O Trânsito de Vênus - Shirley Hazzard Mais uma vez, para Francis. "J'ai rêvé tellement fort de toi, J'ai tellement marché, tellement parlé, Tellement aimé ton ombre, Qu'il ne me reste plus rien de toi." Robert Desnos, "Le dernier poème". Primeira parte O Velho Mundo I Ao cair da noite, as manchetes estariam anunciando devastação. Acontecia simplesmente que, em um dia sem nuvens, o céu de repente ficara encoberto, tal qual um toldo. Um silêncio purpúreo petrificava os troncos das árvores e mantinha eretas as plantações nos campos cultivados, como cabelos arrepiados. Tudo quanto havia de um matiz branco e fresco provinha das baixadas e dunas, ou lacerava a beira das estradas com uma fileira de cercas. Isso aconteceu pouco após o meio-dia, em uma segunda-feira de verão, no sul da Inglaterra. Na manhã seguinte, surgiram ainda pequenos parágrafos nos jornais, com espaço obtido em lacunas entre eleições, crimes diabólicos e a Guerra da Coréia — casas destelhadas e pomares devastados, com a citação de número e área. Finalmente, haveria apenas a breve menção a um corpo, no local em que uma ponte fora arrastada. Naquele meio-dia, um homem caminhava lentamente nessa paisagem, sob relâmpagos que se ramificavam. Uma composição de expectativa quase humana definia o cenário, no qual ele penetrou vindo do canto esquerdo. Cada nervo — porque os próprios celeiros, carrinhos de mão e coisas desprovidas de tecido adquiriam nervos naqueles momentos — aguardava, fatalístico. Apenas ele, cinético, avançava contra as circunstâncias rumando para um só destino. Os fazendeiros moviam-se metodicamente, guiando animais ou conduzindo máquinas em direção ao abrigo. Além, no horizonte, ruas provincianas ficavam frenéticas ante os primeiros pingos de chuva. Limpadores de pára-brisas agitavam-se, incessantes, e as pessoas também iam em frente e esquivavam-se, de cá para lá, de um lado para outro. Embrulhos eram protegidos à frente dos casacos e jornais se dobravam acima de cabeleiras recém-onduladas. Um cachorro correu para dentro da catedral. Crianças saíam correndo excitadamente dos playgrounds, janelas se fechavam com estrondo, portas batiam. Donas-de-casa apressavam-se, gritando: "Minha roupa lavada!" Então, um súbito risco de luz dividiu a terra, vindo do céu. Foi quando o homem que caminhava chegou à estrada e ali parou. Acima dele, quatro casas antigas se situavam em uma curva alta da montanha, bastante distanciadas entre si: pendiam para baixo, como fardos pendurados, sobre a terra ondulante. Ele ficara sabendo de seus nomes na aldeia — o nome dos moradores, não dos donos. As paredes de tijolos eram gastas e escurecidas; uma delas estava coberta de hera, verde como um gramado revolvido. A casa mais distante e maior situava-se diante de um bosque, clamando supremacia. Rompendo com decisão a própria imobilidade, o homem observava, como se visse, num grande relógio, o ponteiro fazer soar a pancada seguinte diante de seus olhos. Ele deixou a estrada quando da primeira lufada de chuva e vento, depositou sua mala no chão, tirou o boné encharcado, bateu-o contra um lado do corpo e o enfiou no bolso. Seu cabelo elevou-se como as plantas das lavouras entre as lufadas e, também como elas, ficou rapidamente molhado e escorrido. Ele escalou a subida sob a chuva, com decisão e sem demonstrar qualquer infelicidade. Parou uma vez para observar o vale — ou valezinho, como poderia ser doce e brandamente chamado. Estava sendo varrido pelos trovões, ribombo após ribombo, até as plantações arqueadas reverberarem. Havia um castelo na montanha oposta — cinzento, pomposo, guarnecido de torres, e que se adequava ao temporal. Ao aproximar-se da casa mais distante, ele tornou a parar, olhando com o mesmo genuíno interesse que alguém teria se o tempo estivesse maravilhoso. Da cabeça erguida, a água lhe escorria para o colarinho. Era uma casa escura, mas permanecia firme. No correr de dois ou três séculos de acréscimos secundários, Peverel se mantivera dentro da escala e da proporção, como um princípio; harmônica, a não ser por uma janela alta e alargada — defeito frívolo e intencional, como o furo em uma orelha, para a colocação de um ornamento. A lama escorria por sobre o cascalho e a argila batida. Galhos podados de alfenas sacudiam-se por toda parte. Como se viesse do mar, o homem vadeou até a entrada da casa e puxou o cordão de uma sineta. Os passos rápidos que ouviu bem poderiam ser as batidas de seu coração. Achou velha a mulher que lhe abriu a porta. Se ele tivesse alguns anos a mais, poderia tê-la promovido à meiaidade. Uma idade que se enovelava no cabelo liso e grisalho, explícita na pele demasiado delicada para uma jovem e naquela postura empinada, sem ser marcial. Ela o conduziu pelo pavimento do que fora um belo saguão. Tinha os olhos grandes, empalidecidos pela descoberta do que, por humana e comum concordância, fica melhor não divulgado. Trocaram os respectivos nomes na mais perfeita calma, ignorando a tempestade atrás dele e suas roupas encharcadas. A mala barata gotejava cor de laranja no piso preto e branco, enquanto Ted Tice tirava a capa e a pendurava em um cabide, como lhe fora indicado. Um odor de lã molhada, de meias e suor, espalhou-se, acre, pelo espaço vazio, insensivelmente ensaboado e bem encerado. Todos aqueles lentos assuntos tinham demorado segundos, e durante esse tempo pudera-se notar, também, que o saguão era circular e que um jarro de rosas jazia sobre uma mesa, ao lado de um jornal comum e abaixo de um quadro escuro, com moldura dourada. Por sob a curvatura de uma escada, havia uma porta aberta, dando para um corredor com passadeira persa. E em cima, no arqueado dos degraus, via-se uma jovem, de pé e imóvel. Tice levantou os olhos para ela. Teria sido pouco natural não tê-lo feito. Levantou os olhos de seus sapatos molhados, de seu cheiro de umidade e da mancha alaranjada da bagagem barata. E ela olhou para baixo, alta e enxuta. Tice teve uma impressão do corpo da jovem em toda a sua dimensão — como se estivesse às suas costas e lhe visse a espinha forte, o cabelo negro repartido sobre o tendão proeminente da nuca, a dobra frágil atrás do joelho. Ela estava com o rosto na sombra. De qualquer modo, teria sido demasiado perfeito e oportuno, se ela tivesse podido mostrar que era bonita. — Eu procurava por Tom — disse ela, e foi embora. Ted Tice ergueu sua mala, que se dissolvia: um recém-chegado devia manter a própria opinião entre os iniciados. Logo também estaria procurando Tom ou saberia por que outros o procuravam. — Meu marido — disse Charmian Thrale — está bem melhor e descerá para o almoço. Ted Tice ia trabalhar com o professor Sefton Thrale, aquele que estava bem melhor, durante julho e agosto. Nesse meio tempo, era conduzido pela sra. Thrale ao longo da passadeira persa e passava por fotografias antigas, uma carta emoldurada com um brasão dourado e uma série de gravuras de portos britânicos. — Este é o seu quarto — disse a sra. Thrale. Ted Tice seria deixado a sós, mas ela permaneceu à porta enquanto ele caminhava por seu novo chão, a fim de colocar a mala onde causasse o menor dano. — Aquelas portas duplas, no fim do corredor, dão para a sala onde nos reunimos. Se quiser esperar lá, depois que estiver pronto, uma das meninas o acompanhará. Como se ficar sozinho o incomodasse, a ele, que era grato a isso, em qualquer ocasião! Ela também mencionou o banheiro. Depois disse que ia pôr a mesa. Por fim, ele ainda aprenderia isto: a falar confiantemente e deixar um aposento. Na única janela baixa surgiam arbustos esfumaçados e divergentes, bem como um relance de ripas molhadas formando uma cerca — tudo em diagonal e truncado pela moldura da janela, como uma foto mal tirada. Havia restos de tinta negra do blackout na vidraça. Aquele era um dormitório simples e talvez já tivesse sido ocupado por algum subalterno de categoria. Tice meditou naquelas palavras — subalterno de categoria —, ignorando que significado teriam no tempo em que eram usadas. Fora enviado até ali para auxiliar um eminente cientista, idoso e doente, a dar sua opinião quanto à localização de um novo telescópio. Pelo que sabia, bem podia constar como um subalterno de categoria. Era jovem e pobre, possuía as melhores referências — como a governanta de uma história antiga que se une à família nobre. Ele espalhou roupas amarrotadas pelo quarto e procurou um pente. Mesmo molhados, seus cabelos mostravam um toque arruivado. Sobre a mesa onde colocou seus livros, havia um tinteiro de bronze e porcelana e duas canetas de madeira. Tice cantarolava, enquanto se sentava para trocar os sapatos, de vez em quando deixando escapar por entre os lábios semicerrados as palavras de uma antiga canção: "O vento sopra do sul, do sul, do sul, O vento sopra do sul, sobre o suave mar azul' Depois fincou o punho na boca e ficou pensando, olhando fixamente, como se apenas aos poucos fosse acreditando. A sala de portas duplas era tão fria quanto o corredor. Cadeiras confortáveis e feias, um rígido e refinado sofá, livros antigos, mas não velhos, mais flores. O vento estremecia em uma lareira gélida, a tempestade formava uma cascata na janela ogival. Ted Tice acomodou-se em uma das elefantinas e surradas poltronas, descansando a cabeça em um trecho extra e gasto de pelúcia, enlevado com a novidade e as perspectivas. Em certa época, aquela sala deveria ter sido um estúdio ou uma sala de estar matinal — sendo que a expressão "sala de estar matinal" pertencia à mesma vaga categoria literária que "criado de alta classe". Em alguma parte haveria um aposento maior, manifestamente impossível de aquecer, como se tivesse ficado fechado durante a guerra. A expressão "durante a guerra" vinha à mente com facilidade, mesmo na paz. Na lareira, abaixo do gradil vazio, havia uma fila de fragmentos alinhados, cinco ou seis deles. Eram torradas, manchadas com uma pasta escura e empoeiradas pelas cinzas. Ele estava habituado ao frio, e ficou ali à vontade, como se o aposento estivesse aquecido. Fisicamente, não podia mostrar tal despreocupação em presença de outros, porque a versão inteiramente desenvolvida de seu corpo ainda não lhe era de todo familiar. Em pensamento, no entanto, era fácil, rápido, mas sem pressa. Tudo indicava que seu corpo esperara outro habitante. Ele supôs que os dois se reconciliariam com o tempo — como saberia, com o tempo, que as torradas sujas estavam ali para envenenar camundongos e que Tom era o gato. Um livro ao lado de sua poltrona estava fechado sobre um lápis, que marcava a leitura. Apanhou-o e leu a lombada: "Zanoni. Romance do Altamente Ilustre Lorde Lytton". Um livro daqueles era bem adequado à estante de semelhante sala. Mais improvável é que fosse tirado do lugar, aberto e lido. Por um momento, imaginou que quem chegava era a mesma jovem, a que vira na escada. O motivo dessa impressão se devia a serem ambas irmãs, embora a presente fosse loura e mais baixa. — Eu sou Grace Bell — disse ela. O rapaz ficou de pé e novamente apresentou sua mão e disse seu nome. Ela usava um vestido rosa de lã, caro e novo. Ambos souberam — era impossível o contrário — que ele a achara bonita. Entretanto, devido à juventude, ambos simularam ignorar aquela ou qualquer outra beleza. — Ficou muito tempo aqui sozinho. — Nem percebi. Contudo, não houvera nenhuma culpa da parte dele. — Faltou luz. Pediram-me que viesse aqui e o conduzisse. Ele estivera ali, sentado no escuro, por causa da tempestade. — É por aqui. Ela se comunicava por breves informações. Sua segurança indicava que tinha sido bonita desde a infância. "Que criancinha linda", e mais tarde: "Grace está ficando. . . ficando. . . uma beldade". A beleza se tornara interior, exterior. Também houvera aulas de comportamento. Tice admirou a habilidade da jovem em caminhar suavemente, tendo-o em seus calcanhares. Ela não era pesada, em absoluto, e dava uma impressão de delicadeza e submissão. O vestido era uma raridade para ele — o tecido, o corte. Pela primeira vez, Ted Tice observava como era feito um vestido, embora muitas vezes houvesse estremecido ante uma corajosa exibição de roupas dos pobres. O vestido rosa-forte viera do Canadá, por mar, tendo sido enviado pelo filho dessa família, um funcionário do governo, de quem Grace Bell estava noiva. Ele lhe traria outro vestido, quando voltasse da conferência em Ottawa. Depois disso se casariam. Um cachorro, semelhante a um crisântemo anelado, ficou no paraíso quando a viu aproximar-se. — Grasper! Grasper! O cão dava saltos, emudecido. Alguém tocava uma sineta. Grace abria uma porta. E as luzes acenderam-se sozinhas, como em um palco. 2 Percebia-se que as duas irmãs haviam passado por alguma experiência inequívoca que, embora sem interesse para os demais, formara um elo indissolúvel entre ambas. Era a gravidade com que se portavam, comiam, falavam e, poder-se-ia dizer, até mesmo riam. Era algo que intercambiavam, sem uma olhar para a outra, mas formando uma dupla. Eram os olhos descansando em alguém, na parede ou na mesa, sopesando a situação, a certa distância dos fatos e sentimentos: seus olhos, com a mesma tonalidade escura, se não a mesma distinção. Por terem feições semelhantes, era notável o contraste na coloração. Não por uma ser clara e a outra morena, mas porque a que se chamava Caro possuía uma cabeleira negra, lisa, basta e de textura grossa como a de uma oriental. Por tal motivo, Grace parecia mais clara do que era — sendo considerada mais leve e suave, contra a força de Caro. As pessoas exageravam a alvura, para simplificar as coisas: a loura e a morena. Usando um cardigã que talvez houvesse sido azul, Caro despejava água de um jarro. Era possível adivinhar-se sua beleza futura, que certamente se confirmaria. Na aparência, estava ainda inacabada, faltava-lhe alguma revelação, que poderia ser, simplesmente, sua própria conscientização. O contrário de Grace, já completada, se não completa. Grace sorria, lidando com a carne em conserva e as batatas, inocentemente ensaiando para uma época em que a carne e as verduras seriam de fato suas. Ted Tice notou então que ela usava um anel de diamantes na mão esquerda. Entretanto, tinha sido leal a Caro, antes de perceber aquele detalhe. Necessariamente, Caro não pertencia àquele lugar: com o tempo, ela decidiria a que mesa pertencer. Era ainda jovem para compreender a necessidade disso. Sua outra descoberta importante também não era original: que a verdade tem vida própria. Talvez fosse em tais direções que suas energias houvessem fluído, deixando que a aparência seguisse como pudesse. O que lera sem dúvida a deixara impaciente com a discrepância principal — entre o homem como poderia ser e como era. Ela imporia sua própria crença rude — de que poderia haver heroísmo, qualidade — a si mesma e aos outros, até que eles ou ela capitulassem. Poderiam surgir exceções, raras e implausíveis, sugerindo que estivesse certa. Àquelas exceções, Caro daria toda a sua devoção. Aparentemente, era para elas que reservava sua humildade. Parte disso podia ser lido em sua aparência. Ainda não tendo começado a agir, ela permitia uma teoria. Ao mesmo tempo, mostrava os lábios entreabertos, ternos, impressionáveis, como poderiam ter estado no sono. Eles ainda não se tinham falado à mesa, as moças e o rapaz. Com impenetrável simplicidade, ele ouvia o velho astrônomo à cabeceira, o eminente cientista. Sua eminência: um penhasco protuberante, no qual haviam sido acuradamente colocados colarinho, gravata e óculos. Juntos, o jovem e o velho preparavam-se para ler o horóscopo do mundo. Concentrado em ouvir, como o único adequado a fazê-lo, Ted Tice ainda conseguiu rapidamente saber que as duas moças eram da Austrália, que Caro estava ali à espera de um emprego público em Londres e que o filho que participava de uma conferência em Ottawa chamava-se Christian. Apesar da angina, o pai tinha gestos rápidos e definitivos — erguia seu copo de água com uma espécie de eficiência e o depositava na mesa com uma ligeira batida. Apertava rapidamente um guardanapo à boca esculpida, para não perder tempo. Snap-snap, snap-snap-snap. Ele poderia estar à frente de uma mesa de trabalho, não à de refeições. Falava com ríspida velocidade, também, e já havia alcançado o fim do mundo. — Sua geração será a única a senti-lo. Até agora, houve determinada forma de estrutura social. Diga você o que quiser a respeito disso. Agora, estamos chegando ao fim de tudo. Vocês é que agüentarão as conseqüências. Com rápida satisfação, chamou a atenção de Ted e das moças para a quase culpável má sorte deles. Da mesma forma que diriam a recém-chegados a um balneário chuvoso: "Tivemos um tempo excelente até hoje". — Tem havido uma ordem global de certa espécie. Digam o que quiserem. Aquilo, evidentemente, era algo que eles não podiam fazer. Quando Sefton Thrale pronunciava a palavra "global", podia-se sentir a terra redonda como uma bola macia ou branca e delicada como um ovo. Era forçosa a recordação dos saudáveis e desagradáveis veios e afloramentos deste mundo. Pensava-se nos Alpes, no oceano ou em um vulcão ativo, para acalmar o espírito. O professor Thrale não dava muita importância ao fato de Grace ter vindo da Austrália. A Austrália requeria desculpas e era quase um tema para irreverências. A Austrália só seria abrandada por uma ousada fortuna, oriunda de suas fontes recentemente forjadas — ovelhas, digamos, ou desinfetantes para ovelhas. E não havia nenhuma fabulosa propriedade com muitos milhares de acres ou milhas quadradas, nenhum bem-sucedido desinfetante, unidos ao nome de Grace. Pelo contrário, ela chegara sobrecarregada por uma irmã; havia, inclusive, uma meia irmã, por sorte ausente, passando férias em Gibraltar. Sefton Thrale explicaria: "Christian ficou noivo" — dando a entender uma ingênua tolice cometida — "de uma moça australiana". E com enfática boa vontade, talvez acrescentasse que Grace era uma excelente jovem e que ele próprio estava feliz, "realmente". A tempestade fizera uma pausa para descanso. À luz do dia, o rosto de Ted parecia manchado e descamado, despretensioso como o rosto refletido no espelho salitrado de um quiosque de balneário, no verão. Sua testa era dividida por um sulco ligeiramente vertical. Sofrera um ferimento no olho — um irmão fizera aquilo quando eram crianças e brincavam com uma estaca no quintal: uma linha leve, como a arranhadura de uma unha na tinta fresca. — Mostarda, sr. Tice? O professor Thrale refletia que, na época, estava francamente em voga ser um rapaz pobre, oriundo de uma cidadezinha fuliginosa, um jovem inteligente que conseguia ir — a frase, desta feita, implicava esperteza — para uma grande universidade e lá causar impressão. Tais pessoas progrediam rapidamente, não tendo nada a perder; como no caso presente, podiam muito bem escolher os novos aspectos da astronomia, desenvolvidos através das técnicas de radar da última guerra. Sentindo uma pontada, semelhante às de sua moléstia, Sefton Thrale recordou um jornal onde a precoce realização de Ted Tice havia sido apresentada, contra todas as probabilidades; ali, a obstinação não era desaprovada por empreendimentos aberrantes — estudos de radiação no Japão do pós-guerra e a intenção de passar o próximo inverno em Paris, trabalhando com um controvertido físico. Sefton Thrale disse para si mesmo que Ted Tice ainda iria parar na América: "É lá que ele irá parar" — a ambição do rapaz visualizada como um grande molinete, no qual as aptidões podiam ser enroladas, destra e proveitosamente. — As verduras são da nossa horta — disse a sra. Thrale. Por sobre o aipo guisado, Sefton Thrale permitiu-se uma certa aversão pelas roupas, cachos e sotaque de Ted Tice, bem como pela falha em seu olho. Como acontecia com a beleza de Caro, a futura ascendência de Tice não podia ser considerada garantida: era necessário algum indício quanto a ele vencer ou fracassar — sendo ambas as possibilidades manifestamente acentuadas nele. Mesmo que ele terminasse se saindo bem em tudo, era difícil imaginá-lo adequadamente ilustre na velhice, como o próprio professor. Era difícil prever que alguém que tinha um nome como Tice chegasse a ganhar importância ou que um olho marcado pudesse significar uma distinção. Em verdade, Edmund Tice se suicidaria, antes de atingir o ápice de suas realizações. Isso, no entanto, só aconteceria em uma cidade do norte e ainda faltavam muitos anos. O trabalho importante e pessoal de Sefton Thrale havia sido cumprido na juventude, antes da Grande Guerra. Mais tarde, ele se tornara uma figura pública, ao escrever um pequeno e lúcido livro que preenchia ou pretendia preencher uma falha ou lacuna. Enquanto discorria sobre o futuro, ele permanecia ereto, com o pé imobilizado no guarda-fogo da lareira e a mão no bolso. Havia feito isto por tanto tempo e tão publicamente, que era reconhecido à primeira vista, por pessoas de todos os tipos, nos jornais domingueiros — "Ainda forte, eh, não se pode negar!" O velhote pesadão, vestindo um paletó de risca de giz. O paletó — puxado para baixo de um lado, pela mão enfiada no bolso, segurando um presumível cachimbo —'- dava o efeito de uma casa de ripas de madeira inclinada. Sefton Thrale usava uma linguagem antiquada: "A Lombard Street por uma laranja doce", "Dar volta à China para chegar a Charing Cross", "A Velha Senhora" — exatamente — "da Threadneedle Street". Eram frases fora da moda já antes de sua época, mas que ele cultivava e continuava utilizando embora estivessem em desuso. Ainda falava da Turquia como "o doente da Europa", embora todo o continente fosse uma verdadeira enfermaria de baixas, há muito tempo. Suas simpatias ficavam com as distâncias manobráveis do passado, de preferência ao alcance extravagante do futuro. 0 futuro havia sido algo sobre o que falar, com um pé bem em segurança no guarda-fogo da lareira. Para os jovens, era fácil farejar e condenar isso. Menos fácil era condoer-se do que havia nisso de humano, quanto mais de lamentável. No geral, era permitido ao professor Thrale arengar, como agora, em rápidas orações que não supunham nenhuma discordância. No entanto, se desafiado, ele perdia a segura pressão no cachimbo e no futuro. Então se elevava dele uma nuvem de confusa indignação, como a poeira de um livro velho cujas capas são batidas uma contra a outra ao ser limpo. Em assuntos particulares, ele não havia sido tão inteligente e dissipara a fortuna da esposa, além do próprio potencial, em ingênuos investimentos. O grau de cavaleiro, agora bemvindo, fora muito adiado. Entretanto, seu nome era conhecido e pesava nos negócios públicos e políticos, como no caso da localização de um telescópio. Ted Tice aceitou a mostarda. Acontece que estivera de folga nas duas semanas anteriores, caminhando pelo West Country. 1 1 Parte da Inglaterra a oeste da ilha de Wight, estendendo-se desta à foz do rio Severn. (N. da T.) Além do mais, ele tinha interesse em monumentos pré-históricos e passara o solstício em uma escavação perto de Avebury Circle. Não era difícil imaginar pedras grandiosas como companheiros seus. A sra. Thrale comentou que, em Peverel, por vezes recebiam vibrações da base de mísseis, perto de Stonehenge. Embora lançados consideravelmente distante do monumento, os foguetes sempre constituíam certo perigo local. Uma janela se estilhaçara em um quarto para hóspedes, certa vez, felizmente não machucando ninguém. — Ah, sim! — disse Sefton Thrale. — No entanto, Paul Ivory é uma pessoa de sorte. Tirava o hóspede desconhecido de baixo dos cacos de vidro e o elogiava, a fim de excluir Ted Tice; e, com tal necessidade de impressionar, oferecia a vantagem a Tice. —Por falar nisso, alguma notícia de Paul? Alguma notícia dele? Ted Tice já percebera que os homens sempre esperavam que ele desse uma opinião favorável. E que, se falhava nisso, eles poderiam mostrar-se condescendentes. Amenizando o leve delito do professor, as três mulheres testemunharam prontamente uma ausência de notícias. E Ted Tice compreendeu que a indulgência das mulheres tinha sido indispensável à fama de Sefton Thrale. Como era esperado, a sra. Thrale fez saber que Paul Ivory era seu afilhado e que logo chegaria para ficar. Ted talvez tivesse ouvido falar nas peças de Paul Ivory, em produções universitárias; não, não ouvira. Bem, de qualquer modo, ele era um jovem promissor, que em breve teria um trabalho seu representado em palcos londrinos. — Paul possui todas as qualidades — disse Sefton Thrale, e poderia estar fazendo alguma comparação. — Ele é aparentado com o poeta? — Em realidade, o filho. Ted Tice dificilmente saberia da sutil perturbação gerada por sua pergunta — sendo o amor aos poetas georgianos o remanescente do melhor eu de Sefton Thrale, que, por seu turno, se originava num período anterior, como seu melhor trabalho. Ele os apresentaria, aqueles esquecidos e menosprezados poetas de sua juventude, através de um leal calculismo — a pungente citação, o entrevistador perguntando: "Muito bem, quem disse isso?", e a réplica de Thrale: "Um maravilhoso poeta, que faleceu na época em que você nascia, meu jovem" (o professor mostrando sua benignidade e a experiência em todos os truques em público); depois a identificação — Bridges, Drinkwater, Shanks ou Humbert Wolfe; Thomas Sturge Moore, até mesmo Rupert Brooke, nos dias em que se encolerizava. Ou Rex Ivory. — Rex Ivory não foi um grande poeta — comentou a sra. Thrale —, mas foi um poeta verdadeiro. — Ela achava falsa a idéia de que os cientistas não tinham gosto para a literatura: — Conheci muitos exemplos que provam o contrário. Ted sorriu. — Pensei que nos fosse permitido sermos musicais. Por um momento, os olhos de Caroline Bell foram tão gentis como os de sua irmã. — Costuma-se dizer, também, que eles são taciturnos. —Talvez me expresse com menos clareza, quando ficar mais velho. Charmian Thrale apontou para uma fotografia acima do aparador. Três rapazes em um jardim, dois sentados em poltronas de vime e um de pé, com as mãos erguidas e afastadas. A figura ereta, de camisa aberta e calças brancas, declamava para os outros, estes convencionalmente vestidos em suas roupas de 1913. As cabeças de cabelos claros eram elmos, eram coroas ou halos. Um nimbo maior contornava o jardim, onde árvores se conglomeravam acima de esporei-ras, com o gramado metodicamente raiado por ondulações. Parecia ser quase crepúsculo. E os mágicos jovens sobre a relva estavam condenados pela guerra iminente, inclusive os sobreviventes. —Como um entardecer em um mundo inocente — disse Charmian Thrale. O remanescente do Sefton Thrale sentado naquela fotografia inocente teria gostado de fazer amizade com Edmund Tice, por causa de sua improvável pergunta. As mulheres sabiam disso, novamente, e suspiraram em pensamento, ante a breve resposta do velho: "Em realidade, o filho". O professor passou a elaborar sua preferência, alinhando habilidosamente garfo e faca. —Paul Ivory já conquistou um certo lugar na literatura. E está subindo tão depressa, que não se pode prever até onde chegará. Ted Tice sorriu, de maneira alguma indefeso. — Como o princípio de indeterminação de Heisenberg. É impossível medir-se velocidade e posição simultaneamente. Caroline Bell parecia poder dar risadinhas sufocadas, como as outras jovens. — E está quase noivo — o professor estava decidido a prevalecer — da filha de nosso vizinho, o do castelo. Ted perguntou-se o que poderia significar "quase noivo" e viu Caro sorrir, com o mesmíssimo pensamento. Qualquer que fosse a heresia existente naquela casa, provinha dos subalternos de categoria. Ele recordou o castelo, com suas paredes cinzentas desencorajando os próprios liquens. Lendo seus pensamentos, o professor disse: — Hoje em dia, para casar com a filha de um lorde, um homem tem que ser corajoso. Com todos vocês, radicais, andando por aí. Aquilo era dirigido a Ted e Caro, uma vez que as maneiras tranqüilas de Grace, empilhando os pratos, a isentavam. No entanto, foi ela quem ergueu os olhos e disse: — Talvez ele a ame. — Absolutamente correto. Os jovens deveriam seguir suas tendências. Por que não? A própria Caro, aqui, se casaria com um mecânico, se tivesse tendência para tanto. Todos olharam para Caro. Ela respondeu: — Não sinto tendências mecânicas. Sefton Thrale sempre se sentia pior quando havia hilaridade. — É verdade — acrescentou a moça. — Além de uma perfeita ignorante em mecânica, não tenho a menor afinidade com o assunto. Nem com a ciência. — Pois deve sua existência à astronomia, minha jovem. Meu jovem, minha jovem: eles, contudo, não podiam dizer meu velho, minha velha. O professor se preparava para explicar, quando Caro perguntou: — Está se referindo ao trânsito de Vénus? Não era a primeira vez que ela estragava as coisas. O professor continuou, como se ela não as houvesse estragado e não tivesse falado: — Por que James Cook se fez à vela no H. M. S. En-deavour, rumo à Austrália não descoberta, senão a fim de observar o planeta Vénus no Taiti, durante a rota, quando este cruzou a face do Sol a 3 de junho de 1769, e então determinar a distância da Terra ao Sol? Estava ensinando uma lição a eles. Novamente, olharam todos para Caro, designada como uma filha de Vénus. — Os cálculos estavam irremediavelmente incorretos — disse Tice. Virou-se para a moça: — Em geral, é o que acontece com os cálculos sobre Vénus. Sefton Thrale declarou: — Houve distorções no disco de Vénus. Um fenômeno de irradiação no trânsito. — Era como se ele defendesse sua própria expedição, sua própria experiência. — Damos a isso o nome de black drop1. 1 Fenômeno que pode ser observado durante um trânsito de Vénus. O planeta parece arrastar uma faixa negra, ao se deslocar pela frente do Sol. Essa faixa desaparece quando Vénus já está bem no disco do Sol. Isso impede uma precisão de cálculo. (N. da T.) A moça admirou-se. — Tantos anos de preparativos! E então, de uma hora para outra, tudo acabado. . . O rapaz explicou que havia estágios. Disse: — Existem os contatos e a culminação. Ambos enrubesceram pelo universo. — Está falando de eclipse — disse o professor Thrale. — Vénus não pode tapar o Sol. Sacudiu migalhas de seu punho. Na presença das duas virgens, não se podia relatar como, no Taiti, naquele ardente dia de junho de 1769, Vénus havia se ocupado de outros assuntos. Enquanto seus oficiais se concentravam nos telescópios com James Short, a tripulação do Endeavour invadiu as lojas de Forte Vénus para roubar uma grande quantidade de pregos de ferro — com os quais compraram os transitórios favores das taitianas e a infecção permanente de uma doença venérea que nenhum dos castigos subseqüentes conseguiu curar. Ted Tice disse: — Outro astrônomo cruzou o mundo para ver aquele mesmo trânsito e fracassou. — O tom privado com que os homens falam, com naturalidade, sobre o que os impulsiona. Tice podia não ensinar uma lição, mas pagaria tributo. — Um francês viajou para a índia, anos antes, a fim de observar um trânsito anterior, mas guerras e imprevistos o atrasaram em seu trajeto. E já que perdera aquela oportunidade inédita, aguardou oito anos no Oriente, à espera do próximo trânsito, o de 1769. Chegado o dia, a visibilidade era tão reduzida, que nada pôde ser visto. Não haveria outro trânsito em um século. Ele contava isso a, e para, Caroline Bell. Naquele momento, ambos poderiam ter sido os mais velhos à mesa, elegíacos. Ela comentou: — Anos por Vénus! — A história dele contém tanta nobreza, que dificilmente se poderia considerá-la uma derrota. Ted Tice estava homenageando a confiança, não o fracasso. O professor Thrale já estava farto disso. — E o pobre-diabo retornou à França, segundo me consta, e descobriu que fora declarado morto durante sua ausência e que seus bens haviam sido distribuídos. Se aquilo não era um fracasso, nada mais o seria. — Como se chamava ele? — perguntou a moça a Ted Tice. — Legentil. Guillaume Legentil. A sra. Thrale tinha feito creme de leite e ovos. Uma criada irlandesa, em colorida vestimenta, trouxe os pratos em uma bandeja. A sra. Thrale fora criada acreditando, sob pena de perder a dignidade, que suas costas jamais deviam tocar a cadeira: jamais, jamais. Isso lhe emprestava um ar de pertinácia, dando ainda a impressão de que encarava os outros além do que seria natural. Fora ela quem pensara no balneário, em relação à qualidade de Ted Tice — o espelho salitrado pendurado entre as etiquetas para espreguiçadeiras e as chaves dos vestiários, tudo vibrando com uma cálida cobertura de pés cheios de areia. Por outro lado, havia as noites, dele, passadas entre pedras primitivas. O próprio ego introvertido de Charmian Thrale, agora inteiramente isento de ânsias, acalentava apenas alguns segredos puros — certa vez retirara de uma panela fervente uma batata que apresentava um broto nascendo. Também voltara atrás, quando a caminho para uma imperiosa entrevista, a fim de ler uma linha de Meredith. Escolhera não ter muitos pensamentos que seu marido pudesse adivinhar, temendo vir a desprezá-lo. Ouvir havia sido um grande hábito em sua vida: ela ouvia atentamente, e como as pessoas estão acostumadas a ser apenas meio ouvidas, sua atenção as perturbava, deixava-as perceber a impropriedade do que diziam. Dessa forma, Charmian tinha um efeito calmante sobre os que a cercavam, abrandando com suavidade o fluxo mundano da fala impensada. Embora oferecesse poucas opiniões, seus pontos de vista eram considerados, ao contrário das pessoas que, constantemente opinando, nada guardam de reserva. Os pescoços curvados das moças ficaram intoleravelmente expostos enquanto elas comiam colheradas do doce, quase se podendo sentirlhe o eixo. A empertigada sra. Thrale nunca se dobrava daquela maneira, pelo menos não o fazia naquele momento. O rapaz e as moças trocaram comentários sobre a estação atrasada — "o verão passado", como se ele já estivesse morto. Eram como viajantes manejando uma língua estranha, falando em infinitivos. Tudo tinha o desafio e a promessa de significado. Mais tarde, haveria mais e mais recordações, menos e menos dignas de serem recordadas. Mais tarde, seria necessário que uma bomba explodisse, a fim de deixar espaço mental para uma cena como a presente. A experiência acumulava-se em torno do aposento, um vagalhão prestes a arrebentar. Enquanto as moças retiravam os pratos da mesa, o professor levou o rapaz até a janela. — Deixe-me mostrar-lhe uma coisa — disse. Sua mão seca e decidida esfregou a janela, mas apenas para aumentar o borrão na vidraça embaçada, e ele se voltou, taciturno: — Bem, não se pode ver agora. Não explicou que nova lição seria ensinada naquele quadro-negro. Ted Tice sabia que era a estrada por onde tinha vindo. 3 No ano anterior, quando estava na casa dos vinte, Christian Thrale tivera uma inesperada noite de folga, em seu trabalho de fim de semana, em uma repartição do governo. Em retrospecto, aquela parecia ter sido uma noite livre também de si mesmo. Não era comum ele ir sozinho a um concerto ou algo mais de natureza cultural. Por conta própria, o indivíduo fica à mercê de suas reações. Se acompanhado, no entanto, ele permanece controlado, emite conceitos peremptórios e impõe exigências hipotéticas. Pode também dar uma opinião pessoal, raramente de todo favorável, na volta para casa. No tocante a divertir-se, ele desconfiava de tudo o que aliviasse seus sentimentos. Naquela noite em particular, além disso, estava fácil demais assistir ao concerto. De qualquer modo, passando sob a chuva ligeira, ele viu os cartazes e reservou uma cadeira na coxia. Mal ocupara o seu lugar, precisou levantar-se de novo, a fim de dar passagem a duas mulheres para a mesma fila. Recolheu o impermeável dobrado, o chapéu e o guarda-chuva úmido que havia deixado no assento vazio ao lado. A mulher mais nova, tendo entrado depois da mais velha, ocupou aquela vaga. Ele percebera sua boa aparência imediatamente, assim que ela o fitou, dizendo: "Com licença". Entretanto, ao terminar a movimentação dos casacos que eram despidos e a retirada de luvas recalcitrantes, Christian perdeu o interesse. A coisa seguinte que lhe chamou a atenção foi a outra mulher. A mulher mais velha era miúda, morena e usava uma pequena circunferência de feltro na cabeça, marginada de fita azul-marinho. Em torno de seus ombros enrolava-se uma espécie de trouxa de pequenas peles ásperas — a boca de uma das peles, em forma de pegador e com dentes afilados, prendia uma pata da outra. Havia em seu colo uma bolsa de mão abarrotada, que ela enxugava com um papel roçagante. Pelos modos das duas, juntas, era evidente que a mais velha estava associada à mais nova, de algum modo. Mesmo por suposição, mentalmente, era difícil resumir o relacionamento entre a jovem e a mulher. Até que, quando os músicos começaram a aparecer e mais recém-chegados foram enchendo as filas de assentos, a frase acudiu a ele: ela está em seu poder. A mulher mais velha fora induzida a sair, no desespero de um domingo interminável. Que ela nada esperava da música, era aparente pela maneira como se virava, para um e outro lado, expressando sua atitude discordante. — Como as pessoas se entulham de roupas! É o que lhe digo, basta dar uma espiada naquela ali. — Eles bem que já podiam ter endireitado um pouco este lugar. Não acha? Pretendem usar a guerra, para sempre, como desculpa. — A jovem permanecia acomodada em seu lugar, uma evasão que não lhe era permitido levar a cabo. — Eu diria que você não está muito animadora. Primeiro, diz que estou deprimida; depois, não tem uma só palavra para dizer! Tendo descoberto que a associação entre ambas era fundada no medo, ele ainda se perguntava se as duas seriam primas, talvez, ou tia e sobrinha. Quando a mulher menor se voltou para o seu lado, a curvatura alta e ampla de suas faces brilhantes recordou a da jovem. — Não sopra a menor brisa por aqui. — Ela bateu com as peles sobre o peito e o focinho saliente da raposa subiu e desceu. — É assim que a gente pega coisas. Lembre-me de fazer um gargarejo, quando voltarmos para casa. As luzes baixaram. Durante a primeira parte do concerto, Christian percebia a mulher fremindo em seu lugar, como uma ebulição em fogo baixo. A jovem entre eles permanecia impassível, com as mãos levemente entrelaçadas, os joelhos esguios unidos por sob a saia escura. No intervalo, a mulherzinha murmurou algo para a jovem, levantou-se e foi ao toalete das senhoras. Ela mal havia saído da fila, quando Christian falou. Jamais fizera algo semelhante na vida, mas sabia que não havia tempo a perder. Comentaram qualquer disparate sobre Sibelius e, quando a dama de companhia retornou, ele já escrevera um número de telefone e sugerira sábado. Tudo isso embora lhe pudesse parecer extraordinário, agora assumia um aspecto inevitável e inteiramente correto. Ele levantou-se e Grace disse: _ Dora, este é o sr. Thrale. Ele viu o rosto de Dora dardejar ao perceber que os dois tinham se antecipado a ela, e com um impulso de estragar as coisas. Dora viu um homem de cabelos cor de areia, bastante alto, que, facilmente, poderia transformar-se' em desafio. Christian havia descoberto que as duas eram meias irmãs e provinham da Austrália. Quando o concerto terminou, colocou-as em um táxi. Durante aquela semana, ele não disse para si mesmo: Eu devo terme mostrado atoleimado, ainda que'atoleimado fosse uma de suas palavras. Christian sabia que algo fora do comum havia se iniciado. No entanto, gostaria de saber se aquilo sobreviveria a uma reunião com Grace, cuja atração poderia perfeitamente diminuir, quando no endereço de uma residência alugada. Então, talvez ele enfrentasse o processo de cair em si. Para se fazer justiça, Christian Thrale mais temia do que esperava por isso. No sábado, dirigiu-se à W 11 de táxi, para descobrir a verdade. A escada estava pintada de fresco e tinha um tapete escarlate. Havia um jarro de vidro com flores amarelas, em um patamar. Era algo que não lhe ocorrera: ele mesmo podia tê-las trazido. Ao subir, Christian sentiu-se envergonhado por uma sensação de aventura que delineava a reduzida escala de suas aventuras. Após o impetuoso início, ele as desorientaria, tornando-se sensato e cauteloso. Em um espelho de moldura dourada, perto da porta, surpreendeu-se consigo mesmo, ao ver-se ainda jovem. A beleza de Grace era uma justificativa. Christian confiara nisso e não se viu logrado. Ela estava calma, como antes, e sorriu. Havia novamente as flores douradas em uma mesa. Ele se sentou em um canapé que parecia fazer parte do mobiliário alugado. Não houvera qualquer dificuldade para encontrar o endereço, e ele conhecia bem a área, realmente, porque certa vez já tivera um dentista nas proximidades. Uma chaleira sibilando em uma khchenette foi rapidamente amortecida por, deduziu ele, Dora. Caro trouxe a bandeja. Minha irmã. Foi arranjado espaço para xícaras e pires. Christian tornou a sentar-se, tendo Caro do lado oposto, e Grace inclinou-se entre eles: É daquele bem forte, da Fortnum's. Com uma faca de prata, ela cortou um quadrante de bolo. Uma pequena ruga de concentração entre seus olhos mais parecia o supercílio entalhado de um gatinho. No sofá, Christian era um homem à margem de um rio, não só olhando para a outra margem, como cônscio de uma corrente na qual devia mergulhar. Viu Grace, brilhando e murmurante, sobre pedras da tarde. Ela se reclinou a meu lado, junto às águas tranqüilas. Do lado oposto, as águas tranqüilas de Caro eram profundas. Infelizmente, Dora tinha que ir até a Wigmore Street para apanhar seus óculos novos. Graças a Deus. Era claro que a saída de Dora, quando das oportunidades das jovens, podia carecer de necessidade, porém nunca de tato. Como na sala do concerto, evidentemente precisavam aproveitar o máximo de tempo, antes que ela retornasse. A situação tinha que ser conduzida a um grau de onde Dora não pudesse revertê-la. Aliviado pela ausência dela, Christian ficou à vontade, tomou uma segunda xícara de chá e sentiu-se satisfeito. Na insipidez mobiliada, o ar frio penetrou por uma janela, e sentia-se o odor de sais de banho ou colônia. Contra a luz, a cabeça e ombros de Caro eram notáveis. Por uma ou duas vezes ele a fez rir. Entretanto, ao abaixar-se para os biscoitos, sentiu nele os olhos dela, como se, por exemplo, Caro adivinhasse a sensação de aventura na escada. Christian achou aquelas mulheres singularmente seguras de si, em vista de sua situação. Mal pareciam conscientes de serem australianas em um apartamento de aluguel mobiliado. Ele gostaria que elas se mostrassem um pouco mais impressionadas por sua vinda, mas, em vez disso, viu-se conformado ao que poderiam ser seus padrões e esperando que as moças não percebessem o esforço efetuado. A rapidez retornou a ele, como um negligenciado talento requerido em uma emergência: como se subisse a um palanque em trepidação e pigarreasse, limpando a garganta para cantar. A sala em si não parecia intimidar-se diante dele — não devido a alguma desordem, mas à sua própria naturalidade. Uma sala onde houvesse expectativa transmitiria o fato — por uma tensão de almofadas volumosas e revistas colocadas, uma ausência de objetos inconvenientes embolados e fora de vista; pelo suspense definhando lentamente nas cortinas. Aquela sala estava absolutamente isenta de tal ansiedade. No estofamento, a penugem de costume permanecia impassível. Ali, nenhum tributo de preparativos lhe fora prestado, excetuando-se talvez as flores, que eram frescas e que ele próprio deveria ter trazido, se houvesse pensado nisso. Era uma sala de qualidade, que Grace disse já ter conhecido dias melhores. ____ Não posso imaginar um dia melhor do que este — disse Christian. Uns poucos objetos e os livros, evidentemente delas. Havia uma cabeça de mulher deformada pintada em madeira. — Caro a trouxe de Sevilha. — É um anjo. Caro passara três meses na Espanha, para treinar o idioma. Com tal finalidade, conseguira um emprego de babá com uma família inglesa que, depois, a levara à França e Itália. Agora trabalhava — servia, como afirmou — em uma livraria, enquanto estudava para o concurso a fim de ingressar no serviço público. Ainda pior acontecia a Grace, empregada no Departamento de Reclamações da Harrods. Não poderia haver saída para tais atividades senão no casamento. Ele estava a par do concurso de Caro e sabia que ela jamais seria aprovada. Só recentemente fora aberto às mulheres, e Christian nunca ouvira dizer que alguma tivesse passado nos exames. — É rígido — falou. Aquilo nem mesmo oferecia perspectivas, começava-se no nível mais baixo, era um meio de conseguirem elementos que falassem idiomas e sem oportunidades de progresso na carreira. — Uma exploração, se preferem — concluiu. — Eu não prefiro — disse Caro, pegando um biscoito de creme. — "Peek Frean's" — leu, antes de morder o letreiro ao meio. — Devo limitar-me a dizer. . . — recomeçou ele, e parou. Ignorava de onde lhe vinham tais expressões: "limitar-me , "absterme", "recuso-me a comentar sobre" — como se tivesse colocado a si próprio em prisão domiciliar. Talvez tosse por causa de seu pai. Perguntou com quem ela teria de tratar, onde deveria apresentar-se. E assentiu, com a segurança de alguém que conhece, ante os funcionários e departamentos das respostas dela — como um grego assentiria sabiamente à menção de Hesíodo ou Píndaro, mesmo que jamais houvesse lido uma linha deles. A situação de Grace era ainda mais contundente, uma inatividade temporária. O que ela poderia aprender em um Departamento de Reclamações? — Aprendi que uma resposta suave não elimina o ódio — disse Grace Bell. As duas começaram a rir, com os corpos ligeiramente inclinados um para o outro, mesmo frente à mesa do chá. — Londres é nossa conquista — disse Caro a ele. — Nossa carreira para o futuro. — Era como se ela pudesse ler através da testa dele, se esta fosse de vidro. — Termos