma máscara do couro mais delicado e flexível ou
de seda cor de limão: feições exauridas não só pelo sentimento
interior, como pela demonstração externa. Os aparecimentos em
público e fotos inumeráveis tinham esgotado o estoque de
verossimilhança, deixando apenas aquilo. Cada exploração extraíra
sua parte, até que somente permanecera urna capa de expressão.
— O que se torna terrível não é a culpa — disse ele —, algo que
ainda agora mal chego a sentir. É o sentimento de punição.
Caro pensou que Paul dissesse aquilo aludindo a ela. Ele a fitava a
meia-luz, que mostrava apenas uma poltrona, uma forma. Ela
poderia ser apenas uma amiga íntima ou Helena de Tróia.
— Muita gente sente dessa maneira — disse ela. — Está implícito na
própria, pergunta: Por que eu? A sensação de ter sido escolhido
para tal punição.
— Você sabe que não é nada disso. — Paul ainda conseguia criar a
cumplicidade. — Enfim, nunca estive muito certo de que você
soubesse.
Largou o copo e esperou. Por fim, Caro perguntou:
— O que tem para me dizer?
Paul se sentou no sofá, com as mãos levemente entrelaçadas nos
joelhos. Agora, ele falaria com a voz — natural e quase bela — que
reservara para a verdade. Foi nessa voz que disse:
— Eu deixei um homem morrer.
Manteve os olhos fixos no rosto de Caroline Vail. Foi o olhar dela
que baixou para a escuridão.
— Estava com vinte e cinco anos. Foi pouco antes de nos
conhecermos, naquele verão em Peverel. — Poderia estar mantendo
uma conversa normal. — Falei que o deixei morrer, mas a verdade é
que o matei. Pensei que você talvez soubesse.
Era isso o que ele viera dizer.
— Eu vi. . . sabia que havia algo. . .
Ela teria acrescentado "dessa espécie", mas assassinato não tinha
espécie.
— Por coisas que você disse, maneiras de falar, às vezes seu olhar,
eu pensei que soubesse. Embora talvez não soubesse tudo.
Os olhos de Paul estavam animados naquela máscara de couro fino,
com nova e exposta proeminência, como se pestanas e sobrancelhas
se houvessem chamuscado em seu olhar. A mulher o fitava
também, com um esforço moral.
— Você deve se lembrar — as frases convencionais raiavam o
absurdo: devia existir uma linguagem em separado para
devastação. — Em Peverel havia um casal de idade que costumava
ajudar nos jantares, servindo e limpando, esse tipo de coisa.
— Eles foram contratados para o casamento de Grace — disse Caro.
— E estavam lá, na noite em que os Thrales comemoraram seu
noivado com Tertia.
— Eram os Mullions. Costumavam servir no castelo como
empregados extras quando havia festa nos fins de semana. Tinham
um neto, que às vezes ajudava — manobrando carros, levando
pessoas à estação, trazendo e levando coisas. Foi como conheci esse
neto no castelo, uns dois anos antes de conhecer você. Saí para o
jardim depois do jantar e ele estava perambulando por ali. — Paul
fez a careta de apertar as pálpebras, uma careta não recordada em
tantos anos. — Eu deveria dizer que o vi no jardim, e saí por esse
motivo. Seu nome era Victor.
Eu o vejo à noite, olho para baixo e você está sozinho no jardim.
Chamava-se Victor Locker. Com o casamento, a filha dos Mullions
envolveu-se justamente com o lado pior da vida londrina, que seus
pais sempre procuraram negar, enquanto viveram. Casou-se com
um indivíduo brutal, chamado Godfrey Locker, de cabeça grande e
achatada, olhos minúsculos, dentes aguçados, o perfil de uma
baleia. Quanto a ela, era de um temperamento — ou o desenvolveu
— de maneira a se nivelar ao dele. Ignoro o que esse sujeito fazia na
realidade, mas era daqueles que se metem sempre em negócios com
um toque escuso. Já estivera nas docas e em Smithfield, tendo
dirigido um caminhão durante algum tempo. Havia quatro filhos, e
todos passavam o diabo. Como disse, o nome do pai era Godfrey,
mas eles não o chamavam de papai, e sim de God 1. Essa é a
verdade.
— Seria por aí que começou sua peça Amigo de César?
— Exato. Depois que fiz camaradagem com Victor, costumava ir lá,
até sua casa, com ele. Moravam em Ken-nington, em um cenário de
devastação. Victor dizia que a profissão de seu pai era devastador
de interiores. Os filhos sentiam terror do pai, por suas mãos, bstas e
seu riso selvagem. A mãe era uma vaca, uma megera bêbada. Victor
era o mais velho — estava com dezesseis anos quando o conheci —,
embora houvesse uma filha ainda mais velha, que tivera o bom
senso de fugir e desaparecer. Era lá que passava meus momentos de
folga depois de conhecer Victor — com os Lockers, em Kennington
— disse Paul. — Estou querendo dizer, claro, que Victor era meu
amante.
— Compreendo.
— O pai era cauteloso comigo. Tinha seus planos é não queria
assustar-me. Observava-me com aquele sorriso serrilhado, como se
dissesse: Você terá q seu. Os avós, os Mullions, não eram grande
coisa, mas ficavam vários pontos acima de Godfrey Locker.
Queriam fazer algo pelo rapaz, por Victor. Tudo quanto puderam
pensar foi em arranjar-lhe biscates nas casas de campo — algo que,
pelo menos, o afastava ocasionalmente de Kennington, embora
estivesse conduzindo a outro problema, porque ele começou a
furtar coisas e pensava em fazer um "trabalhinho" por fora, com
uma gangue de companheiros. Então, surgiram oportunidades à
margem disso, comigo e com gente do meu nível. — Paul bebeu e
enxugou a boca rudemente, em uma evocação de Godfrey Locker.
— Está entendendo isto, não está? A meu respeito?
— Estou.
—
1
Significando o diminutivo de Godfrey, mas também a palavra Deus. (N. da T.)
— Meu pai foi o primeiro a enxergar. Foi o primeiro, com sua
citação do leito de morte. Podemos desligar esse aparelho um
instante?
Caro se levantou e desligou o ar-condicionado. Abriu a janela,
segurando a cortina a um lado. A rua estava vazia, o lixo colado à
sua superfície como que para sempre; as árvores eram coisas vivas,
que pressentiam uma tempestade.
— À medida que o tempo corre, uma pessoa se expõe, muitas vezes
deliberadamente. Podemos ser identificados, por exemplo, por
nossa ridicularização dos homossexuais. — Paul quase sorriu. Viu-a
retornar à poltrona e sentar-se. — Está aceitando isto
tranqüilamente.
— O que mais poderia fazer?
— Com isso, está indicando que esgotou toda a emoção que tinha
por mim. — Paul mencionou aquilo sem o menor sinal de remorso,
o reconhecimento do fato levando imediatamente ao egoísmo. — É
horrível que, mesmo lhe contando o caso, falando desta maneira,
mal consiga desviar meu pensamento de Felix. A esta altura, tais
coisas não importam muito. — Houve um perplexo movimento
animal da cabeça. — No decorrer daqueles encontros de fim de
semana no castelo, Victor arranjou um emprego, se é que se pode
falar assim, dirigindo e fazendo serviços diversos para um solteirão
que tinha uma propriedade no campo, perto de Marlbo-rough.
Entre Marlborough e Avebury. Era cenógrafo, algo muito em moda,
então. Chamava-se Howard. Pode imaginar o quadro. Ele tinha um
apartamento em Londres e passava os fins de semana no campo. E,
pelo breve período em que Victor me considerou essencial, também
fui para lá nos fins de semana e ficava em um mal-ajapibrado hotel
dos arredores, ocioso, à espera da hora de folga de Victor. Nunca
descobri se seu patrão sabia que o partilhava com outro ou não.
Victor não merecia crédito no que dissesse, quanto a este ou outros
assuntos.
— Você ficava naquela hospedaria. Onde nós dois estivemos.
Em circunstâncias muito diferentes, posso garantir.
— Ficava.
Então, houvera a satisfação dele ao enganar Tertia, na ocasião do
noivado. Naquela época, era Caro quem estava a par de tudo.
Agora existia sua ignorância do logro maior, mais íntimo: o de que
Paul a possuíra no mesmo lugar — no quarto, na cama — que seu
amante. Sua ignorância sobre o prazer mais profundo de Paul.
Sempre gostei de aceitar as regras do jogo.
— Tampouco jamais fiquei sabendo se Godfrey Locker e seu filho
faziam chantagem com o decorador. Quando começaram comigo,
foi em pequenas doses. Naturalmente, eu já dava dinheiro a Victor,
de maneira que aquilo apenas pareceu um pouquinho mais. Uma
história bastante familiar, e a minha única indicação de juvenil
inocência, digamos, foi cair nela. Ou poderia ser autoconfiança —
eu estava acostumado a vencer e à idéia de que os usava. Quando a
situação começou a ganhar importância, eu ainda conseguia
fornecer o dinheiro, mas podia ver a que conduzia aquilo. Victor
apanhou uma revista no apartamento de seu patrão e percebeu que
eu caminhava para o sucesso — havia uma reportagem sobre
preparativos para a primeira peça e uma fotografia minha com
Tertia. Por um lado, havia tudo aquilo, por outro, a derrocada, os
Lockers, a chantagem, o escândalo, a possibilidade de ser
condenado à prisão. Quanto mais eu obtinha do mundo o que
desejava, maior era o poder dos Lockers. Até hoje — disse Paul —,
nunca passei dias e horas como aqueles.
Caro tinha estado em uma cozinha gelada e desejado morrer.
—
Parecia incrível que não pudesse conseguir o máximo deles,
com as armas que possuía — inteligência superior, bons contatos.
Victor não era inteligente, mas tinha perspicácia. Os filhos de
homens brutais desenvolvem isso muito cedo, tentando manter-se
um passo à frente do horror. Mostrava-se perspicaz, por exemplo, a
respeito de minha peça — sabia exatamente o que era requerido,
quando eu precisava de ajuda sobre falas ou reações. Nele não havia
idéias, apenas sua astúcia. Entretanto, dava um valor imoderado à
sua inteligência, por causa do ambiente de onde viera. Os filhos de
pessoas rudes têm isso em comum com os dos ricos — não possuem
nenhum contexto no qual avaliar suas limitações.
"Bem, então aconteceu algo a meu favor. Godfrey Locker passara
novamente a dirigir um caminhão por algum tempo e sofreu um
acidente, na Great North Road. Quebrou um braço e o quadril,
recebendo também um ferimento na cabeça que o deixou em coma
por quase uma semana. Em um ou dois fins de semana, dei uma
fugida a Marlborough — em Avebury —, mas então fui lá na sextafeira, pensando poder controlar Victor por uma semana, enquanto
seu pai estava fora do caminho. À noite, quando ele podia se
ausentar para jantar, ia ao pub como de costume, mas eu preferia
encontrá-lo na estrada. A essa altura, eu estava começando a ficar
nervoso quanto aos métodos dos Lockers, e pensei que poderiam
estar reunindo provas com o encarregado — o qual, por sua
aparência, poderia ter feito parte da própria dinastia Locker.
Ficávamos no carro e Victor ria na minha cara, como se diz, à idéia
de me deixar escapar do anzol. 'Você está em meu futuro. Uma
cartomante me disse.' Ele tinha mania de cartomantes. 'Você é meu
plano de aposentadoria', disse, e recostou-se no assento, rindo. Eu
me interessara por ele devido à sua aparência, mas agora Victor só
conseguia recordar-me seu pai."
— E como era ele?
— Louro, de olhos claros. Muito conveniente — os outros nos
tomavam por irmãos, desde que ele não abrisse a boca. Como disse,
naquela noite, Victor me lembrava seu pai. Recostado no banco e
rindo. "Vou dar um golpe decisivo", disse, "agora que God está fora
da jogada." Eu o via quase histérico de excitação — êxtase — sobre o
acidente com o velho, e isso era uma satisfação legítima, embora
incompleta, para toda a família.