chegado aqui é uma realização, estarmos aqui é uma ocupação. Como um animal, cujo esconderijo tivesse sido notado, ele se desviou para uma nova cobertura. — É muito sensato não fazerem planos a longo prazo. Falariam sobre ele mais tarde, com Caro fazendo o julgamento. Christian ignorava se Grace aderiria ou não ao veredicto. Caro poderia mordê-lo pelo meio, como a um biscoito. Perguntou-se como ela se mostraria ao lado de Dora, e por um momento sentiu a curiosidade de ver as duas juntas. Ao se levantar, trazer água quente ou fechar uma janela, Caro movia-se com importância, como se a existência não fosse trivial. Quando as duas eram pequeninas, seus pais haviam morrido afogado, quando uma barca de transporte adernou. Pelo resto da vida, Christian ouviria falar em "um acidente de barco", ao aludirem àquilo. — Quer dizer então — disse ele, procurando mostrar independência sobre seus futuros — que pretendem tentar a vida aqui e voltar para. . . onde mesmo. . . Sydney? Caro riu. — A vida não é assim. Como se ela soubesse, e ele não. O prato em que estavam os biscoitos era velho, lascado, italiano, e tinha um letreiro rústico na borda. Caro o trouxera de Palermo. — Posso? Assim dizendo, Christian pegou o prato e leu em voz alta, girandoo para decifrar. — "Chi d'invidia campa, disperato muore." Quem vive — acertei? — na inveja morre no desespero. Recolocou o prato na mesa. O anjo tinha sido gracioso; o prato possuía arestas mais cortantes. Christian estava muito feliz, mas dava tudo no mesmo. Ele, que costumava recear ver-se em condições obscuras, em um monocromo, no qual suas cores talvez não fossem fixas. Diante das presentes circunstâncias — o aposento alugado com mobília, o acontecimento brutal de Sydney, o balcão na Harrods e o concurso já praticamente fracassado —, devia ser esse o caso, sem sombra de dúvida. Entretanto, não era assim, de modo algum. Aquelas mulheres forneciam-lhe algo novo — uma clara percepção, não lastrada de suspeita. A distinção delas não se devia apenas à beleza, à atitude de uma para com a outra, à sua gritante necessidade de uma salvação à qual não faziam nenhum apelo, mas sim a uma profunda candura, repleta de humor, a que — ele não conseguia imaginar de outra maneira — elas desejavam sacrificarse. Christian estava feliz. Grace fizera isso por ele. Ela fará você muito feliz. O grau de boa fé requerido dele importava um brando abandono, mas Christian não queria estragar aquela tarde. Suas oportunidades na vida pareciam fundir-se às cores dos vestidos das jovens, às camadas de cortina nas janelas, a um anjo pintado. Até mesmo ao abafador de chá de croché laranja, esfiapando devido ao uso, o que dizia tudo sobre o senhorio. Viradas para ele, estavam as duas figuras esguias na luz. Christian gostaria de ter pensado em Sargent, porém temia algo mais disruptivo, como Vermeer. Houve intervalos em que sentiu que ele é que precisava de salvação, que Grace bem poderia fazer algo mais que apenas começar a andar com ele e que Caro passaria no concurso, em primeiro lugar. No entanto, era difícil manter a sanidade: a presunção tremeluzia como febre. Agora havia algo mais com os três naquela sala: algum evento ou, pelo menos, um momento. Fosse o que fosse, o excitamento implícito impunha calma e encanto. Passou rapidamente. Christian compreendeu que Grace era o máximo que poderia conseguir; ela já constituía um início, embora objeto da própria e inesperada escolha dele. Caro situava-se acima de suas capacidades. Christian se sentia como um ministro de gabinete, face a face com uma decisão capital. Da beira do sofá, renunciou a quaisquer possibilidades em relação a Caro. Havia entrega nisso, bem como um fluxo de emoção propiciatória, dirigido a Grace. E agora que Caro se revelava demais para ele, Christian quase a detestou. Grace falava sobre um cliente que voltara à loja com um canário morto em uma caixa, querendo ser indenizado. Christian teria que se explicar em breve. Um terceiro encontro seria uma espécie de compromisso, atado a uma cadeia de novas circunstâncias. — E ele o recebeu de volta, do Departamento de Taxidermia, com uma conta de cinco guinéus! Christian riu alto, aliviado. Podia ouvir o próprio riso, mostrandolhe o que era capaz de. fazer, quando surgia a oportunidade. Em seu riso era como se já tomasse Grace nos braços. Ela desceu a escada, a fim de levá-lo até a porta. Agora à vista, ao longo da rua, Dora desempenhou sua costumeira função de encaminhar os assuntos a uma pronta decisão. Ele convidou Grace para jantar durante a semana e ela se comprometeu para a quartafeira. Repetiram hora e lugar, como votos, salvos para sempre dos saltos aguçados de Dora na calçada. Christian não sentia a menor vontade de ver Dora, mas esperou para despedir-se, agindo assim em consideração a Grace. O cabelo de Dora parecia preso em uma rede, sob uma boina, como palha debaixo de arame. Ela deixou a chave cair e bateu com a cabeça na de Christian, ao se abaixarem ambos para recolhê-la. Isso provocou falsas e breves exclamações de exageradas desculpas. Christian conhecia o tipo. Ela era uma daquelas pessoas que se encolhem com a gente, na mesma divisão de uma porta giratória, a pretexto de causar menos problemas. Christian já a tinha esquecido quando chegou em casa. Anos se passariam, antes que tornasse a considerá-la seriamente ou que ela se tornasse objeto de outra inspeção em nível de gabinete. Muito antes da quarta-feira, ele começou a ansiar por Grace, e, chegada a noite, mostrou-se mais encantador com ela do que jamais o havia sido com outra pessoa em toda a sua vida. 4 — Será que o perdemos? Ted Tice observava a estrada rural, à procura do ônibus. Caroline Bell espiava em torno, para as árvores à margem da estrada e os jardins emaranhados, aos quais nenhum australiano daria valor. Era difícil perceber-se os sinais da tempestade do mês anterior: por mais que se olhasse, a terra insistia em que nada havia de errado. Tice ficou desajeitado; naquele dia, sua personalidade pendia dele, como roupas demasiado frouxas e grandes. Sua pergunta não a despertou. Pouco tinham a dizer, debaixo das árvores frondosas. Quando o ônibus rolou pesadamente e embarcaram é que começaram a falar, o diálogo iniciado de comum acordo com o antigo e barulhento motor, com o estremecimento metálico da lataria lateral e o vozerio alto dos passageiros. O ônibus os circunscrevia, como em uma obrigação social. Talvez fosse a partida o que lhes afrouxara as línguas, um lembrete, enquanto desciam pelo vale do rio Test. Embora reclinada para trás, com o braço estendido para apoiar-se no assento fronteiro, Caro não demonstrava nenhum desejo de dominar a situação. Baixando os olhos, Ted Tice via seu perfil de pálpebra e lábio, descia para o ombro e o seio azuis, para o braço nu com a mão aferrada ao metal enferrujado do encosto de um banco. Seu corpo tinha um contorno mais distinto quando ela estava afastada da irmã. Já se passara uma hora daquele dia em que ficaram juntos. Ted Tice se alegrava a cada quilômetro adicional que, pelo menos, afinal, teria que ser percorrido de volta. Cada casa de fazenda, vermelha e visível, cada igreja ou curva brusca, funcionavam como uma garantia do tempo passado com ela. — Está pensando em como tudo isto é bucólico, não? — perguntou ele. Aludia ao floral verão inglês, mas podia ser compreendido de outro modo. Em verdade, não era ousado o bastante para tocá-la, mas fez um gesto em direção à cabeça dela. — Em que está pensando? Caro estivera olhando pela janela, e pousou nele o mesmo olhar de curiosidade geral e paisagística. Para ela, aquele homem não passava de uma presença de bisonha vivacidade, em um cardigã de fios torcidos. O ônibus rural cambaleou subitamente sobre uma estrada sem molejo. A moça refletiu que, nos romances, escreveriam que ele e ela eram jogados um contra o outro, e isso era impossível. Só podemos ser atirados um contra o outro se quisermos. Como com o estupro, dizem os homens. — Eu pensava que o verão fosse mais violento que bucólico. Aquele era o seu segundo verão do tipo norte, uma abundância que esmagava — como esmagadora era a certeza de que poderia ser desmantelado e remontado infinitamente: a natureza num estado de espírito impassível, prodigioso, absoluto. — O verão australiano é tórrido, não sobra uma folha sequer. Lá, a força está na falta, na escassez e na distância — acrescentou ela. Recordando distâncias de imemorial desolação, perguntou-se se estaria definindo a fragilidade. — Para cores assim, é preciso água. Não obstante, mesmo com água, na Austrália o pigmento talvez estivesse ausente. Era duvidoso que rosas ou azuis jazessem latentes no solo australiano, quanto mais o pleno prestígio do verde. Ela tornou a olhar pela janela, o rosto de frente como uma criança, e pensou que ali os próprios campos pareciam feitos para o prazer. No referente à multiplicação e subtração de estações, é claro que ela soubera, perfeita e antecipadamente, como as folhas caem, na Inglaterra outonal. No entanto, ainda estava despreparada para algo tão extremo como o outono — em sua vermelha destruição, mais como um ato do homem que de Deus. Deixaram para trás uma abadia flutuando em uma ondulação de árvores e passaram por uma cidade com fios elevados e pequenas, desencorajadoras lojas. — "Grandes esperanças" — disse Caro, que conseguia ler o cartaz do prédio distante do cinema. O ônibus parou, depois tornou a rodar pesadamente. A regularidade das ruas suburbanas havia sido cortada por uma autoestrada: a nova via abria-se em leque através de uma elevação, as casas espalhando-se como botões sobre um ventre volumoso. Em um campo devastado, uma montanha-russa emborcada era presa da ferrugem; um letreiro suspenso havia perdido o F inicial e, em resultado, podia-se ler apenas UNFAIR 1. Um celeiro acocorado à margem da estrada, como um caminhão ou cargueiro abandonado. O ônibus mergulhou para diante. Ao seu rugido, um carro pequeno recuou para dentro de uma sebe: um cão latira. — Antes, na Inglaterra, nunca se estava distante do campo — disse Ted. — Hoje, sempre se está perto de uma cidade. Começara a ver com olhos de antípoda, por causa de Caro. Depois passarei a viver em uma cidade para sempre. — Caroline Bell logo começaria a trabalhar no emprego público. — Terei de esperar, até ocupar o posto. Ele pensou: "Ela já está começando a usar o jargão". Caro, no entanto, acrescentou: 1 Em inglês, "Funfair" significa "parque de diversões". Sem o F inicial, o significado passa a ser "falso", "injusto", "desonesto". (N. da T.) — "Posto", "posto"! É como ser amarrada a um poste, uma estaca em um campo. Como um patíbulo numa encruzilhada. Sorriram da imagem enluarada da pendente Caro: Caro seria enforcada por isso. O que quer que dissessem importava a ele. Ao invés de formularem frases sobre cidades e escritórios, podiam ter perguntado: "O que será de nós?", ou: "Você acredita em Deus?" A jovem sentia a respiração de um homem em seu pescoço. Um rio desfilou salgueiros ao lado dela; apareceu uma pálida espira, certamente não mineral. O ônibus saltou e sacolejou, determinado a desalojá-los do assento. Estamos sendo jogados um contra o outro. Onde saltaram, portões de ferro forjado desdobraram-se para trás, como páginas escritas. Guardando essa caligrafia, havia um homem de cabelos brancos, sem um braço e com as fitas de antigas batalhas ao peito. — Chegaram bem a tempo. — Um aviso fornecia o horário de visitação, como se a grande casa mais além fosse um paciente em um hospital. O guarda acrescentou, às costas deles: — É melhor se apressarem. Eles riram e seguiram o conselho. Caro prosseguiu com uma canção de Ted Tice e cantarolou "do sul, do sul", em uma voz aguda, leve e não muito afinada, enquanto erguia ambas as mãos para dar sombra aos olhos. Pelo menos por um instante, aqueles dois foram apenas aquilo que aparentavam ao mundo — jovens, esperançosos, e talvez prestes a se tornarem namorados. — É evidente que nunca vimos nada disto. — Era o casarão onde Ted Tice já fora uma criança evacuada da blitz. — Nem mesmo parece a mesma casa. As resplandecentes cores interiores de seda, veludo e porcelana podiam ter sido uma prerrogativa das classes dirigentes. — Talvez tenhamos tomado o ônibus errado — disse Caro. Eles riam e olhavam pelas janelas. Era uma casa toda de pedra. No exterior, abaixo do amplo peitoril, havia uma massa de falso alaranjado: eram arbustos de budléia, de cor púrpura e repletos de abelhas; rosas, como seria de esperar, e ervilhas-de-cheiro. Os restos podados das ornamentadas cercas vivas iam sendo recolhidos por jardineiros — toda uma Inglaterra sendo aparada e atesourada, mais e mais curta. — O Rapto das sabinas significa algo para vocês? A guia levantava uma vareta branca. Falava em um inglês furtivo, embora ouvida pelo obediente grupo. Eles viram o quadro, imensamente italiano, rodopiante de membros ultrajados, os lábios vermelhos entreabertos no grito pintado. Caro e Ted riam, perto das janelas. O Rapto das sabinas nada significava para eles. Os excursionistas afastaram-se, arrastando os pés pelo chão. Havia uma barreira de proteção, formada por cordões torcidos, e um aviso: SOLICITA-SE AOS VISITANTES QUE TENHAM A BONDADE. As emoções foram despertadas por uma cascata de decoração pintada, despencando de imensa altura. Havia deuses, havia guirlandas fantásticas, urnas e balaustradas, além de enorme quantidade de ouro. Em semelhante aposento, era como se a casa estivesse dando guarida a alguma outra nação, demasiado suntuosa, e nisso mal se via deslealdade. — Estas paredes foram protegidas por tábuas pregadas durante a guerra. E são de Rubens. Os visitantes ficaram atentos, agora vendo menos as pinturas e mais a forração de madeira, interessante e engenhosa, que uma vez as ocultara. — O tema de batalha da parede oeste merece uma atenção especial, considerando-se que o Segundo Front foi planejado nesta sala. Sim, era verdade: os comandantes tinham estado ali, em traje de batalha, e o mapa da França pendera, por seu turno,, sobre as telas de enérgica roupagem e cintilante carnadura, protegidas pelas tábuas. Em verdade, Marte cobrira Venus. Um calvo general praticara tacadas de golfe no feltro do piso, enquanto um primeiroministro, para não ficar atrás, havia pintado um quadro. Os excursionistas não haviam percebido. Tinham pensado que a casa há muito ultrapassara sua fase séria. E queriam saber como a mesa estivera colocada, além de informes sobre Montgomery. — Sim, eles estiveram aqui. — A guia em cinza-claro abandonara sua vareta sobre uma mesa e mostrava com as mãos, à maneira de um artista: — Todos os arquitetos da invasão! Como se também a guerra fosse algum solene edifício. Ela havia tirado os óculos e, com uma pequena marca vermelha de cada lado do nariz, era uma ave delicadamente assinalada. Sentia-se feliz em ser agradável, através de sua importante informação — as tacadas do general, a colocação da paleta do estadista. Ficava também contente pela família, proprietária de tão grande bem. Os excursionistas afastaram-se, ao longo de outro cordel de proibição. Um aviso voltava a pedir ou solicitar delicadamente o que eles deveriam fazer ou não; prosseguia, anunciando que a biblioteca continha livros que iam a até três metros do teto (o qual, em si, representava a história — pastel, côncava e não muito decente — de Dejanira e Héracles). Bem mais adiante, o tapete era desenhado em cores pálidas, com reflexos. Sobre mesas polidas, havia fotografias nos ângulos, em molduras de prata e assinadas. De vez em quando, podia-se ver o R maiúsculo, após o nome. — Rainha Alexandra, princesa Pat. A multidão pegava os retratos, sem dúvida já todos peritos naquilo. As pessoas perambulavam entre cômodas e credencias, sem que ninguém tivesse coragem para impedi-las. Os mortos e executados, príncipes russos e prussianos, ao mais despertavam pena ou terror; de seus destinos privilegiados, todos unidos à magnificência, faziam parte as tiaras, diamantes e jarreteiras, os longos fios de pérolas. Um homem num traje de lã espinha de peixe, disse: —Esse é o hemofílico. As cabeças se viraram vivamente, mas logo assentiam, ante o padecimento do pequeno e malfadado czaréviche. — Reparem no grupo incomum das gerações. E o duque de Kent, pouco antes de ser morto por Cecil Beaton. A apreciação não escasseou. Com grande sensatez, pediram a uma mulher de vestido estampado para não tocar. — Não há dúvida, é exatamente a mesma casa — disse Ted Tice. Ao encontrarem a indicação SIGA, desceram a escada, juntos. Do exterior, a casa parecia estar sendo esculpida. Não havia armações, vigas, arquitraves ou andaimes de laboriosa construção imaginária. A videira virgem estendia-se até as janelas que flanqueavam a sala onde generais haviam mapeado a morte, enquanto enorme glicínia estrangulava colunas, em um pórtico silencioso. A casa se preparava para a moldagem, como para outra fase de vida. Ted Tice sentou-se no gramado com Caro. A jovem abraçou os joelhos e disse: — Os criadores de semelhante casa certamente deviam ser belos. — Provavelmente, a casa foi o máximo que puderam fazer, em termos de beleza. O homem arruivado estendeu-se de costas na relva, com os braços por baixo da cabeça, e recitou, em sua voz regional: "Que eles, Amargos e violentos homens, pudessem criar na pedra A suavidade por que todos ansiavam noite e dia". O vestido de Caro modelou uma rótula azul. — Acha que, atualmente, alguém em algum lugar está ansiando pela evidência ou criando-a? — Se houver alguém, será melhor que fique nas sombras ou penará no inferno. — No momento, a própria ânsia podia ser uma admissão de fracasso. — Beleza é palavra proibida em nossa época — disse Ted —, como o foi a palavra "sexo" para os vitorianos. Entretanto, sem o mesmo poder de reafirmar-se. Ele poderia estar ecoando Sefton Thrale: Vocês é que agüentarão as conseqüências. Ted Tice tornou a sentar-se no relvado, com Caro. Um silêncio pode cair facilmente entre aqueles que não se consideram um assunto. De qualquer modo, o ar estava impregnado dos sons bruscos e odores verdes das podas e coletas. Em seu próprio benefício, a Inglaterra estava sendo cortada até as raízes; é assim que se constrói o caráter. Em camisas cinza, os jardineiros se movimentavam para estancar o crescimento ou para mantê-lo nos limites. O verde caía, em todas as formas, e era recolhido em cestas. — Estão cortando a própria cor. — Caroline Bell inclinou-se para diante e sorriu, ao ver justificada sua longa crença. — Conhecemos o verde apenas pelos livros. 5 "O cinza inverno se foi, como um hóspede enfadonho, E, vede, em compensação, Setembro chega, com o vento do oeste, E a primavera em suas roupagens." Seria possível recitar-se esses versos na aula de declamação, mas dificilmente na de poesia inglesa. Era como se o poeta houvesse optado deliberadamente pelo partido derrotado, o da Austrália. Ele segurara a urtiga, mas uma urtiga segura continua urtiga, e, por outro lado, segurá-la é um ato antinatural. Naturais eram sebes formadas por arbustos, pilriteiros, cotovias, o tentilhão no galho do pomar. Nunca os vemos, mas acreditamos neles piamente. Como acreditaríamos, também, nas úmidas, transitórias e corretas estações da literatura inglesa e nos relvados de veludo esmeraldino ou nas flores que só poderiam ser cultivadas na Austrália quando a estiagem cede, e com adubo à flor do solo. A literatura, simplesmente, não tornou essas coisas verdadeiras. Ela colocou a Austrália em perpétua e flagrante violação da realidade. Menininhas cantam, monótonas: "Venham a Kew, no tempo dos lilases (não fica longe de Londres!)" Envolvendo-se em uma jornada de dezesseis mil quilômetros. Como castigo, poder-se-ia escrever cem vezes, depois das aulas: Auto-reverência, autoconhecimento, autocontrole Somente estes três levam a vida ao poder soberano. As menininhas sugavam as pontas metálicas das canetas e alisavam as tranças, preparando-se para o poder soberano. História era a ilustração dobrável e colorida da coroação, que havia sido pregada com tachinhas na parede da sala de aulas — a cena na abadia, com os nomes impressos embaixo. O duque de Connaught, o conde de Athlone, o esguio rei em arminho. Dora havia comprado uma caneca da coroação, na Woolworth's: Que Reinem por Muito Tempo. Aquilo era história, tudo na ponta da língua, com o Príncipe Negro e a Guerra das Rosas. Certa noite de verão, Grace e Caro haviam tido permissão de ficar acordadas até mais tarde, para ouvirem o crepitar da abdicação, através das ondas-curtas. Algo que a gente nunca esquecerá. A história da Austrália, dada apenas uma vez por semana, encaixava-se facilmente em um pequenino livro, de cor pardacenta, como as cenas que descrevia. Presidida em seu breve e prístino nascimento pelo capitão Cook (rendas douradas, peruca branca e de costas para Sir Joseph Banks, nas ilustrações), a história australiana rapidamente terminava em insucesso. Havia sido engolfada em sombrio fedor de prisioneiros sem nome, cuja única e aparente atividade fora a de construir, para o próprio encarceramento, as masmorras de pedra, agora monumentos vazios pelos quais as menininhas excursionavam, nas saídas domingueiras: Aquelas são as celas para confinamento solitário, aqui é onde eles ficavam. A história da Austrália definhava nas expedições de exploradores malfadados, jornadas sem revelação ou batalhas suportadas por homens descarnados, cujos retratos já apresentavam, antecipadamente, uma expressão gasta e infeliz — os olhos luzindo febrilmente em órbitas que já eram ossos. Aquela era a esmirrada crônica — parca, vergonhosa, sem inspiração: folheada rapidamente pelos professores, impacientes para voltarem à cerimônia na abadia. A carga de um desarrumado continente era pesada demais para qualquer criança alterá-la. Em si, a história prosseguia maravilhosa, espiritualizada, sem um olhar para baixo, dirigido à Austrália. Maior que a natureza, inevitável como a linguagem das orações matinais: O Deus, que és o criador da paz e amante da concórdia, em cuja sabedoria permanece a nossa vida eterna, cujo culto é a liberdade perfeita. Sentimentos de magnitude, aos quais somente um australiano presumido, audacioso ou de partida poderia aspirar. No hemisfério verdadeiro — e do norte — além do equador, que nada equilibrava, até mesmo a água da banheira escorria em direção oposta. Talvez até mesmo os discos que giravam no gramofone. Os australianos podiam somente pretender fazer parte de tudo aquilo e esperar que ninguém localizasse a verdade. De vez em quando — ou o tempo todo — havia a sensação de algo óbvio e supremo, à espera de ser anunciado. Como no dia em que meninos atormentavam um camponês com sua trouxa, no ramal ferroviário, e um homem de nenhures lhes disse: "É um sê umano". Quando o ardente dezembro assenta pé na floresta. . . Eles moravam em uma casa com torre e vista para as Heads. Tinham poltronas bordadas, pratos de cristal que tilintavam ao piparote de uma unha e um fragmento de carvalho da nau capitânia de Nelson, em uma pequenina caixa de veludo. Na escola, Caro se iniciava na Armada Espanhola e no triste coração de Ruth, quando a lancha chamada Ben-bow emborcou no posto de Sydney e afundou hediondamente. Grace ocupava uma cadeira azul no jardim de infância e existia ainda a srta. McLeod, que começara após a Grande Guerra e seria aposentada no Natal. A srta. McLeod tocava o órgão da escola para as orações da manhã. Hush'd was the evening hymn, For all the saint e, na temporada, Once in royal David's city. Todos eram C. of E. 1, ou coisa parecida, exceto Myfanwy Burns e a pequena Cohen. Religião era o menino na manjedoura, o rapaz com a funda, o casaco de várias cores. Caro e Grace sabiam que era drástico o que lhes sucedera. Podiam dizê-lo pelas lisonjeiras novas atenções que nada tinham a ver com uma perda persistente em que não se podia acreditar. Demoraram a desistir da esperança de uma miraculosa inversão, e, pela manhã, acordavam descrendo do tempo da morte. Teria sido difícil haver um tempo ou consolo adequados, mas aquele calor não parecia neutro. Teu pai jaz sob nove metros de água. Na casa do gramado inglês, a sra. Horniman declarou nada haver que ela não fizesse. Então, no dia de Natal, elas sufocaram de calor ao lado da árvore de celulóide dos Hornimans, enquanto um incêndio lavrava em terras incultas de Clontarf. Grace foi sorteada com uma moeda de três pence no bolo de Natal, mas a tarde foi ficando terrível. 1 Church of England: Igreja da Inglaterra. (N. da T.) As crianças foram proibidas de nadar, por causa do peru, e Athol Horniman atingiu Caro com uma bola de críquete. Dias mais tarde, Dora disse a elas: — Estamos em 1939. Dora as surpreendera como uma estranha. As duas mal a reconheceram, quando ela fizera parte de uma família de cinco pessoas. A Dora atual parecia nunca haver partilhado da vida, antes de Benbow. Havia apenas uma coisa — uma recordação, ainda não definida como tal, de Dora esganiçan-do-se atrás de uma porta fechada e papai dizendo: "Vejam que filha!" Era difícil imaginar, por exemplo, onde estaria Dora nas manhãs do grande passado, quando Grace e Caro eram levadas à cidade, para comprar uniformes. Papai as deixava — a mãe e as duas meninas — na importante névoa onde odores metálicos de cidade fluíam juntamente com os carros, esgueirando-se por entre estreitas fileiras de prédios. Um bonde, amarelo-desbotado, balançava-as em bancos de madeira, luzidios devido à passagem humana. Havia jovens empregadas de escritório, com cabelos ondulados e chapéus de marinheiro, de feltro ou palha; entretanto, sem a menor dúvida, não havia Dora. Os homens se sentavam nos compartimentos abertos, em cada extremidade do bonde, com seus grossos coletes desabotoados no calor, atirando pontas de cigarro e charuto no piso de ripas e inclinando-se para cuspir para fora. Quando chovia, uma tela de lona era descida para elas, presa a uma ripa. No compartimento interno, Grace permanecia entre os joelhos da mãe e Caro oscilava contra numerosas coxas de pé. Uma inteira e duas meias, como a passagem; e nada de Dora. A mãe de Dora havia morrido quando ela nascera, como acontecia nas histórias. Dora tinha vinte e um anos, mas desistira do Colégio de Professores. Quando desciam do bonde, dirigiam-se a vitrines brilhantes com luvas coloridas, bolsas e calçados sedosos, as galerias de compras iluminadas como arco-íris. As mulheres que passavam pela Pitt Street ou pela Castlereagh tinham rostos mais frescos e usavam chapéus enfeitados de violetas ou botões de rosa, com pequeninos véus. Não obstante, barriletes de cerveja eram transportados em carretas logo depois das melhores lojas, por parelhas ou grupos de clydesdales1: pescoços castanhos apertados em arreios de couro suado, os cascos enormes sob tufos de pêlos estriados. E o cocheiro sem colarinho, com o colete puído aberto, sem paletó, o rosto curtido e o bigode manchado, como um chumaço de crina. Esterco debaixo dos pés e um ofensivo cheiro de couve, caída e pisoteada por pôneis de antolhos, atrelados a carroças de verduras. Ao longo do passeio, carrinhos de mão com laranjas-de-umbigo, de Jaffa, ou maçãs da Tasmânia. Tudo isso, vil e rural, no elegante cruzamento das ruas Market e Castlereagh. Na mesma esquina, elas deparavam com os espectros temidos por Caro e Grace; então, era olhar e desviar os olhos de todos os que passavam ali. Aparições da terrível espécie dispersavam-se pela cidade e podiam ser esperadas em qualquer centro comercial dos subúrbios. Com infalível e atroz certeza, elas ficavam à espera dos passantes naquela particular e movimentada esquina que, por esse motivo, não parecia uma rua, em absoluto, mas um covil ou arena. Alguns dos espectros ficavam de pé, incluindo-se aqueles com apenas uma das pernas. Os pernetas acomodavam-se no chão, contra as vitrines. Os cegos mostravam um letreiro, para tal finalidade, pendurado ao pescoço, talvez acrescentando SUVLA ou GALÍPOLI. Igualmente, no letreiro INTOXICADO POR GÁS, pendurado ao lado de medalhas espetadas, podia aparecer a informação adicional, YPRES ou ARRAS. O letreiro também podia indicar MESOPOTÂMIA, tão naturalmente como se escreveria INFERNO. Eles ocupavam lugares separados, talvez tendo um cão por companhia, uma criança ou uma mulher esquelética, estendendo o ' Raça de cavalos pesados de tiro. (N. do E.) chapéu em silêncio. Era mais comum ficarem sozinhos. 1 Quem ou o que haviam sido individualmente, no entanto, afundava-se na mesmice encovada dos olhos. Nada mais poderia ser feito por eles, mas seu lado bem pior teria que ser suportado para todo o sempre. Havia imobilidade até mesmo nos olhos dos cegos, fechados só Deus sabia em que última visão. O tipo de música que executavam e a maneira como cantavam, aquela orquestra em brim lustroso e pendente, sem firmeza, com violinos em que faltavam cordas, concertinas ofegantes e gaitas-deboca enferrujadas, instrumentos seguros pela mão restante e inexperta; as vozes desafinadas, indo a extremos agudos. Em busca dos pennies da Depressão, com que crueldade martirizavam uma audiência relutante com suas canções torturantes — A rosa da terra de ninguém, Rosas da Picardia, Rosa de Tralee e Que coisa, eu não quero morrer, quero voltar para casa! A guerra das rosas, rosas, e sorrir, sorrir, sorrir. "Ighty-tiddly-ighty, Leve-me de volta para Blighty, Blighty é o meu lugar!" As próprias crianças — crianças que ainda não haviam experimentado a virtude e podiam ser implacáveis, ao atormentarem os companheiros de brincadeiras — eram adultos atingidos pela piedade: a Grande Guerra era profundamente conhecida por elas, aprendida antes de memorizada, como as criancinhas conhecem o macabro através dos sonhos. Nada mais as surpreenderia, nada, quando já lhes haviam falado explicitamente sobre cavalos explodindo, homens explodindo, atitudes e gestos dos mortos em decomposição, o fundo das trincheiras, os estilhaços de granada, o terror. O fanfarrão sargento-ajudante gritando sobre tocar gaita de foles aos praticamente mortos, o jocoso estadista visitante, atrás das linhas. Elas sabiam a respeito de Wipers e da Plug Street. Sabiam sobre a Linha. Haviam aprendido tudo isso de algum modo, em lições não faladas pelas esquinas, nas canções das rosas e Inky pinky parlay-voo. Haviam descoberto na provocação das frágeis coroas castanhas nos cenotáfios, no silêncio de dois minutos, em reuniões para recordar, onde garrafas de cerveja transbordavam, e nos monumentos aos símbolos mais suaves da guerra — o soldado, seu rifle de bronze pousado, sustentando o companheiro decorosamente caído, o marechal limpamente vitorioso, em sua égua imaculada. Quão longos haviam sido, quão imensamente longos, aqueles quatro anos que permaneceriam para sempre! No Dia do Armistício ou do ANZAC 1, Grace e Caroline Bell tinham passado por entre a multidão, para ver os homens de rostos afilados que caminhavam em fileiras, em trajes decentes, se tivessem algum, divisas presas por alfinetes, com restos de galões alinhados em diminutos arco-íris sobre o peito, a papoula de papel vermelho na lapela, o galhinho de rosmaninho. Sendo pequeninas, Caroline e Grace tinham sido levadas para a frente da multidão, a fim de ver aquilo, como se fosse da maior necessidade. O conhecimento penetrara em seus corações oprimidos. O conhecimento permanecera formidável e impotente em seus peitos infantis enquanto, olhando para o lado, deixavam cair dois pence no chapéu estendido ou esmagavam até o fim o rosmaninho entre os dedos, por causa do cheiro. A casa para a qual se mudaram com Dora era menor, com camélias no jardim, mas excesso de hortênsias. Nos fundos havia capim baixo e de folhas delgadas e arbustos de espigas, além de um jardim ornamentado de pedras, tiradas do declive de arenito. Dentro de casa, o cristal sensível, o fragmento da verdadeira cruz do H. M. S. Soldado das tropas expedicionárias da Austrália e Nova Zelândia durante a Primeira Grande Guerra (iniciais de "Australian and New Zealand Army Corps"). (N. da T.) 1 Victory tinha se transformado em peças de museu, relíquias de uma outra vida. A cada lado de seu breve reinado horizontal, as longas ruas desciam para o mar. Se soubessem, elas quase poderiam ter estado no Rio ou em Valparaíso. Uma noite se seguia a outra, noites de oceânico silêncio, agora nem mesmo interrompidas por guinchos dos bandicoots1, em ratoeiras no jardim inglês dos Hornimans. O Pacífico rolava entre a fenda dos dois promontórios, um brinquedo azul entre patas. O porto rendilhado era um país em si, familiar como o arquipélago que uma criança governa entre as rochas: mal parecia que o mar aberto tivesse mais a oferecer. No entanto, transpondo aquela fenda para o Pacífico, os transatlânticos transportavam os felizardos para a Inglaterra. Ia-se ao porto para vê-los partir, os Broadhursts ou Fifields. Houve um almoço a bordo, que Dora não apreciou, por causa de uma pequena espinha de peixe que se encravara em sua garganta. Soavam sereias e beijos, choviam serpentinas, a moderação se animava. E o Strathaird ou o Unon se afastavam, imensos. Dava tempo de chegar-se em casa e ver os navios passando por entre as Heads; Caro até conseguia ler o nome, na popa ou na proa. A própria Dora içava subjugada, ao testemunhar tão irrefutável evasão. Ir à Europa, escrevera alguém, era quase tão definitivo como ir ao paraíso. Uma passagem mística para outra vida, da qual ninguém voltava como era antes. Os que retornavam em tais navios eram invencíveis, porque haviam conseguido aquilo, e poderiam refletir para sempre, depois do cottage2 de Anne Hathaway ou da Torre de Londres, uma confiança que Sydney não gerava. Nada havia de mítico em Sydney: objetos, seres e eventos importantes situavam-se sempre no estrangeiro ou nos indefinidos lugares dos livros. Em Sydney nunca se podia ter como certo que um poeta nasceria lá ou que um grande pintor 1 2 Marsupial insetívoro da Austrália. (N. da T.) Casa de Anne Hathaway, mulher de Shakespeare, preservada em Stratford, como monumento. (N. da T.) caminharia sob suas janelas, como acontecia nas mais insignificantes cidades da Europa. O indício não surgia, eles não achavam que o mereciam. Tal era a medida de ressentida obscuridade: eles eram incapazes de imaginar uma pessoa que pudesse exibi-lo ou exaltálo. Havia o porto e o mar aberto. Era um ambiente em que um pôr-dosol podia ser confortavelmente admirado, porém não muito mais. Qualquer outra alegria particular — no claro ou no escuro, no batente da porta ou no pilar do portão — sabia a revelação e era inexpressada; até na glicínia ou mimosa, pelas manhãs, sem dúvida mais frescas do que agora, em qualquer outro lugar. Havia uma imobilidade em certas noites, um matiz nas rochas ou um desenho de lânguido ramo contra o céu, que poderia estar anunciando a glória. Embora dificilmente fosse correto sentir prazer, se Dora não o fizesse, as meninas ofereciam as faces calmas às gardênias, inalando dezembro por uma vida inteira. Para o interior havia o bush3, o próprio nome um ressequido e insípido borrão. Para o interior estava a aridez, um apergaminhado mistério não visitado, um horizonte abandonado em um fio de frouxo arame farpado. Dora não ia além de Gosford e nenhuma delas jamais vira um abo4. Na Páscoa, os Whittles as levaram a Bulli Pass, onde o radiador do carro ferveu e todos ficaram parados à margem da estrada, em pé, após rolarem pedras para os pneus traseiros. Adiantando-se para empurrar, o rechonchudo sr. Wittle fazia lembrar um bebê em crescimento, cujo primeiro impulso é empurrar o andador em que estivera caminhando. Voltando para casa, Dora sentou-se em uma cadeira que raramente usava e disse: "Vocês nunca mais me farão repetir isso". Como uma vasta terra interior de seu próprio litoral, Dora estava se tornando uma região afetada, uma fonte de abrupta conflagração. 3 4 Terra agreste e inculta, com ou sem vegetação. (N. da T.) Aborígine. (N. da T.) Submissas ao estado de ânimo dela, as meninas se admiravam por que a vida de Dora teria que ser subjugada à de ambas, segundo ela estava sempre dizendo. Havia algum mal-entendido ali. E logo descobriram que um sério problema abria caminho em Dora. Ela ainda podia tomá-las nos braços — mas veementemente, como se alguns daqueles abraços lhes tivessem sido reservados, mas sem oferecer abrigo. O estado de Dora abatia-se sobre as duas como o cair da noite, enquanto ainda simulavam discernir as formas e cores do dia normal. Mantendo as aparências emocionalmente, aprendiam a apaziguá-la e vigiá-la.. Agora podiam ser temidas as encolerizadas reações de Dora ao erro ou qualquer combustão de seu espírito agastado. As equimoses de uma queda precisavam ser escondidas da irritada atividade de Dora, da mesma forma que outras quedas e contusões. As duas meninas estavam perdendo a mãe pela segunda vez. Caro estava se aproximando da realidade da infelicidade: chegava à percepção de que Dora gerava infelicidade e que ela estava ligada a Dora. Ninguém apareceria agora, oferecendo salvação, era tarde demais para isso. Enquanto crescia, Caro iniciava sua longa tarefa, ao invés de superá-la. No presente, pelo menos, era mais forte do que Grace e. assumia Dora como uma obrigação moral. Em si, Dora era a mais forte de todas, em seu poder de acusar, julgar, causar dor: em seu poder soberano. A habilidosa desconfiança de Dora podia penetrar-lhes certeiramente no cérebro, dele extraindo os piores pensamentos e exibindo-os para que todos os vissem, mas nunca trazia à luz o simples bem. Era como se ela conhecesse a verdade interior, contestadora e racional das duas meninas e tentasse provocá-las, a fim de que a expusessem, como traição. Por um lado, havia Dora buscando a devastação e, por outro, as irmãs tentando continuamente obstruir ou despistar. As meninas tinham ouvido dizer que Dora as estava criando. No entanto, aquilo era mais como afundar e sempre tentar emergir. Naquelas crianças, uma veia de instintiva sanidade se abria e fluía: um aviso de que toda mentira será por fim redimida. Era engendrada uma aversão à emoção e à crença — que em Caro duraria toda a sua vida — de que quem não se vê como vítima resiste a tensão maior. Em seu apreço pela imparcialidade, elas começaram a ansiar, perversa e inconscientemente, por alguma força que perturbasse aquele equilíbrio e as arrastasse para um nível mais alto. Como outras crianças, paravam no caminho, quando voltavam da escola para casa, fosse para puxar as soquetes, para arrancar cascas de feridas ou espiar uma alameda de jardim, em alguma entrada opalescente. Grace, com uma sacola e pálidas madeixas oscilantes, Caro, pendendo para uma pasta volumosa. Na escola, ambas eram inteligentes, o que era atribuído aos efeitos amadurecedores de sua tragédia — da mesma forma que, se ficassem atrasadas nos estudos, a burrice seria imputada ao inevitável trauma. No recreio, uma procurava a outra, e eram conhecidas como uma dupla aberrante. As salas de aula tinham paredes ásperas e lívidas. Os alunos estavam lendo O mercador de Veneza, sob Os desposados, reprodução do quadro de Lorde Leighton, pintalgada de pontinhos negros, e a aquarela de Ormiston Gorge. As salas de aula eram janelas para a baía. Nos peitoris de madeira enroscavam-se gavinhas de campainhas. Era sempre verão — e, com mais freqüência, era de tarde, quente com o cheiro do giz e dos calçados de ginástica ou talvez da banana não comida, na pasta de alguém. Fatigadas como negociantes, as meninas esculpiam nomes no tampo das carteiras, à espera do toque da sineta. Caro e Grace voltavam para casa subindo a colina, em meio ao calor abrasador. Casas de tijolos mostravam-se simétricas, em respeitabilidade vermelha, amarela ou púrpura: muros baixos de jardins, amplas varandas, moitas repetidas de frangipanas e ibiscos, de banksia1 e cavalinha; talvez um pavilhão no jardim, talvez um mastro de bandeira. Jamais um indício de roupa lavada ou mesmo de gente: tais evidências tinham que ser procuradas no interior das casas e nos fundos. Caro começava a preocupar-se com o interior e os fundos, a se perguntar se cada casa escondia uma Dora. Se, em cada vida, havia um Benbow, que adernava e afundava. Sentia-se que as paredes dessas casas desabariam para dentro, que desmoronariam, mas nada revelariam. O refinamento era mantido no fio de navalha de um abismo. Aparecer sem luvas ou de outras maneiras que sugerissem o corpo, quase como uma pública demonstração amorosa, equivalia a ser arremessado ao poço sem fundo da Austrália brutal, era o retorno total ao homem primitivo, em toda a linha. O refinamento era uma frágil construção, continuamente frustrada por ondas evocativas de crua humanidade: as brigas das seis horas diante dos pubs, homens engalfinhados entre vômito e vidros quebrados; o grupo de estivadores, em seus bares impregnados de fumaça, agachados em torno da moeda que atiravam em piparotes, perto do cais, e chamando as mulheres passantes, em irada lubricidade. Havia famílias de vozes roufenhas que, por medida de economia, faziam compras no desvio para estacionamento, se é que compravam alguma coisa, e cujos filhos mostravam contusões de sovas ou tinham o corpo deformado pelo raquitismo — essa sutil ameaça contida nas casas apinhadas ladeira acima, cuja sombria imundície era um contágio das ilhas Britânicas, uma ignorância das Midlands. A Inglaterra se apressara em partilhar sua sordidez com a Austrália, embora retendo a abadia e o Cisne de Avon2. Abalado por tais e piores realidades, o refinamento estremecia e batia em retirada. As duas meninas voltavam para casa de mãos dadas, não tanto como enamorados, mas como um casal idoso, sisudas, com sua informação e responsabilidade. Voltar para casa era voltar para uma 1 Arbusto ou árvore australiana com folhas e cachos de flores cilíndricas. (N. do E.) 2' Shakespeare. (N. da T.) Dora de ultrajada tranqüilidade, cujo motivo deveria ser explosivamente conhecido, mais cedo ou mais tarde. Ou para uma Dora desfigurada pelas lágrimas, provocadas por uma afronta de algum vizinho, agora traumatizada para o resto da vida. O significado era acústico, ecoante, modulando inflexões, preenchendo silêncios. O pesar era estatístico: "Em dois anos, eles só me convidaram uma vez ', "Em todo o tempo que fiquei lá, só houve chá duas vezes, exatamente". Qualquer crise na sala de aulas ou no recreio, inadvertidamente descoberta, podia levar Dora aos guinchos. "Paz! Eu quero paz!”