"Marcamos um encontro para a manhã seguinte, em um lugar junto
do rio, aonde íamos algumas vezes, quando Victor tinha que passar
a noite acordado. Ele voltava muito tarde para casa, geralmente
retornando de alguma festa. Então, deixava o carro mais além e
vinha andando ao meu encontro, sem ter dormido, depois que o sol
nascia. Cruzava uma ponte mais abaixo e refazia a caminhada até
onde eu estava. Havia uma curva do rio, aonde costumávamos ir,
pouco abaixo da estrada, com um recanto sob as árvores. Naquele
ponto, o rio se estreitava tanto, que mais parecia um riacho. Da
estrada logo acima, ninguém suspeitaria da existência do rio e
muito menos daquele recanto escondido na margem, debaixo dos
salgueiros. O próprio Victor gostava dali." Com seu olhar
conspícuo, Paul acrescentou: "Eu disse o próprio Victor, porque ele
tinha medo de água e sentia-se seguro por ali quase não haver rio —
um fiapo de água correndo sobre pedras e maciços de juncos
inclinados. Ele tinha medo porque não sabia nadar, como a maioria
dos pobres de sua geração, mas o orgulho o levava a fingir que um
ledor da sorte, em uma feira de diversões, havia predito que
morreria afogado.
"Descobri isso — o pavor à água — porque certa vez o levei à
Riviera por alguns dias, pensando que ele iria gostar. No entanto,
apenas demonstrou seu terror do mar e a humilhação de ter de
admitir que não sabia nadar."
Calor, areia, o mar. Limoeiros, vinhedos, paredes brancas.
— Depois que estive com ele naquela noite, voltei à hospedaria. Só
consegui dormir alta madrugada, e, quando acordei, já passava da
hora em que devia encontrá-lo no rio. Quando cheguei lá, deixei o
carro em uma curva da estrada, como sempre fazia, e caminhei a
última parte do trajeto. Desci a rampa até a margem e descobri
Victor debaixo das árvores, dormindo. Estivera acordado a noite
inteira e dormia profundamente, a qualquer momento. Tornei a
achá-lo bonito — disse Paul —, e desejei que ele morresse.
"Fiquei parado a seu lado, desejando que nunca acordasse. Não
tinha idéia de fazer-lhe mal, só queria que deixasse de existir
enquanto ainda era belo e não fora apanhado. Então, enquanto eu
permanecia ali, um homem passou no outro lado do rio, a alguns
metros de distância. Jamais alguém passara antes por aquele trecho,
somente uma estreita faixa de relva ao lado do leito do rio. Ele
parou debaixo das árvores e olhou para nós, para mim. Já falei que
não tinha intenção de fazer mal algum a Victor, mas ele vira o
suficiente em meu rosto para parar."
Paul esperou que Caro falasse. Como ela ficou calada, continuou:
— Encaramo-nos através dos poucos metros de pedra e água. Sorri
para ele e assenti. Estava acostumado a convencer os outros por
minha aparência e odiei-o por não ficar impressionado. De qualquer
modo, ele percebeu que Victor estava apenas dormindo — olhou
abertamente para certificar-se disso — e, após um minuto, reiniciou
sua caminhada, subindo o rio. O que mais poderia fazer? Não
obstante, sua passagem enervou-me, e comecei a temer que Victor
acordasse, que ficasse novamente parecido com seu pai. Havia algo
de aterrador naquela manhã radiosa e na minha maneira de,
acordado, observar o sono de Victor. Após um momento, fiquei
demasiado inquieto à perspectiva de ele acordar e transformar-se,
de maneira que fui embora e o deixei ali, dormindo, como que
morto.
Houve outro movimento da cabeça de Paul, virada de lado da
maneira como faria um paciente, para suportar a sondagem de um
ferimento.
— Quando me aproximei do alto do barranco, um policial
uniformizado se preparava para descer. De relance, tive a confusa
idéia de que o homem de passagem pudesse ter alertado a polícia e
me dispunha a negar o que, de modo algum, eu havia feito. Ele
parecia um policial de palco — idade indefinida, decente,
responsável. Antes que eu pudesse abrir a boca, começou a dizerme que estavam evacuando aquela faixa do rio, a fim de inundá-lo.
Havia uma grande tempestade aproximando-se pelo oeste e eles
esperavam o rompimento de um dique, localizado a cerca de meio
quilômetro dali, rio acima. Um fazendeiro havia represado um rio
tributário para fazer um açude, no ano anterior, mas este não estava
suportando a pressão das águas. Tinham trazido dois engenheiros
para abri-lo sob controle antes que o dilúvio chegasse, de maneira a
que a aldeia mais abaixo não ficasse inundada. E aquele lugar onde
estávamos — sendo tão estreito — era o único ponto em que
esperavam uma arremetida violenta das águas. "O rio subirá
bastante até aqui", disse ele, "mas o resto será uma brincadeira." Tinham um colega estacionado mais além, rio abaixo, e estavam
colocando barreiras na estrada. "Não há mais ninguém por lá",
acrescentou ele. Nem mesmo precisei dizer não. Ele deu uma boa
espiada na margem, olhando para cima e para baixo ao longo do
rio, e, naturalmente, a única coisa que não podia ver era Victor.
"Ele disse: 'Temos ordem para evacuar este trecho, mas se subir um
pouco, pela estrada, poderá assistir ao espetáculo'.
"Enquanto subia em direção à estrada, eu ia pensando: E se ele
acordar? Meus pensamentos eram todos os que se poderia
denominar práticos, sem nenhuma outra percepção, nenhuma
hesitação. Pensei então ser possível dizer que nunca havia descido
até a margem do rio. Se Victor gritasse, se aparecesse, não saberia
que eu estivera lá. Era como se eu tivesse esquecido o passante.
Assim, travei conversa com o agente policial e ele, pelo menos, foi
seduzido. Quando subimos a rampa até onde eu deixara o carro,
houve uma troca de sinais e um veículo policial desceu a estrada
lentamente, para confirmar que fora evacuada. Após alguns minutos, soou uma pequena explosão, surgiu um pouco de fumaça
entre as árvores e logo ouvi o som da água. Tudo terminou tão
depressa, foi um momento — primeiro um fluxo, depois um
turbilhão e então, justamente como eles tinham dito, a ascensão de
uma crista na estreita curva do rio, onde ele corria fora de nossa
vista. Ali, a crista chegou ao topo dos salgueiros e, depois disso, as
árvores afundaram na corrente como cabelos molhados, de maneira
que tudo sob elas ficou visível, até mesmo a pequena margem onde
Victor tinha dormido. E onde, agora, nada mais havia para ser
visto."
Na janela, a cortina de gaze se enfunou e voou alto, liberada em um
balanço natural. Um vento forte soprava antes da tempestade.
Aquilo nada mais era senão uma tentativa de proporcionar à
ocasião o que lhe era devido. Paul continuou falando. Em qualquer
pausa da ventania podia-se ouvir, muito à distância, os trovões
ribombarem.
— A fala e o comportamento surgiram com uma calma
sobrenatural. Eu me via e ouvia, assistindo ao evento. Enquanto
Victor era afogado no Kennet. Tivemos de esperar que o outro
policial voltasse à estrada, com o carro da polícia. Pareceu muito
tempo — talvez tenham sido uns vinte minutos —, mas quando o
carro chegou, nada havia a relatar de novo, de maneira que os dois
homens ficaram conversando ociosamente na estrada, à espera de
uma autorização dos engenheiros. Finalmente soou um apito,
alguém desceu em nossa direção com uma bandeira verde e um ou
dois carros recomeçaram a rodar. Eu já decidira voltar à hospedaria
e ficar lá mais ou menos uma hora, parecendo esperar, como se
fosse o caso. Sim, como se fosse o caso. Meu policial ia naquela
direção, de modo que lhe dei uma carona. Ele não podia estar mais
jovial. Quando nos aproximamos do dique que fora explodido,
paramos para que ele pudesse falar com os homens postados ali.
Então, alguém comentou: "Um indivíduo ficou retido aqui por
causa de tudo isto e precisa de uma carona até a estação". Era o
andarilho da beira do rio — disse Paul. — Àquela altura, já se
passara mais de uma hora.
"Ele veio até o carro e viu que era eu. Ainda não sabia de nada. No
entanto, percebeu algo em mim. Parou junto ao carro e olhou dentro
de mim. Senti seus olhos em mim, e ainda posso senti-los." Passou a
mão pelos olhos. "Aquele foi o único momento em que a polícia —
os dois policiais — vacilou. Por um segundo, os dois intuíram que
havia algo errado e, naturalmente, foi dele que suspeitaram, não de
mim. Ambos o observaram, fixando mentalmente sua aparência.
Então, tudo terminou, o homem entrou no banco de trás e seguimos
em frente, enquanto meu policial tagarelava o tempo todo. Dizem
que são precisos três para uma piada — um para contá-la, outro
para entendê-la e o terceiro para não pegá-la. Talvez seja assim com
muitas coisas. E assim também era no carro — eu e ele, mais o
policial que ignorava a questão.
"A reação começava a envolver-me, e o esforço para dirigir era
colossal. Minhas mãos. Dizemos a nós mesmos o que é preciso fazer
— como se fosse um dever ou heroísmo. O homem no carro estivera
fazendo uma excursão a pé pelo West Country. Começaria a
trabalhar novamente naquele dia. Parara por ali para ver Avebury
Circle, que Deus o danasse no inferno, e agora tinha que pegar seu
trem. Deixara a bagagem na estação. Soube tudo isso porque o
policial lhe fez algumas perguntas, pressentindo algo estranho naquele carro, mas não sabendo o quê. Voltei à hospedaria."
Paul terminou de falar e bebeu um gole. Em seu copo, quando o
ergueu, o barómetro permanecia firme. Após tantos anos, Caro
reviu o balcão sujo, as garrafas turvas, o encarregado. O quarto. A
cama. O sangue fluíra duas vezes.
— Quando eu estava na hospedaria, a tempestade desabou.
Naquela noite, eu estava de volta a Londres, dirigindo em meio à
pior chuva que já vira. Nada se soube sobre Victor até a noite. Seu
corpo devia ter sido empurrado pelas águas até a ponte mais
abaixo, tendo ficado de algum modo retido sob ela. Quando a
tempestade caiu, carregou a ponte, e o corpo foi encontrado entre os
destroços. Assim, o caso nunca foi relacionado à inundação
efetuada mais acima, no rio. Seu patrão, o homem chamado
Howard, só acordou com a tempestade e não sabia a que horas
Victor havia saído. Estavam apenas eles dois na casa, e Howard fora
dormir, digerindo uma comezaina. Presumiu-se que Victor estava
na ponte, quando a tempestade a fez desabar — era um lugar que
ele cruzava freqüentemente, quando fazia compras na aldeia ou ia a
uma garagem. Na hospedaria poderiam ter-me ligado a ele, mas o
último desejo do encarregado seria convidar a polícia a intrometerse em seus negócios. Godfrey Locker continuava no hospital, com
uma forte contusão — ficou lá durante semanas e, ao sair, enfrentou
uma acusação de homicídio involuntário. Nunca mais se recuperou
do acidente e, dentro de dois anos, estava morto. Essa parte fiquei
sabendo mais tarde, pouco a pouco, através dos Mullions.
"Eu não teria desejado melhor, se Deus o planejasse", disse Paul.
Colocou o copo no chão. "Exceto por aquele homem. Ele leria aquilo
nos jornais, mas não teria certeza de nada." Paul se levantou, foi até
a mesa e se serviu de outro drinque. "Só que ele tinha certeza."
Olhou para Caro, avaliando sua reação, como se fosse o próprio
corpo dela. "Muita gente — a maioria das pessoas, talvez — já
cometeu algo escuso, inclusive criminoso, mas continua vivendo
legitimamente dentro da sociedade. O que estou lhe contando é de
natureza diversa. Depois disso, a vida de um indivíduo em sociedade é uma impostura." Paul tornou a sentar-se, segurando o copo.