— e a casa ressoava a gritos de "Paz!”muito depois que as meninas estavam na cama. Dora costumava dizer que, afinal, sempre podia morrer. Eu SEMPRE POSSO MORRER, como se isso fosse uma solução a que pudesse apelar repetidamente. Disse às meninas que a morte não era o pior, como se já houvesse tido oportunidade de prová-la. Dizia que podia acabar consigo mesma. Ou que podia desaparecer. Quem se importaria, que diferença fazia? As duas se fundiam em seu terror, Dora, não morra, Dora, não suma. Não, ela era inflexível: não havia outro jeito. Com que freqüência, vezes sem conta, ela recorria a essa inexaurível reserva da própria morte, que se regenerava mais e mais pelo horror que inspirava, ao se demonstrar a outrem sua exata iminência. Era do medo de cinzas das meninas que ela se erguia, sempre, como uma fénix. A cada empréstimo semelhante da morte, ela ganhava um novo arrendamento de vida. Não que Dora fosse tolerante com os sofredores ou os que tinham fracassado. "Todos nós podemos cair", respondeu, quando lhe contaram que a srta. Garside, a bibliotecária, entregara os pontos completamente. Os aleijados ou cegos eram uma ressentida incursão na piedade que pertencia a ela, por direito: o brado de Dora por socorro devia sufocar todos os demais. Estava inteiramente tomada por seu próprio desaparecimento, o qual se agigantava assustadoramente, como a presença maior em suas vidas. As primeiras lendas das meninas pertenciam todas à vez em que Dora enfrentara o motorista do táxi, à vez em que Dora se recusara a ouvir disparates do ministro. "Por uma vez, eu disse o que pensava." Dora reclamando, ofendida ou ofendendo. Dora criticando, Dora repreendendo com energia, Dora deitando abaixo. Dora dando as temidas novas: "Tive uma boa discussão". Uma boa choradeira, uma boa discussão, uma boa briga. Além do mais, Dora estava convencida de que, pressionando bastante as boas intenções, estas poriam as próprias limitações a descoberto; e nisso, vez após vez, ela mostrara que estava certa. Dora tinha um vestido vermelho-vivo, com botões pretos, que usava para fazer os serviços domésticos. Menina ainda, Grace perguntou: — Por que você está sempre zangada, quando está com esse vestido? Dora mal soube como explodir. — Com este vestido. . . estou sempre ocupada. Não zangada, mas ocupada! Grace não acreditou. — Pouco importa se me dizem que estou sempre zangada. É claro que não estou zangada! Dora estava muito zangada. Grace tremeu. — Sinto muito. — Vocês imaginam, vocês têm a mais leve idéia de como trabalho duro para as duas? Isso não tem fim! _ Tinha razão; as donas-de-casa eram escravas. — Depois, ainda me jogam isso na cara, dizem que estou zangada. Deixe estar! Grace foi chorar fora de casa. Dora tinha vinte e dois anos, olhos escuros e líquidos, dentes pequeninos e perfeitos, apesar de certa inclinação por doces. Caro se perguntava quando Dora ficaria velha o bastante para haver tranqüilidade. Pessoas velhas sempre eram serenas. Aos setenta anos, por exemplo, tem-se que ser sereno. Até mesmo Dora seria, bastando que elas esperassem. Não obstante, Dora era a vida diária. Dora fazia compras, pagava contas com o escasso dinheiro da herança; também falava com curadores sobre debêntures. Dora devolveu A cidadela à biblioteca de empréstimo e voltou com E as chuvas chegaram; jogava bridge no Pymble e tinha um primo rico em Point Piper. Dora ia ao chá e escrevia bilhetes de agradecimento em seu papel de cartas com bordas irregulares. Ela usava um elegante vestido de seda, na cor conhecida como marrequinho, e seus longos cabelos escuros formavam ondas e anéis. Na noite da entrega de prêmios, Dora exultou sobre as antologias encadernadas das meninas e a taça de prata conquistada por Grace em piano; ela derramou lágrimas verdadeiras pela medalha de ouro de Caro, em francês. Era isso o que fazia Caro interrogar-se sobre os fundos das casas e se, de alguma forma, Dora era inevitável em cada moradia. Extremamente desorientadora era a Dora, toda adorável normalidade, que surgia após uma boa briga. Nesse intervalo, por uma noite ou um dia, as meninas voltavam a ser jovens. Naturalmente, era uma desorientação sobre a qual todas tinham certeza, embora por intermédio da inevitabilidade de um sofrimento. Entretanto, como outras crianças sob o jugo da autoridade absoluta, elas aproveitavam a breve pausa. Parecia mais fácil mentir — para Dora, para si mesmas, para Deus — do que voluntariamente desencadear a outra Dora. A guerra explodiu em meio a tais hostilidades. Em um ano, os estadistas esganiçavam: "Paz! Paz", enquanto, como Dora, conduziam o holocausto. No seguinte, foi a Polônia, a Linha Siegfried, o Graf Spee. Uma família de Viena, judia, veio morar na casa ao lado. Dora informou: — Ele é engenheiro, ela é pediatra. Supõe-se. Sim, porque uma profissional do sexo feminino despertava desconfiança. Os dois meninos, Ernst sem o segundo "e", e Rudolf com "f", aparavam a grama. O pai deles, esguio e grisalho, avaliou cuidadosamente uma fileira de frésias que, em outubro, tinham forçado caminho pelo solo, no lado mais distante do terreno. Em junho seguinte, as janelas dos vendedores de hortaliças foram depredadas, porque eles eram italianos. Em Junction, a Manganelli's colocou um aviso: NÓS SOMOS GREGOS. Mais uma vez, os homens se fizeram ao mar, pela história, na escuridão e sem bandeirolas. A França caiu. Havia a blitz, a RAF e o sr. Churchill. A classe de Caro abandonou a Guerra da Sucessão Espanhola para ler um livro sobre Londres, os prédios de pé como heróis — o Guildhall, a Mansion House — que a cada noite eram consumidos pelas chamas, no noticiário das sete horas. Dora fervia de raiva sob o racionamento, mas ansiava estar onde caíam as bombas. Ela encarou o conflito como algo pessoal, levada ao frenesi pelo sr. Churchill. Era a guerra de Dora. A maré morta da história, como de hábito, as deixou encalhadas. Caro ganhava corpo. Suas mãos assumiam atitudes. Nos sapatos opacos por causa da poeira do recreio, seus pés eram longos e bemtalhados. O cinto de seu uniforme escolar, que na época de Dunquerque enlaçava uma mera criança, à altura do sítio de Tobruk delineava um corpete de algodão. Seu corpo exibia uma delicada apreensão de outra mudança. Ela sabia a localização das nascentes do Yang-tse e conhecia palavras como "hipotenusa". A própria Grace agora já fazia lição de casa, sentada no chão. Dora tricotava para a marinha mercante, impregnando essa calma atividade de vociferante agitação. A Grécia caiu, Creta caiu. Havia desequilíbrio, inclusive de história. Em um dia calorento, Caro olhou para Pearl Harbor, no atlas. Logo os ônibus eram pintados de cores pantanosas. Foram construídos abrigos antiaéreos e puseram uma corrente, inútil, fechando a entrada do porto. Conservava-se um balde de areia na cozinha, com vistas a bombas incendiárias. O sr. Whittle era inspetor antiaéreo e os rapazes Kirkby foram convocados. A nobre retórica da Downing Street mal se aplicava a ruas escuras, austeridade e ficar na fila. Do leste chegaram famílias de colonos em total desamparo, e Cingapura caiu. Agora, os órfãos eram numerosos; e as meninas, com sua perda civil, não mais concentravam uma atenção especial. A escola estava sendo transferida para uma casa na região rural, onde os invasores japoneses dificilmente penetrariam. Grace era ainda muito pequenina para ser salva por tais métodos, Caro iria sozinha. Caro experimentaria a condição fugitiva; se isso se mostrasse acertado, Grace poderia ser incluída mais tarde. Certa tarde, Caro foi instalada ao pé das Blue Moun-tains. Na planície abaixo, eucaliptos dispersavam-se, voltados na direção de Sydney, com as cascas do tronco espalhadas como papel picado. As crianças menores choravam, mas os pais viriam visitá-las em quinze dias, se houvesse gasolina e os japoneses não chegassem. Havia ainda um trem antigo que ia no máximo até Penrith, depois do que, cada um ficava por conta própria. Elas conheciam algo sobre Penrith, uma cidadezinha com casas revestidas de tábuas, dotada de postes telegráficos e com aquela espécie de cinema em que se podia ouvir a chuva. Grace acenou da janela do carro: enciumada, culpada e salva. Era domingo. Após a geléia de sagu, cantaram Abide with me, e Caro foi para a varanda do andar de cima. A noite caiu, rápida. A escuridão aprofundou-se em silêncio, mais desolado pelo pio de uma ave, mostrada a elas em ilustrações. Uma reação de incredulidade estalou na garganta de Caroline Bell. Odores do solo árido, de eucaliptos, e um pequeno grupo de vacas davam a impressão de que o tempo cessara ou que seu ritmo diminuíra a um ponto em que a aceleração dela tivesse que girar absurdamente, sem propósito algum. O único tremor nas costas sombrias das montanhas era o vapor de um trem, em seu caminho para Kattomba. Dora as incitara a detestar a insignificância, e se havia algum lugar insignificante, era aquele. A medida do confinamento era que Penrith se tornara um objetivo. Caro enlaçou-se em seu próprio e terno abraço, abarcando tudo o que lhe sobrara de conhecido. Caro estava no interior do país. Ela se agachara no ângulo formado pelo balaústre e um dos altos suportes da varanda. A buganvília fora disciplinada para a verticalidade e, contra sua bochecha, comprimiu-se uma placa ornamentada e redonda, fria como louça. Havia insetos nas trepadeiras de espinhos, um animal corria no jardim mais abaixo. Dora teria confirmado que a morte não é o pior. Subseqüentemente, em um quarto com seis camas, todas elas choraram, até o sono chegar. Pela manhã, Caro viu que o medalhão no balcão era azul e branco — e católico. — A srta. Holster disse que é um Della Robbia — contou uma das meninas. Percebia-se imediatamente que aquela era uma casa peculiar. Nela havia muito para se ver. Pertencia ao doutor, que não era doutor em absoluto, mas arquiteto e italiano, embora do nosso lado. Ele se retirara para uma edificação menor e ao lado — aposentos da criadagem, era uma frase que lhes vinha à mente sem dificuldade, por causa dos livros ou das antigas casas de pedra, construídas pelos condenados. O doutor usava um paletó curto de algodão branco e tinha uma barbicha, também branca, pontuda. Embora não fosse manco, caminhava com uma bengala. Segundo a srta. Holster, ele compreendera o verdadeiro significado de Mussolini desde o começo. A casa tinha 1928 em algarismos romanos na fachada — ou pórtico. Para sua construção, mármores coloridos e travertino haviam passado meses no mar; lareiras e tetos tinham sido desmontados nos arredores de Parma, que era de onde vinham pernis e violetas. De lá também tinham vindo todos os pavimentos de ladrilhos floridos, desenraizados e novamente plantados ali. Dizia-se que a sala de refeições era elíptica. Todas as portas eram duplas, inclusive as dos banheiros, com painéis de flores pintadas e maçanetas duplas, gostosas de sacudir, até que se desprendiam. Havia puxadores de veludo, para sinetas destinadas a chamar as criadas, mas que logo se desmantelaram, de tanto serem puxados. Houve também o dia em que Joan Brinstead quebrou um tinteiro sobre a platibanda de mármore branco da lareira, na sala de música — e o amoníaco só tornou as coisas piores. A srta. Holster tinha uma cama com dossel, mas não sabia explicar por que os limoeiros deviam ser plantados em vasos, ao invés de no chão. Aqueles aposentos encerravam encanto — algo memorável, verdadeiro como literatura. Podia haver acontecimentos, ocasiões, mas não durante a perniciosidade daquela posse. À noite, os aposentos brilhavam, elegantes e ternos. No pasto, para os cavalos, proibido, abaixo da casa, uma cerca de arame farpado circundava tendas, edificações de folha-de-flandres e trinta ou quarenta homens baixos, grotescamente militares, de uniformes cor de vinho. Os compatriotas do doutor tinham vindo ao fim da terra para encontrá-lo, porque os homens que cuidavam de suas plantações e colhiam seus frutos eram italianos, prisioneiros de guerra. Ao crepúsculo, eles tangiam o gado, antes de serem também tangidos para trás do arame farpado. O doutor podia ser visto de manhã, movimentando-se entre eles, com sua barba branca, o casaco branco e um panamá branco: novamente o senhor. As meninas ficaram sabendo que, como um bebê, ele dormia à tarde. E haviam visto — ou apanhado o flagrante — quando um dos prisioneiros lhe beijava a mão. Dos campos ou de trás do aramado, os prisioneiros acenavam para as estudantes, que nunca acenavam de volta. Nunca. Isso era questão de honra. Após duas semanas nessa vida, Dora apareceu com Grace, no carro dos Marchmains, que havia sido readaptado para movimentar-se a nafta. Dora atingiu o máximo, no drama da reunião, e havia trazido uma cesta magnífica de petiscos, a fim de suplementar as terríveis refeições. Caro exibiu-se a Grace com sua rosa-pálida Rosamund, companheira de exílio e filha dos Marchmains. Fizeram piquenique às margens do Nepean, com o sr. Marchmain dando explicações sobre folhas de urtiga e babaçol. As salsichas foram assadas em espetos, sobre uma fogueira feita pelos Marchmains. A gordura pingava, com um cheiro forte e desagradável; a carne da salsicha saía pelas rachaduras de seu envoltório. Uma pessoa que tivesse de cuidar de si mesma, em uma ilha deserta, viveria de maneira bem diferente: haveria mangas, fruta-pão, água de coco e peixe dos recifes de coral. Dora sentou-se em uma ponta da toalha estendida, desejando que lhe fosse indicada alguma tarefa, para que se ofendesse com isso. As meninas nadaram no rio, repugnadas com a água doce e o lodo. Brincaram de Moisés entre os juncos, com Grace no papel-título, mas Caro como a princesa. Do outro lado do rio, iniciavam-se as gargantas, melancólicas, desabitadas. Um amigo dos Marchmains subira certa vez para Lapstone e lá permanecera — por causa de uma pleurisia, ou pelo menos foi o que disseram, na época. Não obstante, em geral era possível diagnosticar-se a verdade, pelo rubor doentio das faces. Caro pensava na Ümbria, até o dia anterior apenas o nome de uma cor na caixa de pintura, entre amarelo-ocre e terra de siena queimada; e na insípida Parma, de onde vinham as violetas. Caro gostaria de mostrar a casa, mas temia a reação de Dora. Ela não era do tipo que se rende ante a informação de que uma varanda era chamada de loggia ou um mural, de afresco. Muito menos casa, de villa. Qualquer revelação semelhante, de certo modo, anunciaria a cisão entre Caro e a regência de Dora. Eles caminharam pelos corredores e espiaram a sala de refeições oval, sem nada perceber. — Este Montyfiori — disse o sr. Marchmain, que era um homem vulgar — parece ser um perfeito lunático. Depois do chá, os Marchmains desceram até o pasto, com Rosamund: Lá se podia esperar a vez de montar o pônei. Dora foi colocar a garrafa térmica no carro. Caro e Grace desapareceram no dormitório improvisado, onde se sentaram em uma cama, lado a lado. Ali, soltaram pequenos e devastadores arquejos de um adulto chorando que, necessariamente, precisa esconder-se. O intenso, pesado mecanismo de seus corações arrastava-se em seus corpinhos. — Eu escreverei — disse Grace. Lavaram o rosto em um varicoso banheiro de mármore estriado. A pia tinha o formato de uma concha. Até mesmo o vaso exibia um desenho azul no interior, possivelmente chinês. Dora havia descoberto a inspetora e lhe pregava um sermão a respeito de cobertores. Os Marchmains vinham subindo pela alameda de cascalho. Agora, as lágrimas estavam autorizadas em público, o pesar não seria confinado. Grace entrou no carro, envergonhada por ainda tornar a escapar. Nesse momento, os japoneses eram a última coisa no pensamento de qualquer um. Todo aquele exercício parecia despropositado, exceto pelas emoções, às quais era dada rédea solta. Caro voltou para casa no inverno, com as outras. A vila dissolveu-se por entre os eucaliptos, mesmo quando as meninas se torciam, a fim de vê-la pela última vez, com a respiração embaçando as vidraças frias do ônibus que as levou ao trem de Penrith. Apesar disso, ninguém aproveitou a oportunidade de acenar para seus colegas prisioneiros. Em breve, sua fuga para as montanhas era parte de um passado de fábula, uma forma de serviço de guerra. Não, entretanto, antes de o doutor mover um processo por danos irreparáveis à sua casa. Depois de toda aquela conversa fiada sobre Danty e o pôr-do-sol, o velho lunático exigia mil libras, conforme informou o sr. Marchmain, para consertar aquela sua caricatura de casa. Como se viesse do estrangeiro, Caro retornou a uma cidade povoada por soldados americanos. Dora confirmou que eles eram fanfarrões e amantes da boa vida, em maneiras não especificadas. As moças que saíam com eles eram vulgares. Em uniforme escolar, Caro e Grace foram fotografadas por um sargento alto e magricela, quando atravessavam a rua, em Junction; e levantaram as mãos, como os famosos, para repelir a intrusão. Era uma pena que não se pudesse conseguir uma espécie melhor de salvador: os americanos não podiam proporcionar história, algo de que eram quase tão destituídos como os australianos. As irmãs nunca tinham visto homens negros antes, excetuando-se os lascars', no porto. Na escola, Grace estudava os reis Stuarts. Pelos jornais, elas ficaram sabendo sobre Stalingrado e Rostov sobre o Don. Dora fazia parte de um grupo para redes de camuflagem, que se reunia às quintasfeiras na Delecta Avenue, e estava extremamente rancorosa. No alívio do lar, Caro se sentia leniente. De vez em quando, imaginavase na casa do doutor, nos altos aposentos que geravam expectativa. Se fosse possível tê-los sem o sofrimento!. . . Tais visualizações podiam ser recordações — a menos que ainda fosse muito cedo para isso. Os momentos nunca dizem qual deles poderá ser lembrado. Quando se tinha um metro e meio de altura, podia-se receber cupons extras para roupas. Se não fosse por Dora, ela transformaria suas tranças em um rabo-de-cavalo. Certa manhã, uma garota cujo pai estivera na América, para algo relacionado a munições, chegou à escola com canetas sem penas, que tanto escreviam em vermelho como em azul. Havia também lápis com luzes, um aparelho que podia gravar o nome — da própria pessoa, de preferência — em alto-relevo e apontadores de celuloide transparente. Havia ainda muito mais coisas desse tipo. Dispostos em uma carteira, na sala de aula, os objetos silenciaram a própria srta. Holster. As meninas inclinavamse, pegando isto e aquilo: Posso experimentar, como é que funciona, não consigo deixá-lo outra vez como era antes. Ninguém poderia dizer que eram objetos feios, até mesmo o lápis com a brilhante flor vermelha, porque estavam espalhados na carteira envernizada, como pedra de uma era vindoura ou evidência da vida em Marte. Não surgiram julgamentos quanto à atração que exerciam: o poder daquelas peças era conclusivo, dispensava elogios. Aquele foi o primeiro encontro com a inutilidade calculada. Antes, jamais alguém desperdiçara alguma coisa. Até mesmo a peça no aparador de tia Edie ou a que mamãe possuía, criações de Lalique e Balibuntl, ao contrário, eram absolutamente funcionais, e serviam a uma evidente causa de adorno, desempenhando o necessário e reconhecido papel de uma extravagância. Os aprestos naturais de suas vidas, via-se agora, tinham sido essenciais — úteis e exeqüíveis —, ao contrário daqueles objetos insensíveis, irreais e de cores vivas que proclamavam, apesar de certa fragilidade, a indestrutibilidade da repetição infinita. Não lhes tendo sentido a falta, as meninas não podiam sentir inveja. Teriam ainda de ser condicionadas a uma nova aquisitividade. A própria Dora teria que adaptar seus métodos, para competir com tal inacessibilidade. Jamais elas poderiam sonhar que, manuseando aqueles brinquedos e, de certa forma adulta, divertindo-se com eles, manuseavam fatídicos símbolos do futuro. As peças estavam reunidas por um significado coletivo, como as provas de um crime ou explosivos que nenhum perito conseguisse desmontar. A invenção era a mãe da necessidade. Não foi muito tempo depois disso que as meninas começaram a menear os quadris em formação e a cantar sobre Chattanooga e o vale de San Fernando. Dos antípodas, cantar sobre estarem em Havana e cruzando a fronteira do México. Para elas, a mais distante fronteira estivera em Kew. E o poder de Kew estava terminando, como um império. Agora, Caro e Grace Bell não voltavam logo para casa, depois das aulas, mas caminhavam ao longo da praia abaixo da escola, com areia penetrando nos sapatos e meias, recolhendo conchas lascadas e atirando-as longe. Algas marinhas enroscavam-se em escuros emaranhados de contas, em rendilhados formados pela maré, ofuscadas por alguma medusa ocasional. Um garoto ou dois falariam com elas, rapazolas usando knickers1 cinzentos e gravatas listradas. Os uniformes eram uma garantia: o reconhecimento das respectivas escolas, como se fossem regimentos. Grace era uma flor. Os cabelos de Caro caíam pesadamente sobre seus ombros, de uma maneira que não acontecia a nenhuma criança. Os sons e odores do oceano tornavam inútil qualquer conversa ou requeriam uma linguagem superior à que conheciam. Uma vez que as instruções de Dora haviam tornado a privacidade sagrada, elas não trocavam nenhuma palavra a respeito dos perigosos preparativos que seus corpos efetuavam para uma vida inimaginável. E, quanto a isso, permaneciam em incomum ignorância. Dora era uma criatura demasiado inflamada e perturbadora quanto a suas tardes circunspectas. Por outro lado, supunha-se que as duas irmãs a amavam e, com mais exatidão, elas a amavam. Dariam qualquer coisa para vê-la feliz. Não obstante, aquela vida a três começava a entediá-las. As pessoas tinham que ficar de lado, quando Dora saía com as meninas pela rua, com os braços indolentemente entrelaçados, ou então se as guiava, de uma em uma, na passagem pelas borboletas. Elas viviam sob supervisão, era uma vida sem homens. Dora não conhecia homens. 1 Calções presos à altura dos joelhos (N. do E) Mal se poderia imaginar como ela encontraria algum, quanto mais, conhecê-los. Evidentemente, todas as mulheres ansiavam pelo casamento e, deixando a escola, ficavam em suspenso, enquanto acumulavam peças para o enxoval — roupa-branca e prata-ria. Havia muito de espera nisso e uma comprometedora sugestão de emoção. Entre aquelas que não eram pedidas, algumas desempenhavam o papel quietamente — como a velha srta. Fife, que ia tomar chá, de guardasol e gola alta, com o vestido de seda macia batendo no meio da perna e sapatos pontudos, cada um preso ao pé por um só botão: mais aristocrática que a rainha Mary. Havia outras, desengonçadas, tímidas ou com bigodes — subjugadas pelo pai, subjugadas pela mãe ou desconsideradamente postas de lado. Neste sentido, era difícil classificar Dora. Caro já tinha permissão para ir sozinha à cidade, de barca. Havia a passarela, o rangido de amarras, a partida, o cheiro de motores trabalhando e o mar lambendo as verdes incrustações nas pilastras de madeira. Ela ouvia a sirene anunciando a aproximação da cidade, campainhas de bonde, a trepidação de uma grande ignição. Na cabine, moças que trabalhavam em escritórios exibiam diminutos espelhos e davam toques suaves de pó nas frontes encurvadas e colos côncavos, com pequenas reverberações no tórax ou coxas. Mais toques suaves atrás das orelhas e então fechavam firmemente as bolsas de mão, indicando que estavam prontas. Aquilo não era o esquema para uma caminhada pela cidade, em fila de três, mas um prelúdio para encontros. Sozinha na cidade, Caro escolhia um livro surrado em uma livraria. — Quanto é este? — Quinze e três. De volta à pilha oscilante. A mesa estava amontoada como um arsenal. — Hum. . . Bem, digamos dez xelins. Vendo-o aquela noite, Dora disse: — Você agora já tem livros de sobra. Melhor que ninguém, Dora sabia reconhecer o inimigo quando o via. 6 — Nós também — disse Ted Tice. — Sabíamos de coisas pelos livros. Caroline Bell estava sentada na grama, com os braços nus em torno dos joelhos. A relva era tão compacta e unida como pontos de bordado: a Inglaterra sem emendas. As árvores admiráveis eram pinheiros de Weymouth, através dos quais o sol se filtrava em pinceladas fantásticas, como luz em uma catedral. Os fatos em breve ganhariam vida para ela, que só os conhecera, como as cores, através dos livros. — Como o calor, por exemplo — disse Ted. — Ou o amor. "O calor é intenso", haviam eles escrito para casa, por intermédio do Correio Militar. Ou, segundo a familiaridade: "Vocês mal acreditariam". O navio de tropas, o velho Lancashire, partido de Liverpool, entrou no mar Vermelho. Ouvindo-a chamá-lo de "velho Lancashire", já esperavam algo semelhante. Aden era uma sucessão de despenhadeiros fundidos, com emanações de petróleo e lixo colonial. Passaram pelo oceano Índico sem a menor sensação de alívio. Em breve estavam esgotados o creme contra queimaduras de sol e a soda limonada. Cantavam canções da guerra — sediças, em 1946, mordazmente suplantadas — e canções para marcha, que escarneciam da imobilidade. À noite, havia brincadeiras ou mais cantorias, o que exigia esforço. Em Colombo e Cingapura, a Inglaterra continuava vivendo episódios pouco ventilados. Em Hong Kong, Ted Tice — que de novo partiria imediatamente por mar para o Japão — estava em um clube para oficiais com um tenente da Marinha Real. O clube ficava em uma rua lateral, de onde se podia caminhar até o estaleiro naval. À noite, os oficiais apareciam por ali, em puro branco e dourado, como que em trajes da corte. Sob as lentas revoluções de um ventilador de teto, as conseqüências da guerra iam sendo detidas. Havia um cheiro de amido, de suco de limão e de gim, abrandado por almofadas de lona, bem como o odor exalado da China, vindo fracamente da rua. Três floridas mulheres claras, em um sofá, demonstravam sem sombra de dúvida que eram enfermeiras de folga, tão desajeitadas em seus vestidos como policiais em roupas civis. — A gente sabe o que eles dizem. O tenente de Ted baixava a voz, pois sabia uma ou duas coisas. Ouvindo-o rir, uma das mulheres se virou candidamente e riu também, com naturalidade. Teria uns dezenove anos, e seu rosto era amplo e sincero, com um nariz comprido e dentes irregulares. As mangas e o busto de seu vestido civil estavam apertados como a túnica de uma estudante. Seu sotaque era de Manchester, como o da mãe de Ted Tice. (Quando Ted Tice saíra de casa pela primeira vez, a fim de cursar a universidade, sua mãe lhe dissera: "Não precisa falar sobre nossa loja, a menos que queira". Tinham-se encarado fixamente, como crianças para descobrir quem pisca primeiro. Intolerável a sua compreensão; sua falta de compreensão.) O tenente naval, que não estava de todo mal, já andara pelo Japão. — É um espetáculo americano. Não se pode fazer nada sem permissão de MacArthur. — Deu um exemplo, obsceno e inevitável. — Eles nos tratam pior que aos japoneses. No momento, estão no assento do motorista e nós ficamos por baixo. Na parede havia a fotografia emoldurada de um despretensioso rei, em uniforme da marinha. Mesmo um rei podia ser lamentado, se estava por baixo. Empregados chineses carregavam bandejas, ainda inconscientes da mudança. A moça do sofá disse, em seu sotaque de Manchester: .— E eu digo que ele não poderia dirigir um caos. Ela se referia ao primeiro-ministro. O tenente dizia a Ted Tice: — A menos que você tenha uma garota. — Ted Tice se virou novamente para ele. — É como digo, não deixe que lhe empurrem um lote de pérolas cultivadas. Eles passaram todo o dia no mar Interior, devido ao trabalho dos barcos caça-minas. As ilhas eram irrupções', cada uma delas franjada por uma única fileira de árvores inclinadas. Na Inglaterra, mesmo a costa mais agreste tinha se estabelecido com morosa insistência, mas, ali, aquelas ilhas eram fragmentos de um cataclismo. Ted jamais vira um alvorecer tão vermelho ou aldeias de palha. Barquinhos que pareciam de papel de embrulho agitavam-se nervosamente em ondas aluvianas, enquanto um jovem inglês, debruçado na amurada, olhava para baixo, para os rostos que as caricaturas haviam estigmatizado como a imagem do inimigo. No porto, jaziam navios imprestáveis, como baleias em decomposição. Havia docas que tinham sido bombardeadas e, na bacia do porto, via-se a quilha revirada de um navio, adernado no atracadouro. No cais, o inimigo de outrora, trajando a cor dos faxineiros, puxava cordas e dava os gritos através dos quais um navio é atracado. Um dos oficiais do navio disse: — Você vai subir a colina. As encostas acima do porto de Kure eram dispostas em terraços dourados e verdes, e havia vales vermelhos de azáleas. Estava-se no começo de junho. — Não. A direção é outra. — E Ted Tice pronunciou o nome de seu destino, como uma lição: — Hiroxima. Era como movimentar-se em alto estilo — o jipe sem capota, o caqui da autoridade. Havia docas bombardeadas e avenidas arruinadas nos arredores do porto, depois a caverna de um túnel ferroviário destruído, na encosta da montanha. O oficial ao lado do motorista apontava: — Estava aqui, ninguém acreditaria nisso agora, mas devia estar. — E acrescentou: — Eu o irei informando, à medida que avançarmos. Ao longo do encosto do banco dianteiro, seu braço pesado e estendido mostrava energia, embora não de todo humana, como uma túrgida mangueira de incêndio. Seu nome era Girling. Desciam para uma vasta área sem horizonte, e, a princípio, surgiram pequeninas casas inacabadas, por toda parte. Pranchas não estragadas pelas intempéries estavam sendo transformadas em aposentos, tetos eram entrançados em tabuinhas, em habilidosas tabuinhas. Homens e mulheres transportavam cargas, eram passarelas ambulantes, moviamse em fila contra o quente céu de estanho. O jipe diminuiu a marcha ao lado de uma nova linha ferroviária, recém-assentada. Onde os trilhos e a estrada se separavam, um jovem inclinou-se pela porta traseira do trem, cuspiu para eles e retirou-se. — Se eu pudesse agarrá-lo! — disse o oficial. — Se eu pudesse. . . Aquele homem estava literalmente decorado, usando as fitas de muitas medalhas. Tinha uma cicatriz, apenas uma linha, como se a face adormecida se tivesse vincado contra o travesseiro. Esse capitão Girling notou o defeito na pupila de Ted Tice sem precisar fitá-lo nos olhos. No assento traseiro do jipe eles mostravam, como crianças, o que tinham conseguido — máquinas fotográficas, relógios e pequenos rádios, com os quais o inimigo quase vencera. No passado, a demolição de uma cidade expunha contornos da terra. Isso não é mais permitido nas cidades modernas. A terra havia sido nivelada anteriormente, para a construção da cidade; então, a cidade desapareceu, deixando um vazio. No caso presente, um rio se pasmava, com irrelevante naturalidade. Um único monumento, vigas aproveitadas de alguma abóbada extinta, presidia como um crânio oco ou um esvaziamento do próprio grande globo: o de São Pedro, em alguma cidade eterna de pesadelo. Uma catástrofe, a respeito da qual ninguém jamais diria ter sido a Vontade de Deus. Era agora que a vida de Ted Tice começava a se modificar em aspecto e direção. Ele se acostumara a pensar em sua vida — eu fiz isto, como pude ter feito aquilo — à maneira de todo mundo. Mal entrado na casa dos vinte, imaginaria ter conquistado um total razoável. Havia seu pai, espalhafatosamente irritado; sua mãe, total e desmazeladamente aflita. Então, havia a sua capacidade: um professor aparecendo, depois das aulas. "O rapaz tem uma aptidão fora do comum." O rapaz, entre todos os demais. Seu nome havia sido impresso em uma lista e o prêmio cobria tudo, inclusive os livros — exceto um capote; e a universidade ficava perto do mar do Norte. Devido à espectral planura onde uma cidade havia sido famosamente incinerada, os eventos a que ele já chamava sua vida foram se tornando irrelevantes, antes que Ted Tice experimentasse torná-los importantes. Isso se derivava, não de um senso de proporção, mas de profundo caos, uma confusão onde sua feliz e diminuta ordem parecia miraculosa, mas inconseqüente. Também provinha de uma revelação, quase religiosa, de que a colossal proporção do mal só podia ser enfrentada ou contida por alguma chama solitária de intensa e privada humanidade. Era incerto se isso equivalia a uma perda de fé ou à sua aquisição. Foi nesse período que o destino de Edmund Tice se tornou nebuloso e ele deixou de ter certeza se venceria ou fracassaria. O capitão Girling informou a eles que, em decorrência do que agora viam, a guerra seria inconcebível. — Nesse sentido, até que foi salutar. — Ele sentia prazer em justificar um extremo. — Tem-se que parar em algum ponto — acrescentou, a despeito da evidência. Os outros permaneceram em silêncio, imaginando se o estômago do mundo vomitara o suficiente. Por outro lado, havia o sedutor e perigoso alívio de contemplar Armageddon, que os absolveria de censuras ou esforço. — Eu lhe mostrarei — disse o capitão Girling. Como se à beira de uma sepultura. Ele calculava uns vinte anos, e era uma estimativa cautelosa, antes de serem conhecidos todos os efeitos. Estavam sendo feitos registros, haveria um instituto, estudos. — Bem, o assunto é seu, passo-lhe às mãos — acrescentou. Agora, veriam os sobreviventes — confinados em uma instituição, como são conservados em museus os artefatos de durabilidade especial. O jipe penetrou por um corredor de casas recém-construídas. — Vocês, caras, estão acostumados a isso — ouviu Ted Tice. Ele gostaria de responder: "Eu nunca estive. Não sou médico". A imaginação saltou para diante, consternada, entre vistas que logo estariam ultrapassadas. À frente, o capitão Girling se sentia satisfeito, vendo os joelhos daquele jovem tremerem. No cenário presente, os compassivos ficavam em maior desvantagem que de hábito. A maneira de Ted Tice olhar interrompeu o suave fluxo de aquiescência, lançando inúteis dúvidas sobre o inevitável. Se ele e seus companheiros agissem da mesma forma, o mundo seria uma bela confusão, refletiu o capitão Girling, por entre as ruínas atômicas. Por toda a nova rua, estavam assinalados os indícios da normalidade: moradia, crianças, o silêncio interrompido. Troncos alinhados reuniam os quadros da existência diária. E pequenas mulheres atarracadas haviam estado recolhendo os refletores côncavos dos holofotes, que tinham sido atirados por todos os lados, caindo como pedras de uma erupção. Cheios de água, esses recipientes haviam sido colocados à porta das casas. E em cada um deles flutuava, rosa-avermelhada e de uma beleza com que jamais se chegaria a sonhar, uma fronde ou uma única flor de azálea. Não se podia considerar tais famílias como sobreviventes, ou que estivessem fisicamente ilesas e preparadas para crer de novo. Quando desceram do jipe, o capitão Girling chamou Ted de lado: — Escute aqui — disse. — Não banque o calouro. Calouro com o sentido de algo emasculado — ou humano. Ele estava apenas dando um bom conselho. E não via por que se deveria rir. 7 Na opinião de Ted Tice, serem portentosas era a sina daquelas suaves colinas em torno da casa dos Thrales. Havia a estrada abaixo, onde ele caminhava com Caro, voltando para casa, as plantações e relvados ao redor, as colinas plenas de eventos. — Foi aqui que a tempestade começou, no dia em que cheguei. — Ele marcava tudo, tornava testemunhas os arbustos e sebes. Agora, o que começava era o crepúsculo. — Está com frio? — perguntou. — Logo chegaremos em casa. Não obstante, em vez disso, eles parariam durante a subida e ele a tocaria, falando de modo diferente. À noitinha, naquela atmosfera maravilhosa, Ted Tice caminhava com menos segurança que por ocasião da tempestade; sozinho, mesmo agora, com o que tinha para oferecer. Caro não considerava um lar a casa de que se aproximavam, mesmo não possuindo nenhum outro. — Você tem seu próprio lugar para morar, na universidade? — perguntou, certa de que, quando alguém desfruta de privacidade, tudo vai bem. — Tenho um apartamento; são dois aposentos, na casa de um professor. São muito bondosos, uma família feliz. Ele tem sido um grande amigo para mim. Agora está de mudança para Edimburgo; irei até lá, por uns dias, em setembro, antes de partir para Paris. — Fez uma pausa, ao tom da separação e da partida. — Há dois garotos na família. . . que gostam de mim. E uma filha, pouco mais velha. — Que gosta de você. — Que ainda não decidiu se será dançarina ou pintora. Caro podia ter perguntado: Que idade tem ela? No entanto, permaneceu calada, e o espectro da filha logo se afastou deles. Continuaram na estrada rural, enquanto ela fugia ao abraço de Ted. A própria Caro pareceu admirar-se de tal antagonismo e disse, em voz alta: — Não sei por quê. Recomeçaram a caminhar. Uma recente gentileza de parte dela indicou objetividade: podia aceitar a gentileza, mas recusava todo o resto. — Senti-me feliz, hoje — acentuou. Continuaria indefinidamente com ele, mas não haveria amor. Existiam carências, de silêncio e compreensão, para ela mais apreciadas que o amor, e pensava nisso como uma escolha feita. Na curva da estrada, ele recordou: — Foi aqui que a chuva caiu. . . Suas feições se anuviaram com o crepúsculo ou devido a algum novo estado de ânimo; recordava aquele meio-dia quando, decididamente, uma estria de luz dividira a terra, vinda do céu. Começaram a subir pela estradinha rural, atrasados pelos espinheiros da trilha e pela intenção de Ted de parar. Uma vez que o humor de Ted se voltava para ela, Caro ficou exasperada por sua vigilância. Quando criança, Caroline Bell detestava o incessante escrutínio de Dora e a sensação de ser observada — enquanto lia, costurava ou brincava — com possessiva atenção. Agora, disse a Ted o que deixara de dizer a Dora: — Não precisa se mostrar tão interessado em mim. Ted entendeu prontamente o significado — isso também fazia parte da coisa, a rapidez com que apreendia os pensamentos dela. — Eu sei que isso pode irritar. Sem promessa de mudança. À noite ou em qualquer pausa, se assim o preferisse, Caro poderia sentir o conhecimento psicológico dele a seu respeito. Isso persistiria, através de todos os eventos do universo de seus dias, como o relógio, que é o único mecanismo audível em um carro de alta potência. Foi o que disse a ele, sobre o relógio, exorcizando-o com seu riso. Ted Tice replicou: — O que está descrevendo não é um relógio, mas uma bombarelógio. — Sendo assim, então há um limite. Bombas-relógio também têm de parar. — Não em um dado limite. Em um clímax. Ted Tice imaginou que ela tivesse algum receio do amor físico. Não inventou isso para salvar o próprio orgulho, já tendo observado como ela efetuava bruscas retiradas, que se estendiam até mesmo aos olhos, e o esforço — quase caritativo — com que, às vezes, tocava algo; e, volta e meia, virava-se para a irmã mais nova e menor, como para alguém que houvesse dominado tal assunto ou, pelo menos, estivesse à vontade com sua inevitabilidade. Como Ted Tice percebeu, não se tratava de dominar suas objeções. Ela própria requeria um tipo de conquista. E ele iniciara essa conquista, com dedicação. Em breve, as demandas de Caro seriam testadas pela experiência, da mesma forma que princípios são testados pela adversidade, e talvez ela transigisse temporariamente; por ora, no entanto, Caro se imaginava transcendente sobre o que ainda não havia encontrado. Ela desejava elevar-se a alguma altitude solitária. Devido à ignorância, possuía uma inobstruída visão do conhecimento — que ela via majestoso, pálido e puro como a Acrópole em suas alturas. Não se poderia dizer que a vaidade de Caro fosse inócua: como qualquer desejo humano por distinção, podia ser facilmente denunciada ou satirizada; e, em sua forma elementar atual, era claramente escassa de piedade. De qualquer modo, se encarada como pretensão, não era a pior, de modo algum. Ted Tice já compreendera que seu apego a Caro era uma intensificação de suas qualidades mais fortes, se não de suas energias: não se tratava de uma aventura juvenil, nova e experimental, mas de uma indicação de todo esforço, alegria e sofrimento, conhecidos ou imaginados. A possibilidade de que jamais conseguisse, enquanto vivo, fazê-la retribuir o seu amor era uma descoberta que abrangia toda a existência. Em seu desejo e pressentimento, ela era como um homem desperto que observa uma mulher adormecida. Um latido, um sino, um fazendeiro gritando para o animal, um choro de bebê. Eram esses os únicos sons, mas que cunhavam eternidade. Na encosta da colina, abaixo deles, uma porta aberta de par em par à luminosidade amarelada de um vestíbulo miserável era uma declaração de paz. Comparadas a tal franco escancaramento, as janelas de Peverel, agora sua visível destinação, eram manchas de velada respeitabilidade, onde se desconhecia o ardor. Por mais que se pudesse criticar Sefton Thrale, algo drástico devia ter ocorrido a sua casa, em época anterior. O século XIX tinha o dom do ensombrecimento. Enquanto eles caminhavam, Caroline Bell pensou no professor Thrale — suas exposições, a enviesada postura e seus repúdios à própria benevolência. Ainda na véspera, em suas maneiras rápidas e conclusivas, ele havia absolvido completamente os inventores de armas letais: "Nós nos limitamos a interpretar as escolhas do gênero humano". E quando Caro objetara: "Os cientistas, então, não são também homens? Pelo menos, responsáveis como seus semelhantes?", ele havia encerrado a questão com seu sorriso raramente paciente, como quem assegura a uma criança que ela compreenderia ou não se incomodaria, quando ficasse mais velha. Não dispondo de qualquer vocabulário para o trabalho deles, Caro era incapaz de imaginar as manhãs do professor com Ted Tice, passadas cerimoniosamente atrás de uma porta, fechada todos os dias. Podia visualizar os dois homens a uma mesa e o professor tomando nota com sua caligrafia miúda, mas não ia além disso. — Nunca lhe perguntei sobre seu trabalho — disse ela. Estavam sentados em uma parte baixa do muro, que ainda continuava quente — em um país do sul, ali poderia ter estado um lagarto. Havia um cheiro de alfena ou de trevo, em um ar tão livre, que se poderia sentir o cheiro do céu. Daquela geométrica lâmina de luz amarela, um homem chamava: "Bessie! Bessie!" Até que, por fim, um grito respondeu, insatisfeito. — Em verdade, não é preciso nenhuma competência técnica para que se entenda o nosso desacordo, dele e meu. — Caro não aludira ao desacordo, que era sentido na casa, se não testemunhado. Ele continuou, sem reservas: — Simplesmente, não existe na Inglaterra nenhum lugar onde esse telescópio possa ser instalado. Não há visibilidade. Todos eles sabem disso. No entanto, em benefício da política e do lucro, por mesquinharia, o telescópio ficará aqui. A Caro, aquilo parecia um tema adulto, mais sério que o amor. — E para onde ele deveria ir? — Há bons lugares no sul da Europa. Entretanto, jamais permitirão que ele fique fora do país. Ted explicou como o professor estudava as horas estimadas da luz do dia, simulando acreditar. Enquanto ele falava, as sombras das folhas alongavam-se na trilha, tornando-se exóticas; cruzando o pé estendido de Caro, uma tira de sombra, semelhante a uma sandália. Tornaram a ouvir o chamado, "Bessie", e o grito impaciente em resposta. — Eu poderia publicar uma opinião divergente — disse Ted. — Se é como diz, é claro que deveria. Ted fizera aquilo soar como algo indiscutível, mas, quando começou: "Compreenda", e hesitou, Caro pensou que ele poderia ser irresoluto, como todos os outros. — A única finalidade disso — resumiu Ted — seria chamar a atenção da imprensa e provocar um escândalo. A coisa não se deteria, mas atrairia a atenção. — Acrescentou: — Existe ainda a questão da deslealdade e a costumeira interrogação sobre onde jaz a lealdade. Pela mudança de entonação, Caro poderia ter esperado um desabafo. Sua surpresa foi enorme, quando ele perguntou: — Lembra-se do cartaz de hoje, onde você leu "Grandes esperanças"? A pergunta dele, "Lembra-se", trouxe a manhã de volta no tempo, uma distante inocência. — No cinema. — Exato. Lembra-se de como, na primeira página daquele livro, o menino ajudou o condenado evadido? — Era mais uma pergunta que um lembrete. — Sim, mas ele não agiu como amigo. Foi por medo. Parecia inteiramente natural estar sentada em um muro, no escuro, falando sobre um livro. — O medo pode assumir outras formas além da prestabilidade e, naquele exemplo, é recordado como compaixão. As pontas dos dedos de Ted Tice descansaram no muro de pedra, a fim de equilibrar seu corpo para algum novo avanço. — Durante a guerra, ajudei um prisioneiro a escapar. Um alemão. Eu estava no País de Gales. Fiquei dois anos em uma escola de lá, depois de transferido daquela que você conheceu hoje. A alguns quilômetros, mais para o interior, havia um campo de prisioneiros de guerra, e ouvimos dizer que um oficial — um general, naturalmente, segundo disseram — havia escapado. Quando me permitiam, eu às vezes dava uma longa caminhada até a costa, a fim de ficar sozinho e apreciar o mar. Naquele tempo, o mar constituía uma espécie de proibição, como as praias. Havia arame farpado enrolado em pilhas, como plataformas de metralhadoras, espessas como vestiários de banhistas. O oceano além parecia a liberdade. Não se pensava que ele levaria à Irlanda ou à América — era o infinito, como o firmamento. O mar aberto. Eu tinha dezesseis anos, queria o isolamento acima de tudo e era infeliz quando o conseguia — exceto durante aqueles passeios até a costa. Só contava com a escola em meu presente e o exército no futuro. Mal tínhamos licença para agir por conta própria e, não obstante, em um ou dois anos estaríamos na luta, talvez mortos. De fato, dezoito meses mais tarde, fui enviado para o treinamento com radar, já no fim da guerra. "De qualquer modo, eu costumava caminhar da escola até a costa e ficar de pé nas últimas colinas, olhando para o mar durante algum tempo, antes de tornar a fazer os dezesseis quilômetros de volta à escola. Apenas contemplar algo amplo tinha um sabor de liberdade. Eu também adorava o campo, que não tinha vegetação — apenas relva áspera e moitas oscilando ao vento constante. Cores desbotadas, confinadas a uma periferia — como se houvesse um âmago da existência, e ali se chegasse mais perto dele. Ou, em outras palavras, o lugar era tão obscuro, que seria necessário o máximo de convicção para acreditar que ele — ou você — existiam. O tempo era sempre borrascoso, mas eu não me importava. Até mesmo isso me dava uma sensação de exposição, de espaço após o confinamento. "Havia uma determinada curva de penhasco, era como caminhar em torno de uma curvatura da terra. E, daquela vez, havia um homem sentado em uma fissura das rochas, olhando. Não observando fixamente. Tão silencioso e indiferente, que poderia ter estado lá esperando por mim. Percebi, imediatamente, que era o alemão. Como se, também eu, estivesse esperando por ele. E ficamos, os dois, olhando. Ele conseguira um capote em algum lugar, mas estava quase gelado. Estivera perambulando pelas montanhas próximas durante quase uma semana e se encontrava inteiramente vencido, além de exausto e faminto. Os olhos estavam muito saltados, e você precisava ter-lhe visto as mãos. "Ele foi a prova conclusiva de que a guerra era real", continuou Ted Tice. "Bem, isso foi quase tudo. Dei-lhe o meu sanduíche e meu pulôver. Dei-lhe também um frasco de uma coisa terrível a que chamávamos caldo de carne. Os próprios policiais teriam feito o mesmo. O fato de não denunciá-lo é que constitui o escândalo público, mas nem mesmo pensei em denunciá-lo." Aquilo diferia de todos os outros segredos que Caroline Bell conhecia, por não ter pontos escuros. A escuridão significara Dora, significara eventos sórdidos com o eu. Ao forçar caminho para a luz, vinda da escuridão de Dora, Caro adquirira consciência e equilíbrio, como uma profunda e laboriosa educação. O exercício de princípios sempre exigiria mais dela que daqueles que haviam crescido com eles, porque Caro o aprendera através da força de vontade. Caro jamais faria a coisa certa sem a conhecer, como alguns. Agora havia aquele segredo de Ted, raiado de difícil benevolência: algo imediato, porém tocando escassamente o eu, nobre, mas não virtuoso. Seria presunçoso julgar ou perdoar. Ela ficou silenciosa, depois reverteu à lógica da história. — Ele fugiu? — Fugiu. Conhecia o caminho para descer até o mar, para o que quer que o esperasse lá, mas estava fraco demais para a tentativa, até que eu apareci. Dias mais tarde correu a notícia de que, de algum modo, ele fora levado por sua gente. Nunca soubemos como. Contudo, após a guerra, a imprensa anunciou o fato como um caso notável de nossa imbecilidade — era assim mesmo a manchete. Porque descobriram que ele era um cientista envolvido com as instalações de mísseis — daí o motivo de sua gente ter tanto interesse em recapturá-lo. Nada disso foi percebido quando o prenderam, porque ele estava de uniforme e tinha patente militar — foi apanhado durante uma caprichosa viagem em um destróier, de volta a Peenemunde, no Báltico. A verdade só foi descoberta quando ele se evadiu da prisão. Então, devido aos ataques de foguetes, por fim se ficou sabendo que o deixamos escorregar por entre nossos dedos — disse Ted. — Sempre se diz nós e nossos. Fui eu que o deixei escorregar por entre nossos dedos. Assim, depois que ficou estabelecido quem era ele, tive também que pensar nos ataques dos foguetes. — Onde está ele agora? — Na América. Atualmente, fabrica armas para eles e para nós. A história de sua fuga faz parte da lenda pública, quase admirável, como é apresentada pelas revistas. Eu não consto nela — talvez a recordação fosse incompatível com a vida de poder. Ter estado à mercê de mais alguém sugere que a mercê pode importar. Tenho pensado, por vezes, que agora esse seria um caso difícil para um processo — o meu, quero dizer. — A voz de Ted Tice sorriu brevemente no escuro. — Vejo fotografias dele, de quando em quando. Absolutamente irreconhecíveis, como se ele agora usasse uma máscara e seu rosto real fosse aquele que vi. O rosto que todos possuímos no ponto extremo. Caro estendeu a mão para ele. Ted a tomou, aceitando a mera gentileza. — Não estou procurando uma justificativa. É a primeira vez que comento isto, e não estou me saindo bem. Não sou bom para contar histórias. Na época, eu sabia que ele podia ser alguma coisa, das piores, e havia inclusive a idéia de que, em sua opinião, estaria vencendo. Não que eu refletisse nisso, então. Naquele momento, eu tinha que agir, e aquela foi a forma tomada pela ação — a forma permanente, pois, seja o que for que contivesse de errado, eu não imaginaria fazê-lo de modo diverso. Agora, contudo, em geral esqueço isso. Se me lembro, pode parecer importante ou irrelevante — dependendo de minha disposição. Não se pode dar apenas esmolas aos pobres e inocentes. De qualquer modo, as complicações surgiram imediatamente, em decorrência da ocultação, o que gera suas próprias traições. Mesmo quando não se deseja particularmente divulgar uma experiência, dever-se-ia ser capaz de fazê-lo. Eu não conhecia ninguém em quem pudesse confiar, não tinha nenhuma espécie de amigos. E não estava certo de entender bem aquilo tudo, quanto mais saber o que era direito ou não. Além disso, naturalmente, não me agradava a confusão, o escândalo, no caso de a coisa se tornar pública. Assim, deixei tudo em segredo, até hoje. Eu contaria tudo agora, se quisesse, mas de nada serviria. — Qualquer pessoa consideraria tal ato acertado, em um livro — disse Caro —, mais ou menos como o menino e o condenado de que você falou. Na vida real, entretanto, a maioria o condenaria. — Compreenda, eu já tinha idade suficiente para não me creditarem um impulso generoso. Um garoto de dezesseis anos tem idade demais para a santa inocência. Não havia muito, a menina Caro deixara de acenar para aqueles atrás do arame farpado, quanto mais oferecer misericórdia. — Um ato consciente de benevolência independente — disse Ted — é o mínimo que a sociedade se pode permitir. Se eles cedessem por uma vez, não haveria mais fim para isso. Caso ele e eu estivéssemos em luta, eu o mataria, tendo aceitado os padrões da sociedade. Da forma como aconteceu, apenas apliquei meus próprios padrões, pois não me restava outra alternativa. Não estou pretendendo escusar-me. Apenas, eu tinha vantagens demais para usar. De novo, as complicações viriam mais tarde. Nossos melhores instintos não são mais confiáveis e coerentes do que a lei. Se você vive essencialmente em sociedade, haverá vezes em que preferirá depender da fórmula social — e descobrirá que, de algum modo, arruinou essa possibilidade. Desqualificou-se, por julgar os outros segundo aquelas regras. — Está querendo dizer que, um dia, você talvez tenha tido um bom motivo para denunciar alguém, mas que perdeu esse direito. — Sem dúvida. — Ted Tice prosseguiu, depois: — Tudo isto nos traz de volta ao velho Thrale. Provavelmente vou deixar o velhote se meter nesse negócio do telescópio, mas a honestidade de minha posição me repugna. Desta vez, pelo menos, não se pode dizer que tenho todos os trunfos, ou qualquer deles. — Você está com a verdade. Ted Tice riu. — Assumir livremente tal desvantagem devia ser convincente em si. — Virando-se no escuro, ele tornou a apertar a mão da moça, mas com um toque incerto, dedutivo, inteiramente pessoal, como o contato do cego. Inquiriu novamente, como já havia feito nessa manhã: — Em que está pensando, Caro? — No alemão. Gostaria de saber o que ele achava e como eram as coisas entre vocês dois. — Certo. Excesso de elementos, como ser incapaz de tomar fôlego em meio a um vento forte. Em outro nível, pequenas sensações familiares — ressentimento, por exemplo, por isso ter acontecido comigo, ao invés de com um patriota renitente, que manejaria o assunto de maneira convencional e sem o menor escrúpulo. Também uma sensação degradante de juventude e limitações. Então, havia a nova possibilidade de que nada importava, nem mesmo isso, embora tivesse acontecido para esclarecer aquilo. Da parte dele. . . quem sabe? Nenhuma demonstração de emoções naturais, nenhuma simpatia ou excitamente, inclusive medo, no sentido habitual. Não possuíamos palavras em comum, mas, sem dúvida, eu teria identificado algum desejo a partilhar. — Por isso é que escolheu o tipo de trabalho que faz? — Quem sabe? — Você poderia voltar a encontrá-lo, qualquer dia.'As coisas se repetem, de modo bastante estranho. — Também já pensei nisso. Pensei que talvez existam mais colisões dessa espécie na vida do que nos livros. É possível que o elemento de coincidência seja menosprezado na literatura porque parece impostura ou não pode ser tornado crível. Enquanto a vida em si não precisa ser imparcial ou convincente. Havia nisto algo de conclusivo, que fez com que logo se tornasse necessário levantarem-se e caminharem. A história dele criara uma intimidade mais humana do que sexual, uma crise de conhecimento comum, solene demais para traduzir-se em desejo. Ante a visão do homem e do rapazinho entre as rochas geladas, o amor se colocara a respeitosa distância, onde permaneceria à espera do amanhã. 