"E, para mim, aquilo era fascinante, até mesmo excitante."
De vez em quando as cortinas se separavam, expondo um céu que
escurecia rapidamente. A sala agora estava próxima da escuridão.
— Houve o terror, é claro, inclusive o horror. No entanto, havia
também euforia — uma sensação de haver ludibriado — e dessa
forma controlado — toda a humanidade, de ter desafiado leis
naturais. A impressão de estar fortalecido, de ser onipotente,
alguma louca analogia com o que devem sentir os heróis que
arriscaram a vida para desafiar o Estado e sobreviveram. Todos os
mistérios tinham se alinhado ao meu lado. Vivi então com energias
supérfluas — comecei a reescrever minha peça, e, tendo essa
realidade dentro de mim, a coisa foi muito melhor. Foi quando
decidi casar com Tertia. Não fingimos amor. Ela conhecia minha
dualidade de gostos. Cada um de nós possuía algo que o outro
queria — ela desejava reter vantagens sociais, porém escapar do
mausoléu para algo mais divertido ou bizarro, talvez um mundo
novo, onde tivesse plenas possibilidades para sua capacidade de
entediar-se. E eu queria não apenas o acesso à fortaleza da categoria
social, mas um lugar seguro dentro dela. Como pode ver, ambos
queríamos tudo em vários sentidos.
— Você. . . Tertia sabe?
— Não. Entretanto, um dos atrativos de Tertia para mim era que, se
eu lhe contasse, ela não ficaria surpresa. Seria algo que já esperava.
— Paul recostou-se no sofá e bateu várias vezes em uma almofada,
com a ponta dos dedos. — Às vezes, mal posso acreditar que não
lhe tenha contado — ela estava absolutamente convencida do pior
em mim.
Talvez eles soubessem o pior, um do outro: isso pode ser um elo.
— Após a morte de Victor, procurei assegurar-me no castelo, mais
do que nunca. Aquilo era como um salva-vidas, o último lugar onde
alguém procuraria um suspeito. No castelo, cada um cuida da
própria vida.. Bastava ter visto a maneira como a polícia se fixara no
sujeito errado, aquela manhã em meu carro — a maneira como seus
olhos se detinham naquele que ponderava e dizia seu papel, nada
tendo para respaldá-lo além de sua inocência. — Paul cessou de
bater na almofada e olhou para Caro. — Enfim, você afinal deve ter
sabido algo a respeito disso por ele.
— Por ele?
— Por Tice.
A água estava batendo e escorrendo contra as janelas. Caro disse,
em voz alta:
— Oh, Deus! — Ouviu a própria voz gritar, acima da tempestade:
— Deus! Deus!
— Era Tice quem estava à margem do rio. Claro que era ele. Você
sabia que era Tice.
Como uma acusação.
— Oh, não!
— Ele deve ter lhe contado. Tinha todos os motivos para contar.
Paul poderia ter suspeitado de algum ardil. Caro apertou as mãos,
uma contra a outra.
— Não.
O sentimento ondulou pela sala como o vento forte, como uma
bandeira. A mulher estava imóvel, mas era como se estremecesse de
angústia.
— Aquela foi a primeira mudança na sorte. A única, então. Dirigir
para Peverel, aquele dia, semanas mais tarde, quando tudo já ficara
atrás de mim, e encontrar Ted Tice lá. O primeiro indício de que o
senso de humor de Deus podia estender-se também a mim. Tice
parado perto do carro, en-carando-me com aquele olho estriado, a
cena inteira reensaia-da. Compreendi que deveria referir-me àquilo
imediatamente, ao fato de nos termos visto no rio, caso pretendesse
fazê-lo aceitar minha inocência. Não pude. Ele esperou e, como não
pude mencionar aquilo, ficou duplamente convencido. Deus todopoderoso, como odiei estar naquela casa com ele, dormindo sob o
mesmo teto! Partilhando um banheiro com minha nêmese! Tudo o
mais marchara bem, exceto aquele detalhe, indicando a existência
de outros fatores que eu não poderia controlar. — Paul olhou para
as mãos apertadas de Caro. — Então, lá estava você.
Levantando-se, ele fechou a janela contra a chuva. O ato de
levantar-se e caminhar gerou um novo estágio. Havia alarma pelo
que ele violaria em seguida.
Caroline Vail sentiu uma barreira quase física ao reconhecer o papel
de Ted Tice. Ela, que falara a Paul sobre ignorância, precisava
avaliar a ignorância em que passara apaixonados anos de sua vida.
Todo o orgulho e a presunção, a exaltação de suas próprias crenças,
o desejo de ser humana, o esforço para praticar o bem, reduziam-se
a isto: uma mulher de meia-idade, apertando as mãos e apelando
para Deus.
Ela quisera ter conhecimento, mas não conhecer aquilo. O
conhecimento se tornara uma corrente atemorizante, na qual um
homem podia afundar.
Paul Ivory manejava a cortina, com o braço estirado para a janela
não familiar.
Caro sentia repugnância pela presença dele na casa de Adam Vail.
Tornando a cruzar a sala, Paul perguntou:
— E então?
— Estou refletindo em como Adam odiaria isto.
— Eu soube que ele se preocupava com pecadores. Ou seria apenas
com criminosos?
Mesmo agora, em Paul, uma pitada de ego.
— Ele condenava todas as formas de violência.
Um epitáfio formal para um sacerdote falecido quando, de fato, os
sentimentos nela despertados eram animais: as cadeiras e mesas
afastavam-se de Paul, como se afastava a mobília das lembranças
pertencentes a essa mulher. Ele havia tornado tudo ordinário,
destroços; o papagaio dilacerado, despegado do céu. Ele podia
diluir, minguar, até nada mais existir além do equipamento de uma
hospedaria duvidosa.
No entanto, para ela, um dia as próprias possessões daquele homem
tinham sido radiantes.
Paul se sentou. Tamborilou com dedos que eram varetas ou hastes:
evidência de amor. Poucos meses antes, na Victoria Square, os olhos
de Caro haviam pousado e se demorado naquelas mãos. Naquela
noite, ela brincara de ser uma mulher idosa, conhecedora,
complacente, reconciliada. Toda a sua beneficente vaidade agora
mirrava diante disso.
— Então, foi para vingar-se de Ted — perguntou ela, — que você
fez amizade comigo?
— Havia isso, naturalmente. De que eu a conquistasse, enquanto ele
ficava mais uma vez olhando, parado e impotente. Em todo caso,
ciúme é uma expressão de impotência
— e o dele se mesclava a outra frustração. Havia a vingança por ele
ter aparecido naquele dia fatídico. E também uma quitação de
contas com Tertia, que desfilava seus amantes na minha cara. Bem,
naquela época, havia um sujeito da Guarda, que costumava passar
os fins de semana no castelo; ele está morto agora, há muito tempo.
Em ambas as coisas existia o risco — enlouquecendo Ted e
antagonizando Tertia. E eu gostava do risco.
— Sim.
— Você se lembra disso. A experiência seria insípida se não
houvesse algum risco ou desilusão. Com você, isso mudou. Sim,
porque jamais esperei aquele grau de ligação, fosse com um homem
ou uma mulher. O fato de poder despertá-lo conferiu-lhe influência,
criando mais um motivo para eu deixá-la de lado, naquela tarde em
que Tertia nos encontrou na cama — quando pude ver toda a minha
construção desmoronando.
Era difícil imaginar como Godfrey Locker poderia ter sido mais
brutal.
— Naquela tarde, quando fomos embora no carro, quando a
deixamos à janela, Tertia me fez parar na estrada. Internamo-nos
nos campos e ela me forçou a tomá-la, ali, no chão. Imprimindo sua
marca em mim.
Então, naquele dia, cada um deles fora de um parceiro para outro.
Um sujeito da Guarda, que está morto agora, há muito tempo.
—
Depois disso, recuperei o controle. Trabalhei em minha peça
e ela ficou boa. Por causa do estado exaltado em que me encontrava,
cada dia era uma revelação sobre o que eu podia manejar. Nunca
mais trabalhei tão rápido e tão bem. — Paul permanecia interessado
em si mesmo. — Eles estão certos, papagueando que é a minha
melhor peça, que nunca coloquei tanto sentimento em uma coisa.
Eu queria fixar os Lockers na mente do mundo. Sei que isso pode
parecer grotesco, mas eu queria que a peça fosse um memorial para.
..
Ele quase disse "Felix". Um gesto rápido de apagar.
— Um monumento a Victor — completou. — Então, eu não o tinha
amado e não amara ninguém, mas comecei a vê-lo claramente —
um pobre ratinho, que nunca tivera uma chance. Ele não me
obcecou, e, em si, a experiência foi recuando, afastando-se, como
aconteceu com o olho raiado de Ted Tice. A morte de Victor foi
indolor, sem que ele despertasse, como eu desejara. A menos que
comecemos a nos interrogar sobre o turbilhonar e o rugido das
águas, o terror asfixiante. O único que me persegue de vez em
quando é Godfrey Locker. Nunca perdi o medo dele, nem mesmo
depois que os Mullions me disseram que estava morto. Ainda
agora, há momentos em que quase o creio vivo, e tenho de calcular
que estaria com noventa anos. Godfrey é daqueles que não podem
morrer. Como Hitler.
"Portanto, tudo correu bem. Eu sabia que a peça era boa, havia o
sucesso público, dinheiro e o castelo. Quando você tornou a
aparecer, fiquei surpreso sobre quanto a queria, porque não sentira
a falta. Pensei que aquilo logo acabaria, mas aconteceu o contrário.
Por vezes, eu não suportava ficar longe de você, tudo o mais era
insuficiente. Depois do primeiro ano, comecei a refletir sobre
divorciar-me de Tertia e viver com você. Isso provocou sua própria
reação, uma vez que existia seu distanciamento dos alicerces de
minha natureza. Nesse aspecto, seu amor era debilitante, como se
você estivesse me forçando a sentir vergonha. Quando eu obtinha
outra força, através do trabalho ou de algum golpe de sorte, queria
usá-la contra você, mostrar que podia afastar-me porque, do
contrário, previa que acabaria contando-lhe tudo. Contei-lhe sobre a
morte de Victor e coloquei em suas mãos não apenas a minha
segurança, mas minha própria natureza."
O relâmpago era uma careta louca na sala, o trovão, um
estremecimento sobre toda a terra.
— Novamente, algo aconteceu. Certa noite, você me falou sobre o
crime de Tice, e isso o jogou fora de minha vida com uma penada,
porque então ele jamais poderia levantar o caso de Victor sem se
expor também. Se o segredo dele fosse sabido, quem tornaria a darlhe emprego, em sua linha de trabalho? Eu não era tolo a ponto de
pensar que ele ficaria quieto a meu respeito por medo. Uma coisa
sobre a depravação é que ela lhe confere um faro — bem como um
olho e um ouvido — para a virtude. Como eu poderia trabalhar, se
meu caráter fosse conhecido? O próprio fato de existir nele uma
complexa moralidade, no conceito de Tice, era uma garantia de
segurança a mais. — Paul fez uma pausa, retornando à narrativa da
qual se afastara. Disse: — Naquele tempo, você me amava o
suficiente para aceitar tudo o que eu tivesse feito, inclusive
assassinato.
— Sim.
— Não obstante, eu sabia que, se você me contara a história de Tice,
poderia também acabar contando a minha.
Se eu lhe contasse a respeito de Victor, um dia você amaria outra
pessoa o bastante para confiá-la a ela.
"Assim, fui punido duplamente por isso."
Se não existisse o fato incontroverso de Adam Vail, a vida de Caro
poderia decompor-se, obscenamente, em sua própria mente.
— Aquilo foi uma coisa inteiramente feminina. Um aviso a tempo.
A essa altura, Tertia havia percebido sua presença contínua em
minha vida, o que lhe desagradou sobremaneira. A duração da
ligação, também, sem dúvida sugeria que eu podia abandoná-la. Ela
queria o filho, imprimir seu selo em mim, uma vez mais. Fiquei
razoavelmente satisfeito por ter o assunto resolvido, em um sentido
— porque sabia ser impossível prosseguir com aquilo: amor,
revelação, metamorfose. — Ele pronunciou a última palavra em tom
sarcástico, mas falara sério. — Eu também me dedicara novamente a
um rapaz, de modo irregular, como parte do meu afastamento de
você. O rapaz se chamava Valentine — sua mãe havia sido fã do
cinema mudo. Ele me foi legado por um ator que apareceu em
minhas primeiras duas peças. Foi como me aproximei dele — uma
coisinha com cara de raposa chamada Valentine.
— Lembro-me dele.
Um radiador borbulhando e o rapazinho comendo uvas.
— Deus sabe onde andará ele agora.
Fiquei razoavelmente satisfeito por ter o assunto resolvido. Deus
sabe onde andará ele agora. As pernas nuas e cruzadas de Caro
deslizavam uma contra a outra, em uma confluência de suor e loção
para o corpo, misturada à umidade criada pela tempestade. O suor
escorreu, a respiração subiu e desceu. Em um vestido de algodão, o
tremular animal de um coração.
— Agora, é tentador alegar a minha juventude. Entretanto, não é o
que estou fazendo, de maneira alguma. Além do mais, a capacidade
de me excitar com semelhante experiência não era algo que, mesmo
então, eu esperasse superar.
Havia aqueles que alinhavam a Morte a seu lado, como estímulo ou
instrumento: Paul, Dora, Charlotte Vail.
— A compulsão para contar foi algo inteiramente arbitrário,
alienado, que me chegou com o problema de Felix. É uma coisa que
não se pode prever — isso de um estado mental nos colher de
surpresa, como um evento. O ânimo confessional tem uma urgência
que não se relaciona necessariamente ao arrependimento — pode
ser um desejo de implicar outros. Suponho que, idealmente,
deveríamos confessar-nos ao nosso pior inimigo, posto que somente
ele pode, realmente, conceder a absolvição. No caso presente,
caberia a Ted Tice. — Paul continuou: — Do contrário, há a
sensação de ficarmos enfraquecidos. Da mesma forma como me
senti fortalecido com a morte de Victor, o ato de partilhá-la agora
com você é uma perda de força, indecente como o crime.
Havia esse self irresistível em Paul, que fazia com que seus próprios
pecados lhe fossem impressivos. Nesse momento, ele nada sentia
por Caro, que recebia sua necessária confissão como uma vez já
recebera o seu amor, sem fazer nenhum uso da autoridade que isso
lhe conferia.
— O que não posso acreditar — disse Paul — é que Tice jamais
tenha falado nisso a você. Vendo-a se voltar para mim — e com
semelhante arma na mão! É inconcebível. Qualquer outro teria
contado.
— Sim. Não.
Adam Vail não contaria.
— Dessa forma, o silêncio dele o torna supremo. Aliás, o silêncio
tende a fazer isso, e este é um caso extremo. Uma nobreza
ultrapassada — Paul ainda conseguia surpreender com a precisão
de uma palavra —, sobre a qual se pode ler, mas na qual não se
acredita. Eu já esquecera que se supunha existir.
Era Tice na margem, claro que era Tice. Caro não podia assimilar o
papel de Ted ou um terror sobre isso. Uma pavorosa circunstância,
ainda a ser resolvida, que a mente mal suportaria tocar. No entanto,
o que poderia lesar Edmund Tice, que agora era supremo?
A menos que ela temesse por si mesma. O conhecimento ainda não
chegara ao fim para ela.
— Mal se pode acreditar — disse Paul. — O autocontrole.
— Que conduz ao poder soberano. Ele a fitou com
certa curiosidade.
— A ascendência dele chegou com vinte anos de atraso. —
Levantou-se e apanhou o paletó sobre a poltrona. — A esta altura, o
crime de Tice é muito semelhante à virtude. Isso acontece a
qualquer ato humano, quando se espera o suficiente. Minhas
transgressões, por outro lado, são compostas apenas de tempo e
segredo.
Finalmente, falar sobre si mesmo revivera a convicção de Paul em
uma importância que Ted Tice não podia detratar. Exaurindo seu
tema, ele renovava energias.
Até aquele dia, eles podiam ter imaginado que, estando sozinhos
em um aposento, certamente se abraçariam em uma predestinada
continuidade, como em uma peça, ou seguiriam alguma outra
sugestão dramática. Entretanto, tais imitações haviam se tornado
inconcebíveis, e, em palavras, nenhuma verdade surgiria que já não
estivesse sobrepujada. Privados de possibilidades inarticuladas —
de chorar ou fazer amor —, nenhum deles sabia como concluir.
Vestindo o paletó, Paul sugeria que reivindicassem os respectivos
eus sociais.
— Vai à Inglaterra em setembro?
Pelo tom, ele estava pronto a desmentir o que acontecera ali. Seu
olhar dissolvia a mulher que ouvia na poltrona.
— Sim, a caminho da Suécia.
— No momento — disse ele —, não posso fazer planos. — Era
duvidoso que desejasse tornar a ver Caro em sua vida. — Ficará em
casa de sua irmã?
Era notável como ele conseguia recuperar-se e vestir-se, de paletó e
com normalidade, mesmo agora.
Caro o levou até a porta. Substituindo a tempestade, um calor
doentio; um sol úmido perolando uma camada de gasolina sobre a
rua ardente. A água da chuva escorria em inativas sarjetas,
depositando novamente detritos. Era o que se devia esperar de um
dia em que ninguém conseguia procurar limpeza ou refrigério e em
um lugar que parecia, em si, um taciturno desafio aos elementos.
— Adeus, Caro.
Paul tomou o metrô na 77th Street. No trem, o ar quente era
substancial, a fetidez, tangível. Riscadas e arranhadas, as paredes
cediam ao piso de borracha, que havia sido maltratado
intermitentemente. Assentos perfilados de plástico desfigurado,
duro como ferro, encaravam-se uns aos outros, em compridas
fileiras de penitenciária. Sob os pés, pontas de cigarro, papéis
manchados, as páginas esportivas amarrotadas sobre o ricto de um
saudável atleta. Uma lata de cerveja rolava de um lado para outro,
como que se balançando, o trem querenando, rangendo, estalando.
Incapaz de alcançar uma alça para sustentar-se, Paul era suportado
pelos flancos de zuarte de três jovens de rosto sério. Ao nível de
seus olhos, enfileiravam-se os coloridos imperativos da
propaganda: "Venha para onde está o sabor", "Confie na sua
capacidade de escolha".
Todos estão pensando, um toque de perigo. Um desses sombrios
homens de pé pode apresentar seus próprios imperativos: Dê-me a
bolsa, a carteira, o relógio. Todos têm uma compleição ruim, acne,
erupções cutâneas ou uma pele cansada, curtida, como se
houvessem ficado muito tempo ali embaixo. Bolsas de ar estagnado
sob os olhos. Neste lugar, como em qualquer inferno, ninguém está
com a vantagem: pastas não conferem compaixão nem imunidade, o
enfeite de uma jóia é um alvo.
Na 83th Street, uma mulher seca, com um vestido estampado de
flores, abriu caminho com surpreendente força. As portas se
fecharam, mas o trem continuou parado: um teste de resistência,
durante o qual ninguém chegou a suspirar. Um rapaz e uma moça
porto-riquenhos, apoiados num poste manchado, deslocaram a
goma de mascar para se beijarem. Na atmosfera fétida, um altofalante liberou um som que foi como um chuveiro de fagulhas
derretidas de um maçarico. Quando o trem reiniciou a marcha, não
houve qualquer murmúrio de alívio ou surpresa. Aqueles poderiam
ser os fundadores de uma nova raça que desprezava a expressão e
era indiferente à crueldade ou compaixão — ou à própria
enfermidade. Se, ali entre eles, Paul caísse morto no chão imundo,
tornar-se-ia apenas um obstáculo para a saída. De igual modo,
nenhum valor era dado ao fato de ele permanecer de pé, mesmo
doente.
Um rapaz de cabelos frisados, como uma pequena árvore, levantouse de seu assento; seu braço era um galho que, através de membros
entrelaçados, chegava até o ombro de Paul.
— Sente-se, papai.
Sendo mortal, esse rapaz sorriu para o trem, em redor. Não podia
evitar sua melhor ou pior natureza. E não havia cessado de estalar
as juntas do polegar.
Paul deslizou para o assento. Cônscio de uma inexplicável exceção,
mas incapaz de agradecimentos.
Em sua casa, Caroline Vail abria a carta da Irlanda, em tinta violeta,
escrita por mão não familiar.
"Sem desejar perturbar sua pacífica existência, julgo que desejaria
saber do problema de Dora, de sua difícil situação. . . "
36
— Ela está perdendo a noção do tempo — disse Grace. No pequeno
carro de Grace, ela e Caro iam visitar
Charmian Thrale. Christian fizera valer sua vontade, e agora sua
mãe estava em uma instituição para pessoas idosas, chamada Oak
Dene ou Forest Manor ou Park View.
— Em dado momento, ela se lembra dos meninos, de tudo. No
outro, acha que eu e Chris somos recém-casados. — O carro fez uma
curva e passou entre as colunas de tijolos do portão. — Eles dizem
que é por causa da circulação.
A grama ressequida estava morrendo, naquele excepcional
setembro seco.
A diretora da instituição era algo mais além de competente. Alta,
grisalha, reticente, mantinha uma prudente distância e não aceitava
a afinidade de Caroline Vail, de modo algum. Quando se chega a tal
ponto, nunca há um final. Caro voltava a ser uma irmã, caminhando
com Grace por um corredor ladrilhado: eram duas mulheres,
fazendo coisas de mulheres. Ocasionalmente, chegava a ser um
alívio parecer convencional e irrepreensível; inclusive para os olhos
frios de uma diretora grisalha — no caso presente, diretora de uma
escola terminal.
Aquelas duas haviam caminhado junto ao mar salgado, depois da
escola. Agora, a seu lado era a mortalidade que se expandia, uma
imensidão.
— Era de imaginar que tivessem encontrado um meio de disfarçar o
cheiro desse desinfetante — disse Grace.
Charmian Thrale estava em uma seção reservada aos residentes
ambulatoriais. A inspetora do setor era frágil, espartilhada, uma
barca de madeira confinada em um casco de ferro. Disse que receber
visitas significava tudo. Foram conduzidas a um quarto minúsculo,
onde Charmian Thrale estava sentada em uma poltrona de chintz,
com as mãos estendidas nos descansos para os braços. Tinha os cabelos brancos e ralos,
os olhos enormes escassamente azuis; o corpo descarnado, um mero
cabide de casacos para mangas e ombros de algodão; o pescoço,
uma segadeira de arame para a cabeça de dente-de-leão.
A janela dava para uma faixa plantada, obra dos internados ativos.
Havia uma planta dura e horrenda em um vaso, na parte interna do
peitoril. A porta espelhada de um guarda-roupa permanecia aberta.
Na mesa-de-cabeceira, uma fotografia do casamento de Grace e
Christian. Ao lado de vidros de pílulas, havia uma pequena vareta,
com pontas de algodão sujo, do tipo usado para limpar os ouvidos.
Sobre a cama, um par de óculos de aros dourados jazia ao lado de
um livro.
Grace beijou a sogra e anunciou:
— Caro está aqui. — Havia a tentação de erguer-se a voz. — Ela está
a caminho da Suécia, para visitar a enteada.
Charmian Thrale disse:
— Eu amei minha madrasta profundamente. É cruel que as
madrastas sejam estigmatizadas.
— O mesmo se pode dizer das sogras — disse Grace. A velha lhe
tocou a face com uma mão pintalgada.
— Nós estivemos nos arrumando! — gritou a inspetora.
Charmian olhou para ela com polida diversão ou terrível cinismo.
Suas costas encurvadas de algodão tocavam a poltrona. Por si
mesma, ela jamais escolheria um vestido de cores conflitantes. Seu
rosto havia sido empoado por alguém, que lhe passara até ruge.