8 "Por favor, desculpem a carta mal-escrita e mal-alinhavada. Minha unha do polegar se quebrou, e eis aí o resultado." Caro e Grace chegaram ao pós-escrito no mesmo instante. Estavam de pé na sala de estar de Peverel, ao meio-dia, Grace segurando a carta e Caro olhando por sobre seu ombro. Dora ia se casar. ' Nunca tendo acalentado a possibilidade, as duas estavam despreparadas para a facilidade da liberação. Ou para a conscientização de que isso poderia ter acontecido antes e em tempo. Seus ombros se tocavam, em uma espécie de conforto, tendo tanto a carregar e estando tão sobrecarregados. Portanto, elas podiam ser poupadas de algo. — Vejamos novamente a primeira página. Viraram atabalhoadamente as páginas, até onde estava escrito "Queridas G e C". Beth Lomax, a endinheirada viúva da Victoria League, tinha se revelado gratuitamente grosseira, logo após chegarem a Gibraltar. Tendo ela mesma convidado Dora para a visita, passara a tratá-la como a um estorvo. Dora prontamente colocara os pingos nos "ii": Beth Lomax ouvira algumas verdades, durante um bom período de tempo. Depois, Dora fora à cidade, para conseguir passagem de volta à Inglaterra. Na agência marítima, notoriamente ineficiente, ela ficara esperando em um sofá de couro, com um homem que ia apresentar uma queixa. Acontece que a espera se revelou longa demais para ambos. Saíram para uma xícara de chá, sem a passagem e sem que a queixa fosse feita. (De qualquer modo, as malas do major Ingot chegaram a Algeciras no dia seguinte, o que significou um bom augúrio para os dois.) Desde então, tinham dado algumas saídas e descoberto interesses mútuos. Caro leu, admirada: — Temos gostos iguais e pensamos da mesma forma. "Vocês duas agora estão crescidas", escrevia Dora. "Não precisam mais de mim." Havia censura, bem como ironia, na frase. O casamento seria no Algarve, onde o major vivia — ou residia. O major Ingot — Bruce — estava cuidando dos preparativos. "Nunca tive ninguém que fizesse as coisas por mim, antes, de modo que estou saboreando o luxo." Os noivos viajariam para a Inglaterra, mas tão-somente a fim de arrumarem seus pertences, uma vez que o major se fixaria no Algarve, onde cuidava de negócios de importação e exportação, depois que se reformara. — Dora em Portugal! — suspirou Grace. Aquilo parecia histórico. — Oh, Grace, graças a Deus! Aquilo era o mais próximo a que chegariam, na avaliação da perda. Inclinaram-se novamente para ler. Dora estaria freqüentemente na Inglaterra, porque o major Ingot — Bruce — tinha que visitar seus compradores. Afinal de contas, não era como se ela fosse desaparecer. Nem precisava dizer, afirmava, que as amava. Ela própria não importava; elas eram tudo o que importava. "Nunca pedi nada a ninguém e não vou começar agora." O vestido seria de crepe marfim, um modelo de passeio, com um casaco curto. O chapéu, bege. Havia uma palavra que não conseguiram ler, mas que poderia ter sido "estefanote". O major estava arranjando algumas fotos e Dora levaria as que estivessem mais ou menos boas, embora nunca tivesse tirado um retrato que lhe agradasse. Seria um alívio fugir daquele calor, pior do que tudo na Austrália. Apenas ser feliz. A carta era assinada "D". Dora tinha dificuldade, não só com assinaturas, mas com saudações também. Um tom mecânico, quase distraído, levantava a possibilidade de que Dora talvez nunca tivesse tido sentimentos em relação a elas. Grace receava que Caro pudesse chamar a atenção para isso. Houve também uma rápida, indecente conscientização da mudança carnal que Dora, espantosamente, seria a primeira delas a experimentar. — Temos que passar um telegrama. No entanto, permaneceram ali, juntas, em uma síntese de confusa recordação. Grace gostaria de ter pensado em algo universal, mas só conseguia alcançar a superfície do sentimento. Caro poderia estar vendo a própria Grace, de avental e arrastando uma cadeirinha azul-celeste. Iam dar, uma à outra, um raro abraço. — Espero não estar interrompendo. Sefton Thrale viu que as duas estavam eretas e enlevadas à luz do sol, segurando sua carta. As duas se separaram, ainda não preparadas para contar. — Trouxe Tertia comigo. Ele trazia Tertia consigo, a filha de um lorde. Tão insinuante e bela, tão loura e alta, que parecia o anúncio de algo muito caro. Viera do castelo dirigindo seu carro e tinha os cabelos presos com uma tira de seda rosa, que lhe passava atrás das orelhas. Os olhos eram azulclaros — com um brilho que, à distância, parecia de genuína delícia, e talvez o tivesse sido realmente, na infância. De perto, no entanto, a claridade ofendia, não dando nem recebendo boa impressão. Nada nela parecia tocado pela benevolência. As circunstâncias impunham Grace como a responsável ali. Fechou a carta de Dora em seu envelope e adiantou-se, polida demais para denunciar-se. Murmuraram "como vai". Tertia ofereceu as pontas dos dedos, em um gesto um tanto cansado, como se reservasse forças para algo que valesse mais a pena. — Paul chegou? Três jovens sentaram-se, enquanto Sefton Thrale saía, em sua incumbência favorita — saber notícias de Paul Ivory, que, finalmente, devia chegar naquele dia. Após apertar mãos, Tertia tocou seu corpete e seu cabelo: um animal que expulsava fastidiosamente os traços de contato. Percebia que viera interceptar, sem interromper, uma corrente de alto sentimento — as irmãs em sua preocupação particular, nada acessíveis ao seu desinteresse. Como acontecera antes com Christian Thrale, ela as achava insuficientemente cônscias da própria condição inferior, e gostaria de abrir-lhes os olhos quanto a isso. Sentia que, embora Grace eventualmente pudesse ser corrigida dessa maneira, Caro seria um caso mais difícil. Tertia Drage arrancou uma folha presa a seu vestido e a jogou enfaticamente na lareira vazia. Aquilo era algo que elas notariam novamente em Tertia — que ela manejava objetos ou empurrava portas com punitiva rudeza, não encontrando razão para conceder uma palavra de complacência. A ocasional raiva humana, sentida contra coisas inanimadas que caem ou resistem, no caso dela era perpétua. Não. Tertia não queria sherry. Obrigada. Tinha vindo no carro, que elas poderiam ver, pela janela aberta. Caro levantou-se e espiou. Era um Bentley, baixo e conversível, de antes da guerra, um modelo cobiçado pelos colecionadores. Verde-escuro; esguio e lindo como Tertia. — Que carro maravilhoso! Caro empurrou a persiana da janela um pouco mais e ficou contemplando o carro. Seus faróis circulares, dispostos sobre os pára-lamas, eram tão vidradamente apagados como os olhos de Tertia. — Mil novecentos e trinta e sete — informou Tertia. — E em condições para um salão de exibições. Um gato ainda não adulto chegou pelo peitoril. Caro se sentou novamente, com o gato no colo. Grace segurava a carta azul de Dora. Elas não conseguiam recordar a quem cabia a vez de falar agora. O professor voltou. — Trago informações decisivas — disse. Tertia, no entanto, não deu qualquer sinal de vida. Além da janela, o carro era mais simpático, porque sugestivo de fluência e de eventual animação. Paul Ivory vinha de Londres, motorizado, devendo chegar logo. ("Motorizado" era a palavra preferida do professor.) O carro de Ivory investiria ao longo do de Tertia, que, quase certamente, o eclipsaria ou condenaria. — Não posso esperar — disse Tertia, demonstrando com isso apenas que não iria esperar. — Odeio reuniões. Ela afirmaria "Não gosto de bichos" ou de crianças ou do oceano, ou da primavera, confiante em que sua antipatia devia ter importância. E qualquer opinião contrária tinha de ser, como ela implicava, falsamente sentimental. Mesmo assim, ela não conseguia deixar aquelas duas irmãs apagadas ou em equívoco. Em realidade, ambas aguardavam sua saída, para poderem recomeçar. Caro tornou a cruzar as pernas com cuidado. No gatinho adormecido, o peso deslizava de uma extremidade para a outra, como em uma sacola de feijões. O peso legítimo estava no envelope azul, no colo de Grace. Quanto a Tertia, Caroline Bell gostaria de saber qual Benbow a adernara, naquela condição de salão de exibições. Grace pensou que Tertia logo afirmaria odiar gatos. — Posso manobrar o carro aí fora — disse Tertia. — Não posso? Suas observações não eram acompanhadas de um sorriso, mas isentas de dúvida ou de delicadeza. Como argolas atiradas, que caíam tilintando, em um preciso baque, surdo, em torno de uma estaca. — Adeus — disse, relanceando os olhos pelo aposento. Para Caro, acrescentou: — Os gatos me odeiam. Quando Tertia saiu com Sefton Thrale, Caro disse: — Radiantes com sua felicidade. O que acha de algo assim? Em verdade, a única felicidade que Dora havia endossado era a delas duas. — Podemos redigi-lo. Descerei de bicicleta, para enviar o telegrama. A atitude de Tertia as contagiara com monotonia, e elas agora não tornariam a abraçar-se sobre a carta de Dora. Lá fora, o carro era manobrado em marcha à ré até uma margem relvada, onde se agachou para saltar. A gasolina exalou-se sobre os pés de ibéris. Então, Tertia disparou, dispersando pequeninas pedras. Quando elas haviam escrito os dizeres do telegrama, chegou o segundo carro, atarracado, fechado, vermelho-escuro. Puderam ver o homem de cabelos claros ao volante e Ted Tice, surgindo de um lado da casa para ajudá-lo a estacionar. — Tantas coisas acontecendo de repente — comentou Grace. — É uma pena que não tenham sido mais espaçadas. Com isto, ela demonstrava a medida infantil de suas vidas isoladas, inocentes, mas ainda assim expectantes. Ted desapareceu da vista de ambas, mas puderam ouvi-lo dizer, bem alto: "Para a esquerda" ou "À direita" e "Cuidado". O rapaz do carro retirou o cotovelo de sobre o vidro arriado da porta e tomou o. volante com as duas mãos. Usava uma blusa de malha escura, com gola alta. Seu cabelo caía sobre a testa, como o de um colegial. As rodas giraram neste sentido, naquele, e Ted Tice, invisível, gritou, como um diretor de filme: — Pare! Grace perguntou a Caro: — Quer que lhe traga alguma coisa da aldeia? Não obstante, as duas continuaram espiando o carro vermelho, até vê-lo parar. O motor foi desligado e um rapaz saiu: alto, encantador e bem-trajado, de uma forma que as duas nunca tinham visto. Paul Ivory foi o primeiro inglês que conheceram usando — como usariam todos mais tarde — uma blusa de malha azul-escura, modelo de pescador, calças leves de algodão e sapatos de lona. Chegou então o momento em que Ted Tice seria o mais culpado, já que foi ele quem parou, olhou e baixou a mão. Qualquer que fosse a espontânea antipatia anunciando-se entre eles dois, Paul pelo menos se adiantou e apresentou-se, tornando as coisas possíveis. Inclusive quando seu olhar franco pousou em Ted, avaliando-o e decidindo. Trocaram um aperto de mãos, porém Ted permaneceu impassível, enquanto Paul Ivory tirava uma mala do carro e batia uma porta. Ele bem podia ter-se afastado, porque o professor já saía da casa, anunciando que não podia estar mais satisfeito. Mas não; ele continuou lá, desajeitado e deslocado, como que apático na atividade da chegada e decidido a que Paul Ivory se salientasse, pelo contraste entre ambos. Foi uma demonstração tão pronunciada de instinto, que Grace se voltou a meio na janela, esperando que Caro interpretasse. Caro achava que, na Inglaterra, a desconfiança das classes podia destruir até mesmo os melhores, desviando-lhes as energias. Ela observava, com certo amplo sentimento que não chegava a ser amor, no qual aprovação e exasperação se fundiam em uma ânsia para que Ted Tice oferecesse a benevolência indispensável, em uma pequena cena de atitudes superficiais e intercâmbios sistemáticos. A essa altura, ela se acostumara a vê-lo proporcionar rasgos de compreensão que, em si, eram fortes experiências. Naquela ocasião, entretanto, ele permaneceu de pé no cascalho, com as mãos pendidas, parecendo não tê-la percebido e nem a mais ninguém. Enquanto isso, Caro espiava, perguntando-se que impulso atuava sobre ele. Paul Ivory olhou para a janela baixa em que as duas jovens, de pé, ficavam quase ao seu nível. Ele sorriu, com seu rosto simpático, claro e atraente, afirmando a agradável surpresa com tal controlada sinceridade, que a surpresa deixava de existir. As irmãs sorriam também, na maneira séria que empregavam para tais momentos. Apenas Charmian Thrale, em uma porta aberta, fazia contraste entre aquela auspiciosa chegada e a maneira como Ted Tice havia surgido, encharcado pela tempestade; recordando como Caro, do alto da escada, olhara para baixo naquela manhã, e se fora embora. 9 Quando Paul Ivory caminhou de alpargatas pelo caminhos e corredores de Peverel, o som inaugurou maciamente a era moderna. O mesmo fizeram suas blusas de malha de algodão — algumas azuis, outras pretas — e as calças de popeline clara. A era moderna, bem como o tempo, tornavam aquilo possível. Paul trouxera consigo o sol e sua sorte. Ainda cedo, nas manhãs quentes, as moças passavam a ferro vestidos estampados em um aposento junto da cozinha, onde uma mesa de passar era coberta por um cobertor usado e havia um velho tanque de pedra. O pulo ver Shetland e o cardigã verde-mar, em ponto torcido, tinham sido postos de lado, talvez para sempre. — Lembro-me de você quando ainda pequenino — disse a sra. Charmian Thrale a Paul Ivory. — Foi a única criança que chegou a cativar meu pai. Era a sua maneira de falar: "Que adolescente encantador e deveras abençoado!" E também de esboçar, com a máxima delicadeza, sua própria e desolada infância. Paul aceitou bem o elogio, nada constrangido, modestamente satisfeito. Naquela época, não era comum ver-se um rapaz apreciando francamente o fato de ser jovem e sentindo justificado prazer com a própria saúde e boa aparência. Em sua prematura e merecida distinção, ele fazia o futuro parecer menos informe. A peça de Paul seria encenada em Londres, no outono. Como estava em preparação, ele recebia telefonemas e envelopes registrados. Havia manhãs em que não devia ser perturbado, pois fazia acréscimos ou reescrevia. A peça intitulava-se Amigo de César, e já fora anunciado pela imprensa que apresentava uma família contemporânea numa analogia com o poder político. O próprio Paul lera isso, com um sorriso. Um famoso ator concordara em representar o papel principal. Paul Ivory era um homem promissor em um sentido literal: as circunstâncias haviam assumido o solene compromisso de vê-lo progredir. Sua peça seria ampla e justamente elogiada. Cidadezinhas provincianas e capitais estrangeiras clamariam por ela, e um famoso diretor a tornaria um filme de sucesso. A radiante preeminência do compromisso dele com os eventos tinha muito mais de noivado que seu futuro comprometimento com Tertia Drage. Em sua sutileza e confiança, a beleza física de Paul, como seu caráter, sugeriam técnica. Como uma tela de qualidade, que pode receber uma tonalidade escura por baixo da que se tornará clara, ou clara por baixo da que será escura, também Paul Ivory podia ser subliminarmente frio onde seria quente e quente onde se mostraria frio — os tons sobrepondo-se para criar, engenhosamente, um delineamento forte, mas ainda assim fluido. Da mesma forma, seus membros podiam parecer instrumentos ou armas de graciosidade, ao invés de manifestarem sua simples evidência. Os dedos adelgaçados de Paul se inclinavam para cima nas pontas, com extrema sensibilidade, como que testando o calor de uma superfície. — Paul conseguirá o que quer — disse Sefton Thrale a Ted Tice. Falava como se elogiasse a beleza de uma jovem, diante de uma feia. Não obstante, havia a noção de que Paul Ivory e Ted Tice eram ambos homens predestinados e simbolicamente opostos. Não se tratava apenas de o mundo tê-los criado como contrastes. Mais irracionalmente, parecia que um deles teria que perder, para que o outro vencesse. Sefton Thrale já comentara duas vezes que Tice iria embora brevemente, e não esquecia a data certa. A pedido de Paul Ivory, a sra. Thrale lhe falou sobre o vigário — que tinha problemas de fala e já fora comunista, mas que nunca, como o homem em Thaxted, hasteara a bandeira vermelha na igreja. — Ele é high1. Muito high — indicou o professor, como se um sacerdote fosse uma peça de caça pendurada, recomendando atenção para a fachada da igreja, como um belo exemplo de pedras cardadas. Então, no domingo, Paul fora à igreja da aldeia, envolvendo os moradores de Peverel em uma atitude religiosa. Passando blusas a ferro, as duas irmãs viram o carro vermelho afastar-se. Charmian Thrale talvez observasse o evento, de algum cômodo do andar de cima. Paul espargiu seu encanto e Ted, seu desencanto. Era inegavelmente comovente a idéia daquele alto e vitorioso varão ajoelhado, dando e recebendo. Mesmo que tanto a sra. Thrale, na janela de cima, e Caro, na cozinha, estivessem cônscias de que não se pode confiar em mulheres com emoções de tal espécie. Carregando as roupas dobradas pelo corredor, Caro encontrou Ted na porta aberta. — Christopher Robin está dizendo suas preces — disse ele. Caro não sabia que partido tomar, mas, como Sefton Thrale, recordou que Ted logo iria embora. Deixou as blusas passadas em Membro da High Church (Igreja Alia), partido conservador e ritualista na Igreja Anglicana. (N. da T.) ;1 uma cesta nos degraus e foi com ele para o jardim. — Em duas semanas terei ido embora — disse Ted. — Irá para Edimburgo. E, logo depois, Paris — respondeu ela, querendo deixar claro que não havia motivos para ele se lamentar. Dentro de um mês, ela própria viajaria para Londres, a fim de tomar posse do cargo público. Porque Caro fora aprovada no concurso, à frente de todos os outros candidatos; à sua maneira, era também uma pessoa predestinada, o que não acontecia com eles. Houve a breve e silenciosa fantasia a respeito de uma vida nova, incluindo-se as mesas de pinho e escalavradas cadeiras de escritório. — Preciso imaginar tudo sem você — disse Ted. Caminharam para fora do jardim e pararam debaixo das árvores, observando o vale. Toda uma nação jazia imóvel, com o domingo e o verão. Um campo cultivado amarelo, muito distante, era plano e brilhante como uma estria pintada em tela. Das terras altas e além, restos de cereais abandonados no campo após a ceifa, os restolhos, confundiam os olhos, assemelhando-se a pedaços de velho tweed. Na elevação oposta, como uma peça de xadrez no tabuleiro, o castelo de Tertia chanfrava o céu com suas ameias cinzentas. — Não sou atraente a maior parte das vezes — disse Ted —, e nada menos atraente que o amor indesejado. No entanto, em breve estaremos nos despedindo. Espero que você se lembre de mim e que me permita escrever-lhe. E, finalmente, que me deixe amá-la. A jovem ouviu a declaração com um estoicismo que a fazia parecer o sofredor: suportando o apelo do rapaz como uma dor necessária, tratando-a com cuidadoso respeito. — É claro que me lembrarei de você e escreverei. De todos os que conheço, é a quem mais aprecio. — Ela se afastou — um vestido azul que passava como uma névoa, sobre um fundo de árvores escuras e campos pintados. — Quanto ao resto, não posso imaginar como chegaria a acontecer. — Em minha opinião, é muito difícil. Para a liberação de algumas poucas palavras, ele desperdiçava os haveres de silêncio. Era inconcebível que não pudesse tocar ou abraçar aquele corpo azul-claro, que tinha dado energia a todos os seus dias. O próprio contorno da terra, além dela, não tinha segredos. — Neste momento, você está tão distante de mim como quando ficarmos separados — acrescentou ele. — Não traz felicidade para mim permanecermos juntos, aqui e agora. Entretanto, mais tarde pensarei nisto como se tivesse estado próximo de você — e feliz. Ela havia passado o braço pelo tronco de uma árvore e ficou olhando para ele. Parecia que a própria paisagem exultava e que as próprias árvores se aliavam a ela — impessoais, assentadas. Ou que Caro se inclinava contra o tronco sedutoramente, para fasciná-lo. A alucinação desapareceu, mas deixou uma espécie de conhecimento. Havia um cheiro forte de vegetação evaporando-se ao sol: a Inglaterra secando. — Ted — disse ela. — Ted! — Suave exasperação. — Quando eu começar meu trabalho em Londres, serei independente pela primeira vez. Após anos de Dora, isto é uma liberação para mim. Era um motivo, sem dúvida; aliás o motivo mais verdadeiro. Ele já ouvira falar de Dora. — Uma vez que as pessoas se instalam como motivo para preocupação, não desistem facilmente. — De súbito, Ted receou que Caro pudesse relacionar tais palavras a ele próprio. Acrescentou: — De seu lado existe a ansiedade, do dela, a reivindicação disso. Tratase de algo comumente tomado por afeição, até mesmo profundo amor. O próprio fato de você ter se saído bem nas provas — ele se referia ao concurso no qual Caro passara em primeiro lugar — confirma sua habilidade para aceitar a carga que foi dela: agora, já tem um certificado para prová-lo. — Não pretendo contar a ela nada do que aconteceu. Pareceria um recuo. Ainda criança, Caroline Bell descobrira que realizações podem transformar-se em armas hostis. ("Tudo lhe cai nos braços, por que deveria preocupar-se com uma vida como a minha?") Há muito tinha sido solucionada a luta pueril entre o desejo de exibir ou contar e a necessidade de armazenar uma força silenciosa. — Não sei bem como explicar isto — acrescentou. — Entendo perfeitamente — respondeu Ted. (Quando ele tinha uns onze anos, sua mãe lhe contara: "Aconteceu quando fui para o Lacey's, ao deixar a fábrica, e comecei a trabalhar com faturas. Foi seu tio Tony Mott quem conseguiu essa minha oportunidade, ao ver que eu tinha jeito com somas. Sim, foi seu tio Tony quem me deu essa oportunidade. Muito bem, chegou o Natal e o sr. Dan Lacey entregou às outras garotas do escritório um envelope com duas libras para cada uma, como presente. Só que eu ganhei três, por ser rápida com os números. Eu nunca tinha sentido o gostinho de duas libras, quanto mais de três, meu salário era de doze xelins por semana, que meu velho tomava, mal eu aparecia na porta de casa. E eu sabia muito bem que ele ia ficar com minhas três libras. Então, morávamos na Ellor Street, e quando cheguei em casa nessa noite, logo fiquei sabendo que minha prima Lorna — que nunca chegou a ver a nossa Lorne, que era a filha única de Cec e morreu dos pulmões, no mesmo mês em que nasceu —, bem, que Lorna tinha ganho três libras, ou três guinéus, como se dizia, onde ela trabalhava, embora o costumeiro fossem duas. E eu fiquei indecisa, compreenda, entre mostrar que também merecia aquelas três libras, como Lorna, ou dizer que tinha ganho duas e ficar com uma para mim. Pois foi o que fiz; guardei uma, sem dizer nada. Foi a única vez que banquei a esperta". Enquanto falava, a mãe de Ted peneirava trigo sobre um grande mármore na cozinha, a única mesa que tinham.) Debaixo das árvores frondosas, Ted Tice virou a cabeça para trás e viu o céu. Isso podia ter algo a ver com lágrimas salgadas e a lei da gravidade. "Foi seu tio Tony quem conseguiu essa minha oportunidade." Oh, Deus! Minha oportunidade! (A mãe de Ted dizia, enquanto peneirava o trigo: "Lorna queria agradar ao pai. É apegada à família, aquilo foi muito certo naquele tempo, mas o que conseguiu? Vive doente e de cabeça baixa, a pobre Lorna".) Ted Tice olhou para o horizonte. Lembrava-se do tio Tony, baixo e rosado, que levava uma vida um pouco melhor que os outros parentes, conhecia um sujeito no Conselho e tinha um gato-do-mato chamado Moggie. — Paul Ivory está casando com aquele castelo — disse ele. — Creio que sim. Os dois ficaram olhando para a sólida e ensolarada ficção da imaginação da história, em sua encosta datada. Como esposa, o castelo inspirava certo temor. — Paul Ivory tem que casar com um lorde ou, pelo menos, com a filha de um — disse Ted. — Está escrito. Como está escrito que ela precisa ser rica. Ele não tem escolha, é compulsivo. Procurou o castelo, certeiramente. — Ainda assim, não vejo por que Tertia devesse ser compelida a aceitá-lo. Era esquisito dizer "Tertia", quando não podia haver qualquer intimidade. — Talvez ela se sinta sitiada no castelo. — Os dois sorriram, imaginando Tertia nas ameias, espiando com olhar vidrado de trás dos balestreiros. — Ou talvez haja algum antagonismo que ela aprecia. Também é possível que conheçam o pior um sobre o outro. Isso formaria um elo. — Paul poderia modificar-se. Ainda é jovem. — As falhas dele não são as da juventude. Ele não cresceu, trata-se apenas de uma transmissão automática. Caro nunca ouvira aquele tom na voz de Ted Tice antes — selvagem como o de seus inferiores, mostrando uma malícia que lhe empanava a virtude. O desapontamento talvez fosse por causa dele, por Ted ter de juntar-se à generalidade sem máscara. Ela saiu da sombra das árvores e começou a caminhar de volta à casa. Não haviam discutido, mas agora certa cautela se desenvolveria em ambos os lados — uma preocupação em não ofender ou expor. Não ficou claro porque isso tinha que começar. A Ted Tice, a derrota pareceu ser de sua própria elaboração, como se lhe tivesse sido designada alguma grande obrigação e ele a houvesse deitado a perder. Uma imagem — a da forte vontade dela, expressa em aparente passividade, enquanto ele urgia por absoluta necessidade — obstruiu sua inteligência com uma perda cabal. Do contrário, ele teria visto naquilo uma virtual representação do ato do amor. Naqueles dias quentes, Tertia ia e vinha, levando Paul Ivory para cá e para lá. Grace e Caro a viam sentada ao volante de seu carro verde, as sobrancelhas erguidas e as pupilas insensíveis como os discos de bronze aplicados aos olhos de estátuas antigas. — Imagino que ela seja um grande prêmio — disse Grace. Havia lido essa frase, a qual era sua maneira de declarar: Eles não podem estar apaixonados. Tiveram um interlúdio de calmo esplendor, quando os dias inteiros se transformavam em manhãs. Em um desses dias brilhantes, Caro voltava da aldeia e deparou com Paul Ivory, que caminhava. Visto daquela maneira, livre, ele era como um cavaleiro a pé, e foi o que ela lhe disse. — Meus privilégios perdidos — disse ele. Ninguém os imaginaria perdidos, ao vê-lo rir e dar suas graciosas passadas. Paul Ivory era um astro: qualquer firmamento o aceitaria. Ele avistara Caro à distância e modificara seu rumo para interceptála. Havia observado, à medida que se aproximava, que o caminhar dela transformava o avanço de outras mulheres em baques surdos ou passos desajeitados. Poderia dizer que a delicada força morena de Caro era viril — um sombrio arrebatamento que podia distinguir algum rapaz. Paul Ivory recordou jovens morenos e vigorosos que guardavam algo para si mesmos, porém que ainda retinham essa mesma ressonância de aventura. Refletiu então em como tais jovens costumavam terminar débeis, com que rapidez se tornavam irritadiços ou desconfiados, quando não, transformando-se nos floretes de mulheres amargas — suas energias concentradas em criticar ou vangloriar-se, seu orgulho empanado. Ele já presenciara isso. E, no caso das mulheres, supunha que tais seres definhavam por completo ou, no máximo, transferiam aos filhos alguma parte de seu perdido ímpeto. Paul Ivory também presenciara a punição do impulso. Vira como os homens providenciavam esposa e filhos para si mesmos, antes de terem o paladar ou o caráter formado — para depois ficarem comprometidos e condenados às conseqüências de um capricho ultrapassado. Estava satisfeito e convicto de que seu futuro casamento evitaria tais perigos. Não se importaria com a acusação de ser desapaixonado. Não acreditava que paixão fosse essencial ou que o mundo a tivesse definido adequadamente. — Devemos tomar o atalho pelo cemitério? — perguntou Caro. — Nenhum cemitério pode ser um atalho. Paul abriu um desagradável portão. Uma pipa rasgada jazia sobre a relva. — Sempre há crianças brincando por aqui — comentou Caro. — Crianças gostam de cemitérios. Não há movimento, adultos vivos, e as lousas das sepulturas têm a sua altura, fazem-lhes companhia. Caro costumava passar por ali e mostrou as inscrições. Aqui jaz tudo o que podia morrer de Oliver Wade. Os encantos terrenos de Tryphena Cope aqui estão amortecidos. Nas últimas lousas, apenas o nome e os anos de nascimento e de morte — ligados por um pequeno hífen gravado, representando a vida. Placas escritas e erodidas desequilibravam-se como pipas rasgadas. Nas lousas mais antigas, a escrita era indecifrável: inaudíveis últimas palavras. — Os mortos dos cemitérios dão a impressão de terem todos morrido normal e pacificamente — disse Caroline Bell. Paul não respondeu, mas ela insistiu: — Acha que é porque eles excluíram os suicidas do solo consagrado, mantendo assim a ficção? Quando chegaram à estrada, em silêncio, ocorreu a ela que, sendo Paul um devoto, talvez o tivesse ofendido. A expressão dele, agradável, embora talvez fingida, permitia-lhe pensar assim. Havia algo frio nele que talvez merecesse uma oportunidade. Talvez Paul desejasse puni-la — por ela agora ter sido invulgar e por qualquer iminente mediocridade. O invulgar, resumindo-se tudo, era que ela deixava entrever uma espécie de crença. Poderia haver discordância quanto a isso, mas era verdade — Caro tinha fé, à sua maneira, que não era precisamente semelhante à dele. — Você emana muita decisão — disse ele —, mas toda fora de foco. — Não creio que me conheça bem o suficiente para dizer isso. Ele riu. — Poderei dizer, então, quando a conhecer melhor? Os passantes olhavam com mais fixidez que a necessária, porque aqueles dois formavam um casal cujos destinos não podiam ser preditos com segurança. E o mundo, ao encará-los como um par, tornava isso um fato. — Estão surpresos por vê-la com alguém ao seu lado — disse Paul. — Você é muito sozinha. — Tinham chegado a uma curva, de onde o castelo os enfrentava, através de prados estivais. Tudo parecia oscilar ao calor, mas não o castelo. — Costumo vê-la sozinha no jardim, à noite. Olho para baixo e a vejo lá, sozinha. Na manhã transparente, ele criava um momento de silêncio noturno: Caro no jardim, sem nada perceber, e Paul espiando. De sua oculta elevação, ele criara fragrante escuridão ao redor de ambos. — A mim, parece que não estou sozinha o suficiente. — Diz isto por agora? Por mim? — É claro que não. O castelo era inexorável, o único detalhe não executado por Turner. No vale, uma linha de vimeiros estremecia à menor passagem da brisa. — As mulheres são capazes de suportar a solidão, mas não a querem. Os homens a querem e precisam dela, mas a carne logo os faz de bobos. Era costume de Paul Ivory imaginar que as moças sabiam mais do que deixavam transparecer. Tomando o castelo por modelo, Caro não se mostrou desconcertada. Já estavam na trilha da montanha, perto do lugar onde ela se sentara com Ted Tice, no escuro, e conversaram sobre lealdade. Embora não houvesse qualquer traição envolvida, Caro não desejava que ele a visse ali, parada com Paul Ivory. Embora caminhando em sua maneira ereta, Caro inclinou-se interiormente e ficou vulnerável. Paul parou ao lado do muro baixo, como se adivinhasse os escrúpulos de Caro e pretendesse ridicularizá-los. — Também o mandou ir tratar da própria vida? — Ele limpou superficialmente o muro com a mão e sentou-se. — Sabe que me refiro a Tice. Caro sentou-se ao lado dele. Seu espírito parecia uma coisa desligada e fria, ao passo que o corpo se destituía de peso, úmido, com os contornos expostos e pouco natural. Seria difícil dizer qual era indigno do outro. Ela observava a aparência de Paul Ivony como se fosse um evento que poderia desenvolver-se diante de seus olhos. Ele tinha a face do futuro, capaz de perceber o que o mundo deseja. Quando dissera "Sabe que me refiro a Tice", sua expressão se anuviara com algo rude, que a tornava cúmplice. Aquilo não era mais do que Caro esperava profundamente dele, mas ao sangrar aquela veia de expectação, Paul Ivory criara uma cumplicidade entre ambos. Quando ele dissera "Sabe que me refiro a Tice", ela havia compreendido, também, que o amor de Ted constituía um estímulo para Paul, que era o motivo de estarem ali, sentados juntos no muro. O homem se virara para ela, esperando alguma espécie de vitória. Ele a faria crer que qualquer ou toda suspeita era garantida e confirmada. Caro estava certa de que Paul Ivory iria tocá-la — tocar seu seio ou o ombro, encostar o rosto ao dela — e já experimentava o contato, com purificante intensidade. Ao mesmo tempo estava inerte, subjugada, fatalista. E ficou quieta, de dedos entrelaçados, sem qualquer indício de agitação, com a impassibilidade imemorial das mulheres em tais momentos. Paul ficou em pé e enfiou as mãos nos bolsos. — Vamos indo, então? Paul se levantara; Caro ergueu os olhos, recompondo sua carne e seu sangue. E Paul sorriu, tendo conseguido sua vitória. Caro entrou na casa sozinha e parou no vestíbulo. Havia um espelho na parede e, ultimamente, ela passara a olhar-se. Mesmo quando olhava para uma parede lisa, naqueles dias, podia estar retratando-se, embora sem exatidão. Agora, sua expressão estava sombria, com a mudança da luz do sol para a escuridão — ou porque sua visão diminuía, por um momentâneo desfalecimento. Uma porta se abriu à distância. — Charmian? — chamou o professor Sefton. Caroline Bell não pôde entender por que algo tão simples a deixou quase em lágrimas. Talvez fosse uma disposição de ânimo. Talvez fosse por haver, muito tempo antes, permanecido em um quarto escuro, ainda uma garotinha de seis anos, olhando-se em um comprido espelho, frio como água. E uma porta se abrira e ela ouvira a voz do pai chamando: "Marian?" — que era o nome de sua mãe. Era nisso que consistia tudo, essa evocação: um pequeno espasmo de lembrança que jamais poderia elucidar-se. 10 Paul Ivory havia sido aceito por Tertia Drage. Quando o fato se tornou conhecido, os Thrales ofereceram um jantar ao lorde do castelo, convidando também dois vizinhos que, segundo era sabido, tinham propriedades suficientes no Quênia. A ampla sala de estar de Peverel, trancada, foi arejada e mais empregados foram contratados na aldeia. A abertura do aposento para tal finalidade não apenas encerrou seu período de fechamento, como deixou claro que ele era agora um relicário. Mais comprida que larga, a sala tinha pilastras coríntias e uma pálida lareira em cada extremidade. As janelas iam do piso ao teto, encortinadas de seda laranja, trazida havia muito de Swatow por um parente de Butterfield e Swire. As atraentes cortinas, apesar de estarem agora se desfazendo e empoeiradas, podiam ser puxadas para esconder espaços que necessitavam de novas vidraças. Dois candelabros haviam sido cuidadosamente limpos, mas um terceiro, numa cesta, no sótão, era uma confusão de cristais desmantelados. À luz do dia, trechos mofados formavam um atlas nas paredes. Ted Tice tinha muita habilidade para tais coisas e consertou uma tábua extra de uma mesa oval. A peça, que ficara empenada por estar fora de uso durante a guerra, foi depositada em uma armação, para que ele pudesse repará-la. Os empregados contratados na aldeia, não convencidos acerca da posição que ele ocupava na casa, desprezaram-no por sua eficiência. Havia um casal de idade, para o trabalho de supervisão — o marido alto, mas com a postura distorcida, dando a impressão de que fora agarrado e espremido; a esposa, uma armadura de carne e corpete, era uma plataforma de canhão, resistindo ao ataque. Este casal — os Mullions —, após longa prestação de serviços em alguma casa poderosa, agora gozava a aposentadoria; entretanto, segundo diziam, sentiam prazer em satisfazer, de tempos em tempos. Servir e satisfazer, sua preocupação mais premente, não os tinha debilitado e nem os tornava mais acessíveis. De preto, a sra. Mullion disse a Ted Tice: — Os jovens não entendem o significado de servir. Isso porque ela o ouvira cantar "do sul, do sul" na sala de estar e, no entanto, continuava não acreditando que fosse um hóspede. A sra. Mullion também não gostara do sotaque de Ted e o temia, talvez por ele não esboçar a menor tentativa para alardeá-lo ou disfarçá-lo. Era visível, contudo, que o casal contratado sentia por Paul Ivory um respeitoso temor, um homem que não cantava, não consertava móveis. e mal se dignara cumprimentá-los. Ted estava terminando o conserto da mesa, que compreendia um toque de verniz e a fixação de um pequeno gancho de latão. Quando a sra. Mullion falou sobre o significado de servir, ele estava trabalhando perto de uma janela aberta e talvez não a tivesse ouvido. (Certa vez — isto acontecera quando Ted tinha dez anos e suas amígdalas haviam sido extraídas, o que foi feito em casa —, sua mãe se sentara à beira da cama que ele ocupava e lhe falara sobre servir e satisfazer. "Seu pai disse que não faria isso novamente, que não serviria mais. De modo nenhum. Fizemos isso uma vez, logo que nos casamos, e fomos caseiros dos Truscotts, em Ponderhurst. Tínhamos medo de não arranjar trabalho, e sou pai continuava com aquela tosse que pegou na guerra, com o gás. Quando foram para lá, os Truscotts levaram cozinheira, arrumadeira e também um motorista, mas procuravam um casal que tomasse conta de tudo na época em que ficavam na cidade, quando havia trabalho no Parlamento. Bem, o pagamento não era grande coisa, mas a gente teria casa e comida. Além do mais, não havia muito serviço pesado. "Acho que estávamos lá havia umas seis semanas, quando o sr. Truscott — Sir Eric, como hoje é conhecido — chegou para seu pai e disse que estávamos satisfazendo, que podíamos ficar de vez. No entanto, vendo que nós éramos casados de pouco, disse que ele e a sra. T. queriam ter sua tranqüilidade no campo e, por causa disso, preferiam que não tivéssemos filhos. Eu não estava presente quando ele falou, mas seu pai me chamou e eu fui. Então, ele disse para o sr. Truscott: 'Repita aquilo' — bem assim, prontamente, e então deu para sentir o que podia acontecer. 'Diga para ela', falou seu pai. Muito bem, seu pai então foi direto ao assunto. 'Estamos indo embora hoje', disse — nós, que não tínhamos um penny no mundo e nem mesmo um lugar para encostar a cabeça. E Truscott respondeu, todo vermelho e fuzilando: 'Podem ir, mas não dou referências'. E seu pai disse: 'Minhas referências são que não vou aturar sua impertinência abusada. E que lhe importa, se tivermos um bando de filhos ou nenhum?' Então, ele disse o que não devia, sobre Truscott e a sra. T. — ela não era má pessoa, realmente, apenas uma tola. Bem, Truscott já ia embora, quando seu pai disse: 'Vou contar isso aos jornais e eles vão publicar — como é que um ministro da coroa agora fala com um inglês'. E, de vermelho, Truscott ficou branco como este lençol, e disse: 'Tice, tenho certeza de que podemos resolver isto sem brigas'. Ele se modificou na hora. 