Caro e Grace refletiam-se no espelho do guarda-roupa —
sorridentes, ainda abençoadas. Agora, vá ao aposento de minha
senhora e fale com ela, aceite sua pintura com uma polegada de
espessura, com esta boa vontade ela pode vir. Faça-a rir com isso.
— Ela vai ver seu programa de televisão às onze, está muito
interessada nele.
O sorriso da inspetora era radioso. Charmian Thrale era uma
criança intratável, que finalmente tivera uma mudança encorajante.
A velha declarou, com calma lucidez:
— É um programa sobre um poeta, Rex Ivory. Eu o encontrei várias
vezes, e Sefton o conhecia bem.
— Veja só!
A inspetora não conseguiu recordar quem era o Poeta Laureado,
agora que John Masefield falecera. Depois que ela saiu, Charmian
Thrale disse:
— Quando uma pessoa fica velha, presume-se que seja um sábio ou
um imbecil. Nada é permitido entre os dois extremos.
— A vida é mais ou menos assim — comentou Caro.
Auxiliada a ficar em pé, Charmian Thrale era uma frágil construção
que podia ruir, cinzas cujas tênues fagulhas não tendiam a inflamarse, por temor do fim. Grace e Caro a sustiveram pelo corredor.
Através de uma porta aberta, uma voz anciã e aguda gritou: "Não,
por favor, não!" Em uma cadeira de rodas, um homem que parecia
uma madeira flutuante uniu as pontas dos dedos e cantou, em voz
esganiçada:
"Dois oficiais alemães cruzaram o Reno, Parle-vu,
Para beijar as mulheres e beber o vinho, Parlê-vu".
Em uma sala interna, onde cadeiras vazias se postavam em
julgamento, um aparelho de televisão estava em frenesi. Grace girou
um botão habilidosamente. Barras coloridas se moveram em
horizontal, vozes soavam e desapareciam. Um locutor de peruca
sorriu e disse as horas. Pontos coloridos passavam em disparada.
Ao som da música de Delius, foi revelada uma paisagem rural
adorável, em tonalidades tropicais; uma voz em off disse,
reverentemente: "Derbyshire".
Um rapaz com uma oclusão da glote acreditava que o programa a
ser mostrado possuía particular interesse, em vista do atual
ressurgimento de Rex Ivory. Uma solenidade treinada, juntamente
com óculos de aro de tartaruga, sugeria cursos especiais, em
apresentação cultural. Fotografias foram reproduzidas na tela — um
bebê violeta, um colegial, um jovem em uniforme militar, um
espectro de meia-idade em um cardigã e, em dose, a página título de
um livro. Os espectadores podiam recordar que uma cópia daquele
exíguo volume, datada de 1915 e autografada pelo autor, alcançara
recentemente uma alta soma em um leilão.
Charmian Thrale riu, com absoluto autocontrole.
Na tela, um homem roliço de costeletas brancas foi apresentado
como o patrocinador do incremento de Rex Ivory. Em uma
entrevista, feita nos Estados Unidos, o professor Wadding
desfrutava o merecido sucesso de sua brilhante biografia crítica, um
exemplar da qual era agora mostrado ao público: Abnegação como
afirmação: Símboloe sacramento no empreendimento de Rex Ivory. Já um
clássico moderno. O dr. Wadding suspendera seu estafante trabalho
sobre os poetas do L a k e a fim de que Rex Ivory pudesse
beneficiar-se da elucidação crítica.
O professor Wadding explicou que, de modo algum, deixara
Wordsworth de lado: "Não tenham esse receio". Recordou, no
entanto, que durante sua visita à Inglaterra, em 1946, conhecera e
entrevistara Rex Ivory. Tinha escrito ao poeta movido por um
impulso e recebera uma resposta extremamente gentil, convidandoo ao Derbyshire.
"E pensar agora que hesitei", disse ele.
"Pés frios, dr. Wadding? 1"
O professor Wadding explicou que a expressão "pés frios" era
derivada da ocasião em que o imperador Henrique IV ficara parado
na neve, em Canossa, 1077, esperando o papa Gregório VIL Em seu
próprio caso, a hesitação se devia mais a dúvidas sobre a introdução
do fator pessoal no diálogo crítico-criativo.
"E o senhor nunca hesitou em sua exposição crítica, dr. Wadding?"
— Eles insistem em chamá-lo de doutor — disse Grace.
— Como o dr. Goebbels — disse Charmian Thrale. O professor
Wadding sustentava que Rex Ivory dera
um significado cognitivo a uma ética de renúncia. Classificaria Rex
Ivory como um escritor aristocrático, nobre, prestigiado e,
indiscutivelmente, o poeta máximo de sua geração.
— O terno dele não pode, realmente, ser dessa cor — comentou
Grace.
Os óculos de Wadding cintilaram.
"Minha tarefa, como a entendo, é adumbrar as fontes de sua
enteléquia."
Um editor foi apresentado e descreveu como o mais penoso
momento de toda a sua vida profissional uma manhã de sábado
após a guerra, quando sua firma descobriu que faltava papel para
uma pretendida edição de O campo semi-ceifado.
"Não seria exagero dizer que nós, da firma, ficamos desolados."
Felizmente, eles agora tinham o privilégio de apresentar o brilhante
trabalho do dr. Wadding.
"Get cold feet", em inglês, significa "desanimar" e não tem o sentido de "ter azar" da expressão
correspondente em português. (N. do E.)
1
Um rapazinho usando uma tira em torno da testa falou sobre a
ascensão de Rex Ivory como poeta do movimento contra a guerra.
Ele achava que a mensagem de Rex aos jovens poderia ser resumida
assim: "Mantenha a fé, baby".
Essa frase, explicou o professor Wadding, era uma invocação do
Menino Jesus. Ele estaria interessado em saber que papel
contemporâneo poderia ser atribuído a um poeta como
Wordsworth.
O rapazinho deu de ombros.
"Para mim, ele é um nome em uma camiseta", disse ele.
"O barato, em Rex, é ele ser relaxante. Ele é um cara muito
relaxante. E eu gosto disso."
Os locutores olharam para uma platéia invisível, avaliando os
efeitos de seus cálculos.
—
Como se eles é que estivessem olhando para nós — disse
Grace —, e não nós para eles.
O filme da entrevista foi substituído pelo da entrevista da BBC , após
a guerra, nas Dukeries — os Sealyhams e os gramados floridos, uma
sombria biblioteca, o rosto fino de Rex Ivory, cabelos ralos, cílios
pálidos. Suas pontas dos dedos elevadas, pressionando o tabaco em
um cachimbo, os olhos piscando a cada leve pancadinha: um
brinquedo sincronizado. Após o colorido fictício da apresentação, o
preto e branco parecia a realidade.
—
Em sépia ficaria ainda melhor — comentou Caro. O velho
filme tremeluzia, piscando como o poeta. Ivory
tinha uma voz leve e meticulosa de outro século. Embora
respondesse com polidez, não fornecia qualquer informação
voluntária. A primeira influência que recordava ter recebido fora
um exemplar encadernado em couro de Sohrab e Rustum, que uma
tia muito querida lhe dera em seu sétimo aniversário.
"Ainda posso recitar toda a obra de cor — de coração, como afirma
o belo provérbio."
O entrevistador interpôs rapidamente:
"Então, se não fosse o acidente da generosidade de sua
tia.
"Generosidade é algo que não acontece por acidente." O
entrevistador sorriu, mas esperava ficar quite.
"Nosso crítico mais eminente afirmou que somente a literatura
capaz de modificar a sociedade será duradoura. Parece que o senhor
rejeita esse ponto de vista, não?"
"Quanto a ser duradoura", disse Rex Ivory, "é a conjectura de
qualquer homem."
"Sem dúvida. No entanto, o crítico em questão afirmou que nosso
século é receptivo unicamente à persuasão moral da literatura. E o
acusou de haver falhado, segundo diz, em perceber isso como uma
obrigação."
Os cílios pálidos de Rex Ivory descambaram. Ele poderia estar
dormindo ou em algum apuro. Por fim, disse:
"Compreenda, eu estive nas trincheiras. E ele não".
A cor irrompeu de volta, com violência. O dr. Wadding observou:
"Creio que posso elucidar esse ponto". Grace cortou o
som.
—
Sem dúvida, vão convocar Paul para isso — comentou.
A sra. Thrale falou:
—
O filho de Paul Ivory tem estado muito doente.
—
Christian soube que ele está se agüentando admiravelmente.
Nesse momento, Paul foi apresentado. Grace restaurou o som. O
semblante de Paul começava agora a dividir-se, como uma
substância deletéria. Olhos, boca e expressão haviam deixado de ser
totalmente complementares: um retrato composto, de um suspeito
ou fugitivo. Mais magro, mais velho, não menos sedutor, ele
conduzia aquelas coisas públicas com a maior facilidade.
"Meu pai era um espírito puro, ingênuo. Tinha qualidades
antiquadas — dedicação, modéstia, caridade, civilidade. Fidelidade
a ideais superados. Não sou como ele, mas tive — e continuo tendo
— um imenso respeito por sua pessoa e seu trabalho."
Caro, também, poderia ter estado dormindo. O pote de extrato de
carne sobre a mesa. Nós aqui também estamos com bastante fome.
Adam Vail havia dito: "Eles atribuirão os maiores mistérios à
prestação de serviços".
Paul rejeitou delicadamente uma alusão a seu próprio trabalho:
"Afinal de contas, estamos aqui para falar de meu pai". Convidado a
determinar a estatura literária de Rex Ivory, ele foi franco, ao
mesmo tempo que judicioso: "Talvez ele não fosse um grande poeta.
No entanto, foi um poeta verdadeiro".
Charmian Thrale olhava para a tela com extrema polidez. Quando o
professor Wadding reapareceu, ela pediu que desligassem. Ajudada
a voltar para seu quarto, sentou-se na poltrona florida. Disse:
— Rex foi o único que restou vivo. Os outros é que pareciam
mortos.
E fechou os olhos.
Christian estava de pé no corredor, quando Grace e Caro
retornaram. Ficou surpreso ao pensar que, daquelas duas mulheres,
ambas bonitas, uma era sua esposa.
—
A julgar por sua disposição — disse —, estão prontas para o
chá.
Grace rumou para a cozinha e ouviram-na enchendo a chaleira.
Caro permaneceu no saguão. Tinha uma echarpe brilhante na
cabeça, em tonalidades furta-cores, e ergueu a mão para retirá-la. O
vestido aderiu ao corpo, debaixo do braço erguido. Pensando no
flanco macio de um gato, Christian imaginou-se colocando a mão
ali.
—
Bem, Caro, você se mantém em forma. Sou franco. Quer
dizer que estou na fase do Você se mantém em
forma. Ela afrouxava a echarpe.
— De que cor diria que é seu vestido?
— Terra de Siena queimada.
—
Não ouço esse nome desde que era criançola, às voltas com
uma caixa de tintas.
Como o pai antes dele, Christian havia mantido certas expressões
sob custódia.
Caro completou o gesto com a echarpe. Seus bastos cabelos caíram
sobre os ombros. Mal se distinguia um fio grisalho. Christian
perguntou-se: Estarão pintados? Havia um romance — o nome
depois lhe ocorreria — no qual uma mulher amada na juventude,
encontrada já com idade, revelava seus cabelos brancos. A idéia de
que os cabelos de Caro estivessem pintados, porque assim lhe
parecia, deixou Christian chocado. Ficou olhando.
—
São naturais — disse Caro. — Ainda.
Ela foi para a sala de estar e, caminhando até a lareira vazia, apoiou
um cotovelo na platibanda. Um espelho oval, comprado por Grace
em Bath, reproduziu sua fadiga. Fez com que ela se risse.
A chaleira estridulou na cozinha e foi silenciada. Naqueles dias,
estava-se sempre ligando ou desligando algo.
Christian se deixou cair em uma poltrona, que emitiu um suspiro
abafado.
Grace chegou com o chá em uma bandeja. Havia pequeninos
sanduíches, um bolo. Os três se acomodaram — Caro e Christian
frente a frente e Grace entre eles. Havia uma luminosidade cálida
nas janelas e no bronze do vestido de Caro.
—
Bem, isto é muito confortável.
Christian aprovava a cena doméstica como um digno substituto
para a felicidade. Sobre sua mãe, as mulheres falaram o que lhe
agradaria ouvir. Ele respondeu:
—
O lugar é de primeira. Absolutamente de primeira.
—
Sua mãe demonstra uma grande força interior — disse Caro.
A frase obituária consignava Charmian Thrale à terra: Após uma
longa existência, vivida com grande força interior. Quando Grace
descreveu o programa de televisão, Christian exclamou:
—
Rex Ivory, santo Deus! Quando fiz dez anos, ele me deu O
tesouro dourado. Ele agora é um monumento nacional, não? (Quer
me passar um sanduíche?) Bem, isso faz com que me sinta um
velho.
Grace estendeu-lhe um prato.
— O que há neles?
— Agrião.
— Receio que seja um tantinho fibroso para mim.
—
Os outros são de pasta de peixe. Christian se
serviu.
—
A velha e boa pasta de peixe. . . — Afastou as migalhas. — O
tesouro dourado. . . Ainda devo tê-lo em algum lugar. — Quando
Grace se levantou para buscar água quente, ele disse: — Vou tomar
minha segunda xícara no estúdio.
Foi para o aposento ao lado, onde o trabalho do fim de semana
estava sobre sua mesa. Sempre havia algo novo sobre a África.
Através das portas duplas abertas, as duas mulheres viram — ou
espiaram — Christian abrir um jornal e estirar-se em uma poltrona.
De seu lugar no sofá, Caro ficou olhando, enquanto Grace levava o
chá do marido. O queixo de sua irmã não era mais completamente
definido, nem sua cintura. Por sob o fecho de um colar, a nuca se
mostrava ligeiramente alteada. Caro olhava para a irmã com mais
ternura do que nunca: a intimidade infantil sempre parecera
suspensa, como se pudesse ser retomada. Nas lembranças de
criança, Grace era sempre gentil. Caro refletiu que era raro uma
criança ser gentil.
A dicotomia entre ambas poderia ter significado mais: elas haviam
exercido bem pouca influência sobre a vida uma da outra, além de
trocarem poucas confidências. Agora nem mesmo era claro, como
antigamente, que Grace se satisfizesse com chintz e porcelana —
com Christian dizendo: "Um tantinho fibroso" ou pendurando as
calças à noite e anunciando: "Preciso dormir minhas oito horas".
Também não era certo se Grace permanecera como espectadora.
Aqueles que a tinham visto como o alter ego de Caro poderiam estar
enganados.
Presumivelmente, Grace atravessara uma experiência que só podia
ser amor — ou tivera alguma revelação íntima. Paul Ivory havia
dito: "Um estado mental pode nos colher de surpresa como um
evento".
Na vida e nos pensamentos de Caroline Vail, Ted Tice se tornara
supremo. A conscientização de Ted Tice era o evento que penetrava
em sua vida, estivesse em vigília ou adormecida. A maior força dele
havia sido seu segredo — sua própria verdade confinava seu
mistério.
Caro estivera se demorando em lembranças e possibilidades
remotas como recordações. Pela primeira vez, tivera sonhos nos
quais ela e Ted se encontravam como amantes, em uma terra vívida
e desconhecida. Ficava acordada, pensando no pouco que dera a
ele, mesmo em gentileza; recordava palavras fúteis, aborrecidas,
insensíveis, dignas de Paul Ivory. Ted lhe mostrara sua própria
imagem e ela replicara: "Não me lembro desse vestido".
Pensou em como poderia ir até ele, mas, no entanto, não iria.
Imaginou-se chegando, a felicidade dele. Seu olho estriado, sua
alegria.
Retratou Margaret Tice em sua dourada beleza. Caro se olhou no
próprio espelho, vestida ou nua, consciente da condição patética.
Consciente das mulheres que, antes dela, haviam feito o mesmo.
Seu corpo era um vestido, agora por anos sem ser usado, sem ser
mostrado; sem ser conhecido.
Sabia que a ilusão dele poderia ruir. No entanto, era terrível que
pudesse ir até ele e não fosse.
Caro caminhara pelas ruas e pensara em Ted Tice. Dedicara-se ao
trabalho, e temia morrer sem tornar a vê-lo.
Certo dia, escrevera na página em que trabalhava: "Se ele chegar
agora, farei tudo o que me pedir".
Se Ted morresse, o mundo se tornaria um aposento onde ninguém
olharia para ela.
Não conseguia mais controlar tais fantasias, como não conseguira
controlar as alterações corporais da adolescência. Tentou ver como
isso acontecera e soube apenas que estivera buscando algum
extremo. Um extremo que poderia ser a força, pura e terrível, da
testemunhada força de vontade de um homem. Era como se Ted
Tice houvesse criado nela esse evento, através do poder cósmico do
amor.
Ela se sentia impotente para mudar, embora não para
agir.
—
Estou pensando em uma viagem à Austrália — disse a Grace.
—
Algum motivo particular?
—
Descobri que, nestes dias, tenho pensado muito na Austrália.
Isso parece criar um motivo para que eu vá até lá. Você iria comigo?
Grace perguntou:
—
Por apenas algumas semanas, poderia ser?
As duas conversavam em voz baixa. Se ouvisse o som, Christian
imaginaria que estavam discutindo doenças e ficaria tranqüilizado
pela submissão de ambas.
—
Eu gostaria de ver o que fui incapaz de ver então — disse
Caro.
Ver tudo aquilo a que estivera cega, pelo menos isso podia ser
recuperado. Em um instante, Grace reviveu certas noites de verão
— caminhando por uma casa escura, cada janela e cada porta
escancaradas para a entrada de ar. Toda uma cidade voltada para o
mar, expectante.
—
Ver o Pacífico novamente. . . — murmurou ela.
—
Lembra-se de que mamãe, quando éramos pequenas, se
sentava em uma cadeira de vime no gramado, ao crepúsculo,
enquanto nós brincávamos? — Como que maternalmente, Caro
esfregava a manga de seu vestido cor de bronze. — Havia uma
treliça de malvas-rosa, uma fileira de alteias, o limoeiro e o balanço.
Mamãe se sentava lá fora em uma cadeira de jardim, nas noites de
verão, e olhava para nós.
Ela dera a entender: Olhava por nós.
— Essa era Dora — disse Grace. Levantando-se, ela foi
até a outra sala.
— Você me chamou? — perguntou a Christian.
—
Eu estava apenas bocejando. — Quando Grace se virou, ele
disse: — Pode levar o jornal. Não há nada nele.
Várias vezes pela manhã ou à noite, Grace abandonava o que fazia e
se voltava para o marido. Deixava os pratos na pia da cozinha e
subia para encontrá-lo. Certa vez, Christian estava usando o
barbeador elétrico e não a ouvira; de outra, o seu Water-Pik.
Christian estava satisfeito por se livrar do jornal, onde havia uma
carta, a respeito de tratados, assinada simplesmente "Elphinstone".
Isso porque Elphinstone, que tinha sido elevado ao pariato na lista
de homenageados de um primeiro-ministro de saída, agora escrevia
freqüentemente sobre temas públicos. Na época do pariato,
Christian engolira o orgulho e telefonara para felicitá-lo. Acolhido
delicadamente pela sra. — ou Lady — E., tinha ouvido uma voz ao
fundo dizer: "Pelo amor de Deus, não me chame".
—
Não posso ficar excitado — disse ele a Grace — porque
Elphinstone dormiu com alguém na Downing Street.
Grace voltou à sala, carregando o jornal. Sentou-se no sofá ao lado
de Caro.
—
Eu queria mostrar-lhe isto.
Havia uma foto de cientistas saindo de uma conferência
governamental. Flanqueado por políticos, Ted Tice olhava para
diante. Mostrava o rosto civilizado e particular que costumamos ver
no intérprete, entre dois taciturnos chefes de Estado.
—
Como vê, ele irá à Suécia na época em que você estará lá.
Grace leu que o professor Tice apresentaria uma tese sobre o
controvertido assunto. Grace tinha uma vantagem quanto a isso,
tendo aprendido através dos filhos sobre buracos negros, desvio
para o vermelho, a grande explosão1.
— Pensei que você já soubesse — disse ela.
— Não telefonei para Ted desta vez.
Grace ficou olhando, enquanto Caro manuseava a borla de uma
almofada. Comentou:
—
Acontece tanta coisa em sua vida!
—
Acontece comigo, apenas. Você, a sua vida, têm significado
para outras pessoas. — Caro nunca tinha visto Grace dar de ombros
antes. Prosseguiu: — Como pode uma vida ser desmotivada, se
outros dependem dela?
Grace sorriu.
—Uma declaração de abnegação.
Nenhuma delas esquecera a casa para idosos, a tela da televisão,
como Charmian Thrale disse: "Eles já estão mortos", sobre aqueles
que tinham perdido o contato com seus respectivos absurdos. Grace
perguntou de repente:
— Você amou Paul Ivory?
— Amei.
— Suponho que isso tenha terminado mal.
— Terminou.
— Você deve ter ficado muito infeliz.
— Eu morri. E Adam me ressuscitou. Pretendera declarar isso
aereamente, mas terminou
dando um cunho de absoluta seriedade. As duas estavam atirando a
cautela ao vento, como sua única válvula de escape para a violência
dos sentimentos.
— Eu os vi juntos na rua, uma vez. A maneira como você se
mantinha afastada, não se deixando tocar. . . Eu gostaria de ter
sabido — disse Grace. — Ou ajudado. No entanto, você não. . . não
dependia, não precisava de mim para sua própria estabilidade.
Teoria segundo a qual o universo se formou da explosão de um átomo primitivo, de
dimensões incalculáveis. (N. da T.)
1
— Por falar nisso, em que eu a ajudei?
— Oh. . . Naquela época, presumia-se que eu estava estabilizada.
O mesmo sorriso, nem amargo e nem complacente.
— Posso ajudá-la agora? — perguntou Caro.
— Não.
Sentadas, inclinaram-se uma para a outra e partilharam certa dor,
não exclusivamente delas. Grace levantou-se e foi para o piano,
como para um refúgio. De lá, ela se virou e fitou a irmã.
— A princípio, existe algo que se espera da vida. Mais tarde, há o
que a vida espera de nós. Quando chega a época de percebermos
que são a mesma coisa, pode ser tarde demais para expectativas.
O que somos, não o que seremos. São a mesma coisa.
— Que eu saiba, o suspense nunca termina — disse Caro. O suspense
da vida em si, depois a expectativa da morte. Valda dissera certa
vez: "Existe a espera". Com suspense, as mulheres se referiam ao
desejo de amar e ser amadas: grande expectativa. — Mesmo as
pequenas expectativas fazem parte da incerteza maior — esperar
uma chegada, um telefonema, uma carta.
— Uma carta é o pior — disse Grace.
Ficou parada junto ao piano, olhando para Caro. Se tivesse se
virado, a irmã se levantaria para abraçá-la e diria "querida", como
um amante. Daquele jeito, naquela postura, ficaram as duas em seu
lugar, entreolhando-se.
— Existe alguém, agora, a quem você ame? — perguntou Grace.
Como Caro não respondesse, acrescentou: — Porque agora você me
parece mais atraente do que nunca.
— Eu estava lembrando que você sempre foi generosa quando
criança — disse Caro.
Não que algo aconteça por acaso.
Grace continuou junto ao piano, escutando. Caro disse:
— Se Ted telefonar. . . — Os cantos de seus lábios não estavam
inteiramente dominados. Como se ela pudesse não tornar a falar. A
emoção altíssima era ultra-sônica, audível. — Se Ted ligar para cá,
não quero que saiba de minha ida à Suécia. E também não quero vêlo lá.