'Vamos nos sentar e conversar com calma, talvez eu não tenha me explicado bem. Acontece que, nos últimos tempos, tenho andado muito nervoso.' Ele, que nunca se dirigia aos empregados, exceto para tagarelar. Bem, resumindo, ele nos deu cinqüenta libras e fomos embora na manhã seguinte. Então, vivemos seis meses com aquelas cinqüenta libras, espremendo, mas continuamos decentes. E conseguimos também as referências: eles se consideravam plenamente satisfeitos. Mas seu pai disse: Nunca mais. "Pouco mais tarde, ele contou tudo ao sr. Beardsley, nosso pároco em Southport, que tomava o partido dos trabalhadores, e com a idéia de que ainda podia ir aos jornais com a história, porque aquilo continuava irritando-o. Mas o sr. Beardsley disse 'não', porque tínhamos ficado com as cinqüenta libras. Assim, isso foi o fim de tudo. E agora, Sir Eric de Truscott tira retrato com o príncipe de Gales.") Quanto aos Mullions, o casal contratado em Peverel, Ted Tice soube mais tarde que eles haviam perdido o neto em um acidente, semanas antes. Quando se sabe o suficiente, a antipatia raramente é definitiva. Caroline Bell apanhou um vestido escuro, comprado no estrangeiro, a única peça, entre suas roupas, capaz de criar o efeito que seria inteiramente seu, em alguma época futura ou dentro em pouco. Pendurou o vestido em seu quarto, em um lugar pnde pudesse vêlo, como a flâmula de um festival. Ela mal o usara e gostava de pensar que o comprara com um maço de notas em tom pastel, quando de sua última manhã na França. Mais tarde, Dora teve um ataque de nervos por causa do preço. Chegada a hora, tirou o vestido do cabide e ele deslizou por seus braços, como uma vítima. Tinha repuxado o cabelo para trás e o prendera em um coque. No espelho, pôde ver como isso a transformara. Anoitecia, quando ela desceu usando seu vestido escuro, tendo na mão o cinto de seda. Estava passando o cinto a ferro, no aposento ao lado da cozinha, quando entrou Tertia, carregando uma porção de flores. —Elas precisam ser postas em muita água. Tertia deixou as flores em uma laje, perto do tanque de pedra. Usava um arrebatador, roçagante vestido de seda prateada. Tinha- se a impressão de que irrompera ali um vendaval salitrado; no entanto, Tertia apenas permanecia imóvel, espiando Caro passar a ferro, enquanto as flores jaziam em seu cenotáfio, prontas para morrer. Caro pousou o ferro de passar no descanso e ergueu o cinto — a cabeça virada para trás, o braço levantado e o cinto suspenso. Sendo humana, era difícil evitar aquilo. Sabia que, por vezes, deixava sua marca impressa, mas agora queria saborear a certeza do fato reconhecido. —O que vai vestir esta noite? — perguntou Tertia, afinal. Caro continuou com o cinto suspenso no ar — de lado, como uma abstrata encantadora de serpentes, de maneira a poder olhar Tertia no rosto. Pena que ninguém mais pudesse ver Caro em seu belo vestido, com o pescoço e os braços nus, a mão delicada erguida e os olhos escuros fixos em seu objetivo. Desta forma, durante alguns instantes, compeliu Tertia Drage a admirá-la. Do jardim, Paul Ivory chamou: — Caro! Era a primeira vez que pronunciava seu nome. Houve uma pausa, na qual ouviram sons na cozinha adjacente. Libertando Tertia do encanto, Caro baixou o cinto e o colocou à cintura, com lento cuidado. Então, carregou um pesado vaso até o tanque e abriu a torneira. Eram atos insignificantes, mas que prendiam a atenção, e Tertia não foi a primeira a ver ensaios para a vida e a morte nos movimentos mais simples de Caro. Depois de colocar as flores no vaso, Caro tornou a olhar para Tertia e disse: — Em muita água. Então riu, enxugou as mãos e saiu. Nessa noite estavam comemorando o noivado de Tertia com Paul Ivory. Antes de guiar seus convidados para dentro de casa, Sefton Thrale mostrou-lhes a vista para o vale, à luz crepuscular. A sala de estar finalmente aberta não parecia muito desejosa de abrigar vida: um aposento negligenciado, como um jardim maltratado, não consegue mais ganhar animação, se convocado para uma emergência. Não oferecia realce aos jarros de rosas, à luz suave das lâmpadas e ao pequeno fogo que ardia em cada lareira. Assim, quando soaram as vozes que iam entrando, a sala retraiu-se: era um velho aposento, destreinado ante os sons crus de fósforos riscados e do gelo nas taças. Ficou-se sabendo que a mãe de Tertia era uma sobrevivente do Titanic — eclipsando Grace e Caro com sua obscura e inglória barca Benbow e seu ineficaz deslocamento de águas australianas. A mãe de Tertia lembrava-se de ter sido descida para um bote salva-vidas, aos sete anos, e salva. Sobrevivendo para tornar-se uma vigorosa fêmea acastanhada, ela concebera e dera nascimento a cinco filhas, mas a nenhum herdeiro varão. Houve o fluxo glacial do moiré de Tertia sobre o tapete, quando ela velejou para além da mãe, um escaler afastando-se da nau capitânia. Muito tempo fora gasto para preparar aquela versão noturna de Tertia Drage — os cabelos macios e lisos, o vestido prateado bemmodelado, as axilas depiladas, o colar cintilante e os pequeninos sapatos pontudos; o esmalte de unhas, combinando a cor das mãos com a dos artelhos escondidos. Não obstante, Tertia parecia indiferente, rancorosa, como que enfeitada por aqueles berloques e sedas inteiramente contra a sua vontade. Quase se poderia acreditar em sua neutralidade, a despeito de toda a evidência. Tertia se dissociara das fraquezas humanas: quando tocava seu vestido, com uma atitude quase irrisória, a simples vida, nos outros, assemelhava-se a uma comoção. Ainda assim, ela iniciara a noite com uma pungente derrota. — Ela rouba todo jantar a que comparece — disse sua mãe. Satisfeita e orgulhosa. Esmagando um ondulado sofá azul, Lady Drage agora se havia tornado uma criatura demasiado pesada para o elemento marítimo, era um corvo-marinho sobre as ondas. Ela trouxera um convidado extra, que se postava junto à lareira, onde línguas de fogo subiam atrás dele. Era um homem alto e corado, que aparentava uns quarenta anos, pigarreava com segurança para clarear a garganta, mas pouco falava. Tinha um anel de sinete, de ouro velho polido como um nó de dedo, e usava gravata da Brigada de Guardas. Uma conversa a respeito de preços e impostos se tornara uma formalidade, com a qual todas as noites eram agora iniciadas. — Os ingleses sempre falam de dinheiro? — perguntou Caro a Ted Tice. — Sempre, especialmente os ricos. O sr. Collins, do Quênia, sentado em uma poltrona de couro, conhecia uma anedota sobre a Austrália — ou "Os-trylia". Segundo ele, a anedota provinha da recente guerra, tendo se passado em Tobruk, mas na realidade remontava à Grande Guerra e à campanha dos Dardanelos. A história era como se segue: um soldado ferido pergunta à enfermeira australiana que se encontra à sua cabeceira: "Fui trazido aqui para morrer?", e ela responde: "Não, ontem"1. Era esta a anedota. Caroline e Grace Bell estavam já familiarizadas com ela, contada freqüentemente a ambas, quando eram apresentadas a alguém. Ted Tice ainda não a conhecia. Foram visíveis as lágrimas que assomaram a seu olho lesado, bem como ao outro, o sadio. A sra. Charmian Thrale tocou delicadamente um colar de pérolas. Mais alvo que as pérolas, seu colo talvez nunca houvesse sido exposto ao sol. (Em 1916, durante a Batalha do Somme, Charmian Playfair, auxiliar de enfermagem voluntária, havia sido designada para o serviço A anedota perde todo o sentido quando traduzida, pois envolve a fonética do sotaque australiano. No original, seria: Soldado: "Was I brought here to die?" Enfermeira: "No, yesterday". ("To die", "mor¬rer", soando para ela como "today", "hoje".) (N. da T.) 1 de ambulância na Estação Victoria, por onde chegavam as baixas da guerra, em trens-hospitais. A ambulância carregada rodava pesadamente de volta por ruas escuras, levando suas padiolas de homens envoltos em cobertores — homens que, do ilibado anonimato de "os feridos", nos jornais, subitamente se encarnavam em gemebundos, silenciosos ou corajosos habitantes de carne lacerada e individual. Encerrada com aqueles espectros em uma sacolejante obscuridade, uma jovem de dezenove anos levou a mão ao delicado pescoço. Ainda assim, movia-se o mais que podia, fornecendo água ou respondendo a perguntas, entre os cobertores acinzentados e as bandagens vermelhas, acastanhadas ou enegrecidas. Havia um rapaz de sua idade, na direção de cujo sussurro ela precisou abaixar-se, quase tocando o rosto no dele: "Tanto frio. . . Frio. . . Meus pés estão muito frios. . . " Com ar competente, a jovem respondeu: "Vou dar um jeito nisso". Virandose para ajustar o cobertor, descobriu que ele não tinha pés.) Em redor da sra. Charmian Thrale, tais impressões passavam mais em ritual que em confusão: as preocupações simultâneas das moças com amor e vestidos, os homens com suas grandes e pequenas assertivas, as mulheres totalmente submissas ou autoritárias. Um desequilíbrio de esperança e recordação, um selvagem emaranhado de história. Aquele manar conjunto, em um fluxo de tempo que somente alguma gramática olímpica — algum tempo de conjugação desconhecido e aorista — poderia descrever e reconciliar. A sra. Thrale afastou as rosas, ganhando espaço para um cinzeiro. Suas costas não tocaram o sofá. A acastanhada mère de Tertia estava dizenedo: —Não no Quênia, não, infelizmente, nunca, mas é claro que estivemos no Egito, quando meu marido era — oh, pitoresco, eu lhe garanto, ninguém pode negar, Luxor, Karnak, exceto os mendigos, e o que se pode fazer? . . . Realmente, ninguém com o coração mais brando — uma falha para a qual minha família sempre me alertou —, mas ser amável não seria tão arriscado. Não é mesmo, Guy? Seu marido aquiesceu mecanicamente. Sentava-se entre as mulheres, como uma tábua empenada pela falta de uso. Havia muito, ele se transformara no panorama que nunca tinha contestado: o da perjura aquiescência, registrada em um íntimo encolhimento de lábio e queixo. No entanto, despertando do sono, disse, de repente: — No Egito, ela passou mal com o sol. — E olhou em torno, com certa intensidade. — Pigmentação, esta é a palavra. Os pais não tinham bom senso, causaram-lhe muito mal, forçando-a a sair para o ar livre quando jovem. Seu protesto era o eco de uma época, quando imaginara que sua esposa, mais que todos, necessitava de sua proteção. Ainda assim, entre o fogo e o gelo, ela sobrevivera. Grasper, o cão modorrento, contorceu-se diante da lareira, onde permanecia impassível o homem alto com gravata da brigada, acendendo seu cigarro. Ele fora apresentado como capitão Cartledge. Os jovens presentes tinham buscado a outra extremidade da sala, onde se agrupavam, todos de pé. Os parentes mais velhos sorriam ao vê-los — pelo menos, alguém estava se divertindo; esperavam que isso se contrapusesse ao seu próprio desinteresse. A galáxia de belas jovens e Paul, um atraente rapaz. Caroline Bell não oferecia uma aparência de todo jovem, exibindo sua nova beleza como uma diferença de geração. Era imbecilidade de Ted Tice simplesmente ficar ali. De certo modo, ambos os lados haviam decidido que ele não pertencia ao grupo. — Como sempre acontece comigo — disse Tertia Drage —, perdi as chaves do carro. Era como se ela dissesse: "Da maneira inimitável como sempre acontece comigo" ou "como só acontece comigo" — para emprestar uma conotação de distinção, inclusive de fama. Se acontecia a Tertia, devia ser importante. Ted permanecia taciturno, oprimido, subserviente, mas no entanto triunfava. Enquanto Tertia, a senhora e vencedora, havia sofrido uma derrota aquela noite, e isso poderia repetir-se. Ted havia consertado a mesa em tempo, a despeito da ansiedade de última hora demonstrada por Sefton Thrale, com as marteladas. Toalhas e guardanapos, pratarias e flores, foram dispostos em linha de batalha, candelabros em seus lugares, a mesa posta solene como um dignitário em toda a sua pompa e esplendor. Mostrando sua elaborada distinção, a mesa era uma deixa para eles, um cenário para o comportamento. — Imagino que você tenha queda para a carpintaria e coisas assim — disse Tertia a Ted. — Acertou. — Sorte sua. É de família, espero. — Como na Sagrada Família — interveio Caro. O homem com a gravata da brigada espiou de onde estava, da extremidade idosa da sala. Paul sorriu. — Santa Caro, Padroeira dos Carpinteiros. Ele tomava o partido dela, um partido diferenciado do de Ted Tice ou mesmo dele próprio. Ted talvez preferisse não ter partidos naquela noite, desejando que ninguém se sentisse na obrigação de acompanhá-lo. Ele nem mesmo era culpado por demonstrar que julgava. Estavam colocados de tal modo que os noivos, Paul e Tertia, ficavam de frente para os outros. Entretanto, ao conversarem, Paul às vezes se dirigia a Caro. Não se poderia dizer que fosse algo corajoso, mas ainda assim envolvia um certo risco. — Todos vocês juntos na mesma casa — disse Tertia, como se aquilo representasse algum absurdo. — Como náufragos em uma ilha. — Ou numa festa, numa casa de campo — acentuou Grace —, onde foi cometido um assassinato e todas as pessoas distintas são suspeitas. Ficou claro que Grace nunca poderia ser um dos suspeitos. Ted Tice permaneceu calado. Com a eliminação de Grace, os restantes pareciam mais capazes de violência. Grace era algo à parte, não apenas por sua meiguice, mas por já ter firmado suas afeições. Havia sido reivindicada e aparecia como um deles, pela última vez e incompletamente. Sobre Grace, já houvera confissões públicas e revelações secretas, além da existência de cartas remetidas de Ottawa, começando com "Minha muito querida". Na opinião de alguém, ela alcançara a perfeição. Tais condições podiam agora ser igualmente aplicadas a Tertia — ou ainda não, embora nenhum casamento pudesse parecer mais inevitável que o seu. Era notável que Tertia jamais demonstrasse uma reivindicação pública sobre Paul, fosse tocando-o ou através daquelas outras pequeninas demonstrações de posse que deixam os enamorados complacentes ou inseguros. Nessa noite de seu noivado, Tertia evitou ligar-se a Paul sob qualquer forma e, de pé junto dele, transmitia um desligamento singularmente inflexível, no que devia ter sido o contorno mais suave de seu corpo. Nisso havia algo do desdém que ela mostrava por suas roupas cuidadosamente selecionadas. — Onde arranjou esse vestido? — perguntava Paul agora a Caro, de modo brusco e, parecia, desaprovador. Foi então que o capitão Cartledge se juntou a eles — tornando claro que estivera aguardando aquela oportunidade, pelo modo como se afastou abruptamente da lareira e cruzou a sala. De fato, uniu-se a Caro, porque disse, no mesmo instante: — Sim, é um belo vestido! Com seu cumprimento, ele deixou exposto o recusado elogio de Paul. Sendo um cavaleiro, o capitão Cartledge cavalgara até o castelo, vindo da casa de um amigo, nas proximidades, sem a intenção de ficar. Daí, acentuou ele, as roupas inadequadas, a gravata. Ele tinha a compleição levemente membranosa dos que apreciam a vida ao ar livre, fora de casa, e que, em casa, gostam de beber. Era um homem alto e simpático, que poderia chegar à crueldade. Havia ousadia ou uma espécie de pureza em sua caminhada até Caro, com a palavra "belo", que lhes atingiu as simulações e a má vontade de jovens, com sua única pincelada de experiência, fazendo com que o próprio Paul Ivory parecesse imaturo. Em sua espécie de armadura prateada, Tertia não podia ter ficado satisfeita. O mesmo se diria de Ted Tice, embora fosse preciso mais do que aversão para uni-los. Tertia ofereceu a Cartledge a mesma fria aprovação destinada a Paul. E Ted Tice percebeu que aqueles dois, talvez nesse mesmo dia, tinham sido amantes. Na outra extremidade da sala, os três homens idosos discutiam enfermidades, trocando sintomas em sussurros, como meninos que estivessem falando de luxúria. À mesa, o capitão Cartledge sentou-se perto de Caro. O mogno reluzia como mármore, as próprias flores brilhavam como cristal ou prata; tudo se tornara algo mais que seu próprio eu lustroso e a mesa deixara de ser um catafalco. Era inconcebível que uma região rural às escuras se estendesse além das cortinas acobreadas. — Quer dizer que vocês exploram a alma uns dos outros. . . Assim falava o capitão Cartledge, em camaradagem com jovens reunidos na mesma casa. Caro respondeu que aquilo ia terminar. Ted Tice partiria para Edimburgo no dia seguinte; a partir de quinta-feira, Paul Ivory ficaria alguns dias em Londres e, também naquele dia, Grace escolheria a fazenda para seu vestido de noiva, em Winchester. Caro apontava para eles, em redor da mesa, como se fossem estranhos. Enquanto isso Tertia, do lado oposto, esvaziava seu prato com o costumeiro desdém. — E você? — como se o resto fosse imaterial. — Eu? — Caro procurava dar a entender que também preferia ser imaterial para ele. — Vou até Avebury Circle, por uns dois dias. Ela acrescentou que Ted Tice já lhe dera as explicações por escrito, sobre a baldeação de trens na quarta-feira. — O monumento pré-histórico — disse o capitão, enquanto a mesa ouvia, sem saber por quê. — É pré-histórico — repetiu, como se isso o delineasse precisamente, em exíguos limites. E, tendo feito treinamento na planície de Salis-bury, embrenhou-se imediatamente no assunto de Stone-henge. De súbito, Paul Ivory falou, da outra extremidade da mesa; erguendo os olhos para Caro e exibindo o leve, irônico sorriso com que as pessoas se escusam por evocar prosa ou poesia, disse: — Está se referindo ao templo pagão? Sem sorrir, Caro deu a resposta, lenta e instantânea ao mesmo tempo: — Exatamente. Mais antigo que os séculos; mais antigo que os D'Urbervilles. Tertia comentou, ao voltarem de carro para casa: — Aquela moça, a Bell mais velha, tem um pescoço de homem. Sua mãe, por outro lado, estava considerando que as classes médias limpavam demais sua prataria. 11 Quando Paul fez o carro continuar depois da estação e dobrar para a estrada principal, Caro nada disse. Concentrando-se para um esforço de persuasão, ele procurou ganhar tempo, antes de manejar as novas circunstâncias. Naqueles momentos, a imobilidade da jovem era de molde a gerar, paradoxalmente, uma alteração física. — Você sabia que eu não ia a Londres? Ela assentiu. — Sabia que eu não ia levá-la para tomar seu trem? — Ele não trocaria por nada o suspense gerado pelos breves assentimentos dela. — Então sabia por quê. Quando percebeu isso? — Na noite do jantar. — Você sempre sabe tudo, hein? — Sou inexperiente — respondeu ela. — Às vezes, devemos retificar. Paul Ivory estava criando um intercâmbio que poderia ter tido com Tertia. Caro perguntou-se se ele agia assim com as mulheres, fazendo-as falar daquela maneira, com aquela voz, com os duplos sentidos que diminuíam o significado, estirando a férrea tensão entre homens e mulheres até um antagonismo nervoso e sem finalidade. O gracejo dele criava o espectral sentimento de que não se ouvia a sua voz real, que ela talvez nem mesmo existisse. — Não falemos mais assim — disse ela. — É como costumo falar. — Talvez você gostasse de uma mudança. A finalidade presente dele bem podia ser justamente essa. — Você nunca falará como Tertia, se é a isso que se refere. Caro esperou, receando a deslealdade — ou lealdade — dele. Paul prosseguiu: — Ou se parecerá com ela — disse. — Deve ter reparado nos olhos de Tertia. — Paul deixou o carro quase parar, na via solitária. — Olhe para mim. — O momento os levou mais além, como se houvesse ocorrido uma séria discussão ou tivesse sido feita alguma ofensa. Ele ainda não a tocara, e a certeza de que o faria dava uma finalidade à conversa: as últimas palavras de seus eus desapaixonados. — Quando as mulheres têm olhos como os dela, em geral é impossível dizer se estão chorando. — Paul devia estar acostumado a uma possibilidade de lágrimas femininas. — No caso de Tertia, entretanto, pode-se ter certeza. — Você preferiu Tertia. — Não estou aqui para dar explicações pessoais. — Nisto já se percebia a breve e dominadora petulância dos famosos: Paul esboçando sua fama futura. Não obstante, ele prosseguiu, sem transição: — Ela era exatamente a mesma aos quinze anos, quando a vi pela primeira vez, a pessoa menos atraente que já conheci. — E isso constitui um atrativo? — Deixemos Tertia de lado, por ora. Dobraram em um poste com tabuletas de sinalização, deixando Tertia de lado. — Estamos indo para Avebury, se é que você ainda pretende ir até lá. — Sim, eu quero ir. Ela queria ir até Avebury, por causa da descrição que Ted Tice lhe tinha feito. Inclinou a cabeça para a janela, esquecendo Ted. Rodaram por uma surpreendente zona rural, semelhante a um delta ou litoral cultivado, abaixo do nível normal, quase sem declive, sob um céu de nuvens altas e compactas. — Isto aqui não parece a Inglaterra — disse Caro. — É mais semelhante à região central da América. — Eu gostaria de viver algum tempo na América e tratá-la da maneira como seus escritores nos têm tratado. Os escritores ingleses não conseguem manejar a fala americana, eles se limitam a inserir seus próprios preconceitos. Os ingleses têm um péssimo ouvido para qualquer língua que não a sua e, no tocante aos americanos, aqui somos todos absolutamente surdos — isto é, surdos a tudo, exceto ao terrível e despreocupadíssimo turista. Daí se dizer, na Inglaterra, a um falante americano, que ele não se expressa como americano: porque ele está estragando a brincadeira. Ele não poderia ter encontrado melhor maneira de atingi-la do que se mostrando sensato. E, já que havia infinitas possibilidades para a extrema candura de Paul Ivory, também isso poderia estar em sua mente. Para Paul a sinceridade era algo a que se podia recorrer quando outros métodos falhavam. — Há muita gente, na Inglaterra — disse ele —, que passa seu tempo coligindo indícios negativos sobre qualquer tema. O velho Thrale é arquetípico. Isso era mais inesperado que sua traição a Tertia, pois Paul abandonava não apenas a adulação do professor, mas seus próprios meios de dominador. Também era extraordinário como tal repúdio tornava patético o sicofantismo de Sefton Thrale. — Enfim, o que significa isso? Que você detesta todos eles? Ela queria se referir a Tertia e Thrale. No entanto, ele encarou a pergunta como se abrangesse a nação — ou preferiu que assim fosse, pois a quebra pública de fé é mais apresentável que um rompimento privado. — Eu detesto a desnutrição deste país, o ressentimento, o excesso de crítica, a relutância em tentar algo mais. O ato de ir até o amargo fim, com todas as coisas erradas. No momento, o rosto de Paul expressava aversão, ao passo que o de Caro expressava amor; não obstante, tais eram suas paixões prevalecentes. O carro manteve sua velocidade uniforme, uma veloz cápsula dando forma às energias de ambos. — Você deve saber que meu pai foi prisioneiro de guerra em um campo alemão — disse Paul. Supondo que ela estivesse a par do fato, Paul Ivory esqueceu inteiramente a morte do pai de Caro, por afogamento. — Em 1945, quando voltou, ele tinha um pote de extrato de carne consigo, um pote de menos de cem gramas, com a tampa enferrujada e sem rótulo, que havia levado para a prisão e mantivera intacto durante quatro anos. Prisioneiros conservam talismãs, é claro, mas aquele poderia ter salvo uma vida por alguns dias ou mantido um fugitivo a caminho, durante uma semana. Mas a farsa idiota de salvaguardá-lo — em verdade, retê-lo — tornou-se mais importante. Enfim, aí está a Inglaterra, em toda a sua crueldade. Uma criança acenou para eles em uma encruzilhada. Paul acenou de volta. — Um dia depois de chegar em casa, ele mostrou seu pote com a tampa enferrujada. Depositou-o à mesa do almoço e nos disse, em voz sepulcral, que não tocara nele durante três anos e tantos meses de fome no campo, tendo-o a seu lado em cada refeição. Nada bombástico, evidentemente, pois a rudeza é parte da ausência prolongada. Era uma daquelas ocasiões em que é impossível a gente se mostrar à altura da situação, porque não aceitamos as regras. Não pude suportar aquilo — a devoção ao extrato de carne, o reverente e mortificado silêncio em torno da mesa. Então, eu disse a ele: "Muito bem, soou a hora deste pote, porque Deus é testemunha de que aqui também estivemos famintos". Em seguida, destampei aquela maldita coisa e enfiei minha colher, ali e naquele momento, a fim de dessantificar o culto ao pote, antes que ele também me envolvesse e me embalsamasse. Penetraram em uma alameda, onde as copas pendidas das árvores eram como cortinas se fechando. — Muito bem, fale alguma coisa. Ou será que em seu rosto também há uma maldita expressão de pote de extrato de carne? — disse Paul. — Se sua história faz com que eu tenha tal expressão, é porque seu relato é brutal e edipiano — respondeu Caro. Reuniu coragem para um risco mais alto: — Por que você precisa zombar da pertinácia dos outros ou de seus meios de sobrevivência — você, que nunca enfrentou a morte e nem mesmo o perigo? Paul ergueu as mãos do volante, em uma demonstração de desesperança. Entretanto, depois que rodaram para fora do túnel arborizado, ele disse: — Eu poderia acrescentar que isso soou desagradável. Tenho sorte por continuar vivo. Eles riram e, prazerosamente, esqueceram tudo a respeito do pai de Paul. Quando o pai de Paul Ivory fez seu protesto contra o serviço militar, por questões de princípios, ainda jovem oficial nas trincheiras, em fins de 1917, já havia publicado um volume de versos que, segundo constava na capa de tons pálidos, causava admiração pela lírica precocidade — evidentemente, algo espantoso, porque aos dezenove anos era considerado velho o suficiente para deixar o mundo, mas não para ter idéias sobre ele. Seguiram-se a corte marcial e dois anos de detenção, que incluíam uma permanência forçada em um asilo para doentes mentais, onde ele produziu uma segunda coletânea de poemas, com a mesma forma lírica e tema pastoral. E isso foi, em um sentido público, a sua ruína. O lirismo terminara com a guerra; a paz trouxera beligerância. Que um subalterno condenado celebrasse, sob fogo, as glórias de seu Derbyshire nativo, havia sido comovente e louvável; que um adulto sobrevivente, à paisana, se ativesse àqueles mesmos temas e divagações, no transcurso de experiências violentas e controversas, era absurdo. Rex Ivory passou a ser encarado como alguém que não possuía nenhum senso de sua era ou suas oportunidades — que, até mais embotadamente, ignorava os novos movimentos da crítica contemporânea. E seu segundo livro, como as várias coletâneas subseqüentes, foi recebido com rude desdém. Pouco mais tarde, ele se casou com uma jovem endinheirada e autoritária, gerou dois filhos e desapareceu no Derbyshire, aparentemente para sempre — seu nome provocava de vez em quando uma nota condescendente de pé de página ou servia de anedota para os escritores de assuntos literários, entre as guerras. Ao incorporar-se — ou reincorporar-se — ao exército em 1939, um paradoxo notado apenas por ele próprio, foi designado para a Malásia, onde, no devido tempo, foi capturado pelos conquistadores japoneses. Em Cingapura, partilhou sua choça- prisão com um estatístico, um esquelético oficial da 18.a Divisão, com o qual dividiu também a tarefa diária de cavar sepulturas para companheiros vitimados por malária, dengue, disenteria, beribéri, gangrena e desnutrição, devido ao consumo exagerado de arroz. O rádio clandestino mantinha os prisioneiros em contato esporádico com prisões similares no Oriente. Graças a isso, o grande estatístico, companheiro de Ivory, compilou morosas listas de sobreviventes, desaparecidos e mortos — registros que eram conservados em código e escondidos debaixo da terra, todas as noites. Ao mesmo tempo, ele treinava Rex Ivory como seu cúmplice. No terceiro ano, o estatístico cavou uma última e mais comprida sepultura, tendo legado seu arquivo e a respectiva manutenção a Rex Ivory. No quarto ano, quando uma frota britânica de libertação alcançou Cingapura, os registros foram definitivamente desenterrados, e o espantalho que agora era o capitão Ivory, única pessoa capaz de decifrá-los, recebeu ordens de partir para Colombo, em uma rápida e segura embarcação. De um porto bombardeado em Cingapura, ele foi embarcado em seus farrapos, com toda a tripulação do navio perfilada no convés. Os rolos amarfanhados e em código, sustidos por seus braços, que a inanição tornara esquálidos, foram o único registro coerente dos mortos de um exército britânico. Vestido e alimentado, Ivory foi enviado ao comissário de bordo. — O desembolso só será efetuado à vista do comprovante do pagamento anterior. — Fui feito prisioneiro em Johore, às quinze horas de 8 de fevereiro de 1942, e estive no Campo Changi até esta manhã. O comissário-tesoureiro levantou-se de sua secretária de metal e abriu uma fechadura de segredo em portas duplas. As prateleiras de um cofre estavam inteiramente tomadas por maços de notas bancárias, em infinita ordem colorida, como tijolos em uma fachada pastel. — Sirva-se. De Colombo, Rex Ivory foi levado de avião para a Inglaterra, onde, após apresentar-se ao Departamento da Guerra, conforme as ordens, tomou o último — e único, naquela época — trem para Derbyshire. A esta altura, a família já fora informada de sua ressurreição. Como se fosse apenas um viajante comum de volta ao lar, ele decidiu não chegar de mãos vazias. Na estação de Londres, tentou comprar uma diminuta caixa de descorados chocolates, uma mercadoria exposta em uma vitrina. — Os cupons. Os cupons, por favor — pediu a moça. Ela pronunciava kewpongs, e na verdade não era jovem, mas uma sisuda senhora grisalha, já que todas as jovens tinham ido para a guerra. — Que cupons? Ela o encarou. E enquanto o observava mais detidamente, aferrou a caixinha com dedos alarmados. — Diabo, por onde foi que andou? — Estive em uma prisão japonesa — respondeu Ivory. — Três anos e sete meses. — Posso perder meu emprego. . . Ao falar, ela colocou a caixa em suas mãos. Tais incidentes não divulgados — o do comissário-tesoureiro e o dos chocolates — foram os pontos culminantes do retorno de Rex Ivory, embora sua história logo se tornasse um dos temas da vitória: os jornais a publicaram e ele passou a ser "o poeta Rex Ivory", em publicações onde um artigo indefinido outrora o havia liquidado. Uma edição de Poemas seletos foi impressa no papel áspero e manchado do tempo de guerra, e não houve mais ditos espirituosos ou mordazes sobre torres de marfim1. Ele leu que estivera certo ao repelir desdenhosamente a Primeira Guerra Mundial e que fora presciente ao apoiar a Segunda; Ivory ponderou a nova idéia de que demonstrara perspicácia. 1 Em inglês, "marfim" é "ivory". Trocadilho com Ivory, personagem. (N. do E.) A BBC levou até sua residência equipamento elétrico em um caminhão e depois uma câmera seguiu o famoso e presciente poeta Rex Ivory, enquanto ele passeava entre alamedas em flor com dois sealyhams2, emprestados por um vizinho. A despeito de sua não ensaiada analogia entre o asilo britânico para doentes mentais e o campo de concentração japonês, a entrevista foi um sucesso; isso porque, quando as pessoas insistem em admirar, nada as faz mudar de idéia. A esposa de Ivory ficou maravilhada e imensamente satisfeita. E ficou também satisfeita por maravilhar os grandes e certos, pessoas com uma distinção até então insuspeitada por eles ou por ela. Aproveitando a vantagem da surpresa, ela comprou uma casa em Londres, pouco depois da guerra, quando os preços estavam mais baixos do que nunca. E Rex Ivory permaneceu em Derbyshire, um quase invisível filão de autenticidade. Aconteceu algo. Em sua prisão da selva, Rex Ivory fizera poesia, como antes — que era memorizada lá, uma vez que qualquer fragmento de papel era conservado para as listas codificadas de baixas. Um eminente editor se mostrou disposto a sacrificar parte de sua provisão oculta de papel no pós-guerra para o esperado volume. Nada disto era imprevisível. O inesperado é que os versos elaborados no campo da morte malaio, ao serem transcritos, revelaram-se uma glorificação, exclusiva e inexorável, dos regatos e cercas vivas de Derbyshire. Surgiram outros heróis na época, como também outros manuscritos. O interesse público em Rex Ivory estava diminuindo, e aumentava a escassez de papel. Em uma reunião de alto nível, mantida numa chuvosa manhã de sábado, na editora, decidiu-se que certos poemas — em particular um que dizia respeito a um ventoinha — davam ensejo a críticas zombeteiras. Aproveitando-se uma cláusula para casos imprevistos, os editores esquivaram-se ao contrato. 2 Cães da raça terrier. (N. do E.) Então, como acontecera com volumes anteriores, The half-reap'd field1 apareceu em obscura edição, custeada pelo autor. Os dois filhos de Ivory eram agora jovens altos, que freqüentavam as escolas certas, cantavam os hinos certos e tomavam as atitudes certas. — Absolutamente certo — disse Ivory, quando sua esposa lhe relatou os caminhos tomados durante os anos em que ele estivera ausente do lar. — Ah! Absolutamente certo. Não havia motivos para imaginar-se que nisso pudesse haver qualquer ironia. Gavin, seu filho mais velho, encaminhava-se no comércio bancário. Certo, novamente. Paul, o mais novo, ainda estava na universidade. Ambos nascidos nas épocas certas, haviam escapado à guerra por muito pouco. No seio da família, Rex Ivory era uma pessoa isolada, tendo perdido a familiaridade. Eles não tinham idéia se tal perda era bem aceita, mas continuavam agindo da maneira que consideravam certa e fizeram-lhe companhia — a princípio todos juntos, depois, por turnos —, até que ele foi se acostumando àquela condição solitária. Isso, pelo menos, podia ser creditado a Rex Ivory: era mérito próprio, devido a seu interessante e vantajoso comportamento no campo de concentração. A família tinha grandes esperanças de que a América o atraísse. Chegara um pedido de informações sobre suas obras, vindo do Texas, bem como um questionário de Ann Arbor a respeito de seus métodos de trabalho. Além disso, Rex Ivory tinha sido entrevistado por um professor visitante, chamado Wadding, que estava a caminho da Escócia para estabelecer a identidade da "Ceifadora solitária", de Words-worth, e as palavras da canção que ela cantava. (Mais tarde, um ensaio sobre tais pesquisas era publicado em um jornal literário, sob o título "Ninguém me dirá o que ela canta. 1 O campo semiceifado." (N. do T.) A esposa de Ivory considerou que tal interesse americano talvez fosse um indício e que poderia ser estimulado. Rex Ivory nada objetou. Entretanto, não se podia dizer que ele estivesse passivo. — A menos que seja resistência passiva — disse Paul à mãe. — Seu pai nunca foi do tipo comunicativo. Chegada a época em que Ivory alcançou seu peso normal e envergou trajes civis, sua mulher e os filhos subiram o rio até a cidade. Ivory recebia visitas de alguns poucos e velhos amigos que com ele haviam partilhado notas de pé de página no passado, juntamente com o artigo indefinido. Não havia gasolina para esbanjar, e certo amigo que testemunhara em benefício dele, na corte marcial de 1917, viajou de bicicleta uma longa distância. Outro fez o percurso a cavalo, sob chuva, usando um boné de veludo. Não havia também combustível para aquecimento, de maneira que Ivory estava permanentemente com frio. Ele mencionou tal detalhe. A este respeito — não, é claro, alegando-se alguma culpa — falou-se que seu sangue devia ter ficado ralo na selva. Houve vezes em que sua esposa se aproximou para lhe dizer: —Rex, meu querido, todos nós estamos com frio. Quando seu pai estava para morrer, Paul veio de Oxford, fazendo três baldeações de trem. Jazendo em silêncio a maior parte do tempo, sofrendo com isso ou pressentindo que sua hora final se aproximava, espiando com sua muda mescla de desligamento e atenção, Rex Ivory parecia mais ou menos o que sempre fora: como se morrer fosse algo com que há muito estivesse familiarizado. Paul sentava-se à sua cabeceira — porque agora estavam novamente se revezando para fazer-lhe companhia — e tinha a certeza de que nunca se preocuparia o bastante a ponto de entender o mistério de seu pai. Havia algo mais, porém, que não despertava interesse. Se o suposto biógrafo americano um dia o explicasse, seria uma derrota para Paul, até mesmo uma impostura — como procurar a solução para um exasperante enigma. "Nunca tinha visto a morte, Dickie? Pois chegou a hora de aprender." Paul não ouvira seu pai dizer essas palavras antes, mas as conhecia por citação e não, como supôs sua mãe, por uma confusão de nomes, em um leito de morte. Era um verso de uma balada de um poeta imperial sobre um velho aventureiro que vira a vida e respirava seu último alento em presença de um filho mimado. Paul não podia acusar-se e, a despeito das provas circunstanciais, nem mesmo tinha certeza de que seu pai vira a vida: os eventos tinham sido impostos a Rex Ivory e mal podiam ser denominados aventuras. Havia sempre a falta de iniciativa — o próprio pacifismo nas trincheiras, se examinado, poderia ser transformado em abnegação e recuo. Quietamente formidável, o esforço tinha sido desperdiçado em renúncia, como se a existência humana fosse algum monumental pote de extrato de carne. Avaliado dessa forma pelo filho mais novo, o poeta Rex Ivory murchou; e, em idade não avançada, definhou e morreu. 12 Repentinamente, na plenitude de sua mocidade, Paul e Caro foram conduzidos por entre os megálitos, através da pequena e nivelada estrada. Paul freou o carro. Caro abriu a porta e ficou olhando. Pedras monumentais erguiam-se, impassíveis, em aléias curvas cobertas de relva. A Inglaterra bocejava amplamente, para exibir uma outra terra, como fundamento. As pequenas lousas do cemitério — da altura de uma criança, amistosas — entre as quais Caro e Paul uma vez tinham caminhado despreocupadamente eram, por contraste com aquelas imensas e poderosas formas, apenas efêmeros folhetos, promulgando uma causa esquecida. Comparado a este cenário, todo o resto da Criação parecia um agitar de pétalas e seixos, uma leveza onde a árvore mais maciça era insubstancial. A própria encantadora aldeia, através da qual estavam fixados os monólitos mais distantes, sugeria uma frágil máscara de realidade, com seus poucos séculos em colmo e ardósia. Não que as rochas escuras emprestassem, por sua perenidade, qualquer triunfante senso de durabilidade às intenções do homem. Ali não poderia haver vitória nem significância. Ter-se-ia que opor alguma razão maior do que a mera vida contra aquelas rochas: nossa mortalidade, nossa própria capacidade de receber ferimento, contra a indiferença delas. (Em uma temporada anterior, Ted Tice havia dito, a respeito de outra paisagem: "Lá, é preciso reunir toda a sua convicção, para acreditar que você existe".) A ordenada colocação dos blocos calcários era mais inevitável do que a natureza: com a natureza, pelo menos, existe uma possibilidade de inadvertência. As falhas nas fileiras, onde os monólitos haviam caído e não tinham sido levantados, pareciam sinistramente ordenadas, obscenas como a falta de um dente no sorriso de um tirano. Algumas pedras eram arredondadas, outras em forma de coluna. Aquele era o seu estado natural, não talhadas, não trabalhadas a ferramentas. — Macho e fêmea. Ele os criou — disse Paul Ivory. — Inclusive estas rochas. A presença de Paul oferecia algo como salvação, implicando que a propensão humana ao amor, que jamais poderia contradizer Avebury Circle, não obstante, poderia fazê-lo parecer incompleto. Cônscio de tal vantagem, Paul aguardou o momento em que o silêncio de Caro retornaria, intensificado, daquele lugar para ele próprio. Estava calmo, com um desejo controlado e a curiosidade que, em si, é um aspecto do desejo. Até então, os dois tinham apenas adivinhado a essência um do outro; a demonstração da autosuficiencia de Caro lhe concedera um pequeno grau de poder sobre ele — um poder que só poderia ser invertido por um ato de posse. A incerteza preliminar talvez fosse um estímulo, se o resultado estivesse garantido. Havia ainda um admirável perigo que rondava Caro, derivado não apenas das circunstâncias, mas também de sua recusa em manipulálas. O perigo e a atração eram os mesmos. Ademais, havia seu corpo jovem e flexível, braços e pescoço fortes, além de sua aversão ao contato físico. Além do prazer de desafiar suas próprias circunstâncias, Paul ainda perseguia o impulso de violar o orgulho ou a integridade de Caroline Bell. Ela não será tão diferente na hora, supôs ele — com um dar de ombros ou bravata mental, ineficaz até para si mesmo. O pensamento não passava de uma maneira de ferir. Paul sabia que Caro se voltaria para ele, satisfeita pela acolhida humana: ele seria um consolo, pelo contraste com aquele fantasmagórico campo de monumentos. Por fim, quando Caro se virou, ele repetiu: — Olhe para mim. Então, com infinita naturalidade, puxou-a para si. Beijou-lhe o pescoço, a face e a boca. Houve um impacto de simpatia, não inteiramente aberta ao sarcasmo. O corpo de Caro ficou tenso, juntando-se ao dele e afastando-se; sua respiração marulhou nos braços, na língua de Paul. Naqueles momentos, se quisesse, ele poderia senti-la mudar para sempre; poderia verificar uma crise, na qual as mulheres entregam sua força aos homens, em confiança — pronta e às vezes incondicionalmente. Além da cabeça inclinada da moça, Paul Ivory podia ver duas ou três pessoas que se moviam entre as rochas e um cão que corria em busca do graveto que alguém jogara longe. Entretanto, a cena colorida ficou parada, suspensa, incapaz de manter o ritmo com a corrente de vida de ambos. A sacola de lona de Caro escorregou pela porta aberta do carro e caiu em um pequeno vão no relvado. Ela a sentiu ir-se com uma irrevogabilidade absurda, um bem apreciado deslizamento para um mar aberto. Dentro do estreito espaço do carro, braços, ombros e bustos entrosaram-se perfeitamente. O cão distante latia sem cessar, correndo para pegar o graveto. À sombra de um pé de lilases, um homem de boné montou uma banqueta de campanha, um cavalete, e escolhia as tintas. Os espectadores poderiam julgá-los um casal de enamorados, em um carro estacionado. Não ocorrera a Paul que a influência de Caro poderia aumentar com a submissão dela. Ou que ela permaneceria inteligente. Quando Caro jogou a cabeça para trás a fim de fitá-lo, ele teve consciência de seu julgamento, persistente como uma pulsação — inclusive, compondo a parte mais terna, mesmo mágica do amor. Levou a mão ao rosto dela, com os dedos tremendo em convulsiva evidência de indisfarçada vida. — Linda — falou, tendo aprendido essa nova e quixotesca palavra. Traçou-lhe o contorno da boca com o dedo e os lábios dela sorriram sob ô toque. — Vamos andar um pouco? Saíram do carro. Caro recuperou a sacola de lona. A breve falta de contato era uma brusca divisão daquilo que eles haviam reunido. Pela margem da estrada, onde a relva era fina como musgo, a terra sepultara seixos calcários, cacos de cerâmica e ossos humanos. Paul caminhou com o braço enlaçando a cintura de Caro e agora a chamava repetidamente pelo nome: duas sílabas, como carícias proibidas e contidas. Um aviso pendia atrás da porta: "A gerência não se responsabiliza pela perda de valores". — Portanto, não adianta acusá-los — disse Paul. Acima do lavatório havia outro aviso, borrifado e desatado: "Lamentamos não haver fornecimento de água quente nos quartos". Uma tardia faixa de luz cortava um canto do papelão. — Como é que conhecia este lugar? Ela erguia os olhos para o papel de parede floral e um ornato em relevo, empoeirado, em forma de acanto. Abaixo de sua cabeça, o travesseiro se projetava da fronha, listrado e manchado. — Foi em circunstâncias muito diferentes. Caro recordou o pequenino bar deserto no andar de baixo, recendendo a azedo; uma fila de garrafas turvas, copos encardidos. Em um balcão, uma torta de vitela e presunto, dividida ao meio, rósea e engordurada — seu ovo central espalhafatoso como um desenho infantil de pôr-do-sol. — A cena do crime — disse ela. — De que está falando? — Eu pensava em Avebury. Embora o crime seja irrelevante para Avebury. Lá, tudo o que seja humano se torna insignificante — puxou os cabelos para cima, tornou a aninhar a cabeça no braço dele —, mesmo o sacrifício humano. — Tudo hoje é o mesmo de outrora, apenas sobrecarregado de hipocrisia. — A segurança voltara a Paul, como também certo ressentimento contra um mundo em que se movera com tanta facilidade. A jovem deitada a seu lado era parte da aquiescência geral. Ele lhe afagou os bastos cabelos e disse: — Nunca enfrentei grandes sofrimentos. Por acaso ou exorcismo, Caro tocou a mão dele, na horrível cabeceira da cama, folheada em madeira de bordo. — Então — disse —, você ainda tem algo a temer. — Eu quis dizer que, quando houve tragédia ou perigo, não senti o suficiente. Seja qual for o significado de suficiente. — Ele não a estava advertindo, apenas dizia a verdade. — Se você pode chegar aos cinqüenta sem uma catástrofe, quer dizer que venceu. Conseguiu passar ileso. Talvez, até este momento, eu tenha tido mais boa vida do que eles me poderiam tirar. Com "você", Paul se referia a si próprio. "Eles" eram indefinidos. Caro nada disse. No momento, daria a vida por ele, mas repudiava o desejo de Paul de ser ressarcido contra a experiência, através de vantagens aritméticas. "Escapei disso impunemente", havia dito ele, como se a própria vida fosse uma felonia, uma exposta velhacaria, como o pano manchado de uma cama alugada. Como se, apesar de toda a sua autoridade, ele fosse um fugitivo. Talvez seu pai tivesse renunciado à existência, mas não fugira dela. Caro lhe teria dito: "Você não conseguirá isso sem catástrofe"; mas ficou calada por temer a perda — recordou como nada cria tanta inverdade como o desejo de agradar ou de ser poupada de algo. Paul levantou-se e se vestiu. Da cama, Caro ficou olhando, lânguida como um paciente emergindo do éter, com dores e levado em torvelinho por lentas impressões que mal consegue focalizar, enquanto o mundo desperto, personificado em Paul, prossegue com a rotina. A suspensão de vontade naquela experiência quase poderia ter originado uma nova inocência, se a primeira não houvesse sido desejada tão profundamente. Houvera a oferenda e o sofrimento: uma breve escusa para a ternura ilimitada que, de outro modo, homem nenhum concederia. Em uma hora, ela passara da ignorância àquela superioridade de comum conhecimento. Quando Paul se sentou em sua puída poltrona para calçar os sapatos, ela finalmente se levantou, caminhou até ele e ajoelhou-se para seu abraço. Paul lhe puxou o corpo para o meio de seus joelhos. A pressão de mangas e calças na pele nua despertou em Caroline Bell outra sensação, vinda da infância, quando seu pai se inclinava para ela e a levantava da caminha, quase uma criança despida, em suas parcas vestimentas, suspensa por aqueles braços onipotentes em brim ou flanela, braços que tinham cheiro de cidade e do grande mundo. Uma intempestiva e particular lembrança, também, de seu pai vestido a rigor, a caminho de alguma cerimônia, usando medalhas de guerra que pendiam de fitas brilhantes, quando se abaixava para beijar a filha mais velha. E era ela a criança que se alçava para um odor de tabaco e colônia, para a escura fricção da roupa masculina, enquanto as medalhas oscilavam, como moedas de pequeno valor. As transformações de seus vintes anos não eram mais espantosas ou irreversíveis do que a nova mudança, no decorrer de um só dia, quando passara de jovem solitária a mulher, agora ajoelhada e nua sobre um tapete gasto, aos pés do amante. O braço, o quarto, uma nesga de luz no teto, a prateleira vazia de bagagens a um canto poderiam ter sido parte de uma andrajosa insignificância para o mundo além — ou talvez contivessem a própria fonte de significado, como o beijo ou a flagelação, no fundo silencioso de uma obra-prima. — Vai acabar pegando um resfriado, Caro — disse Paul. Estava vestido e presidia de sua poltrona, porém mal suportava a carga do renovado poder que aquilo conferia a ela, o estar de joelhos a seus pés. — Poderá se resfriar, querida. O sol pálido tinha ido para o teto, uma faixa estreita iluminando cada enfeite ordinário. Paul lhe afastou a cabeleira basta, descobrindo a pele branca sob ela, que o verão não alcançara. — Não mais virgem. Caro sentiu lágrimas se formarem no canto dos olhos. Entretanto, não eram das que rolam ou precisam ser percebidas. A caneca suja contivera chocolate, havia um pedaço escurecido de maçã e um pires, sapatos pesados, deixados em desalinho no chão, uma camisa em uma cadeira. As cortinas escuras do quarto e as severas instalações não ganhavam animação pela mera desordem e pelo cheiro de alimento. E os livros mal facilitavam aquilo, nada tendo a ver com o quarto: livros de passagem. Eram uma fase do trabalho de Ted Tice, um período que lhe interessava menos que o anterior e que o que logo chegaria — e os livros sabiam disso. Estava singularmente frio ali, e ele jazia na cama, vestido e de meias. À noite, dispunha de um pesado edredom. A temperatura era uma piada para a família: "É um setembro excelente para Edimburgo, não tivemos um só dia com menos de quatro graus". Ted e Margaret tinham usado essa piada até gastá-la, como pessoas que vacilam em mover-se para a fase seguinte. Toda a família saíra para o chá dominical, exceto Margaret, que ficara em casa para pintar ou estudar piano. Ela precisava estudar. Também era possível que estivesse evitando algum Donald ou Willie — pois Margaret, loura e magnífica, era a caça natural para os alunos de seu pai. Era ainda plausível que tivesse alguma razão, mais forte que suas muitas realizações, para permanecer em casa. O piano ficava em um aposento do andar de baixo, nos fundos da casa, onde ela também pintava. Entretanto, na suspensão do domingo, podia-se ouvir todas as notas, mesmo a pausa entre folhas viradas — de Schumann, César Franck. Willies e Duncans teriam virado as páginas de suas músicas hora após hora, ou, se agora os rapazes não executavam mais essa tarefa, eles a acompanhariam por ruas geladas, de dia, para comer costeletas fritas em algum bar de estudantes enfumaçado e barulhento. Qualquer deles suspirava pela ampla fronte alva e pela boca tenra de Margaret, ansioso por fazer demonstrações para ela. "Ela é uma princesa", dizia sua mãe, uma adepta da Sociedade Fabiana. Ted Tice largou o livro que deveria estar lendo e colocou um braço sob a cabeça, com uma carta na outra mão. O livro caiu desajeitadamente sobre o cobertor dobrado; quando Ted suspirou, ele pareceu suspirar também e perdeu o equilíbrio, estatelando-se no chão. Abaixo, o piano fez uma pausa, como uma polida inquirição acerca daquele baque. A pausa aprofundou-se. Quando a música recomeçou, era a música de canções que poderiam ser tocadas em um clube noturno por um, ou uma, pianista de talento que sentisse aversão pela própria sorte. Smoke gets in your eyes, e coisas assim. "Fui a Avebury, mais ou menos conforme o planejado. Aquilo é mais um símbolo que um lugar — uma expressão do inevitável. Certa vez, você falou que a vida não precisa ser crível ou justa. Isso pareceu suficientemente claro em Avebury Circle. Então, na semana passada fiquei uma noite em Londres. A entrevista foi com um homem chamado Leadbetter, e começo a trabalhar no mês que vem. Vou ganhar quatro libras por semana — seriam três caso eu não fosse aprovada no teste. Esse Leadbetter estava muito bem trajado, diminuto em seu cubículo de celulóide. Uma espécie de homem em miniatura, um navio dentro de uma garrafa. Nossa conversa foi também mais ou menos assim — uma representação reduzida de discurso humano. Quando questionei uma das condições, Leadbetter disse que eu era perfeccionista, como se isso significasse pecadora. À noite, fui ver Ricardo I I . Uma montanha de homem sentava-se à nossa frente — o menor movimento seu e metade da corte inglesa desaparecia de vista." These foolish things foi seguida por M y romance. As canções estavam sendo executadas com muito estilo e atenção. Ao invés de serem um divertimento agradável, eram mais um esbanjamento, o desperdício total de algo inestimável. "Tento imaginá-lo em seu limbo no norte, esperando a fim de partir para a França. Ted, não perca seu precioso tempo comigo. Não há futuro em que eu creia tanto como no seu, e ninguém mais cuja ambição já parecesse tão nítida e proveitosa." "À nossa frente." Ted Tice estava tão certo, e desejava tanto ser dissuadido a respeito daquela outra presença na frase, que perdeu a capacidade para julgar — como o homem que olha por muito tempo para uma forma distante e não tem certeza se ela se move ou está imóvel. "Não é uma questão de mais tempo. Não fique decepcionado comigo. Desejo-lhe muito bem — apenas, sou impotente para fazêlo feliz. Se felicidade significa uma espécie de vigorosa paz de espírito, então espero — contra toda a moralidade — que ela lhe seja conferida, sem qualquer sofrimento de sua parte e nem mesmo esforço. (Isso talvez seja o sentido em que o perfeccionismo, em meu caso, é relacionado ao pecado.)" No andar de baixo, Margaret tocava I'm in the mood for love; estava jogando sua última cartada. E Edmund Tice, no quarto gélido, com o braço debaixo da cabeça e uma carta ao lado, lamentou-a tanto quanto lamentaria qualquer pessoa. 13 O corpo de Caroline Bell não era branco, mas nutrientemente alvo, como massa ou pão, mesmo possuindo as leves máculas — a pequena etiqueta de um sinal congênito no pescoço ou no seio, uma cicatriz no joelho, proveniente de uma queda em criança — que poderiam ter-se formado em um processo semelhante ao da cozedura. Quando ela se erguia sobre um cotovelo ou se deitava com os braços abertos, o espaço de seu corpo era um regaço, a curva emparelhada dos ombros sincronizada para um iminente abraço. Isso não podia ser percebido senão com ela nua: até então, a sensação, em si, estava enroupada. Caro nada mais usava além de um pequeno relógio de pulso redondo. — Eles logo estarão em casa. Naquela tarde de setembro, até mesmo Grace era eles. Até mesmo Peverel era a casa, o lar. No quarto de Paul Ivory, situado no alto da casa dos Thrales, a cabeceira da cama era de latão, a colcha rejeitada e rastejante, uma trouxa de croché branco. Era o quarto da alta e incongruente janela, cujas vidraças deixavam o sol bater em cheio na parede lisa. Na cama branca, Paul e Caro apertaram cabeça contra ombro, queixo contra têmpora e coxa contra coxa, engenhosamente. — De qualquer modo, ninguém irá subir até aqui. Sendo domingo, devo estar trabalhando duro e você, fora de casa. — Onde estou, exatamente? — Na estrada perto de Romsey, apreciando o passeio. — Paul chutou um emaranhado de paciente croché branco. — Oh, Caro, que bom é isto! Suficiência era como uma entrega, um parto: ele estivera sufocante, agora respirava livremente. Paul estava familiarizado o bastante com o prazer para saber que ele pode tornar-se cediço ou relutante. A alegria, no entanto, era literalmente estranha, uma palavra que jamais pronunciaria com facilidade, um arrebatamento que tinha alguma outra arrojada nacionalidade. Por esse motivo, a plenitude de Caro no amor, sua felicidade naquilo, a tornavam exótica. — Tranquei a porta — disse Paul. Os dedos de Caro aferravam-se às colunas e arremates de latão da cabeceira como os de uma mulher sonhando. Seu braço, que os outros consideravam forte, revelava uma parte inferior macia como a de uma criança, escassamente mais áspero no cotovelo. Sua outra mão passava e passava por entre os cabelos de Paul Ivory, com toda a ternura possível. Mentalmente, ele via aquilo acontecer, sua lealdade escapando através dos dedos dela, no quarto branco. De qualquer modo, isto é real, disse para si mesmo. E podia sentir que ela pensava de maneira idêntica. Ele alcançou a coberta, puxou-a até o queixo de Caro. Tornou a puxá-la para baixo, lentamente. Os dois riram: o desvelar de um monumento. Na parede, estava a janela do céu azul, folhas verdes de uma galhada de olmo. Um aviãozinho angular havia passado lentamente mais acima, como que em papel prateado, daqueles que podiam levar crianças em escapadas, entre as guerras: um avião de brinquedo que zumbira em um campo relvado dos tempos de paz, enquanto um homem de macacão se precipitava para a hélice e gritava: "CONTATO". Eles tanto faziam parte daquela cintilação aérea como do quarto trancado, doméstico e terrestre. — E se sua irmã não tivesse ido ao concerto? — disse Paul, tendo sabido a história de Grace e Christian, no Albert Hall. — O nosso destino, tanto quanto o deles. Paul considerara aquilo uma sorte, mas ela agora falava em destino. Como se Caro lhe houvesse dito: "Você deve escolher". Era aquela maneira de as mulheres requererem escolhas, seleções e provas, para então atribuírem responsabilidade. O Julgamento de Paul. — Jamais gostei de tardes, só agora — disse ela. A um canto havia um guarda-roupa tão pesado, que fazia evocar imediatamente os homens que o tinham transportado pela escada, cinqüenta ou sessenta anos antes, grunhindo e sustentando-o às costas. Em cima de uma cômoda de nogueira, havia uma fotografia desbotada, tendo a data 1915 inscrita a tinta. Até mesmo um bolorento instantâneo de um chalé inglês, se estivesse rotulado 1915, era maculado e difamado com uma turva conscientização das trincheiras. Inclusive em um quarto de amor. Abaixo da foto, o pente e a escova de roupa de Paul se situavam ao longo de uma carteira de couro de porco e um vidro de água-de-colônia francesa: tudo dourado, sobre uma toalhinba de renda. A pulseira do relógio de pulso descartado se erguia em dois breves arcos, pronta para o pulso dele. A maioria dos objetos de tal natureza era tão solene que quase fazia sorrir, mas os bens de Paul possuíam a eletricidade do dono. — Devíamos estar ao sol, em algum lugar — disse ele. — O sol está aqui. Paul gostaria que ela imaginasse alguma praia simplificada, com palmeiras ou pinheiros italianos. Caro, entretanto, descria desse cenário de filme, para o qual estivera olhando, antes de fechar os olhos. A insistência dele em mudar estabelecia um final ou negava um começo. A partir de seu prodigioso conhecimento de agora, Caro podia assegurar-lhe que ele encontrara o que buscava. — Bem, está aqui — disse ela. — O sol. Desejaria apenas que o fato fosse reconhecido. Paul, no entanto, preferia aquilo que descobria por si próprio. — Eu pensava no calor real. Sol, areia e mar. — Espalmou as mãos de ambos e as uniu — jovens, lisas, maravilhosamente limpas, com dedos tão superiores. — Limoeiros, vinhedos, paredes caiadas. . . Escarnecia dela com a carência. Um teste de vontades, quando tudo poderia ter tido um cômodo virtuosismo. — Por que está sendo rude? Ele refletiu que as mulheres já nasciam com tal pergunta nos lábios. Distraiu-se um instante, buscando a contrapartida masculina. — Espero que me perdoe, com o tempo — respondeu. — A la guerre, comme à la guerre. — Que guerra há entre nós? — ela quis saber. Paul considerou também como era fraca sua pronúncia do francês. — Está tudo bem, não há nada. Se você gosta daqui. . . Riu e desistiu da excursão por causa dela. Como se percebesse, seu olhar seguiu o braço que ela estirara, o joelho erguido. Paul colou os lábios a seu seio. Foi então que ouviram o carro. Não o ronco de um Hillman ou Wolsey, não a mudança brônquica de marcha com que um caminhão poderia estar subindo a ladeira, mas um som rápido e decidido, um som em condições para um salão de exibição, ganhando caminho deliberadamente, mo-vendo-se com velocidade na direção da casa, ainda bem longe, depois na direção da parede e da janela aberta, como um maroto raio de luz. Foi então, naquela atitude primordial, que eles ouviram o carro. A cabeça de Caro recaiu no travesseiro branco. Paul saltou da cama. — Se ela entrar — disse —, se ela subir e achar a porta trancada. . . Era Tertia, nesse dia e nos outros. Paul já vestira a camisa e pegava uma gravata, escolhendo para aquele momento roupas mais formais que de costume. No cascalho, rodas salpicavam pedrinhas para os lados. Era o próprio castelo vindo ao encontro deles. O motor cessou, mais conclusivamente do que já cessara algum motor. — Paul? Ouviram o barulho da porta de aço. — Paul? Nunca houvera sons tão definitivos, aquelas pausas, ultimatos e as chamadas incondicionais em tom agudo. Caroline Bell permaneceu imóvel. Paul agora chegava à janela. Inclinou-se para fora, lacônico. — Santo Deus! — Ele sorria, inclinava-se e fazia espaço para os cotovelos informais. — Aconteceu alguma coisa? Havia a intimidade sólida do tom, a naturalidade com que deixara de pronunciar o nome dela. Como se, no máximo, houvesse acrescentado "Tertia". Tertia Drage chegou bem abaixo da janela: um vestido cor-de-rosa e um rosto erguido. Talvez não esperasse que Paul aparecesse tão de súbito, mas não demonstrou surpresa e, mesmo estando de pé, mais abaixo, não havia nenhuma impressão de desvantagem. Não mais do que Paul — de pé e à vontade, apenas com a camisa e a gravata — e, no que dizia respeito a Tertia, inteiramente vestido. Vendo-os agora, qualquer um os julgaria bem adequados. — Está uma tarde linda — disse Tertia, naquela sua voz tão desprovida de fervor. Havia uma fita de seda rosa em torno de sua cabeça e ela segurava uma luva de dirigir na mão direita. — Devemos aproveitá-la. — E qual é a idéia? Estavam em uma de suas competitivas recusas, não desejando demonstrar qualquer espontaneidade. Ambos eram esquivos, embora não introvertidos, com uma subterrânea corrente de sarcasmo que incluía o repúdio a qualquer fraqueza inadvertida. Com Tertia, a maliciosamente antagônica disposição de ânimo já era habitual. Ela ergueu a mão, desdenhosa. — Você está a par das possibilidades tanto quanto eu. O som do motor havia sido uma voz mais verdadeira que a dela, e também mais responsiva. Fora de vista e abaixo do peitoril, os pés de Paul Ivory tinham se cruzado tão negligentemente como seus braços dobrados. Pêlos louros e pequeninos anelavam-se nas coxas nuas. — Nada tão árduo — disse ele, ou estava dizendo quando, após observar os membros de Tertia, soube que Caro chegava ao seu lado. Paul percebeu que Caro chegara por trás e se encontrava ao seu lado, na janela. O ombro nu, perfeitamente à vontade, tocou o seu. Ele não se virou, mas, como se fosse Tertia Drage, viu Caro, parada nua ao seu lado, naquela janela alta, espiando para baixo; espiando os dois. Lá estavam, ele e Tertia, com Caroline Bell à janela, observando-os. A mão de Caro pousou no peitoril. Ela nada mais usava além de um pequeno relógio de pulso redondo. Momentos passaram — ou não passaram. Tertia permaneceu impassível. Apenas moveu um braço para o alto, estendendo o punho enluvado e crispado como o de um falcoeiro. Ela olhava diretamente para Paul. Seu olhar tinha uma expressão fixa e dura, para ele somente. — Você decide — disse. — Vou descer. Talvez pela primeira vez, os olhos de ambas se encontraram. À janela, Caro não se moveu. Paul afastou-se e vestiu o resto de suas roupas. Seu afastamento expôs completamente a parte superior do corpo de Caro. A luz cor-de-carne lhe estriava o ombro e desenhava listras avermelhadas nos bastos cabelos que se espalhavam por suas clavículas. Mais abaixo, Tertia caminhava em torno do carro e abria a porta. Depois entrou, deixando livre o assento do motorista. No quarto acima, a cama rangeu, enquanto Paul enfiava os sapatos de lona. Demonstrando apenas a pressa normal, ele pegou seu relógio em cima da cômoda e o consultou, colocando-o no pulso. Poderia ter-se atrasado para um compromisso. Uma porta quase fechada. Degraus ecoando sob os pés rápidos de Paul Ivory. Ele surgiu na trilha abaixo da janela do quarto e deixou o casaco cair dentro do carro. — Quer que eu dirija? — Se estiver com vontade. As vozes dos dois não soavam alto nem baixo: poder-se-ia dizer que estavam niveladas. Tertia tirava as luvas bruscamente. Houve o repentino ronco do carro. Como se alguém, girando uma hélice, gritasse: "CONTATO". O capitão Nicholas Cartledge esperava um trem. Seu terno de tweed era da cor e textura de areia fina. Bege e granulado, ele estava de pé em uma plataforma cimentada do ramal ferroviário, ao calor do tédio de uma tarde de domingo. O trecho betuminoso da ferrovia aniquilava virtualmente toda uma suave região rural. Até mesmo o dia radioso podia gerar cor, onde somente havia ferrugem depositada no cimento e em uma mancha de raquíticas dálias, em torno de um poste de sinalização. Nicholas Cartledge se mostrava impassível, nem paciente nem impaciente, volta e meia deixando a pequena mala de roupas sobre o asfalto, a fim de caminhar pela extensão da plataforma e voltar. Por uma vez, seu punho branco se ergueu, para uma comparação das horas com o relógio da estação, mas ele não chegou a qualquer aparente conclusão quanto a uma discrepância. Se alguém houvesse feito comentários sobre o tédio, ele responderia: "Não me entedio". Ele viu que o táxi local, um velho Humber verde, que podia ser solicitado por telefone, parava junto aos degraus da estação e que Caroline Bell desembarcava do veículo. Com a mínima vibração de surpresa, ele se aproximou para ajudá-la e, antes mesmo que ela o reconhecesse, já se inclinava para pagar a corrida. Caro ficou parada na calçada, estendendo-lhe na palma aberta uma profusão de meias coroas e sixpences. — Era só o que faltava! — exclamou Cartledge. Pegou a mala, não maior que a dele, e um leve impermeável. Aliviando-a daquelas coisas, parecia sugerir uma expropriação. Subiram os degraus de madeira, e as duas bagagens ficaram lado a lado. As dálias fanadas circundavam o poste de sinalização, como água parada em torno de um ralo. — Seguindo para Londres, imagino — disse Cartledge, e não pareceu surpreso. Possuía uma autoridade associada à insensibilidade. Caro mal havia falado e poderia ter esquecido seu nome. Estava decentemente vestida e não demonstrava — ou traía, como se diz — qualquer emoção. No entanto, ele poderia ter dito que sua aparência era desordenada, não apenas porque aquilo resumia uma evidente situação, mas por causa de uma emanação de impotente abalo. Ela recusou um cigarro e não quis sentar-se. Caminharam ao longo da plataforma cheia de luminosidade, indo e vindo. As meias claras se mostravam acima dos sapatos flexíveis que ele usava. Não se poderia dizer que caminhavam juntos ou que ele fazia algum esforço para diminuir a distância que Caro criara entre ambos. Um casal idoso e trajado de escuro, sentado em um banco, os observava com a perspicácia aguçada pelas neurastenias dominicais. — Aí há alguma história. Inclinaram-se a tomar o partido de Cartledge — que afinal era o homem, e vestia aquelas roupas excelentes, uma figura da escola antiga, com os cabelos louros e o rosto dispendioso, magro e polido. — Um legítimo conquistador — disse a esposa, quando Cartledge tornou a passar por onde ela estava sentada, imóvel, sob um toucado de violetas em seda artificial. — Ou um roué1 — acrescentou, reforçando a idéia. Entretanto, logo voltou ao seu próprio domingo: — Bem, Fred, você demorou bastante para se decidir a visitar Maude, e demorará ainda mais da próxima vez. De pé, ao lado da bagagem, que funcionava como um ponto de destino, o capitão Cartledge sacudiu a cinza do cigarro. — Era evidente que você se aborreceria naquele lugar. Não esperava resposta, mas, após algum tempo, virou-se para fitá-la — a cabeça, os seios. Caro o viu fazer aquilo, mostrando uma frieza que era, conforme ele percebeu, uma variante do problema que a perturbava, fosse qual fosse. Finalmente, ele disse: — Se eu puder ajudar. . . Ela podia estar sorrindo da ironia: — Eu me aborreceria, foi o que disse. — Não há nada pior — concordou ele, identificando o tom. — Não poderia encontrar um ouvinte mais compreensivo. Caro não o procurara, em verdade, mas ele mostrava uma segurança que apenas uma investida violenta destruiria. Quando o trem chegou, o capitão jogou o cigarro fora e embarcou com as malas de ambos. Ela caminhou na frente, até um compartimento vazio, onde se sentou junto à janela, pálida e peculiar, a ponto de o casal idoso comentar pela última vez, enquanto os dois passavam: — Aí há mais do que vêem os olhos. — Isto vai ajudá-la — disse ele, respingando algumas gotas quando o trem deu a partida. Caro viu as iniciais NGWC na prata. Ele enxugou os dedos molhados com um lenço branco enquanto ela bebia, depois despejou uma dose mínima para si mesmo. O lenço tinha as mesmas iniciais, enroscadas a um canto. — Não tenha pressa — disse ele, sentando-se no banco oposto ao dela, depois ajeitando polidamente as pernas para evitar o contato e colocando um braço no peitoril da pequenina janela. — Há tempo de sobra. Ele não quis dizer que havia tempo para a existência retomar seu curso, mas que ela terminaria aceitando o que deveria acontecer agora. Havia a prata e o lenço, o tweeà granulado e o peitoril sujo da janela. Caro entrelaçara os dedos no colo, uma atitude de tal calmaria que ela e a irmã adotavam quando sob tensão, ao mesmo tempo em que sustinha o olhar dele, sem pensar e sem pestanejar. Colinas e vales passavam oscilantes pela janela do trem. Uma fábrica ocultou a paisagem momentaneamente e recuou depressa, como o slide errado em um projetor. Havia um odor úmido e metálico no compartimento, um cheiro antigo do estofamento, uma exalação do lavatório próximo e o sabor mais imediato do brandy. — Estou ao seu dispor — ofereceu-se o capitão, mas ela não se iludiu ou mal o ouviu. Ante o silêncio de Caro, acrescentou: — Não me aborrece. Ele ponderou se teria sido aquele rapaz vesgo, antes de lembrar que Ted Tice já havia partido — para Glasgow, Edimburgo ou, possivelmente, Paris. O fato de ser Paul Ivory dava um matiz mais interessante, pelo menos por razões de classe social. Passaram estações com dálias cobertas de ferrugem, das quais o sol se retirava sucessivamente. As plantações de lúpulo estavam no ponto, em um campo após outro. Em alguma parte, perto da frente do trem, o casal idoso cochilava. Em certa ocasião, a mulher perguntou, entre uma e outra soneca: — De onde você acha que vem a palavra "roué” 1 ? Ela pronunciou "ruei", e não obteve resposta. Os cabelos de Caro tocavam o batente da janela. Não fechou os olhos. Cartledge disse: — Não prejudicou em nada sua aparência, você sabe. — Falta muito tempo? — perguntou ela. O punho dele se ergueu. Depois: — A que estação chegaremos? — sem o chamar de Nick, como ele sugerira. — Está pretendendo ir para. . . onde? — Há uma casa na Gloucester Road onde aceitam australianos. — Minha cara, da maneira como fala, eles parecem prisioneiros em liberdade condicional. — Mandamos amigos para lá. Se essa falhar, existe outra semelhante na Cromwell Road. — Ficaria melhor alojada na North Audley Street. Onde eu aceito australianos. — Tornou a oferecer-lhe o frasco, em cuja superfície o sol cintilou, como em um cano de rifle. — Por falar nisso, imagino que você tenha deixado a inevitável nota espetada no travesseiro — alguma explicação convincente e inteiramente fictícia, não? Viajavam agora entre plantações de lúpulo, que iam rareando, substituídas por hortas. Dois homens em verdejantes hortas vizinhas aproximaram-se um do outro, amistosamente, por sobre o muro; também poderiam estar discutindo. 0 céu agora se espelhava avermelhado sobre a terra, e uma encosta de colina assomava ameaçadoramente como um naco-de pernil. O capitão Cartledge tirou cigarros de um maço comum, embora em algum lugar devesse existir uma cigarreira de prata com iniciais, combinando com o frasco. —Nas noites de domingo, eles sempre me reservam alguma coisa — disse ele. — Sopa, galinha. Refiro-me ao meu casal. 1 "Libertino." Em francês no original. (N. do E.) Então, havia um casal, que deixava pronta uma refeição fria para o capitão e dava uma boa esfregadela para polir as iniciais. Bom trabalho o teu, prestimoso e fiel servo. Capitão, meu capitão. Casal, meu casal. Capitaneados, acasalados. Haveria lençóis, fronhas e lenços com iniciais espiraladas, prontas para saltar. Em seu canto, na penumbra, o capitão estava calmo, acima do brilho alvo do colarinho e dos punhos — listras apropriadas, como as características de um cavalo de corrida. Ao contrário do que poderia ter acontecido, ele não a tocara. Disse: — Em todo caso, é melhor que passar uma noite desagradável na Gloucester Road. "Em todo caso" colocou a coisa em perspectiva. O suor porejava na raiz do cabelo de Caro. Se ela perdesse os sentidos ou a calma, ele estaria tentando um empreendimento demasiado arriscado. Caro, no entanto, permaneceu distinta, integral, controlada, em seu assento no banco oposto. — Entre outras coisas — acrescentou ele —, a noite é boa conselheira. Pela formação da frase, aparentemente Cartledge já havia dito aquilo antes. O céu se mostrava tanto uma composição rosa-viva de noite estival, como um arco de monstruosas contusões, dependendo da maneira como fosse encarado. Agora, cruzavam um labirinto de vias perto do rio e tinham uma bela vista da Catedral de São Paulo. Caro estava de pé, estendendo o braço para apanhar sua mala no bagageiro. — Era só o que faltava! — exclamou ele, como havia exclamado antes na estação, e desceu a mala para Caro. Estavam ambos de pé, equilibrando-se, a poucos centímetros de distância um do outro, e Caro mantinha as mãos ao longo do corpo. Seus lábios repuxavam-se ligeiramente para trás, deixando ver os dentes inferiores; naquele momento, podia ser considerada cruel como ele. Ela o fitou no rosto. — Já fiz amor hoje. Ele cambaleou para manter o equilíbrio, quando o trem freou ao chegar à estação, depois oscilou sobre os artelhos, em controle. Era mais alto que ela uns doze centímetros. — Estou consciente dos termos. Dá no mesmo; vejamos se não podemos oferecer-lhe algo isento de tortura. — Olhou em torno do compartimento. — Está pronta? Foi o primeiro na plataforma. Seguindo-o, ela o viu erguer o braço rapidamente: — Táxi! Então, entrou no táxi escuro de Cartledge, enquanto ele ainda estava dando o endereço. Segunda parte Os contatos 14 "Minha querida Caro, Em Paris há sessenta mil estudantes, a maioria deles no corredor fora desta sala. Na semana passada, entretanto, o edifício ficou deserto por causa da Páscoa e calmo como um mosteiro. Minha janela dá para um pátio cheio de árvores floridas — pilriteiros, uma olaia, e, bastante próximo, um enorme pé de lilás, desabrochando em pirâmides arroxeadas. Há um chafariz e — escondido — um tordo. Durante os feriados, fui com dois colegas franceses às minas perto de Lille, onde descemos em um poço. O trabalho é feito por rapazinhos de uns dezesseis anos, com rostos encarvoados, exatamente como os de Dante, em sua maioria norte-africanos que não falam francês. Ainda piores eram as choupanas para as quais depois voltavam, dez em uma choça imunda. Tendo dirigido petições inúteis ao Ministério do Trabalho em benefício daquela gente, meus dois amigos os estão auxiliando a formar um sindicato. Voltamos a Paris, via cemitérios da Primeira Guerra Mundial em Vimy e Notre-Dame-de-Lorette e um quarto de milhão de sepulturas. Trabalho. Penso em você. Não são proposições alternativas — penso sempre em você. Desde que lhe escrevi pela última vez, fui a uma exposição de desenho de Leonardo, a revolução industrial de um só homem. Vi uma boa peça, Le diable et le bon Dieu, assim como Jean Vilar e Gérard Philipe em Le Cid, um torneio de judô e o senador Kefauver, pela televisão. Kefauver é bastante desalentador, sabe Deus, mas aqui sou encarado como o seu defensor, já que há um antiamericanismo tão fácil e desinformado entre meus colegas. Detesto unanimidade (ou solidariedade, como perniciosamente é chamada), e, de qualquer modo, o descuidado culto aos soviéticos e chineses me entedia — particularmente nesta terra de en principe. O homem com quem vim trabalhar aqui continua a impressionarme, humana e profissionalmente. É verdade que ele comete erros, em parte por ter feito tanto. Aqueles que se comprometem menos podem ser mais circunspectos. (E aqueles que nada empreendem — seja no campo do espírito ou do intelecto — estão em segurança e, naturalmente, são os mais críticos acerca de tudo. É muito fácil denunciar — basta ter má vontade.) Que esforço árduo e persistente é necessário, descobri, para aprender ou fazer alguma coisa até o fim — em especial se essa coisa é o que amamos! Uma vocação é uma fonte de dificuldades, não de facilidades. Fazer já é suficientemente difícil. Ser, mais difícil ainda. Tanto fazer como ser demandam um esforço sobre-humano. Bem, por que não? Qualquer coisa é preferível ao lado mais confortável da linha. Os estudantes são batatas precoces, forçados a amadurecer, o ritmo é terrível. Chegam aqui aos dezoito anos, saídos dos liceus, e depois de um ano alcançam o equivalente a BA1. Todos são 'sérios' e engagés. (Estou francamente saturado dessa palavra.) O lugar está entulhado de literatura marxista e, em quatro, um é membro do Partido. Não obstante, eles passam a noite infligindo brincadeiras brutais aos calouros e berram como se estivessem no quarto ano, quando as refeições se atrasam. Embora suas perspectivas sejam aterradoras, eles são comovedoramente jovens e sérios, quando vistos no Boulevard Saint-Michel, onde passam todo o tempo livre de que podem dispor. Fazem com que me sinta ponderado e deslocado ao mesmo tempo. O novo governo francês é idêntico ao anterior e cairá com idêntica rapidez. Terminaremos com a Europa voltando a ser fascista, 'defendida' por um exército alemão com comandantes americanos e armas americanas, todos ansiando pela travessia do Elba? (Quando se considera o quanto é real a ameaça soviética, chega a ser espantoso que a demência oposta de nossa parte quase faça com que a desacreditemos.) Uma brilhante projeção tem sido a morte de De Lattre, originando uma leve esperança de estabilização na Indochina. Seu funeral foi uma monstruosa exibição de militarismo — escolas fechadas, imensos desfiles com Eisenhower, Montgomery, o gabinete, bandas de música, coros, o clero, tropas, tudo, enfim. Em câmara-ardente no Arco do Triunfo, na Notre-Dame e nos Invalides. Um desempenho absolutamente prussiano. Se Leonardo descobrisse a máquina a vapor, Napoleão soltaria a bomba atômica, para o clamoroso aplauso francês. Entre os estudantes e também no caso de meus colegas daqui, é comum haver um passado de pobreza. Não há charada em torno do 1"Bacharel em Artes." (N. da T.) fato, como em nossa terra — nenhuma hipocrisia de parte dos pobres, nenhuma fantasia de fraternidade por parte dos ricos. Lembro-me do pessoal da universidade que costumava aparecer em Ancoats durante a minha infância, adotando nossa maneira de falar e nossas roupas, para exibir um espírito de companheirismo — uma condescendência sentimental, sem o menor significado para a pobreza. Ligar-se ao proletariado não quer dizer descer tanto. De que nos valia sua segurança eivada de culpa ou o insulto moral trocado, quando eles iam para casa, ao encontro de seus pais empregados — sua água quente e seus livros, sua música e sua conta no banco, se não tinham a intenção imediata de dividir nada disso? De que me valiam seus macacões, se eu daria tudo para ver minha mãe em um vestido decente? Em si, os farrapos não conferem uma moralidade maior que a infelicidade que causam. Os pobres não querem solidariedade com o grupo deles, querem mudar isso." (Durante a Depressão, quando Ted Tice tinha nove anos, seu pai o levara para ouvir um político discursar. Pai e filho ficaram entre a multidão, nos fundos de um lúgubre salão. Às perguntas do filho, o pai respondia da maneira habitual: "Cale a boca". O orador era um jovem liberal de cabelos louros, advogado do distrito, que se candidatava pela primeira vez. Ele se considerava um dos pobres, mas até mesmo o menino sabia que os pais daquele jovem haviam custeado seu curso de direito — enquanto os outros, rapazes e moças, trabalhavam no moinho, nas fábricas ou docas, com doze ou catorze anos. Isso, se tivessem sorte bastante para encontrar trabalho. Dizia-se que aquele jovem tinha um rendimento semanal líquido de três libras e dez, além de ter apenas um dependente, uma tia paralítica. Todo o resto ficava para ele. Era difícil imaginar o que fazia com tanto dinheiro. Ele parecia ansioso, queria mudar suas vidas. Um homem de pé a um lado do salão gritou: "Um pouquinho de seu salário mudaria uma vida, aqui nesse salão, se você o desse". O rosto do candidato ruborizou-se: "Não é essa a solução". O aparteante tornou a gritar: "Fico com ela, enquanto você vai pensando em uma melhor".) Ted Tice levantou-se e foi até sua janela florida. Tornou a sentar-se à sua mesa e olhou para o que acabara de escrever: "Eles querem mudar isso". Ainda mais do que mudar, querem vingar-se. Os homens podem confraternizar cedo o bastante com inimigos que os atacaram em batalha, porém jamais com irmãos que os humilharam a sangue-frio. Eles sofrem represálias, devido à própria vergonha — eis o que forma todos os ódios, na guerra, nas classes ou no amor. E também eu quero me vingar. Prosseguiu, em outra folha: "Você deve ter lido algum comentário sobre o telescópio. Só hoje me chegou o número do Observer. O velho Thrale jamais se perdoará por ter-me aceitado em casa. Não obstante, recordo nitidamente o momento em que o fez e fico grato. Amenizo meu papel pró-americano atacando ferozmente os Estados Unidos com o amigo mais agradável que fiz aqui, um jovem físico americano cuja principal atividade é encontrar garotas. Ficamos juntos nas noites em que ele não está disposto a obscenidades. Através dele, conheci uma êtudiante pequena e adorável, uma primeira bailarina do New York City Ballet, bem como uma jovem conservadora de museu que auxilia na montagem de uma vasta exposição de arte mexicana e entende profundamente de motivos sexuais pré-co-lombianos." Ted se sentia dividido entre a ânsia de exibir-se a Caro e a probabilidade de que ela enxergasse através disso. Relendo as últimas linhas, riscou "adorável" e "jovem", além de eliminar a bailarina. Reescreveu a página e continuou: "Outro americano daqui casou-se ontem e fui ao casamento, uma cerimoniazinha prosaica, em uma capela lateral da catedral americana. O sacerdote dava a impressão de que não fora pago. Em seguida, rolou champanha o suficiente para nadar-se nele e fiz jus ao maravilhoso jantar escutando uma mulher falar-me sobre sua plantação de frutas cítricas e o chalé que possui em Monterey. E por mais tedioso que fosse, havia um casal interessante na mesa, um pouco além — um homem chamado Vail, que subvenciona vários empreendimentos culturais na América, e sua esposa. Ele se parecia com Orson Welles (embora não como Cidadão Kane). Sua mulher, mais magra que qualquer modelo e muito alta, era bonita — um rosto seco, com olhos redondos. Aqueles dois estavam encerrados em alguma infelicidade que, por causa de sua inteligência e aparência, prendia o interesse. Antes, jamais me ocorrera que a infelicidade pudesse ser interessante, em si; Deus é testemunha de que a minha não é nada disso, para mim. E imagino que seja com coisas assim que os romancistas se preocupam. O tal Vail também se envolve em causas humanitárias e políticas; ele me surpreendeu, na breve conversa que tivemos, por estar a par da confusão sobre o telescópio. (Eu devia dizer que pensei bem dele antes disso.) Tinha acabado de chegar da Tunísia, que, como todo o mundo árabe, parece estar se dissolvendo em fumaça. Mal havíamos começado a falar, quando uma viúva rica de Pasadena nos interrompeu para dizer que certamente agora o mundo estava indo melhor, com os jovens tão viajados. Vail respondeu: 'Não se trata de viagens, mas de deslocamentos'. Por falar em casamento, soube de Paul Ivory. Soube também que sua peça estreou em Londres. Eu gostaria de saber qual irá durar mais." Ted juntou as folhas, para então acrescentar: "Quase me ressinto das coisas que descrevi, porque elas são a vida sem você. Caro, já faz tanto tempo! Se eu pudesse ao menos vê-la!" E assinou seu nome. Colocar uma carta para Caroline Bell no correio era um instante de esperança e contato, de anticlímax. Ted Tice desceu a escada de degraus gastos e barulhentos, e saiu para a rua. Após despachar a carta, procurou caminhar tão depressa quanto lhe permitia a multidão dos transeuntes, para que a boa disposição não o abandonasse, juntamente com o calor de seu quarto. Era crepúsculo, havia estudantes nos cafés. Outros jovens, aqueles que nem mesmo um café podiam pagar, permaneciam em grupos na calçada e falavam rapidamente, sem rir. Ted pensou: Isso é soturno e maravilhoso alternadamente, mas nunca descobrirei por quê. Pelo menos, não é natural nem fácil, não é desprezível nem pomposo ou insípido. E, em si, a ausência de intenção de enganar a si mesmo é liberdade. O instante de euforia evaporou-se. É degradante fixar sentimentos apaixonados em outro ser quando existe a certeza de que não pode haver qualquer pensamento de retribuição. Enquanto caminhava, Ted Tice levantou a gola do paletó. Como sempre, saíra sem sobretudo. Um dos homens em cuja companhia tinha ido às minas, um bretão que ia para a agrêgation, desligou-se de um dos grupos na calçada e caminhou com ele. Ted pensou em como seu amigo americano faria uma pergunta, "Teve um bom dia?", ou algo de natureza gentil. Os americanos talvez fossem o único povo ainda capaz de perguntar como alguém se sente — que ainda imaginava que esse alguém pudesse sabê-lo ou dizê-lo; ou que supunha uma mentira afirmativa e despreocupada, alguma demonstração de obstinada imaturidade, como a deles próprios. Após colocar no correio sua carta para Caroline Bell, Ted se alegrou com a emparelhada reticência com o bretão, ali na rua: uma camaradagem que abordava seu isolamento, mas não sua solidão. Quando chegaram à entrada do prédio de Ted, um grupo de estudantes passou por eles, rindo e gritando. — Todo esse entusiasmo não passa de melancolia — disse o bretão. Os dois homens recostaram-se contra uma parede tão suja como só as paredes de instituições de ensino o conseguem ser, como resultado da pressão de tantas mãos poluídas, de poluídos traseiros e coxas, ali encostados em discussão ou amor. Além deles, a rua comprida fluía lentamente em grupos humanos, tensos ou flexíveis; animados por opiniões, sofrimentos e ânsias. O bretão tocou levemente o ombro de Ted. — Lembre-se apenas, meu caro, de que as mulheres envelhecem. Até outro dia. Ted tinha mais uma carta a escrever, que não pretendia iniciar naquela noite — mas foi o que fez, incapaz que estava de trabalhar. "Foi muito bom ter recebido sua carta e suas notícias. Sim, possuo uma fotografia — desde que cheguei aqui, tenho passado a maior parte do tempo e gasto uma parte razoável de meus fundos sendo fotografado. Não sei o que há comigo, mas todos querem meu retrato, e em quatro ou cinco cópias: a polícia, a universidade, o Comité d'Accueil. Para você, não obstante, uma cópia apenas, na qual pareço o tipo de pessoa que mais detestei em Cambridge. Uma vez que você vem realmente — boas novas —, tentarei obter entradas para o festival de maio. Estarão levando Wozzeck, de Berg, e Oedipus Rex, de Stravinski. Haverá bastante bale — o pessoal de Nova York e o Marquês de Cuevas. Sem dúvida, você deveria ver Golovin. Quanto ao tênis, todos acham que a grande partida será a de Sedgman-Drobny, você também acha? Concordo com o que está acontecendo em casa — Attlee pode contar novamente com meu voto, da próxima vez. Preciso terminar um trabalho, portanto, perdoe-me por apenas um bilhete. Conversaremos em maio. Será ótimo ver você. Comuniqueme a época da chegada. Seu." 15 Na época em que Grace e Caroline conseguiram seu primeiro emprego — na Harrods e na livraria —, legaram a Dora a maioria de seu pequeno capital. Ocupada em criá-las, Dora ficara impedida de ganhar a vida, e parecera acertada aquela recompensa. Tal havia sido o raciocínio de Caro, pelo menos, de maneira que todo o seu capital fora transferido para Dora, na nova combinação. Afinal, Caro podia esperar ter em breve algo semelhante a uma carreira. Já que o emprego de Grace na Harrods carecia até mesmo dessa possibilidade, por sugestão de Caro ela continuara de posse de metade do que possuía. Explicado o plano a Dora, houve um desencadear de forte paixão. Ela nada queria, nunca pedira nada a ninguém, caminhara a fim de poupar até mesmo uma passagem de ônibus, e a única coisa de que não abria mão, para ninguém, era sua independência. "Não serei dependente de ninguém, não peço nada." Dora se sentira ultrajada — irracional, mas não imprevisivelmente. Então, somente após vários dias de lágrimas e de implorar tranqüilidade, ficou estabelecido que ela acompanharia as jovens ao escritório de um advogado, onde os documentos foram afinal e emocionalmente assinados. Passou-se mais uma semana antes que ela voltasse a falar com as duas na forma costumeira ou que consentisse no perdão. A própria Dora ficou confusa com a indignação que sentira ante o gesto das irmãs. Com tal atitude, elas a tinham privado, pelo menos temporariamente, de seus privilégios de vitimização. E até que restabelecesse suas prerrogativas de desvantagem, enfrentaria um impedimento. Além do ultraje sofrido, ela providenciou para que a situação se invertesse apenas brevemente. O evento tornou-se imencionável, e logo ela falava em viver sem tocar no dinheiro, para que vocês, meninas, fiquem com tudo, no dia em que me for. Naquela época, Dora ainda não tinha quarenta anos. A assinatura referente aos bens acontecera pouco antes de Grace encontrar Christian, no concerto de domingo — tendo sido atribuído a isso o ressentimento demonstrado por Dora, naquela tarde memorável. Meses mais tarde, quando Christian e Grace ficaram noivos, esta lhe falou sobre o acordo financeiro. — Pareceu-me o mais justo a fazer — disse. — Bem próprio de você, Grace — disse Christian, calmamente. — Você teria feito o mesmo. Afastando-lhe os cabelos louros da testa, ele ficou mais comovido do que ela esperaria. — Eu gostaria de pensar assim. E agora aparecia o major Ingot, tornando irrelevante o sacrifício de ambas. Quando o major levou Dora a Londres, no final da primavera, Christian disse que ofereceria um pequeno lanche ou almoço em um restaurante. Seriam apenas ele, Grace, o recente casal e Caro — que pediria uma folga do trabalho. Então, Christian estava casado com Grace, sendo a pessoa adequada para tal atitude, mas ele não sentia qualquer afeição por Dora, a quem já vira em ação, algumas vezes. Houvera uma cena convulsiva, incompreensível, por ocasião do noivado de Grace, além de cartas do Algarve, de tempos em tempos, aludindo à insondável ofensa. Christian acreditava firmemente (para empregar seu advérbio preferido) que Dora podia ser mais cooperativa — podia ser chamada à realidade com uma boa conversa, que, argumentava ele, devia ter tido lugar há muito e que faria a ela um bem enorme. Mesmo Grace imaginava que ainda existissem palavras capazes de atingir Dora e que até então, por incrível que pudesse parecer, não haviam alcançado o alvo. Apenas Caro reconhecia a exata condição de Dora: uma condição ou um estado irracional que requeria uma intervenção profissional ou divina. O major Ingot era corpulento, embora não no sentido marcial, pois tinha um ventre volumoso, produto da vida citadina, e queixo largo e rosado. Da porta do restaurante para dentro, ele parecia a curva ovalada de uma melancia. Seu crânio era liso, excetuando-se uma dispersão de fios no cocuruto; os olhos, de um azul ofensivo, eram os olhos de uma criança embriagada. À mesa, espalhou as mãos curtas sobre o cardápio, esmagando esse plano de ataque. Uma aliança de casamento já estava apertada em seu dedo, como um nó ali amarrado à guisa de lembrete ou o anilho fixado em um pombo doméstico. Seu pescoço fazia uma espessa dobra sobre o colarinho. Tudo nele era contido, apertado, uma abundância empacotada e amarrada. Era difícil imaginá-lo como militar, embora possuísse uma corpulência indicada para uma mesa de trabalho, que poderia ser adequada a um general. Quando Christian o interrogou sobre seu serviço de militar, ele ofereceu informações esparsas, antes de pedir salada de caranguejo. No Estoril não se podia confiar na salada nem nos frutos do mar. Na véspera da partida, Dora passara mal, com um prato de camarões gigantes. A conta do médico português, com os remédios, chegara a trinta libras. — E assim — disse o major Ingot —, foi uma dispendiosa refeição. — Bruce ficou furioso — Dora contou a eles. — E, em geral, Bruce é uma criatura paciente. O major ruborizou-se e a endossou com um olhar irado. Deviam voltar para Portugal