Grace não imaginara que sua irmã pudesse ficar com semelhante
boca. No entanto, pensava na carta — iminente, repleta, imaculada
pelo atraso — que poderia chegar agora. Ou na carta paga pelo
sofrimento particular — um lento e interior sangrar de esperança e
humilhação —, que, de forma idêntica, poderia não existir. Talvez
houvesse uma eventual notícia escrita, mas sem ser esperada,
descompro-missada; um toque de leve na ferida. Nesse ínterim, ela
aprendera a dar de ombros.
Grace havia descoberto que os homens preferem não finalizar
coisas, percorrê-las de ponta a ponta. Quando sucedia o oposto,
havia história: algo de que a pessoa sempre se lembraria.
—
As mulheres têm que levar tudo a cabo. O nascimento, por
exemplo, ou um amor sem esperanças. Os homens podem evadir-se
para sempre.
Havia exceções — Ted Tice ou seu próprio filho. Seria terrível se
Rupert tivesse que permanecer sempre ligado à sua vida, como Ted
fizera. Apavorante, mas não improvável.
A claridade penetrou através de longas janelas, havia o perfume
emanado de uma planta enxertada em um vaso. Duas mulheres
estavam caladas, uma sentada, uma de pé. Enquanto um homem
dormia, como um bebê, em uma sala ao lado.
37
Ele indagou na recepção. Ela havia saído. O saguão do hotel estava
superaquecido pelo meio-dia de um verão interminável e
chamejava, aqui e ali, em vitrinas iluminadas, exibindo jóias de
prata e objetos encurvados de vidro ou madeira. Ted sentou-se em
uma poltrona de couro; segurava uma revista, mas não a lia: um
detetive, controlando o movimento. Casais a caminho dos
elevadores olhavam para aquele homem anguloso e vigilante; para
sua testa ampla e o olho defeituoso.
Um corpulento turista americano, trajando linho listrado, tropeçou
miopemente nos pés de Ted Tice. Uma mulher saiu de uma cabina
telefônica, sorrindo. Um garoto magro foi empurrado por dois
poodles, puxados pela correia.
Ted voltou à recepção e escreveu uma mensagem, escreveu o nome
dela. O encarregado fez um comentário sobre o tempo excepcional,
lamentando a seca.
— Esta manhã estava chovendo em Londres — disse Ted.
O encarregado já vira o rosto daquele homem em um jornal,
relacionado a uma cerimônia universitária. A referência à seca tinha
sido seu polido e codificado tributo. Naquela semana, mais tarde,
ele diria à família: "Ele esteve no hotel, na terça-feira. Grande como
a vida".
Edmund Tice aproximava-se do ápice de sua carreira.
Ted saiu e foi até as docas. Ficou olhando para o porto: os pequenos
navios, o barco finlandês, uma fileira de lanchas oferecendo
excursões pelos lagos ou canais. Um céu amplo, de radiosa
luminosidade. Não conseguia recordar adequadamente a aparência
de Caro, tendo-a recordado demasiado. Ele parou na borda do cais,
transpondo os últimos momentos de trinta anos.
Na véspera, Grace havia dito ao telefone:
— Sobrou tão pouco tempo para contar a verdade. . .
Ele ficou parado ao sol, descolorando-se como todo o norte da
Europa. A terra sueca soprava como areia fina: um mundo
passando ao vento, dispersando-se à distância, pulverizando-se. No
campo, vidoeiros inclinavam-se para baixo, secando em solo de
pouca profundidade. Somente o mar permanecia cético, um azul
ártico: o mesmo sal e cheiros salitrados, as gaivotas necrófagas.
Dizia-se que a seca alteraria a topografia para sempre. Não era
verdade: dentro de um ano a terra se recomporia.
Quando ele voltou ao hotel, Caro estava na portaria, pedindo sua
chave. Estendendo a mão, para receber a mensagem que lhe
deixara.
Ted parou a pouca distância, contemplando aquela morena
estranha. Que se virou e, afinal, foi plenamente identificada.
Ele lhe sustinha a mão para que entrasse no barco, que era aberto,
com filas de assentos de madeira, como um pequeno ônibus. Tudo
envernizado no interior, o verniz pegajoso por causa do sal e do sol.
Mal havia uma dúzia de passageiros, mas duas vezes esse número
em bóias salva-vidas, pintadas com o nome do barco, a metafonia
selecionada em vermelho.
— Embora ninguém se afogue em um canal — disse Caro.
— Na realidade, é o mar. Um braço de mar.
Havia um aviso, em três idiomas: a lancha fazia uma excursão pelos
canais duas vezes ao dia, se as condições do tempo permitissem.
Ela havia dito:
— Vamos sair.
Tinham caminhado pelo cais, onde não havia paredes confinantes,
portas, cortinas ou camas. Caro se expusera e sugerira:
— Podemos tomar a lancha.
Entraram em uma embarcação que não retornaria por suas ordens.
Aquelas foram as últimas decisões de Caro. Uma vez o barco em
movimento, ela se tornou inativa.
Caro se sentou em um banco de ripas e amarrou uma echarpe nos
cabelos, a mesma brilhante echarpe que Christian admirara, uma
semana atrás. Ao lado, Ted Tice observava seus movimentos, que
pareciam, mesmo para ela, dotados de especial precisão e
significado: gestos em sonho. Era ela que enchia os olhos dele, não o
mar.
Um homem uniformizado atirou seu cigarro ao mar e cuspiu. Com
este sinal, as máquinas entraram em ação. Houve um branco
turbilhonar de água, e um garoto descalço libertou a corda pela qual
todos eles haviam ficado detidos. No último instante, um casal de
turistas correu com uma criança, e os três foram postos a bordo com
certa confusão — gritos, saltos, arquejos e alguns sons de metais se
entrechocando. Uma família inglesa: ele com aparência feminina, a
mulher parecendo um homem, a criança, um querubim. Escolhendo
lugares ao sol, estavam corados, constrangidos, mas rindo por
aquele final adequado para o seu momento de pressa e salvação.
Em resultado, um final feliz.
O barco zarpou, deixando para trás um palácio, um edifício de
ópera, um museu, uma fortaleza; pontes, torreões, prisões,
pináculos. Uma cidade inteiramente equipada. A atividade deixou
de ser interrupção e se tornou parte do fluxo. Moviam-se à luz de
um passado ou de um outro mundo. Também a cena, em suas
dimensões humanas, era experimentada, descolorida e maculada,
faltando-lhe o lustro moderno. Ou era a eles que faltava a retina
moderna, capaz de dar precisão a cenas antigas e torná-las, como as
reproduções coloridas de grandes pinturas, mais definidas, mais
brilhantes e menos resplendentes que seus originais.
A lancha balançou na esteira de um pequeno barco a vapor. A
criança gritou agudamente, deliciada ante a nova emergência, tendo
aprendido que todos os perigos são superados. Ted e Caro foram
jogados um contra o outro — e não se afastaram.
— Antes de você chegar — disse ele —, eu estava pensando que mal
podia imaginar sua aparência. Havia perdido a imagem, ao retratála.
Ted ficara parado no saguão do hotel e ela se virara: uma aparência
além do reconhecimento. Caro comentou:
— Nunca fiquei mais feliz ao ver qualquer rosto humano.
Olhava agora para os entalhes e sombras no rosto dele com grande
curiosidade, como uma consciência buscaria outra, no instante
anterior à morte ou à batalha: a crise da existência partilhada tão
intimamente, indivisível. O eu supremo, mas, ainda assim,
impotente.
O barco se dirigia lentamente para um braço de mar, calmo e
estreito, onde a hera cobria um baixo talude e as árvores desciam
em suaves encostas para a água. Deslizando ao lado, puderam ver
relvados lisos entre as árvores e casas brancas quadradas. Homens e
mulheres louros caminhavam por jardins estorricados e olhavam
para a lancha, com a mão em pala acima dos olhos. Um jovem
estava sentado em uma cadeira de vime, segurando um livro aberto.
Caro tirou o relógio — seu próprio relógio, um relógio feminino,
com uma pequena pulseira de ouro. Deixando-o no colo, baixou os
dedos até a água. Ted apanhou o relógio. Era um modo de segurála, a pequena pulseira cálida como se viva.
Quando Caro retirou a mão da água, Ted a enxugou e a manteve
presa na sua.
— Eu nunca a havia tocado, até agora.
— É verdade.
Ted Tice perguntou:
— Você diria que me ama?
— De todo o meu coração.
O homem olhou para as árvores, reclinando-se na água branca.
Aquelas árvores estavam em seus olhos, em listras, em lágrimas.
— É difícil imaginar qualquer façanha que extraísse isso de mim.
Ela disse:
— Meu querido. . .
— Meu querido. — Ele saboreava a carícia recebida em sua própria
língua, um ato de amor. — Nunca estive com você na água, antes.
— Tomando os elementos por testemunha.
Pousou a mão nos cabelos dela e a echarpe escorregou para trás.
Quando as cores caíram da cabeça de Caro, pareceu que alguma
resiliência a abandonara. Tendo sido serena, obediente, ela agora se
tornava solene e obscura. Ted podia vê-la ponderando, em um
momento, as horas e os anos vindouros que lhe estavam cerrados,
desconhecidos. Somente ele poderia saber, pois sempre se preparara
para isso. Levara tanto tempo criando aquele momento, que ele não
podia ser novo para nenhum deles.
No barco que deslizava, Ted via o brilho escapulir.
— Confie em mim — disse.
Propunha seu amor a ela como sabedoria e até mesmo gênio. Como
se ele soubesse e ela não.
Os passageiros viram o Canal Real, como haviam desejado, mas
viram também aqueles dois que representavam o amor. Uma
mulher pálida, com os cabelos escuros soltos. O braço terno de um
homem nas costas de seu assento, a outra mão segurando a dela. A
ternura pela qual todos ansiavam, dia e noite. Podia ser vagamente
adivinhada alguma tragédia — perda ou enfermidade. Ela possuía a
luminosidade daqueles prestes a morrer.
Passavam perto da margem, onde um antigo barco jazia em um
dique seco, uma embarcação de madeira içada do fundo do oceano
após séculos: carranca de proa, conveses, castelos de popa.
Construída em pinho e carvalho, levando o nome de um rei.
Carregada para o fundo pela sobrecarga dos canhões de bronze e
atracada de volta a terra, como uma atração. A criança trepou em
um assento para espiar e lhe contaram a história de tabicas e cofres
de bordo, de utensílios de peltre e moedas de ouro ou prata,
marcadas com uma coroa. E foi confirmada, uma vez mais, na
crença da sobrevivência.
A lancha navegou através de um braço de mar mais amplo. Caro
contou a história de Paul Ivory. Tinha sido Paul quem dissera: Um
dia, você amará alguém mais e contará a minha história.
Anos atrás, sentada em um muro, ela havia assegurado a um rapaz
bisonho: As coisas se confirmam tão estranhamente!
Perguntou a ele:
— Nunca mais encontrou o alemão que você ajudou durante a
guerra?
Era a primeira vez que se referia a isso.
— Muitas vezes.
— E nunca se identificou para ele?
— Não. Nem ele me reconheceu, é claro — a despeito deste meu
olho — disse Ted. — É tão confiante em si, tão alerta e assertivo. . . E
eu o observo, a partir de nosso comum e não partilhado segredo.
Como Deus. Isso confere uma autoridade à qual não renuncio.
Apesar de toda a sua vigília, ele dorme e eu o vigio.
— Foi o mesmo que sentiu em relação a mim, então, com Paul?
— Eu nunca tive poder sobre você, e não o desejei. Isso não é
verdade, claro. Eu queria o maior poder de todos, mas não uma
vantagem ou autoridade.
— Nestas últimas semanas, estive pensando no verão em que nos
conhecemos. Recordo dias inteiros, conversas completas. Ou então
os invento.
— Sefton Thrale, o telescópio. . . — O passado que Ted Tice habitara
sozinho, a vida inteira. Eles tentavam descobrir o que os levara a
isso, e jamais o conseguiriam. Eram inocentes, em resumo, como
qualquer casal enamorado. — Agora, falam em telescópios de
muitos metros e plataformas espaciais.
— Poderia ser um meio de rejeitar-se a Terra, sem melindres.
— Porque não podemos fazê-la funcionar, é isso?
— Porque ela foi demasiado boa e grande para nós.
A lancha começava a girar, a fim de levá-los de volta. Descrevia um
arco amplo e gradual, a água se. abrindo preguiçosamente em
leque, na esteira formada. Tinham demorado bastante na vinda,
mas agora retornavam rapidamente. Uma vez completada a curva,
houve a transformação nervosa, com as máquinas mais potentes e
barulhentas. Os passageiros também já haviam tido sua dose
suficiente de ternura e, por outro lado, estavam com muito calor. O
garotinho corria impetuosamente de um lado para outro da
embarcação, como se lhe fosse possível aderná-la, e, com uma vozinha insistente, gritava perguntas sobre o fundo do mar.
— Josie estará esperando no hotel. — De novo, era como se Caro
saísse por uma porta e entrasse em um barco. — A que distância
você irá?
— Uns oitenta quilômetros. Mandarão um carro apanhar-me. —
Nessa noite e no dia seguinte, uma universidade comemoraria as
realizações de Ted Tice. — Terei de falar lá, amanhã à tarde. Toda
essa gente irá a Roma e à Sicília, onde haverá uma conferência. —
Ele acrescentou: — Farei o que você quiser e irei para onde quer que
esteja.
Caro espiava o garotinho. O bebê de Josie, que ela tivera nos braços
ainda esse dia, em pouco estaria correndo em um convés e faria
perguntas a que ninguém poderia responder. Não olhou para Ted,
mas para o menininho e para o mundo ao qual retornavam.
— Eles se arranjariam sem mim — disse Ted —, caso eu morresse.
— Não aludia à conferência, mas ao mundo. — Por que não, se eu
estiver vivo?
Caro não sabia se aceitar ou negar significaria força.
— Receio deixá-la, perder você —■ disse Ted. Baixou os olhos para
aquele perfil, como já fizera uma vez, sentado em um ônibus rural.
A mesma linha de cabelos vigorosos, concavidades sombrias nos
olhos escuros. Em um vestido de verão, o busto de Caro era a
realização do desejo. —
Você não fugirá. Estará lá, quando eu lhe telefonar de manhã.
Não morra, não desapareça.
— Estarei.
— De qualquer modo, eu a encontrarei.
As janelas de seu quarto davam para a água. Tecida através das
cortinas definho rústico, a luz matinal era tinta, rósea como a carne
que circunda um dedo ou contorna um ouvido.
Caroline Vail jazia sozinha em uma cama, pela última vez.
— Você dormiu?
Ela se recostava nos travesseiros, segurando o telefone.
— Fiquei acordada, para pensar nisto. Para pensar em você.
— Para mim, é uma novidade imaginar isso. Em sua conversa, já
estavam juntos.
Ted disse:
— Eu não dormi.
A cortina tinha um desenho de gavinhas enroscadas e flores
semelhantes a estrelas. Do cais abaixo, subia a descarga de um
ônibus matinal, o apito de um barco, ruídos de engrenagens,
grasnidos laterais de aves marinhas. A tênue claridade iluminava
uma mulher na cama.
— Estou mais feliz do que nunca — disse ele. Virada de lado, ela
podia ver-se em um espelho. Um
ligeiro vale entre os seios, cabelos espalhados no travesseiro. Pele
pálida, ombros alvos, tudo o que o coração de alguém poderia
desejar.
Ela se amou e desejou-se, como se fosse Edmund Tice. Como se
aquilo fosse um eu, do qual também ela deveria separar-se para
sempre.
— Estou mais feliz do que nunca — disse ele.
— Isso deve bastar. É plenitude. — Ela se viu refletida onde a porta
espelhada de um guarda-roupa estava aberta. Acrescentou: — Um
pouco disso durará.
— Se você for embora, eu a encontrarei. — Ele perguntou: — Ante
tal possibilidade, deverei sobreviver ao meu tempo como outros,
interrogando-me, definhando e contando meus mortos? Felicitandome por minha quase escapada da vida? — Acrescentou: — Logo
estarei com você.
Depois que desligou, ela segurou a cortina de lado e olhou para a
rua, para o porto. Pensou em como havia sido uma criança à beira
do mar e mais tarde uma mulher, em altos aposentos como
aposentos em sonhos, e jardins emaranhados. Pensou em
continentes e cidades, homens e mulheres,, palavras, ou entes
amados. O bebê de Josie. Como se enumerasse cada momento
gracioso de sua vida, para oferecer como atenuantes.
— Eu disse que a encontraria.
No aeroporto, uma ausência total de manhã, clima e substância.
Havia luz branca, ar rarefeito e um aviso que dizia "Partidas".
— Eu já teria ido, se não fosse a greve. — Ela se recostava contra o
balcão de passagens. Colocou a mão na dele. — Há uma greve do
lado de lá.
— Agradeço a Deus pelos movimentos sindicais.
— Amor moderno. . .
Em frente deles, um homem dizia:
— Pode verificar que estou registrado como VIP . Uma jovem
uniformizada movia o lápis, descendo por
uma fila de nomes.
— O senhor é VIP de primeira, segunda ou terceira categoria?
— A senhorita verá que não sou uma pessoa sem importância.
Caro era a seguinte na fila. Ted Tice impediu que um carregador
apanhasse a bagagem.
— Saia daí e converse comigo.
Sentaram-se em poltronas de plástico. Havia um aviso com os
dizeres: "Passageiros em trânsito". Ted tocou o rosto de Caro.
— Há um vôo para Roma dentro de uma hora. — Ele tornava tudo
tão simples, palavras de poucas letras. — Se você for nele,
estaremos juntos lá, à noite. — Ted era ligeiro, mas sem pressa,
indestrutível. — Ficarei aqui e farei minha conferência desta tarde.
Pelo vôo charter, estarei em Roma esta noite.
— Ted. . . — Ela começou a chorar como uma criança. — Ted, o que
pode mudar para nós?
— Algo já mudou.
Como uma criança, ela parou de chorar, por medo ou curiosidade.
— Telefonei para Margaret. Contei a ela.
Foi como quando, na lancha, o brilho lhe caíra dos cabelos.
— A angústia — disse ela, e inclinou-se contra o braço dele.
Parou de chorar, em deferência às lágrimas de outrem. Como se lhe
falassem de uma batalha, articulada à distância, na qual muitos
devem morrer.
Ted demonstrava a maior gentileza: ela precisava ser ajudada a
superar aquilo. A despeito de si mesmo, sua força irrompia como
regozijo. Era difícil crer que tanto infortúnio pudesse estar ligado
àquilo. Tinha o braço em torno dela, a mão descansando em seu
seio. Pensou em como Caro havia sido orgulhosa e decidida, como
voltaria a sê-lo. Pensou também que ela estava ali, reclinada e
chorando — amando-o tanto.
Eram naturais e sobrenaturais, naquele lugar insípido, como figuras
amorosas da mitologia.
Quando se endireitou no assento, ela enxugou os olhos e disse:
— Meu amor. . .
Ele lhe afagou os cabelos.
— Vou apanhar a passagem — disse, e sua boca estremeceu, ao
pronunciar palavras prosaicas.
Apanhou lápis e papel, escreveu o nome de um hotel em Roma.
Ambos intercambiaram o nome e já viam o sul.
Além do portão de partida, havia um dispositivo semelhante à
estrutura de uma porta, onde os passageiros eram vistoriados — em
busca talvez de ouro ou armas. A bagagem de mão era colocada em
uma esteira rolante e deslizava através de um pequeno plano
inclinado.
Caro recordou a barreira onde dissera adeus a Edmund Tice pela
última vez. Estava em meio a uma multidão, em uma escada
rolante, e erguera a mão. Ele ficara vendo-a ir-se. Houvera uma
despedida anterior, quando ele lhe havia dito: "Aceitarei quaisquer
condições", e ela permanecera remota, não identificando aquilo
como um ensaio.
Os passageiros cruzavam o portal descorporifiçado, de um em um.
Havia uma mulher vestida de linho rosa:
— Esta máquina estraga pérolas?
Eles se tornaram competitivos, quanto ao que podia ser estragado.
— Afetará meu marcapasso?
— E quanto à radiação?
No pequeno plano inclinado, um homem de tweed deu um salto
para salvar uma caixa de papelão.
— Está levando as jóias da coroa aí dentro?
— Em realidade, é um maravilhoso serviço de chá.
Eles reivindicavam, aferravam-se, refugiavam-se: a partida
provocava isso. Havia um homem corpulento, pálido, familiar, que
vestia linho americano de listras e usava uma mala de couro como
um aríete. Não cumprimentou Caro e bem poderia ser míope. Era o
médico de Nova York, que lhe sugerira usar óculos.
Paul, aquele dia, na rua acalorada, dizendo: "Caro?" Paul à sua
porta, dizendo: "Adeus, Caro".
Ela podia recordar despedidas em transatlânticos. O almoço a
bordo, que Dora não apreciara. Bandeirolas, lenços, o mundo antes
de uma guerra. A grande configuração passando através das Heads,
calmamente, em sua trajetória para o paraíso.
— O seu vôo — disseram. Tudo isso enquanto ela olhava para trás,
procurando ver se Ted ainda estava lá. — O embarque para o seu
vôo.
No avião, indicaram-lhe um assento perto da janela. Além da pista,
podia-se ver um pequeno bosque de abetos, escuro, recluso,
genuíno. Na própria pista, os técnicos gesticulavam com mãos e
bandeiras. Seus cabelos louros e suas roupas azuis eram fustigados
pelo deslocamento de ar. Usavam dispositivos para proteger os
ouvidos do intenso ruído.
O ruído podia ser visto, reverberando em macacões azuis,
encapelando-se entre os abetos. No interior da cabina, nada podia
ser ouvido. Apenas, quando o avião se elevou do solo, um longo
silvo de ar — como o arquejo da respiração da humanidade, quando
um trabalho de eras se engelha em um instante — ou o grande
ofegar de casco e oceano, no momento em que um navio afunda.
A AUTORA E SUA OBRA
Shirley Hazzard nasceu a 30 de janeiro de 1931, em Sydney, Austrália.
Educada na Queenwood School, em Syd-ney, logo depois da Segunda
Guerra Mundial mudou-se para Hong Kong, onde seu pai foi ocupar um
alto posto na administração governamental. Ali, aos dezessete anos, começou a trabalhar no serviço secreto britânico. Em 1949, transferiu-se para
Wellington, na Nova Zelândia, onde desempenhou importantes funções no
Alto Comissariado Britânico. Em 1951, tornou-se assistente técnica para
assuntos dos países subdesenvolvidos da Organização das Nações Unidas,
em Nova York. Nesse posto, viajou por diversos países do mundo,
adquirindo uma rica e variada experiência de lugares e pessoas que
aproveitaria em uma série de contos publicados na revista "New Yorker",
nos anos 60. Estimulada pela calorosa recepção do público a essas
narrativas, abandonou seu cargo na ONU e tornou-se escritora
profissional. Em 1963, surgiu seu primeiro livro, uma seleção de dez contos
("Cliffs of fali"), a maior parte dos quais focalizando mulheres infelizes no
amor. Em 1966, veio à luz seu primeiro romance: "The evening of the
holiday", uma tocante história de amor entre uma inglesa de trinta e
poucos anos e um atraente arquiteto italiano de meia-idade. "People in
glass houses: Portraits from organization life" (1967) enfeixa oito contos
sobre os escalões inferiores da ONU. "The bay of noon" (1970) focaliza
uma mulher que busca um sentido para a vida investigando seu passado
amoroso. Em "Defeat of an ideal" (1973), a autora deixa de lado a ficção
para refletir sobre a autodestruição das Nações Unidas. Mostra como a
ONU é ineficiente e controlada pelos EUA. Ataca os secretários Trygve Lie
e Dag Hammarskjóld e revela a discriminação das mulheres que reina na
organização. Com
"O trânsito de Vénus" (1980), Shirley Hazzard atinge o ponto mais alto de
sua carreira, conquistando milhões de leitores em todo o mundo.
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