naquele mesmo mês, ainda estava tudo por fazer no apartamento. Cortinas, estofados — Dora já estava de posse das amostras. Rastas, o cão labra-dor do maior, ficara em um canil. Era difícil imaginar os prazeres do major, difícil inclusive retratá-lo junto à lareira de um pub no Algarve inglês, dizendo: "Agora, escutem esta". A retaliação emergia como preocupação principal: "Eles fizeram a cama, que se deitem nela", "Ele apenas terá que tomar seu próprio remédio" — fazendo da vida um hospital militar ou correcional. Na confusão do pós-guerra, o major tivera sorte e, como explicava, caíra de pé. No salve-se quem puder, alguns aterravam de banda, outros falhavam no salto. Ao redor da mesa, as punitivas figuras de retórica do major despertavam antipatias que eram escassamente coerentes. A verdade é que também eram reminiscentes do próprio Christian. Retornar aos camarões estragados por um instante. Se é que posso. Precisamente por tais motivos, havia um grande futuro no Algarve. Os residentes britânicos apreciavam aquilo que estavam acostumados a ter — Twinings Earl Grey, Coopers Vintage Marmalade. As possibilidades chegavam ao infinito — Tiptree, Humtley e Palmer, só para dar uma pálida idéia. Por que não dar uma "facada" nisso? Tampouco as bebidas podiam ser menosprezadas: Gilbey's, Dewar's. — Está tudo lá — e o major fazia um habilidoso e rosado gesto de colher, em cima da toalha da mesa — para ser tomado. Não, ele não pensava em entrar no negócio de livros. — O lucro é mínimo. Falando sério, se há algo que aprecio acima de tudo, é uma boa e movimentada conversa fiada, mas o lucro não justifica. O turista inglês médio não é um grande leitor. Quanto a folhetos ou guias turísticos. . . bem, aí a conversa é outra. Não havia necessidade de envolver-se com os vinhos do Porto. Os residentes estrangeiros de lá eram, em geral, um grupo de ricaços. Os alemães também estavam chegando, você ficaria surpreso. Eles preferiam o Algarve à Costa Brava, que já fora desenvolvida ao limite extremo. Além do mais, havia um governo estável. Muito mais, ele lamentava dizer, do que o bando que temos por aqui, em casa. — Estes socialistas não ousariam aparecer por lá. E se aparecessem, em pouco o feitiço viraria contra o feiticeiro. — Eu não viveria aqui, mesmo que me pagassem! Podia se ouvir a trovoada. Através das portas envidraçadas do restaurante, eles viram um dilúvio. Quanto ao primeiro-ministro, o major continuou: — Eu não confiaria nele, se deixasse sixpence em cima da mesa — e girou a moeda imaginária —, enquanto me ausentasse da sala. Dora manuseava fotografias de si mesma ao sol como se fossem as cartas de um baralho. O major disse: — Eu teria tirado mais, porém estou acostumado a gastar a maior parte do filme com o cachorro. Christian estava surpreso com a boa aparência de Dora. Sempre achara que a natureza dela não se revelara muito na aparência, e agora que a via mais rechonchuda e complacente — e mantinha o véu de pois, ainda sugerindo uma noiva, voltado para cima do chapéu — era difícil acreditá-la tão terrível. Devido aos olhos escuros e ao bronzeado, bem poderia passar por nativa do Algarve ou do Alentejo, se não fosse pela boca. Contrastando com a auto-aprovação roliça de Dora, Caro tinha os olhos encovados, era um pálido e impressionante fantasma na festa, a despeito do vestido vermelho. Apenas Grace parecia realmente em seu papel, o de uma doce e jovem matrona, sem nenhum lado sombrio. — Bruce tem um faro! — dizia Dora. — E conseguiu algumas peças extraordinárias. Majólica, tapetes antigos. . . — É o que digo a mim mesmo — acrescentou o major. (Ocorreu a Christian, como um aviso, que tal frase geralmente precedia uma mentira.) — Posso entrar em qualquer loja de bricabraque e escolher a única coisa que vale a pena. — De novo, uma exibição dos dedos curtos e grossos. — Evidentemente, lá se tem que barganhar. Quando ficou estabelecido que a barganha era feita a contragosto, houve uma pausa. Christian estava pensando que, na Inglaterra, um cavalheiro não usaria aliança de casamento. Dora recomeçou: — Caro está com ótima aparência. E feliz. — Todos então se viraram para Caro, que segurava seu copo de vinho. — Ela precisa ir lá, visitar-nos. — Dora imperava. — E testar seu português. — Explicou para o major: — Ela tem queda para idiomas. Caro sorriu de leve, só para ser gentil. Christian estava pensando: Um anel de sinete — bem, aí seria diferente. Uma outra conversa. O major declarou que a queda para idiomas era incomum, em se tratando de ostralianos. Ele tinha um amigo em Brisbane, estabelecido no comércio de frutas secas e nozes. Christian acendeu um cigarro e desejou que seu parentesco com o major não fosse o de cunhado. Dora acentuou que, para ele, seu idioma já era o bastante. Ao fundo, o major contava uma história sobre uma enfermeira australiana, em um hospital militar. Em realidade, ele até conhecia o soldado com quem acontecera o incidente. Quando chegou o café, Grace levantou-se desajeitadamente, de xícara na mão, como se fosse propor um brinde. Seu rosto e a testa brilhavam, acima de uma blusa com flores de lavanda. Então pôs a xícara no pires, tão deliberadamente como se esta, e não ela, estivesse precisando de cuidados — e desmaiou. Grace ia ter um filho. O teatro londrino onde era encenada a primeira peça completa de Paul Ivory tinha um pequeno foyer que, no final da matinê daquela tarde, esvaziava-se lentamente por causa da chuva. As mulheres avançavam arrastando os pés em fila indiana, enquanto alguns homens idosos esperavam sob o toldo, imaginando o que viria a seguir. Caroline Bell parou a um lado, abrindo seu guarda-chuva, ao mesmo tempo em que olhava para uma rua espalhafatosa, através das portas de vidro. Paul entrou, vindo de uma pequena porta interna, perto da bilheteria: ele próprio um ator esperando a deixa. Vacilou, ao ver que a multidão continuava ali. Foi quando avistou Caro, de costas para ele, com o rosto obscurecido, como que virado deliberadamente. Com a mão na porta que acabara de abrir, Paul Ivory ficou parado, um homem controlado, sob uma acusação. A injustiça era que, não apenas a mulher havia sido colocada em seu caminho, mas também que, não estando ela consciente disso, ficara com ele a escolha quanto a falar ou não. Mesmo enquanto registrava a injustiça, Paul permaneceu quase fisicamente influenciado pela visão de Caro e também pela autoridade deliberada, distinta, com que o destino a tinha novamente apresentado. Paul medira seu esquecimento de Caroline Bell pela rápida corrente de mudanças e realizações nos últimos meses. Ele não se limitara a deixá-la, mas a deixara para trás. No lugar em pé, destinado a ela no teatro da existência de Paul Ivory, Caro podia observar pensativamente o desempenho dele e aplaudir. Agora, vendo-lhe a cabeça de lado, ele não tinha qualquer escolha e devia agir por compulsão. Aproximou-se com uma certa sensação de exaltação, obedecendo a um impulso, não necessariamente favorável a ele. Obedecia à própria necessidade, como se esta fosse virtude. Tudo isso porque uma jovem morena estava de pé junto à porta, com um guarda-chuva fechado nas mãos. — Caro. Ela se virou, então, e ficaram lado a lado. Estando ainda recentes as próprias sensações, Paul notou o espasmo de surpresa e a seqüência de rápidos, contraditórios impulsos. Houve ainda o reconhecimento de que ela dirigira ou provocara aquele risco, vindo ver sua peça — e um ímpeto que respondera à compulsão dele, mas rigidamente contido. Os lábios de Caro se fecharam em uma curva deliberada, que Paul não tinha visto antes, porque era derivada de sua deserção. O saguão agora estava quase vazio. As luzes tinham sido apagadas. Os dois formavam um par obscurecido, de pé junto às portas. — Pois não? — disse ela, como se interpelada por um estranho. Não obstante, tremia em seu impermeável, a tal ponto que sentia as camadas separadas de suas roupas, a anatomia pulsando delicadamente no interior. Da mesma forma, sua mente lutava, trêmula, no âmago do evento. — Foi bondade sua ter vindo, Caro. — Gostei de ter assistido à peça. — Eu raramente venho aqui. Houve uma modificação no elenco, o papel de Mandy, o filho tuberculoso, de modo que decidi ver como seria. Era uma fala automática, para preencher aqueles vazios. Ela nunca tinha visto Paul em traje de passeio. Quanto a ele, achou-a com uma aparência extraordinária, olhos grandes e pele translúcida: um encanto imenso. Esperava tê-la deixado para trás, em seu passado. As impressões iam e vinham nele, como rápidas marés. — Gostaria de ver os bastidores? — perguntou Paul. Caminharam por um corredor de caiação imperfeita. — Cuidado com os degraus. O palco estava marcado — um risco de giz, uma flecha impressa. A cortina, de um vermelhão sujo e rançoso, estava abaixada, havia o lúgubre mobiliário do último ato. Em uma época em que Shakespeare era representado em modernas vestimentas suburbanas ou jaquetas de couro, a peça contemporânea de Paul Ivory, passada na classe trabalhadora, era desempenhada em trajes reais. Papai e Mamãe surgiam como tiranos do palco, coroados e majestáticos em púrpura e ouro, enquanto a prole de vassalos se cobria com blusas de lã e roupas de trabalho. Essa disposição nitidamente óbvia havia sido chamada de toque ou golpe de gênio pela imprensa. Caroline Bell acompanhou Paul por um sombrio labirinto, nunca baixando os olhos. Quando pararam diante de uma porta, ela jogou os cabelos para trás, de maneira que seu rosto ficou inteiramente visível. Um homem de macacão abriu a porta. Paul exibiu seu sorriso franco e agradecido. — Obrigado, Collis. Seguiram por uma cutra passagem e ele bateu à outra porta. Caro foi apresentada ao grande ator, que disse: — Faça isso outra vez e arranco-lhe a pele! Dirigia-se a um afetado rapazola que tirava uvas de uma cesta enfeitada de fitas e não replicava. A bordada vestimenta real pendia de um cabide na parede. — Sinta-a — disse Paul. Até mesmo uma única dobra era de difícil manejo. O ator disse: — Isso dá uma perfeita idéia da cruel soberania. Ele havia retirado a pintura do rosto e agora usava uma camisa de fazenda fina e uma calça folgada, de tecido atoalhado. Um aquecedor escaldante sibilava a um canto. Caro entreabriu o casaco. — O que achou da cena do extrato de carne? — perguntou-lhe Paul. Antes que ela pudesse responder, o rapazola das uvas disse: — É o pedaço mais forte da peça. — Nunca pensei que uma vendedora de loja conhecesse a palavra "edipiana". O ator riu. — Já analisamos esse detalhe. Lembre-se de que ela trabalhava em uma livraria. — Acho um pouco indigesto — disse o rapaz —, o rei morreu, viva o rei, etc. Fora isso, é legal. O ator perguntou a Paul: — Conder se saiu bem, não acha? — Já disse isso a ele. Ficará no papel. Mandy tem que parecer um sujeito muito doente, de forma que salte aos olhos, eis tudo. Era de se notar que Paul sorria menos com os atores, que, afinal de contas, eram profissionais. — Conder não conseguiria parecer doente o bastante para satisfazer a Valentine — disse o ator. Valentine era o rapazola das uvas. Essa referência à sua inveja, embora excluísse a intrusa — Caro —, era, no sentido de todas as exclusões, dirigida a ela. Os homens trocaram um sorriso. No corredor, a rainha-mãe passou por eles, lenta e majestosamente, mostrando um comprido e brusco perfil, pálpebras e cílios carregados de tintas variegadas como um pavão, repuxadas até a raiz dos cabelos: a proa de uma trirreme grega. — Os artistas nunca vêem ninguém mais além deles próprios — observou Paul. Ele havia feito a coisa certa — ou astuta — ao expor Caro a seu empreendimento, convocando seus auxiliares. Perguntou: — Está trabalhando naquele escritório? — Estou. Tive um meio dia de folga, havia um almoço para minha irmã. — O mesmo e velho elenco. — Confirmava a sua vantagem. Já atingiam a porta da rua. — Comigo incluído. — Pousou a mão na maçaneta e recostou-se à parede, não a detendo, em realidade. — Eu também, Caro. Por trás dele, havia aforismos mais ou menos obscenos, tanto escritos como riscados na parede de tijolos caiados. Ela ergueu o rosto, inexpressiva. Adiantou-se, mas não poria a mão sobre a dele para girar a maçaneta e vacilou, ereta e impedida. Paul percebeu que ela não podia falar. Caro tornou a fazer um gesto para a porta, sem parar de fitá-lo, como o cativo que vigia ansiosamente, procurando a fuga. Havia a duradoura, irritante e tentadora impressão de que ela se dirigia a um objetivo além do pequeno e egoístico drama de seus próprios desejos, dos desejos de ambos. — Você sempre sentiu um certo desprezo por mim — disse Paul. — Exato. — E amor também. — Exato. — Uma vacilação, para ela, era o equivalente a um dar de ombros. — Agora você tem uma esposa para dar-lhe as duas coisas. Ficaram enfrentando-se, um diante do outro. Paul retirou a mão da porta. — Caro! Era só o que faltava! A figura de retórica pareceu comovê-la e, por um instante, ela deu a impressão de que poderia rir. Novamente, ele fez valer o que tomou por uma vantagem: — Seja mais piedosa! Ela também se recostou na parede caiada e fechou os olhos. — Como pode esperar piedade, se não concede nenhuma? — Estas paredes estão repletas de citações sujas, de um modo ou de outro. Houve silêncio enquanto ela ficou recostada ali, austera, com o guarda-chuva fechado. Ergueu-se e passou por ele, então, a fim de abrir a porta pesada. Atrás dela, Paul disse: — Suas costas ficaram inteiramente brancas. Então, com a maior naturalidade do mundo, ele lhe limpou as costas do casaco com a mão. Depois passou-lhe os braços pela cintura, pousou os lábios em sua nuca e disse: — Oh, Deus! Caminharam pela rua molhada. Paul segurava o cinto frouxo do impermeável de Caro e parecia guiá-la através do trânsito pesado daquela hora — sem puxar, mas estabelecendo contato e domínio, de maneira que ela o acompanhou como um animal submisso em uma trela ou correia. Na esquina, ele fez sinal para um táxi e deu um endereço ao motorista. Quando entraram no carro, disse: — Podemos dar uma espiada em meu novo endereço. Estou arrumando uma casa que comprei. Você me dirá o que acha. Pegou-lhe a mão quando se sentaram no táxi — literalmente pegoua, pois ela ficou jazendo na sua tão sem reação como um cinto de casaco. Caro se sentou em silêncio, fitando-o com uma expressão que não era taciturna nem expectante, mas sobriamente atenta; e, por uma vez, um olhar onde a ternura e a apreensão eram grandes e inseparáveis, emprestando excessiva e insuportável intensidade à vida daqueles momentos. Paul já vira aquela expressão antes, na primeira vez que tinham ido juntos para a cama, na estalagem além de Avebury Circle. — É aqui. — Paul inclinou-se para diante, a fim de falar com o motorista. — Pode deixar-nos aqui. É uma rua sem saída — entrando nela, é impossível sair. A chuva havia parado. Era uma casa estreita, de fachada lisa, uma faixa severa de tijolos entre duas construções estufadas como peitos de pombo e com pórticos. Junto ao meio-fio, um homem trabalhava no motor de um carro estacionado. Cumprimentou-os com um sinal de cabeça e continuou cantando: "As rosas estão florindo na Picardia, Mas nunca houve uma rosa como você". Paul usou uma reluzente chave nova. Havia odor de tinta, de argamassa e madeira verde. Papéis pardos espalhavam-se pelos assoalhos e em todas as janelas havia riscos formando um X, como avisos de peste. Os degraus íngremes eram cintilantemente brancos. O quintal dos fundos estava enlameado e entulhado de restos lá deixados pelos operários, embora uma pilha de lajes indicasse que seria pavimentado e plantado, no momento devido. Uma pia de porcelana clara fora posta na cozinha, cintada e forrada de papel, pronta para ser encaixada no lugar: um paciente de ataduras em um posto de pronto-socorro. O motivo hospitalar repetia-se na sala de refeições. Panos brancos, usados pelos pintores, jaziam sobre os cavaletes e uma mesa. O cheiro de tinta era anti-séptico e anestésico. — Tertia está aqui? — perguntou Caro. Pegando o touro pelos chifres. Paul empurrou delicadamente uma porta pintada, com a ponta do dedo. — Tertia vai ficar no campo até que isto esteja pronto para recebêla. — Até mesmo uma casa requeria o aviso antecipado de Tertia. — Você é meu primeiro convidado. A sala de visitas abrangia todo o pavimento seguinte, mas ainda assim era estreita. Caro caminhou até a frente, depois até os fundos. Tornaram a subir. Paul acendeu um abajur sem cúpula. — Aqui em cima é a minha pousada. Aquele era o aposento superior e o maior, pois não tinha mais escadas para cima. Das janelas viam-se as casas da frente, depois um bloco de apartamentos. Havia uma fileira de árvores que forneciam proteção no verão, pelo menos assim disse Paul. Vários tapetes estavam enrolados e amarrados sobre o piso nu. As paredes estavam lisas, as janelas tinham sido limpas. A um canto, havia lustres por colocar, maçanetas de portas em uma caixa de papelão. Um par de colunas de mármore já decorava a platibanda da lareira. Tinha sido feita a ligação de um telefone, embora este permanecesse no piso: uma janela ficara a meio caminho nas corrediças, por causa da tinta fresca, e o aposento estava frio. Com outra chave reluzente, Paul abriu um armário embutido. — Vamos tomar um drinque. Havia um embrulho na prateleira de cima do armário e uma pintura emoldurada, caída de lado, na de baixo. Paul mostrou a tela a Caro. — Segonzac é um pintor mediano. — Nem todo artista pode ser o máximo. — Evidentemente. — Ela se esforçou em explicar sua intenção, como por uma necessidade de boas maneiras: — Sem dúvida existe uma veracidade — um estado de confiança, se preferir — que valoriza inclusive os talentos menores. Algo como o que a sra. Thrale disse sobre seu pai — que ele não era um grande poeta, mas que era verdadeiro. Paul deixou a tela de lado, uma vez que perdera a oportunidade. — Bem — disse —, sente-se. Beba à minha casa nova. Ficara aborrecido ou um tanto magoado por Caroline Bell ter recordado seu pai. Ela se sentou na pilha de tapetes. Viu Paul pegar um frasco de prata com sua mesma expressão sardónica, como se ela fosse rir. — Não há copos — disse ele. — Teremos que usar a tampa. Ainda mais; teremos de partilhá-la. — Estendeu-a a ela: — Uma taça de amizade. Caro bebeu. Não devolveu a tampa a ele, mas a deixou a seu lado, sobre as tábuas recentemente enceradas. — Ei, meu piso novo! — exclamou Paul, recolhendo o pequeno recipiente e esvaziando-o. — Quer mais? — Não. Tinha gosto de lata. — De lata, uma ova! Isto é prata de lei. — Sentou-se nos tapetes ao lado dela. — Precisa dizer o que acha de minha casa nova. — Há muito pouco espaço. — Ora, está estragando tudo! — O que sobrou para estragar? O telefone tocou. A campainha explodiu no quarto vazio, ricocheteando nas paredes e no teto como uma rajada de balas. Paul precisou ajoelhar-se para falar. — Sim, é aqui mesmo, mas eu gostaria de saber como conseguiu este número. . . Escute, se vai sair nos jornais esta noite, é melhor ler para mim. . . Muito bem, pode anotar o que vou dizer: não vou responder aos comentários do sr. Whatsit. Não dou respostas à maldade e considero o que o sr. Whatsit escreve a quinta-essência da vulgaridade. . . Foi o que eu disse. Naturalmente: Q-U-I-N-T-A, tracinho, depois essência. . . Certo, exatamente como baunilha. Em verdade, a palavra significa "substância divina". Por favor, quer ler novamente?. . . Então é isso. . . Bem, teria que ser após a minha volta da Espanha, para onde embarco amanhã, digamos, pelo fim de. . . Certo, está bem para mim. Telefone-me, então. Paul desligou o telefone. Levantou-se e ficou com as palmas unidas, olhando para Caroline Bell, como se ela necessitasse de solução; recriando a disposição de ânimo com que a levara até ali. — Vai mesmo viajar para a Espanha amanhã? — É claro que não. — Ele olhou em torno, à procura do frasco. — Tomemos mais um pouco disto com gosto de lata. — Estendeu o copinho a ela. — Qual o sabor agora? Ela bebeu um pouco e devolveu o copinho. — Agora é como se tivesse suas iniciais. — Você ficou infernal, Caro. Costumava ser. . . — O quê? — Angelical. Só que muito menos bonita. Enfim, é o que acontece. Agora, fale sobre minha casa, minha peça. — Você não quer opinião, quer aprovação. — Não quero a sua aprovação. Houve outra detonação da campainha do telefone. Paul tornou a ajoelhar-se para atender. — Sim, este deve ser Flaxman cinco. Não, lamento, mas ela não está aqui. De qualquer modo, posso transmitir-lhe o seu. . . Já lhe disse, ela não está, mas posso. . . — Ante uma interjeição, Paul ergueu ou endureceu a voz, para ficar de acordo com o que dizia — uma leve contenção nas pálpebras indicava que era demasiado educado para fechá-las em exasperação, ainda que momentaneamente. — Já lhe disse claramente que a sra. Ivory não está aqui! Disse "sra. Ivory", ao invés de "minha esposa" ou "Tertia", como um membro do Partido, que. poderia transformar solenemente a Rússia em "a União Soviética". Parecia cômico, agachado no chão, conquanto ereto em sua dignidade. — Diga a eles que viaja para a Espanha amanhã ■—■ disse Caro. — Evidentemente, não vou ficar aqui — Paul aga-chou-se ainda mais — ouvindo esta. . . — Firmou o olhar e depois desligou o telefone tão bruscamente que caiu de quatro. Levantou-se, batendo nas calças para limpá-las. ■— Desligou na minha cara, o imbecil. Pensava que. . . fingia pensar que eu era um empregado. — Foi porque você disse "sra. Ivory" daquele jeito. — Caro o via interrogar-se sobre o telefonema, quem telefonara e a sra. Ivory. A digníssima Tertia. — Como era a maneira de falar? — Oh. . . culta. De maneira alguma a sra. Ivory aceitaria um amante de classe inferior. Na rua, mais abaixo, o homem continuou cantando, em voz aguda e instável, como um disco velho: "Mas há uma rosa que não morre na Picardia, Ela é a rosa que guardo em meu coração". Paul fechou a janela. — Se isto lhe dá algum prazer, é realmente esta a situação. Estava falando a respeito do telefonema. — Então, é mais perturbador do que você esperava. Aquilo mal encerrava uma pergunta, e, ao erguer preguiçosamente os olhos de sobre a pilha de tapetes enrolados, Caro podia ter sido a mostra mais absoluta de indiferença. Sua especulação quanto a coisas estragadas pela honestidade nada produzira: a honestidade deve ser honestamente tencionada, senão sua ocorrência é inútil. Paul, no entanto, considerou por um momento, antes de dizer: — Isto cria um novo grau de isolamento. Ele mostrava sua mais sincera admissão de descontentamento, e sua voz, quando isenta da afetação, tinha um tom amadurecido, ressonante, quase belo. A clareza de seus olhos, que ameaçavam tornar-se prismáticos como os de Tertia, de novo se matizavam com o natural ressentimento. — Sem dúvida, isto acontece porque se mantém uma falsa aparência pública, ao mesmo tempo. Ouso dizer que nada há de novo nisto. Mesmo a última frase não mostrava zombaria. Paul pousou o pé na pilha de tapetes, perto da mão de Caro, e prosseguiu: "Que eu saiba, todos os maridos são como eu; E cada um com quem falo sobre sua esposa É apenas um bom dissimulador de suas mágoas Como eu. Quisera eu sabê-lo, porque a rareza Agora me aflige". Tornou a sentar-se com Caro nos tapetes. — Alguém se espantaria por essa peça nunca ser encenada estes dias? Ao lado do gélido drama do casamento de Paul, desempenhado em seu próprio e interessante cenário de sucesso mundano, a mágoa de Caro devia empalidecer para um ligeiro toque de experiência, que seria cansativo exibir. Ela queria ser instruída, não questionada; queria que lhe dirigissem interpolações conhecidas: "Enfim, é o que acontece"; "Algo que precisamos corrigir". Paul, e não Caro, interpretaria o grau de significado em seus respectivos lotes. Isso decidido, ele se pôs a falar intimamente de sua vida à pessoa que dela mais fora excluída — a fim de readmiti-la à intimidade, embora não à vida. Ele ergueu a mão para pegar a dela. Então, pareceu pensar melhor a esse respeito: uma pequena indecisão contida em uma maior. — Imagino que nisto haja um interessante conluio. Decepcionando um ao outro, eu e ela concordamos em decepcionar um público maior, em outro nível. — E você sente prazer nisso? — Sempre gostei da peça contida na peça — sorriu ele. — Tive uma idéia. Vamos para a Espanha amanhã. — E mandaremos um cartão-postal para esse homem. — Quem? — Nós dois. A gargalhada dele retiniu em altos e baixos, como a campainha do telefone. Marcas gêmeas de pontos trançados imprimiram-se duramente nos cotovelos de Caro, quando ela se apoiou nos tapetes. — Eu continuei a amá-la. Através de todas as coisas interessantes que aconteceram comigo. E você me ama. — Amo. — A melhor política é a franqueza. — É uma expressão desprezível. Como "o crime não compensa". As pálpebras de Paul tornaram a apertar-se como antes, irritadamente. — Vamos ter agora um discurso sobre retórica? Ela se levantou, sem ouvir; seu desligamento não objetivara dar lição alguma. Pegou seu guarda-chuva a um canto e saiu do quarto. O primeiro lance de escada, que ela desceu ligeira e agilmente, era estreito demais para que Paul lhe passasse à frente. Quando conseguiu agarrá-la no patamar, pousou a mão na dela. — É claro que não vou deixá-la ir! Falou com brandura, como que censurando o capricho de uma criança; entretanto, sua mão era quente e vacilante, como ele mesmo percebeu, assim que a tocou. Os pequenos degraus íngremes elevavam-se à frente deles, um penhasco de face alvacenta, que poderia ou não ser escalado de novo. — Deixe-me ir embora daqui. — Escute, não era o que queria? Quando foi ao teatro e depois veio aqui? — Isso não significa que tenha sido o melhor para mim. — Creio que já passou por portas suficientes por hoje. — Deixe-me ir embora. Não é assim que eu queria que fosse. Deixeme seguir minha vida ou, pelo menos, ser como eu era. Ao invés de ser o que tenho sido por todos estes meses, desde que o conheci. Embora suficientemente maldosas em si, as últimas palavras não saíram candentes, mas como que pronunciadas por alguém há muito distanciado da fala e da sociedade humanas, alguém que agora articulava desajeitadamente ásperas realidades. Em Paul, não obstante, provocaram nova tensão, e a luminosidade mortiça da lâmpada mais acima, como um luar de palco, mostrou sua face pálida — não tão másculo, não tão jovem. — Você me encara como se eu fosse a sua fraqueza — disse ele. — Toda a minha fraqueza está destilada em você. Caro tinha o dom de interromper o fluxo da vontade de Paul, de maneira que o aspecto dele se debilitou, como acontece com todos os seres, inclusive animais, que perdem a convicção. O resultado oposto é que a própria Caro se sentia mais perto de Paul em tais momentos, menos surpresa por amá-lo. O clímax da seqüência foi que Paul, com um instinto para as flutuações de resistência, tornou a abraçá-la, passando os braços pelo interior do casaco aberto, como que penetrando na proteção que a cercava. O guarda-chuva de Caro caiu sobre as tábuas nuas, com um baque inábil. Ela não ergueu os braços para ele. — Que frieza! — disse Paul. — Como você está fria! Ficaram assim, imóveis, exceto pelos movimentos das mãos de Paul no corpo dela — leves ondulações nas quais a luz brincava nebulosamente. Recuando, ela disse: — Por que você desejaria isto? As costas dela voltadas para os degraus que desciam. O toque ecoante da voz, palavras nuas como tábuas de assoalho. — Não sei. — Um contágio de franqueza, a melhor política. — É a prova de tudo em que descreio. Ela quisera ter dito: "No entanto, você acredita em Deus", mas não podia implicar Deus em toda aquela trapalhada. Paul Ivory descansou a palma contra a parede, junto à cabeça dela, apoiando-se ali à espera da capitulação. Sobre a parede lisa, a sombra do contorno dos dedos era enorme: estava levando a melhor. A luz tornava sua figura flexível, mas ainda assim metálica, cor de peltre. Não é freqüente que Vénus passe diante de uma estrela tão brilhante e a oculte. Ele deixou uma pequena distância entre ambos, de maneira a poder apreciar a capitulação. Tinha-lhe aberto o vestido, e a faixa do corpo exposta no interior das roupas era curiosamente chocante. Havia o impermeável e o corpete vermelho desabotoado, depois a listra secreta de branco. Ao contrário de tantas imagens de Caroline Bell que, ultimamente, ele pretendera preservar, aquela se fixaria para sempre em sua memória: a parede nua, os degraus para cima e para baixo, aquele vestido vermelho. E o brilho do seio, que ela deixou solenemente revelado, como uma confissão. 15 "Você me perguntou sobre a peça de Paul Ivory. Só fui vê-la o mês passado. Fiquei impressionada, talvez até surpresa, pela facilidade com que ele maneja o ambiente da classe operária. Creio que você já suspeitava — alguns dos efeitos espúrios e o final oportuno, inteligente, que nem por isso deixa de ser comovente. Parece que vai ficar muito tempo em cartaz, de maneira que poderá vê-la, quando voltar da França." Caro parou de escrever e leu a passagem acima. Muito sincera e judiciosa. É tão mais fácil parecer sincero quando o tom é depreciativo! Sentada à sua mesa no escritório, Caro recordou a peça de Paul Ivory e como, no final do último ato, por um instante a platéia permanecera em silêncio, após sua provação. No teatro, aqui e ali um ou outro estalido, um leve estalar, como se ouve nas olarias, entre peças cozidas esfriando do calor do forno. E então, o aplauso devastador. "É ótimo que possa ir à conferência de Roma, antes de voltar para cá — li algo a respeito nos jornais. De Roma, recordo um palácio projetado segundo o horóscopo de um nobre — isto é, decorado com representações de planetas e deuses pagãos. Mera astrologia, mas talvez você consiga vê-lo mesmo assim." Desta forma, ficou assegurado que Ted Tice passaria suas horas mais felizes em aposentos com afrescos, às margens do Tibre. "Mal haverá tempo de tornar a escrever-lhe, antes que você volte para a Inglaterra. Obrigada pelo convite para jantar, será formidável. Então, até daqui a um mês, a partir de hoje." Caroline Bell colocou a carta no correio ao meio-dia, a caminho de casa. Sábado era dia de meio expediente em sua repartição e ela fez uma parada, a fim de comprar mantimentos para o almoço de Paul. Naquela época, estava morando em um apartamento mobiliado de último andar, alugado de uma amiga do escritório, que fora designada para o estrangeiro. Ficava perto do mercado de Covent Garden, em um edifício que, fora disso, era destinado a gráficos e editores. O meio do dia chegou glorioso às estreitas e fuliginosas paredes de tijolos de Maiden Lane', expandindo-se até o mercado com pretensões arquitetônicas. A cidade se elevava ao momento do sol. E Caroline Bell sentia-se grata por uma leveza de corpo que nunca experimentara antes, e que sabia ser sua juventude. Caminhou com sacos de papel nos braços, sorrindo ao pensar na perdida juventude, descoberta à amadurecida e adulta idade de vinte e dois anos. Paul estava à sua porta. Esperou que ela chegasse onde estava para então inclinar-se no degrau e abraçá-la. Com as sacolas de papel e um ramo de flores vermelhas, ela parecia um verdadeiro embrulho. — Por que esta mulher sorri? — Eu pensava em vida adulta e adultério. — Engraçado, também eu pensava em adultério. Está com a chave? Ela a entregou. Subiram uma escada coberta de linóleo, passaram por portas fechadas para o fim de semana. Em um prédio antigo como aquele, a poeira se instalava rapidamente, e a abertura das pequenas firmas a cada segunda-feira era um mero retardamento, surpreendente a cada vez, do esquecimento ordenado e definitivo. — Na Inglaterra — disse Paul —, a tarde de sábado é um ensaio para o fim do mundo. Quando pararam em um patamar para recuperar o fôlego, ele confessou: — Estas foram as melhores semanas de minha vida. O apartamento era um vasto aposento com janelas em toda a extensão lateral e uma clarabóia suja no extremo oposto. Uma parede era coberta inteiramente por livros em prateleiras empenadas e o assoalho irregular era ocultado por um grande tapete azul, quase um farrapo, no qual ainda podiam ser discernidos traços do desenho avermelhado, como gases industriais em um céu de crepúsculo ou manchas de sangue removidas com imperícia. A decrepitude do teto, das prateleiras e do assoalho reproduzia-se em um sofá que vira melhores dias e permanecia de costas para os livros, coberto por uma colcha nova e azul. Havia uma bela e antiga mesa, escarifiçada, além de duas cadeiras. O único quadro era o anjo de Sevilha de Caro, em uma parede, perto da porta da cozinha. Tudo era surrado e gasto, até mesmo o céu enodoado. Os livros emprestavam humanidade, como se espera que façam. Do contrário, poder-se-ia dizer que o ambiente era sombrio — ou lúgubre. Paul sentou-se sobre a colcha limpa, com as mãos pousadas nos joelhos. Caro chamou da cozinha. — Está com fome? — Estarei. Ela desligou o fogão abandonado, voltou e ficou de pé ao lado dele. Paul estava virado para a parede, examinando os livros. — Está com uma biblioteca aqui. . . Larousse, coleção de Grove, o que é isto?. . . Bartlett. — É a prateleira de referência. — E nós fornecemos a erótica. — Paul a puxou para o sofá, fazendoa ajoelhar-se enquanto ele se deitava. — Esta é a nossa prateleira, este sofá. Esta cama teu centro é, estas paredes, a tua esfera. — É o nome de uma sinfonia, a Erótica. "— Eis aqui algo que procuro. . . — O livro era tão pesado, que ele precisou sentar-se novamente e puxá-lo com as duas mãos. Abriu-o sobre os joelhos de ambos, empoeirando a colcha com um pó avermelhado. — Impossível obtê-lo atualmente. Posso usá-lo no que estou trabalhando. O livro era uma edição de peças antigas. — Bem, você poderia tomá-lo emprestado. Acho que poderia. Caro ergueu o livro de seus joelhos e perambulou pelo aposento. Abriu mais as cortinas e colocou o vaso de anémonas na mesa. Depois tirou a roupa. — Para ficar com ele, quero dizer — disse Paul. — Não é meu, compreenda. Caroline Bell entrelaçou as duas mãos no alto da cabeça. Seu torso espichado se tornou autoritário e vulnerável ao mesmo tempo. Paul deixou o livro cair no chão, ao lado do sofá, e se deitou, observando. E, à luz velada, com uma antiga densidade de livros atrás dele, poderia ter sido o motivo para uma ilustração vitoriana: o corpo jovem reclinado em azul e vermelho, o braço com a manga branca da camisa pendendo para um livro caído. Childe Harold, The death of Chatterton. Era bem o que Caro dizia. — Obrigado. Agora, venha cá. Ela se aproximou da cama e ficou junto dele. — E pensar que isto espera por mim, dia e noite — disse Paul. Pegou anéis do cabelo basto de Caro e os espalhou em raios escuros, em torno da cabeça dela. — Cabelos como crina. — Meu amor. Meu amante — disse ela. — Lembra-se da primeira vez, perto de Avebury? Eu lhe disse que nunca sentia profundamente. Ou o suficiente. Pois quero dizer-lhe agora que o que sinto por você é o máximo que já senti por alguma coisa ou alguém. Ela lhe tocou o rosto. Naquele dia em Avebury, ela tocara a mão dele sobre o revestimento da cabeceira da cama — e Paul havia dito: "Seja qual for o significado de suficiente". Por vezes, Paul ainda a achava com aparência de estrangeira — e com isso queria dar a entender que Caro nunca lhe pertencera inteiramente. — A posse é noventa por cento legal — disse ele. Entretanto, isso foi muito mais tarde, quando estava deitado olhando para o aposento empoeirado, pensando que a juventude era uma proteção, porque aqueles momentos especiais, de langor e roupas de baixo sobre cadeiras, em outras circunstâncias pareceriam um presságio da mais profunda fraqueza. As flores agora estavam espalhafatosas, vermelhas e insípidas. — Eu estava dormindo — disse ele. — E eu olhava para você. Ela podia estar querendo dizer que velara seu sono, mas isso não ocorreu a Paul, que mostrou sua ligeira tensão facial de desprazer ou alarma. — É enervante sermos vigiados enquanto dormimos. É assim que os homens perdem tudo — cabelos, cabeças ou ainda pior. Não lhe contaria como ele mesmo a observara enquanto dormia, na noite em que ela fora à sua casa nova pela primeira vez. Ficara observando sua respiração e seus leves movimentos de sonho, a pele tão transparente, que lhe permitiria examinar formas interiores, os pequenos e complexos órgãos reprodutores, com sua capacidade para modificar o mundo. Quando o sol nasceu, ele observara esse fenômeno — suficiente na sua própria beleza, de um modo que dificilmente se acreditaria na necessidade de serem acrescentados raciocínio, articulação e fraqueza humana — muito menos a capacidade para acasalamento. Não lhe contaria isso, para não aumentar ainda mais o poder que ela possuía. Deixou a mão cair para baixo, ao lado da cama, perto do chão. — Posso levá-lo, então? Caro sabia que se referia ao livro. 17 Na repartição pública onde Caroline Bell trabalhava, havia uma moça chamada Valda. Relevante era o fato de ser chamada de Valda, ao que ela objetava. Nenhuma das outras mulheres de lá objetava a ser Milly, Pam ou Miranda para seus chefes, os senhores Smedleys e Renshaw-Browns. Nenhuma das outras mulheres objetava, porque isso as tornava jovens. Por aquela época, os próprios homens não eram mais Bates ou Barkham, um para o outro, mas imediatamente Sam ou Jim. Aqueles que tinham nomes irredutivelmente formais, como Giles ou Julian, pareciam inclusive perigosamente atrasados e condenados à obscuridade. Havia um homem de mais idade no Planejamento que chamava seus subordinados de "senhor" — "sr. Haynes", "sr. Dandridge" —, como o comandante de um velho navio dirigindo-se ao seu primeiro-comissário ou contramestre. Não obstante, entre as mulheres também ele se permitia um ocasional Marge ou Marigold, embora em casa chamasse a sua faxineira de sra. Dodds. Quando Caro perguntou: — E se eles fizerem um verdadeiro amigo, como o chamarão? Valda respondeu: — Eles procuram situar as amizades fora do trabalho. A nova e compulsória congenialidade entre os homens, pelo menos no conceito de Valda, era uma perda igualmente partilhada. Ao contrário do insulto inequívoco de June ou Judy. Logo após sua chegada, Valda chamara a atenção sobre si. Seu pequeno sr. Leadbetter, o funcionário administrativo, saíra do cubículo onde trabalhava, de orelhas em pé, segurando um botão e perguntando se ela podia pregá-lo. Aquilo, estimou ele, não demoraria nem um minuto. Valda consentiu polidamente. Deixando seus papéis de lado, tirou de uma gaveta da mesa uma sacolinha caseira contendo agulhas e linhas de cor. Com o paletó do sr. Leadbetter aberto em seu colo, enfiou a linha no buraco da agulha e logo estava costurando. Leadbetter ficou de pé, espiando-a trabalhar. Vestia uma camisa de listras azuis, as calças lhe chegavam às axilas e pendiam de suspensórios de lona, também listrados, antigos e fabricados para durar. Era agradável despir a armadura e observar a simpática Valda em sua humilde e feminina tarefa. Quando ela terminou, quando enrolou o fio e o rebentou, ele ficou grato. — Obrigado, Valda. Não tenho jeito para essas coisas. Acabaria me espetando todo. Era importante demonstrar apreço. A isto, Valda replicou, ecoando os próprios e benevolentes pensamentos dele: — São pequeninas coisas que uma pessoa faz por outra. Na semana seguinte, Valda entrou no gabinete de Leadbetter, que lia um penúltimo rascunho e lhe pediu para trocar a fita de sua máquina. O sr. Leadbetter encarou-a fixamente. — Não tenho jeito para máquinas — disse ela. O homenzinho ficou desconcertado e aborrecido. — Nunca precisou trocar uma fita antes? Não foi treinada para fazer essas coisas? — Não lhe tomaria nem um minuto. — É melhor pedir a uma das moças para explicar-lhe como se faz. Aquilo era incompreensível. — Elas sujarão as mãos — disse Valda. — É muito fácil de fazer. Ele entendeu. Saiu e pediu a uma das outras moças — as jovens de verdade —, irritado: — A srta. Fenchurch precisa de alguém para ajudá-la com a máquina! Foi a primeira vez que ele não a chamou de Valda, mas o respeito foi apenas um resultado do ressentimento. A segunda moça sorriu para ele com graciosa timidez e com terror para Valda, e imediatamente se debruçou sobre a máquina, como se esta fosse um berço. Chegado o momento oportuno, o sr. Leadbetter escreveu na ficha de Valda que ela tendia a ser agressiva quanto a ninharias. "Tendia" era o código oficial para nada deixar pela metade, ir até o fim. Havia um pequeno aposento interior, semelhante a uma copa, onde, pela manhã e à tarde, aquelas moças se revezavam para fazer o chá. Uma lista fora afixada à parede, onde estavam anotadas as exigências de todos os homens: sr. Bostock, fraco com açúcar, sr. Miles, forte e puro. O Leadbetter de Valda preferia uma infusão de flores de camomila, que ele comprava na Jackson's, em Piccadilly; a infusão tinha que ser preparada em um recipiente separado e precisava ser coada. Outro aviso alertava contra folhas de chá na pia. O aposento estava em mau estado e não tinha ventilação. Havia manchas no linóleo e um cheiro de biscoitos mofados. Em uma parede salpicada, a tinta descascava, em virtude das exalações de uma chaleira elétrica. Por vezes, quando Valda preparava o chá, Caro arrumava as xícaras para ela, em uma bandeja marrom e arranhada. Valia a pena ver a imponente Valda de longas pernas medir, com desdenhoso escrúpulo, as flores para a beberagem especial do sr. Leadbetter (atada ao cabo do recipiente havia uma pequena etiqueta: "Deixe ficar por cinco minutos"). Também era interessante ouvi-la desfiar as instruções: "Sr. Hoskins, sacarina. Sr. Farquhar, suco de limão". Ela enchia o indeterminado quartinho de sarcasmo e decisão, provocando um frêmito maravilhado de medo entre as outras mulheres, pela certeza de que, se um daqueles homens entrasse ali, ela não fraquejaria um só instante no desempenho de seu papel. Quando Valda se referia aos homens, de maneira mais geral, era na suposição de partilhada e calamitosa experiência. Nenhuma das outras mulheres tomava parte em tais discussões — o que seria não apenas indelicado, mas escarneceria de suas deferentes convivências com o sr. Isto ou Aquilo. Além do mais, temiam que Valda, se encorajada, pudesse dizer algo físico. Observando as colegas que se enfileiravam para a saída, à noitinha, Valda comentou com Caro: — O rebanho que muge serpenteia lentamente pelo prado. Havia outra facção masculina no escritório — a de jovens envelhecidos, que falavam com amargura sobre divisão de classes e o direito a oportunidade ou à falta delas. Para estes, igualmente, Valda não tinha paciência. — Eles nem mesmo acreditam que existem e esperam que alguém complete o serviço em seu lugar, de graça. — Ela pousava a lata de biscoitos e desligava a chaleira elétrica. — Oh, Caro, é verdade que o homem comum está eternamente disposto à ofensiva, mas ele conta com muita gente do seu lado. É o homem incomum que deixa todos irritados. Valda também dizia a Caro: — Você se sente inteiramente desleal em relação à sua experiência, quando depara com o homem de quem poderia gostar. A essa altura, mal imagina como poderia fazer um acordo decente, é como ir ao encontro do inimigo. E então, vem a espera. As mulheres precisam lutar para acabar com aquela espera imbecil na extremidade de um telefone que nunca toca. O "receptor", como é chamada a nossa parte dele. Ou então, girando lentamente na mão direita o bule de chá transbordante, como um atleta que faz aquecimento, antes de lançar o disco: — A mulher tem que se vestir, arrumar o cabelo, as unhas. Unhas das mãos e dos pés. E, depois disso, você se torna uma refeição que eles comem, enquanto lêem o jornal. Eu lhe digo que cada um daqueles dedos que pintamos é mais um prego em nossos ataúdes. Tudo isso era indiscutível, e inclusive corajoso. Entretanto, era também um mapa, do qual aposentos, horas e faces humanas não se erguiam, no qual inexistia qualquer florescer de generosidade ou descoberta. As omissões podiam constituir a vida, em si, a menos que o mapa fosse encarado como um substituto para o percurso. Pelo menos, tais eram as objeções levantadas por Caroline Bell. Valda, por seu turno, considerava-a como uma possibilidade perdida. Caro poderia ter feito qualquer coisa, mas preferia o limbo comum do amor sexual. Quem quer que tivesse dito: "Quando procurar mulheres, leve seu chicote", aludia a algo profundo e profundamente desencorajante. Valda vigiava Caro e pensava dessa forma. Pensava: Oh, sim, que eles lhe mostrem seu chicote ou alguma atração comparável. 18 Quando Paul Ivory fez uma viagem de dois meses à América do Norte, escreveu de Los Angeles para Caroline Bell: "Minha querida, ficarei satisfeito em ir embora daqui — não por causa da gente do cinema e da fumaça dos escapa-mentos ou dos cemitérios ilimitados, que fazem Stoke Poges assemelhar-se a manchetes, mas simplesmente por haver descoberto que só posso conseguir uma carta sua em cada lugar que visito. De maneira que, quando a recebo, é hora de seguir em frente. Tendo desejado a vida inteira conhecer este país, eu agora o varo loucamente, à espera de sua próxima carta. Uma trama diabólica de sua parte, com a qual acho que nunca chegarei a ficar quite. Quando recebo suas cartas, elas me comovem até o coração — um órgão que, no meu caso, afinal foi você que inventou. Acho estranho ser afetado pela sabedoria que você mostra, quando ela é escassa no que me diz respeito. Por essas cartas, procuro acompanhar seus estados de ânimo, tendo a lua como um controle independente. No entanto, existe sempre aquela bela solenidade — dirigida a quê? ao mundo? a mim? — que age como um cinturão desmagnetizador (é uma coisa que eles colocam nos navios, a fim de desmagnetizá-los contra as minas e o radar inimigos). Descubro que não quero que você conserve qualquer independência ou proteção em relação a mim, em especial na forma de bom caráter. Tendo dito isso, confesso que minha equanimidade sem precedentes deste último ano é derivada da sua, como bem deve saber. Trata-se de um tipo de contágio, um dos riscos dos prazeres sexuais. Estas linhas estão sendo escritas à meia-noite, em uma enorme cama de um quartinho acima de um jardim — parte de uma suíte providenciada por meus patrões daqui. É justamente o quarto que eu imaginaria, tanto que procuro colocar dentro do quadro o fator final e mais importante — mas não funciona. Existe também uma sala de espera branca, um terraço com plantas maravilhosas, um banheiro e até mesmo uma diminuta cozinha. Entretanto, o principal é a cama, que coloca o mundo em perspectiva. Estou acabando de voltar daquela espécie de jantar denominado stag1. (Como nos apressamos em reivindicar nossa condição!) O monarca deste vale estreito mal se dirige a mim, o que se supõe seja um bom sinal. Todos fazem questão absoluta de manter a tradição, de maneira que exibi um bocado de sorrisos do tipo que você detesta. As coisas podem ser realizadas aqui, desde que não se espere conservar a alma imortal — fui instantaneamente separado da minha, quando cheguei; imagino que ela, ou alguma coisa semelhante a ela, me será devolvida à minha partida, pela encarregada do guarda-roupa. Por outro lado, não há muito que se ouvir ou questionar, mas bastante a expor. (Foi Conrad quem disse que o ar do Novo Mundo é favorável à arte da declamação, não foi?) Isso significa que existe uma fórmula e que devo ajustar-me a ela. De resto, a Califórnia oferece o máximo contraste imaginável entre as obras de Deus e as devastações do homem. A Califórnia é uma bela mulher de língua obscena. Semana passada, no hotel em Washington, encontrei Christian Thrale, que estava lá para uma conferência, como talvez você saiba. Simpatizei com ele mais que de costume, mas não tenho certeza se isso aconteceu por razões intrínsecas ou porque pude dizer seu nome. Estou chocado e impressionado pelo amor que sinto por você." 1 Gíria americana: jantar apenas para homens. (N. da T.) 19 Em agosto do ano seguinte, Caro estava sentada em uma elegante sala de chá, esperando Ted Tice. Aquele restaurante, em uma loja de departamentos de Londres, dava para Piccadilly de um lado, onde a luz era discretamente velada. Algum ruído que subia do trânsito do Circus era abrandado para o rumor pré-guerra por paredes de solidez antebellum. Admitindo apenas sons semelhantes, o recinto somente abrigava o que havia de decoroso. Todas as mesas eram ocupadas por mulheres. Como fiscais, as garçonetes permaneciam atentas ao desempenho, limpando contidamente alguma sujeira ou recolocando um garfo caído. Algo não desagradável, uma segurança de quarto de bebê, acompanhava tudo isso. Não obstante, em tal cenário, era possível detestar-se as mulheres — detestar-se seu gênero ondulante, imperioso e de timbre agudo, seus peitos, traseiros e penteados, suas pregas, franzidos e bolsas de mão atulhadas: todos os pertences, naturais e assumidos, de seu sexo. Nesse ambiente estúpido, elas mal poderiam ser encaradas como pessoas, ao contrário do que sucederia com homens. Não obstante, elas inclusive tentavam ser tolas, santificando todos os tópicos pela veemência com que os tratavam. Caro sentiu a própria anormalidade: ser a única que observava, a única a não falar, a única que não queria particularmente um carro, um tapete ou um serviço para doze pessoas. A única a quem faltavam um lar e proteção, mas que ainda assim não era livre. À mesa vizinha à sua havia duas irmãs — esguias, calmas e distintas, ambas com cabelos cor de mel e olhos claros, alongados; a mais velha, que usava um pequeno anel de noivado, de safira, e a mais nova, que tinha dezessete anos. As maneiras entre ambas eram perfeitas — delicadas, corteses, leais. Ofereciam-se cardápios e açúcar polidamente, como se não houvesse qualquer laço de sangue entre elas. Se alguém podia ser assim, valia a pena renunciar ao temperamento. Quando Ted chegou, o recinto de mulheres se compôs. Enquanto passava entre elas, via-se que elas renunciavam à frivolidade e tentavam cessar de remexer nas bolsas. Era um poder que ele vinha adquirindo: parte de uma terceira possibilidade não prevista por aqueles que se perguntavam se Edmund Tice venceria ou fracassaria. Desde sua volta da França, ele estivera trabalhando em Cambridge, passando novamente a viver em aposentos alugados com mobília. Uma dose de precoce reconhecimento não fora prejudicada por sua atitude em relação ao telescópio proposto, uma vez que outros haviam, inesperadamente, aderido à sua posição. Uma mulher que ele conhecera durante seu trabalho fora durante alguns meses sua amante, mas voltara recentemente para Jodrell Bank. No decorrer de um outono e um inverno, os dois haviam feito amor aos sábados, mantendo-se distantes pelo resto da semana — um arranjo não diferente de um casamento insípido. Quando essa jovem partira para Manchester, chegara quase às lágrimas, ao mesmo tempo em que oferecia a Ted um pequeno sorriso e um meneio de cabeça, como que a dizer: irremediável. Ted percebeu que ela o considerava um amante egoísta e sem inspiração, e não se importou de lhe dizer por quê. — Que lugar curioso para um encontro! Ted parecia mais corpulento do que antes e mais ereto. Seu cabelo, já com entradas, ainda se erguia em espessos anéis louroavermelhados. O sulco vertical era mais profundo em seu cenho. Ele deixou o jornal em uma cadeira vazia e sentou-se. Quando olhou em torno, foi como se previsse um final para tal recinto e suas mulheres; como se soubesse de planos esboçados para convulsionar aquela cidadela. Tornava-se claro que o elegante salão logo se transformaria em um café com auto-serviço. Isso só ficara evidente após Ted chegar e avaliar a situação com um olhar. Quando em tais lugares, às vezes Edmund Tice imaginava pessoas da alta burguesia em cidadezinhas chuvosas e presbitérios úmidos. Visualizava famílias comedidas e gentis, seus jardins, seus animais de estimação com nomes literários; as prateleiras envidraçadas com volumes de Sir Lewis Morris ou Sir Alfred Comyn Lyall; A luz da Ásia, prêmio escolar, com letras em alto-relevo na capa imitando couro. Ele devia saber que desaparecer é diferente de apenas morrer, que ser aniquilado não é o mesmo que ser morto. Alguma coisa — lembrança, crença — que não desaparecera antes estava para morrer ou, de qualquer modo, extinguia-se com metade da rapidez, exterminada por aqueles cujas atitudes haviam sido aprovadas e conhecidas, embora talvez não fossem virtudes maiores. E ele desempenharia sua parte nessa destruição e, como os outros, lamentaria quando tudo estivesse certeiramente acabado. Ted vinha regularmente a Londres para ver Caro. — Gostei de caminhar através destas ruas cinzentas, sabendo que era para vê-la. — Uma simplicidade que não exigia resposta. — Diga-me o que fez o dia inteiro. — Ouvi queixas alheias. — Caro fez espaço para um prato de docinhos coloridos e suspiros que pareciam conchas espiraladas. — Não que as queixas deixem de ser reais. — Aí está o problema com as queixas. Em geral, costumam ser justificadas. — Depois que pediu o chá, Ted perguntou: — Lá existe alguma coisa que a preocupa? — Sinceramente, não. E não no sentido que você quer dar. — Ninguém nunca deixa o emprego? — Os homens, nunca. As mulheres, em geral quando se casam. — A menos que você se case comigo, com franqueza, eu a prefiro nesse buraco fatídico. — Ted pensou que ela iria se exasperar ou sorrir, mas Caro não foi atingida pelo comentário, que permaneceu entre ambos. Ele prosseguiu, direto, consciente da fatal sincronização: — Meu trabalho não é assim. Ele me é necessário e propício. No entanto, você é tão necessária à minha vida como o conhecimento ao meu trabalho, mas não tive sorte quanto a isso, e Deus sabe que eu nunca serei realmente completo ou feliz sem você. — As pessoas não podem ser possuídas como as informações. Ela não era combativa, nem mesmo agitada. Estava calma, em resultado de alguma grande reserva de alegria, adquirida e antecipada, que só poderia ser amor. A descoberta foi como violência no recinto róseo, trivial e razoavelmente inofensivo, que até agora não conhecera maior convulsão que a da quebra de faiança florida. Ted sentiu que aquilo podia não ser coisa nova. Entretanto, ela se tornara descuidada, não se preocupando em dissimular. Hoje, demonstrava a segurança de um acrobata, elevando-se para sua aventura com graça, e desperdiçada coragem. Assim, ficava tudo explicado. As mãos e os cabelos dela explicavam-se por si mesmos, o braço encurvando-se para o interior de uma manga e se tornando o pulso suave de uma mulher apaixonada: tudo aquilo desejado, manuseado e esperado por alguém, oferecido a alguém. Ted repisou isso com doentia impotência, com repulsa. Ele estava certo — e no entanto receoso de um engano obsessivo — sobre a identidade de seu amante. — Você está fazendo com que eu seja indelicada — disse ela. Lamentava-o e não sorria, mas permanecia ali, com aquela outra vida fluindo por ela, tornando-lhe a face rosada e a dele, pálida. Ted observou o brilho mortiço da pele, quando desaparecia por entre as roupas; pensou que o corpo dela, desconhecido para ele, já estava mudando. Quando Caro olhou para o relógio, ele disse, sem se conter: — Não vá ainda. — Já estou um pouco atrasada. Como um detetive, ele reparou na insensibilidade, na indiferença da pessoa que ama ante a não amada. E nada há que eu possa fazer para modificar ou interromper alguma coisa. Ela pode destruir-me e nada posso fazer. Não posso impedi-la de dormir esta noite com seu amante, nem de gostar disso e dele. A incapacidade era injustamente vexatória para ele, como a impotência sexual, pois estava relacionada a alguma humilhação imensa e contingente — talvez a impossibilidade de toda a humanidade de prever o caos ou proteger-se contra ele. Quando se separaram, ele tomou um táxi para a Liverpool Street, onde esperou uma hora por seu trem, incapaz de ler ou de ligar para um amigo a quem prometera telefonar. O teto da estação formava um céu de fuligem guarnecida de chumbo, com suas vigas e encaixes insolúveis. Nas plataformas, as pessoas andavam em círculos, como refugiados. Ted Tice revolveu e revolveu as mesmas impressões, enquanto os mesmos slogans as interceptavam, dos quadros de avisos. Era impressionante a recusa do tempo em passar e, sem independência de julgamento, ele registrou a multiplicação de momentos naquela hora. A sordidez intensificou-se, os passageiros à espera pareceram ganhar idade, nada e ninguém era jovem ou gentil, nunca o havia sido. De seu banco imundo, ele via como as pessoas se esgueiravam ou vagavam, personagens do Realismo, sem dúvidas ou remorsos, sem quaisquer sensações que merecessem as lágrimas dele. Embarcando finalmente em seu trem, Ted Tice desejou que toda afeição chegasse ao fim, se aquilo era uma amostra. — Olá. — Partindo de um hábito que caracteriza o amor retribuído ou o ressentimento, Paul agora raramente usava o nome de Caro. — O carro está logo depois da esquina. Seguindo pelas ruas acinzentadas, ela esquecera Ted Tice e, mentalmente, já dizia a Paul: Estou feliz em vê-lo. Tendo chegado naquele dia, após uma quinzena na Itália, Paul estava queimado de sol. Homens e mulheres que passavam olhavam para ele, para sua saúde cara e importada, observando também o par que eles formavam. O mesmo havia acontecido quando haviam passeado juntos pela primeira vez, em uma estrada rural. A presença de Paul, ao contrário do que acontecia a Ted, fazia com que as pessoas se esquecessem de si próprias, ao invés de se lembrarem. Além disso, tendo agora uma peça chamada Equinócio, Paul às vezes era reconhecido por estranhos. Quando estavam no carro, Paul segurou-lhe o pulso por um momento. — Como estava Roma? — perguntou Caro. — Barroca. — Uma névoa fuliginosa umedecia o pára-brisa. — Esta manhã eu estava sentado ao sol, no Pincio. — Foi uma pena partir. — Ela desejaria ter dito: Estou tão feliz de ver você! Ele sorriu. — Como você está solene! — Dirigiu cuidadosamente, parando para que três colegiais passassem. As crianças levaram os dedos aos bonés, dirigindo-se a Caro, como lhes fora ensinado. — Eles pensam que você é a rainha Mary — acrescentou Paul. — Certamente eu não estaria sentada na frente, com o motorista. — Agora, escute uma coisa: você tem que ser boazinha comigo, porque hoje, menos de uma hora após a minha volta, recebi uma proposta inesperada. — Mencionou um nome e, como Caro revelasse ignorância, prosseguiu, com irritação: — Nos últimos dez anos, foi o único diretor importante que se apresentou. "Apresentar-se" intimidava, com seu sentido de confissão: "Alguém que corresponda à descrição, por favor, apresente-se". "A menos que alguém se apresente, toda a classe ficará detida após as aulas." Como se aquele homem importante — que Caro agora identificava, através de reportagens na imprensa — fosse alguém que desejasse levar a culpa. Quando Paul terminou de contar sua história, eles tinham chegado a Covent Garden, e saíram do carro. Dentro de uma ou duas horas, já em sua própria casa, ele a repetiria para Tertia, que, por estar casada com um homem de renome garantido, receberia o fato como parte do que lhe era devido. Subiram a escada para a moradia de Caro. Paul agora possuía sua chave do apartamento. Virando-a na fechadura, disse: — É agora que você precisa ser boazinha comigo. Entretanto, foi claramente invencível aquela noite, e confundida por causa dos tributos pagos. Era inútil tentar uma inversão, propor a Paul um estado de ânimo — Paul, que detestava sentir-se dirigido, que às vezes nem mesmo tolerava a mera recomendação de um livro, que ficava zangado se Caro, em sua melhor aparência, desse a impressão de forçar o interesse dele. A menor reivindicação sobre as afinidades de Paul podia ser repudiada com feroz energia, como uma espécie de desafio, quando ele se mostrava naquela disposição de espírito, sentindo-se pressionado. Insistindo em tal caminho, às vezes ele podia também ferir-se acidentalmente. Caro jazia vestida na cama e Paul se sentara ao lado dela, preocupado. A mão dele lhe girava sobre o seio, porém mais pela força de um delicado hábito, acariciando um animal doméstico distraidamente. Sobre a colcha a palma de Caro permanecia aberta, virada para cima e estendida a um ledor da sorte. Ela o fitava.com um amor semelhante à perda de consciência. Paul meditava na peça que poderia escrever para aquele homem que o abordara inesperadamente. — Hoje é difícil surpreender alguém. Não o digo em um sentido vulgar. A falta de surpresa que surge com a idade, individualmente, agora ocorreu a toda uma população. Imagino que isso tenha começado com a Primeira Guerra Mundial. Por que deveríamos, você ou eu, por exemplo, ficar surpresos com alguma coisa atualmente? — Ainda é possível ficar-se surpreso com a pessoa que atua. Alguém que conheçamos bem ainda pode surpreender-nos com um ato nobre ou monstruoso. — Mesmo assim, amor ou ódio podem abrandar a situação. — Naquela noite, Paul estava imparcial, e até mesmo clínico, no tocante a ódio e amor. O mundo, ao ser-lhe dócil, havia satisfeito seus desejos por esse dia, e suas energias presentes eram canalizadas de tal maneira, que a gratificação sexual, em si, era sublimação. — A capacidade de surpreender é uma forma de independência. E um sentimento de posse pode ser tão forte, que não admitirá semelhante revelação. Caro comentou, sem qualquer estratégia de surpresa: — Eu e Ted estivemos falando sobre possessividade. Tomei chá com Ted Tice. Paul não respondeu. Entretanto, uma hora mais tarde, acrescentou: — É difícil sentir interesse por Tice. — Talvez a idéia de Ted Tice não lhe tivesse saído do pensamento. Levantando-se, acrescentou: — Odeio esta parte. Meias e camisa. Ir embora. — Ir para casa. — Você pode poupar algum homem disto — disse Paul — não se casando com ele. — Rápido com as meias e a camisa, ele cantarolou com intenção — uma máquina ligada, embora não ainda em movimento. Tornou a sentar-se na cama, ao lado dela. — Sabia que os russos sempre se sentam por um momento antes da partida? — É a única hora em que você se senta. — Céus! Lamentando-se como a amante clássica. Paul sabia que ela nunca resistiria à sugestão de que podia estar começando a atacar os nervos dele. E não queria que ela ficasse muito certa de seu amor; poderia afirmar que esse amor era uma perda recorrente que os unia. — Oh, mas eu sou a amante clássica. Ele lhe segurou as mãos. Aquilo dava a impressão de impedi-la de causar algum mal. — Não seja crítica. Até parece uma professora. — A amante clássica. — Os dois riram, mas então ela disse: — O que será de nós? — Quem pode dizer? Aquilo provocou um ressentido medo — como se um médico de confiança de repente se saísse com "Agora, compete à natureza" ou "Estamos nas mãos de Deus". Assim como Paul garantira eminência a Tertia, também prometera domínio a Caro; e agora, quando ele finalmente o exercia, não podia desdizer-se. Nessa noite, os votos conjugais eram os mais fortes. A cronometragem de Caro era fatalmente insistente, como a de Ted: — Deve existir um final para a desilusão, em alguma parte. Em resumo, é preciso que haja verdade. — E você acha que a necessidade humana de desiludir não é também parte da verdade? — Da realidade, não da verdade. — Precisamos de um teólogo e de um semântico para que decidam sobre isso. — Ele sorriu, ainda lhe segurando as mãos. — Fico contente por eles não estarem aqui. — E prosseguiu, de maneira mais razoável: — Qualquer dia você vai querer todas as cartas na mesa. Tinha esse encanto enigmático antes, capaz de tudo. — Disso é que fui capaz. — O amor se tornara sua maior distinção, talvez a única. — Nem toda capacidade é adversa, como a "aptidão para assassinar". Paul lhe soltou as mãos, como uma mostra de resignação: coibições eram inúteis, de qualquer modo ela poderia cometer violência. — Eu quis dizer que você costumava espantar-me. — E como devo espantá-lo agora? — Uma vez que era forçada a manter a existência dele em um certo nível. Paul riu. — Conte-me algo interessante sobre Ted Tice. Um silêncio que era também uma vacilação tornou o momento interessante. Para a mulher, o hiato era uma sensação recordada. Certo verão, quando ajudava no jardim, em Peverel, ela recolhera um rato ou coelho morto com a pá: um peso inanimado que diferia daquele que nunca tivera vida. — E então? — Ele não queria revelação nem tampouco intrusão em quaisquer méritos que ela conservasse para si mesma. E isso poderia ser nada mais que a sagrada custódia do pecado de mais alguém. — Muito bem Sheherazade? Paul deixou o casaco cair e tornou a acomodar-se ao lado de Caro. E então ela lhe contou como Edmund Tice respeitara o cientista alemão que era seu inimigo. Paul Ivory escreveu para a mãe: "Minha querida Monica: Foi muito perspicaz de sua parte ficar em Barbados. Tivemos quatro (os patriotas poderiam reivindicar cinco) dias excelentes, desde que você partiu. Como o verão agora está terminado, a Inglaterra tem pouco a antecipar, como sempre. Em verdade, gosto desta estação, restolho esbranquiçado nos campos e os bosques começando a enferrujar. Disto bem pode deduzir que estive no campo, tendo ficado alguns dias com Gavin e Elise. Minha cunhada continua assumindo o comando — enquanto Gavin fala, ela explica ad alta voce o que ele realmente está querendo dizer. É como um filme com legendas. De fato, isso me forneceu a semente de uma peça — o eclipse de um homem que se liga a uma mulher de temperamento, inclusive de gênio (não é Elise, evidentemente, como você deve imaginar). Eu poderia intitulá-la 'A carne una'. Em conseqüência, estive ponderando acerca de fantasmas como Messieurs Récamier, de Staël e de Sévigné, e o sr. Humphry Ward. O que você acha? Naturalmente, não sei o que isso provaria — sem dúvida, nada além de que, em quaisquer termos, o casamento é um inferno. Sua informante — ou delatora — foi acurada ao pensar ter-me visto na inauguração da retrospectiva Pinero. Uma peça má: segundo me disseram, não podia ser omitida, mas creio que deveria ter sido. Em seguida houve uma festa, à qual o primeiro-ministro compareceu brevemente, parecendo muito doente: o Mar-Verde Corruptível. Sua amiga também estava correta ao relatar-lhe que tenho sido visto com a mesma mulher em várias ocasiões recentes ou menos recentes. Pensei que tal constância antes a tranqüilizaria do que a perturbaria. Como escreveu Lorde Byron — embora não à mãe, creio: 'Não tive uma prostituta este meio ano, confinando-me ao mais rígido adultério'. Seu filho que a estima." Caro permanecia de pé junto às janelas do dormitório de Paul, enquanto ele, na lareira, manuseava — não nervosamente — uma coluna de mármore com veios rosados. Tertia Ivory estava grávida. Tertia se encontrava no castelo: Tertia em seu baluarte. Segure-se com firmeza, a corrida é para os rápidos. Em algum lugar, além do dormitório de Paul Ivory na cidade, uma paisagem tremulava, o castelo se avolumava em sua inexpugnável elevação ancestral. — Você sabia das possibilidades desde o início — disse Paul. Excluir o amor era fortificar-se. Ele devia isso, pelo menos, a seus legítimos descendentes. Para verificar-se como a paixão pode debilitar, bastaria um só olhar para Caro. — Não imaginava que você exigiria tanto. Ou que eu o daria — disse ela. Ambas as declarações eram falsas. A boca de Caro se tornou desgraciosa com a incompreensão, com a compreensão. Seu corpo, imóvel, expressava um esforço pouco atraente. — Então, não é esse o seu temperamento? — Desli-gando-se, se não inteiramente censurando: um médico que atribui a doença a causas emocionais, quando lhe ignora o tratamento. — Sei que é duro. — Paul se mostrava clemente, afagando o delito de amar. — Duro? Era melhor que ela não tivesse ouvido palavra tão cáustica. Paul disse para si mesmo que enfrentaria um mau momento com Caro e, certamente, acataria seu ponto de vista. Ele temia o mau momento como quem teme o decurso, não o resultado. Sua mãe certa vez lhe dissera: "As coisas verdadeiramente terríveis são aquelas que não podemos modificar, com as quais estamos comprometidos indefinidamente". (Ela poderia ter dito "interminavelmente", embora não fosse esse o seu estilo.) O sofrimento presente de Paul não pertencia àquela espécie condenada. Ele podia prever um final para Caro. Há muito o quarto de Paul havia sido inteiramente mobiliado — tapetes estendidos, poltronas em suas posições, quadros pendurados e cortinas abertas ao lado de um vaso de flores de tecido branco, em uma janela. Tudo era mantido em perfeita ordem — embora, por um descuido, as flores às vezes apresentassem douradas partículas de poeira. No toucador, alinhavam-se as peças de um conjunto de prata — escovas e espelhos de mão, de um tipo fora de moda, até mesmo antigo, cada uma adornada com um brasão. No armário embutido estavam as roupas de Tertia que agora, durante algum tempo, ela não poderia usar. Tais objetos eram precisos e luziam. Ou podiam embaciar-se, inclusive deixar de existir, enquanto o homem e a mulher permaneciam ali. Paul continuou ao pé da lareira, aguardando a explosão de Caro. Ele não gostava que o deixassem esperando. A tempestade que se avizinhava o poria em liberdade: o que Caro dissesse dele, a ele, a colocaria em erro perpétuo. Para Paul, a violência degradante da emoção pendente de Caro representaria a escapada. — Agora estou de fora — disse ela. Ele a ajudou com o casaco. Seu gesto convencional era uma verdadeira despedida. A compostura dos outros sempre o diminuía, e a dela, naquele momento, negava-lhe a ofensa de uma cena. O fato de ter amado Caro, mais, muito mais do que já amara alguém, emprestava estatura àquela mulher: ela tanto podia ser única como inauguradora. Paul se ressentia dessa posição histórica que Caro estabelecera para si mesma, no ímpeto da existência que ele levava; por tal motivo, gostaria de vê-la rendida. Caro relanceou os olhos pelo quarto, não para vê-lo como se apresentava pela última vez. Nada ali testemunhava a sua presença. Seus olhos pousaram em Paul, com um questionamento mais sombrio do que ele jamais suportara. Então ele se virou para o outro lado, não querendo ser tentado a alguma admissão que pudesse recear. Desceram um atrás do outro, ambos recordando aquela primeira cena no patamar; Paul evocava sua mão enorme, a mão do chicote, uma sombra na parede. Mentalmente, também via o impermeável pardo e as dobras de tecido vermelho, divididas, afastadas sobre o seio dela. Seria daquela vez em diante que a imagem se repetiria para ele — vívida o bastante naquele momento, fazendo-o quase duvidar de que o rosto atual de Caro se refletisse num sombrio espelho no vestíbulo, um rosto que tinha a cor da nudez: a nova Caro que ele criara, a quem estava agora oferecendo os toques derradeiros. A boca de Caro era uma ferida que talvez nunca cicatrizasse. Apenas por ficar de pé junto dela, Paul ainda esperava provocar a tempestade de lágrimas que o libertaria formalmente, como uma dissolução de votos. Nunca a tinha visto chorar, exceto de alegria. Então, em perfeita obediência a seus desejos, como que por uma lei da natureza, Caroline Bell fez um gesto primitivo de abandono e pronunciou o nome dele. Depois chorou, alto, sem ao menos cobrir o rosto. 20 "Lamento mais do que posso dizer", começava a carta da sra. Pomfret, "ser portadora de más novas. Não obstante, imagino que você desejaria saber." O major tinha deixado ou abandonado Dora. E, uma vez que agora se declarava insolvente, não lhe proporcionava qualquer amparo. Dora permanecia no apartamento do Algarve para estabelecer a posse, mas, fora isso, estava sem fundos. Parecia que, infelizmente, o capital dela havia sido transferido para o nome do marido, no início do casamento, estando, portanto, irrecuperável, na opinião do sr. Prata, sem dúvida o melhor advogado da província. "A maior preocupação dela é que você continue feliz e não fique aborrecida com isso. Melhor do que eu, conhece o orgulho violento de Dora. De qualquer modo, ela está em estado lastimável, e afirmei-lhe francamente que escreveria para você. Sem intenção de preocupá-la além do devido, evidentemente tenho a obrigação de comunicar-lhe que ela falou, e por várias vezes, em acabar com a própria vida." Caro telefonou para o escritório de Christian, pois Grace esperava o segundo filho. Depois que lhe deu a carta, ele ficou silencioso por um momento, antes de comentar: — Isso já era de se esperar. Caro, a culpada. — Pode-se fazer alguma coisa através da embaixada? — Tem sido minha firme política não misturar o oficial com o pessoal. Nada de envolvimento, eis a minha posição. — Foi a vez de Caro ficar em silêncio. Christian logo acrescentou: — Estou certo de que compreende. — Em sua formalidade reprovadora, ele bem poderia ter dito mais: "Caroline". Uma obscena ausência de decência provocou um pânico infantil, como se uma maçaneta de lavatório ficasse emperrada, sem girar. — Não tem nada a sugerir? — Não posso imaginar de que modo eu poderia intervir a esta altura. Sem saber mais. No espaço agora formado para a elocução, Caro disse: — Então, eu irei. Isto estabelecido, o alívio deixou Christian cordial. — Parece o melhor, se não lhe causar problemas. Que confusão! Falarei com Grace esta noite e telefonarei para você, amanhã bem cedo. Naquela noite, ele disse a Grace: — Sua irmã causa mais problemas que uma casa de marimbondos. — E acrescentou: — Estou me referindo a Dora. Grace tremia. — O que fará ela, sem dinheiro? — Pode arranjar um emprego, como milhões de outras mulheres. Assim, pensará menos em si mesma, para variar. Talvez até seja bom para ela. O que era bom para Dora, no entanto, já há muito tinha acontecido. — Ela não daria para trabalhar em um escritório. Christian então soltou: — Se não fosse a grandessíssima tolice de entregar a ela o seu dinheiro, nada disto estaria acontecendo agora. — Grace ficou trêmula e Christian se levantou e começou a caminhar pelo aposento. Homens altos e de ombros estreitos começam a encurvarse relativamente cedo. — Entregar a ela. De bandeja. Simples, assim! — Ele apanhou uma revista e a deixou cair, à guisa de ilustração. — Sempre achei uma loucura. — Caro entregou tudo. — Aquilo já foi uma grande asneira, mas é problema dela. O que me irrita é o seu envolvimento nisso. Grace havia dobrado as pernas debaixo do corpo, no sofá, e mostrava o corpo absolutamente disforme. — É injusto! Eu sou tão. . . — quase disse "culpada". — Estou tão nisso quanto ela. Foi Caro que me fez ficar com a metade. — Muito magnânima, uma vez que tudo foi idéia dela. — Não. — Permita que lhe refresque a memória. Foi você mesma quem me contou. — Christian se deixou cair em uma cadeira. Sua voz estava rouca com o que havia sido ensaiado durante anos. — Além do mais, isso é bem próprio dela. Caro tem essa noção sobre si mesma. — Que noção? Como se ela não soubesse. — De ser diferente. Ou melhor. Ela se concebe como alguém que tem grandes atitudes. — Um movimento circular da mão e do braço. Christian podia ter respeitado essa característica em uma pessoa de reconhecida posição, mas quem era Caro — uma australiana que trabalhara em uma loja — para ser tão magnânima? Virulento egoísmo! — Inseguro quanto à propriedade no uso da palavra "virulento", acrescentou: — Mania de grandeza! — Devem existir manias piores do que essa. — Grace não dispunha de vocabulário para argumentar, apenas tinha consciência, confusamente, de que era geral a antipatia por qualquer pessoa com um sentido de sina — mesmo que tal sina fosse pouco mais que uma mostra de preferências. Os Thrales fitavam seu tapete cor de creme, suas poltronas de brocado e sua imagem de Dick Turpin, de Staffordshire, objetos dos quais todo o encantamento já se fora irremediavelmente. — E como Caro pode abandonar o escritório? — Sem dúvida, tem férias vencidas. — São apenas alguns dias. E ela ia à França. — Lamento, mas Caro terá de aprender que não pode fazer tudo. — E quanto ao dinheiro? Como pagará a passagem? Seu salário é insignificante. Além do mais, há Dora. Christian aproximou-se e sentou-se ao lado dela, em uma poltrona. — Escute, Grace. Você faz com que eu pareça um Scrooge. Um SeiLá-o-Quê. Legree. Eu lhe direi o que faremos, quando a situação estiver mais clara. Ou esclarecida. Eu me recuso, terminantemente, a comprometer-me de antemão, às cegas, com qualquer das — a palavra que estava sondando era "imbecilidades" — idéias absurdas de Caro. Ao telefone, ela obviamente conseguiu a passagem sem a menor dificuldade — afinal de contas, não é tão cara assim. E seria de estranhar se alguém como Caro não conseguisse enganar sobre sua receita, ao longo dos anos — é possível que ficássemos surpresos. O negócio é que eu e você temos responsabilidades. Temos filhos, o que não é o caso de Caro nem de Dora. — Preferimos ter filhos para nossa completa felicidade. E Caro tem sido criticada junto com Dora, sem se considerar a sua felicidade. — Era uma resposta que a própria Caro podia ter dado. — Além do mais, Caro terá filhos seus, um dia. Tal suposição era perturbadora. Christian imaginava que Caro se casaria um dia (recordava o insosso Tice, que se portara mesquinhamente quanto ao telescópio), mas não chegara a incluir filhos. Em seu alarma, Christian não podia saber que aquela era a última resistência de Grace, e estava a ponto de vacilar, surpreso e receoso. Entretanto, naquele momento ela entregou os pontos, esgotou-se em um acesso de frágeis, inevitáveis e femininas lágrimas. — Oh, Chris, que situação a de Dora! Pobre Caro! Imediatamente ele passou os braços em torno dela e não houve necessidade de mais. — Grace, pobrezinha! — Finalmente, acrescentou: — Você sabe que aprecio Caro. Grace enxugou os olhos, enquanto o significado fluía lentamente de volta, como uma mancha, espalhando-se no tapete creme, em almofadas de sarja, miraculosamente reinfladas, em um par de pratos de Spode, pendurados em uma parede, que readquiriram seu envolvente feitiço. — Imagino que Dora volte para a Inglaterra — disse Grace. Christian ainda não se pronunciara, mas estava decidido a que, quando retornasse a Londres, Dora ficasse sob o amparo de Caro. Era o lógico, as duas irmãs trabalhavam, uma economia no aluguel, etc. Ele estava firmemente decidido a isso, como se fosse uma causa moral ou um alto ideal. O próprio Christian ficaria surpreso ao refletir que se vingava pelo espectro do fecundo casamento de Caro. Depois do jantar, ele se sentou em sua poltrona habitual, com os pés reclinados em uma banqueta acolchoada. Era o seu costume à noite — não de todo um divertimento, mas um intervalo entre dias de trabalho. E, de fato, naquela posição, com as pernas espichadas no ar, de certa forma assemelhava-se a uma carroça ou carreta sem os arreios, nos varais. Recostada nas almofadas do sofá — segurando um livro que, curiosamente, parecia pesado demais para ela —, Grace de repente voltou a chorar. Christian tornou a sentar-se a seu lado. — Por favor, não diga mais aquelas coisas para mim! — Que coisas, por Deus? Ela agarrou o livro e soluçou descontroladamente. — Coisas como "Permita que lhe refresque a memória". Pela manhã, o sr. Leadbetter, o funcionário administrativo, disse a Caro: — Lamento, mas terei de negar seu pedido de licença por motivos familiares. Entre as funções do sr. Leadbetter, incluía-se a de defender a escassa reserva de boa vontade para com os funcionários da seção. Caro nada disse. — Vejo que deu a seu pedido um caráter de urgência, srta. Bell — disse ele, apanhando um papel amarelo. Leu um parágrafo ou dois da solicitação. — Naturalmente, sinto muito que sua irmã, ou melhor, sua meia irmã esteja em dificuldades domésticas. Mas se abrirmos uma exceção, acabaremos tendo dificuldade para manter a disciplina. O cubículo sem janelas de Leadbetter assemelhava-se a um elevador ampliado — um daqueles que, nos hospitais, acomoda padiolas ou, nos museus, transporta estátuas. No caso presente, o espaço era quase totalmente ocupado por uma mesa de metal, da qual Leadbetter parecia o encarregado ou guardião: Desce? Ele segurava o documento, um crachá amarelo à altura do peito. Seu cabelo era prematuramente grisalho, uma antecipação à aposentadoria. — Está compreendendo isto, não? Os silêncios de Caro estavam irritantes naqueles dias. — A licença é concedida para emergências — doença, digamos, dos pais ou do marido. E, naturalmente, morte. Embora ela estivesse com a carta da sra. Pomfret na bolsa, seria impostura expor a morte permanente de Dora. — Por outro lado, srta. Bell, tem direito às suas férias anuais. — Leadbetter consultou outro papel. — Permita que lhe refresque a memória. Já tem uma semana de férias vencidas. Sugiro que consulte seu supervisor, a fim de saber se pode ser liberada por uma semana, com curto aviso prévio. — Agora que ele se livrara do problema, sem dispor do pequeno, caro e fortemente racionado fundo de compaixão oficial, ficou bastante solícito, como Christian. — Espero que consiga resolver a situação a contento. Quando Christian telefonou, Caro disse: — Tenho alguns dias de férias anuais. Já vencidas. Na hora do almoço, ela fez um empréstimo em um banco, usando sua pensão como garantia. Retirou um salário adiantado e comprou escudos. Quando retornou ao escritório, Valda lhe comunicou: — Um homem telefonou. A expectativa de Christian tornara Caro arredia, até mesmo em relação a Valda. No entanto, quando apanhou o recado escrito ficou sabendo que Ted Tice passaria aquele dia na cidade. À noite, Ted a levou ao aeroporto. Ele tinha um pequeno carro de segunda mão, que morria na menor subida. No carro, Ted perguntou: — Você tem dinheiro para isso? — Consegui algum. Os aviões voavam muito baixo e ruidosamente. Ao logo da estrada havia anúncios luminosos de refrigerantes e polidores de sapatos. Às luzes mutantes do trânsito, o perfil de Ted cintilava em verde, depois vermelho e azul. — Se precisar de alguma coisa, é só falar comigo. — Edmund Le Gentil. — Meu receio é que você nunca vá precisar do que posso proporcionar. Ele não queria imputar altos motivos a sua própria ansiedade por ela e tampouco menosprezar um egoísmo inseparável do amor. Já vira como as pessoas se tornam cruéis ao falar a si mesmas de sua compaixão pessoal: nada nos torna mais duros do que isso. — Caro — perguntou —, quando é que me permitirá livrá-la dessas pessoas terríveis? Ela mal poderia suportar aquilo, se Grace fosse incluída. Ted Tice observava um sofrimento que nada tinha a ver com Dora. A pele de Caro deixara de parecer luminosa. Seu corpo ficara tão esguio, que era impossível imaginar a força que ainda devia residir nele. Tais mudanças não lhe davam esperança porque, em seu sofrimento, Caro ainda pertencia tanto ou mais a outro homem. Ele nunca cessava de admirar-se ante o desperdício. Tantos sentimentos elevados em ambos os lados, mas nenhum deles transferível. — Hoje é o meu trigésimo aniversário — disse Ted. — Se antes não fui jovem, jamais o serei. — Com isso, queria dizer que aceitava quaisquer termos. — Também hoje foi o dia da decisão final para a instalação daquele telescópio em Sussex. No portão de embarque, ele a beijou. Era a primeira vez que a abraçava, mas aquilo mal fazia diferença, pois toda a substância dela estava neutralizada pelo sofrimento. Nos braços dele, o corpo de Caro era tão leve e desapaixonado como um vestido. Um ônibus que partiu de Lisboa ao alvorecer conduziu Caro através de campos estranhos até uma cidadezinha provinciana. A zona rural foi substituída por novos blocos residenciais e ruas movimentadas pela atividade matinal. Calçadas eram lavadas com água de mangueiras, persianas eram escancaradas. O sol ainda não esquentara, o ar continuava isento de vapores poluídos. Ao longo dos meios-fios, carros estacionados, como animais de carga, esperavam pela partida. A mais prosaica vitrina era exótica; uma exibição de utensílios culinários, instalados em prateleiras coloridas, era um altar pagão. O bloco de apartamentos na Rua das Flores se chamava The Chisholm, e poderia estar localizado em Hammersmith. Dora jazia em uma cama, um volume estupidificado. A cama ao lado, vazia, era evitada pelos olhos, como se fosse um ataúde aberto. — Eu lhe dei tudo, e é por isso que ele me odeia. Todos sempre me odiaram. Você também me odeia. Por que insisti? Por quê? Bem, finalmente agora chegou o fim. Era quase possível ouvi-la através das paredes. Caro foi à cozinha e ao banheiro, voltando com aspirinas e chá, além de um brioche comprado na estrada. O rosto de Dora era uma caveira, de olhos fundos e vermelhos, uma boneca agitada de madeira em uma exposição, a primeira boneca a ser feita na Austrália colonial. Às vezes ela se debatia, em outras ficava inerte. Em certo momento, deu um grito, como o clarão de um relâmpago: — Eu queria morrer! Caro lhe trouxe a bandeja com a refeição. — Como se eu pudesse comer alguma coisa! — lamentou-se. — Conseguiu isto na casa do outro lado da rua? Depois que tomou o chá, sentou-se, recostada num travesseiro encharcado, e a cada pergunta girava a cabeça de um lado para outro. Seus cabelos escuros pendiam em desalinhadas e compridas madeixas. — Tudo acabado. Não tenho nada. Será que entende isso? — Ela não podia tolerar uma negativa. — Estou lhe dizendo, não há mais nada, tudo se foi! Pode perguntar a Ernesto Prata. Quem é ele? — acrescentou, em outro acesso de lágrimas. — É o melhor homem da província. Sua cabeça girou de um lado para outro no travesseiro, como se a batesse contra uma parede. Caro mudou a fronha. Fez ovos estrelados. Na cozinha, apoiou a testa contra um armário de fórmica cor-de-rosa. — Não se preocupe! — disse Dora, do quarto. — Não a incomodarei por muito tempo. Mais tarde, naquela manhã, Caro telefonou para a sra. Pomfret, que informou que estaria lá por volta da hora do chá. Dora pôs um vestido de seda e espichou-se no sofá da sala de estar, com um saco de papel pardo contendo doces, a seu lado. — Todos vocês estarão melhor, depois que eu me for. Caro ficou de pé em um estreito balcão. Ao fundo, as antenas de televisão assemelhavam-se a caracteres chineses, eram uma rede de mastros e encordoados, em um porto antigo. Além dos apartamentos e bangalôs de tijolos, via-se um lago verde, na manhã avançada. À direita do campo de golfe, um velho jardim cintilava como civilização. Nos pomares, amendoeiras remotas como lembranças felizes. Ela pensou na maneira como traíra o segredo de Ted Tice com Paul Ivory. Mais tarde, Paul lhe dissera: "Foi bom terme contado isso". Agora, nada a impedia de imaginar o pior sobre si mesma. — Você pode pensar, por um momento apenas, o que significa procurar trabalho, na minha idade? Caro voltou para a sala. — Eu trabalho. — Você é jovem. — A cabeça de Dora se tornara veemente outra vez. — Percebe que não tenho ninguém? — Eu também sou sozinha. — Você tem amigos. — Você tem a sra. Pomfret, aqui. — É engraçado como sempre consigo atrair um ou dois — disse Dora. — Alguém que se afeiçoe a mim. Não sei por quê. — Ela permitiu que Caro lhe passasse o pente pelos cabelos. — Não sei o que faria sem Glad Pomfret. É minha única amiga. — Glad Pomfret fora lá, uma hora após a partida do major, embora fosse seu dia de bridge. — Nunca tive alguém que fizesse isso para mim. No entanto, não parece demais para você. Desde o começo, Glad Pomfret soubera o que ele era, mas não quisera interferir. Aliás, seu próprio marido não havia sido grande coisa mas estava morto. — Câncer no coração. — Nunca ouvi falar nisso. — No ventrículo direito. Era um homem grandalhão — disse Dora —, mas no fim definhou muito. Caro podia ver nitidamente Sid Pomfret em um leito de hospital, um monte de borracha desinflada. Dora tinha o poder de provocar a deliqüescência diante dos olhos dos outros. — Eles o abriram, mas o coitado estava condenado. Não demorou muito a morrer. — Dora suspirou. — Esses é que são felizes! — A sra. Pomfret virá com uma srta. Morphew ■— disse Caro. — Não confio em Gwen Morphew. — Dora baixou a cabeça, a fim de que Caro pudesse fazer o coque em sua nuca. — É a acompanhante paga de Glad. — Ernesto Prata, Glad Pomfret e Gwen Morphew eram como o elenco de uma peça. Por outro lado, o major se tornara, simplesmente, ele. — Levou as antiguidades, as peças. Levou até mesmo o rádio. Se você pudesse ver-lhe o rosto! A crueldade impressa nele! A crueldade!. . . — Dora, não chore mais. Seus pobres olhos! Dora, no entanto, agora se lamentava pela crueldade. — Nada consegui dele. Nada! Tenho sorte em estar viva! Caro passou os braços em torno dela e pouco faltou para que se reiniciassem as lamentações de um passado distante: Por favor, Dora, oh, Dora, não fique assim. Em qualquer carícia, Dora saberia usar seu poder repressor. Por maior que fosse a sua fragilidade, Caro fora irremediavelmente escolhida para o papel da pessoa forte, aquela que vence sem esforço; Dora seria a vítima, a fraca vítima digna de pena. Não havia inversão de papéis nisso, apenas uma mudança de tática. As duas tinham feito a mudança em pleno ar, como dois alpinistas que, no instante crítico, passam entre si a corda que os alçará do abismo. — Este lugar horrível! E eu tão sozinha! Se pudéssemos voltar a Sydney — gemia ela —, .onde fomos tão felizes! . . . — A tranqüilidade se tornava emoção. Após um instante, ela acrescentou: — Pelo menos, Grace teve juízo e ficou com a metade. — Foi a única referência de Dora à perda da irmã no desastre: Grace era respeitada por sua previsão, Caro havia sido a tola. — Grace é tão feliz, tem tanta sorte! Christian é digno de confiança, alguém a quem se pode apelar. Nunca tive ninguém assim. Ninguém. Ao transformar Caro em tola, a respeito da transferência do dinheiro, o Destino se pusera ao lado da avareza e do cálculo. O Destino estava a favor do major, de Christian e de Clive Leadbetter, esquecendo os que eram corretos. Caro tinha que se espantar com isso, com a injustiça. A sra. Pomfret chegou às quatro, com um amplo vestido de lã turquesa e um turbante da mesma cor. Havia um camafeu entre as dobras do tecido. A srta. Morphew era magra, cor de ardósia, e exibia um leve tremor. — Ernesto Prata é o meu homem — disse Glad Pomfret, referindose ao advogado. — O melhor da região. A sra. Pomfret preferiu uma cadeira de espaldar reto, por causa da coluna. Caro trouxe mais chá e as sobras do brioche, juntamente com alguns biscoitos encontrados em uma lata. Um quarteto de pombas brancas, soltas de um jardim, revoluteavam fora das janelas. Dora observou que, segundo se dizia, os pombos transmitiam hepatite virótica. — Haverá trabalho aqui para Dora — perguntou Caro —, enquanto o assunto estiver sendo resolvido? A sra. Pomfret respondeu, pessimista: — É uma pena que ela nunca tenha aprendido o idioma. Eu consegui pegá-lo, embora as circunstâncias fossem diferentes. — Ela proferiu as expressões "bom dia" e "boa noite" em português. — Afinal, não é tão difícil assim. — O idioma português poderia ter sido hepatite virótica ou algum objeto à margem da estrada, para que alguém os recolhesse casualmente. A sra. P. ajeitou as dobras do tecido turquesa. — Até a srta. Morphew conseguiu pegá-lo. Mostrando-se atingida, Dora disse, do sofá: — Li em algum lugar que não se pode aprender um idioma após os trinta anos. Pelo menos, corretamente. A sra. Pomfret dirigiu-se a Caro: — Naturalmente, Dora não pretende seguir uma carreira como a sua. . . Caro retrucou, desalentada: — Sou apenas uma funcionária mal paga de um escritório horrível. O sorriso da sra. Pomfret era a própria tristeza. — Compreenda, isso parece demais para ela — disse. Dora gemeu, ao entender. A srta. Morphew se inclinava para pegar outro biscoito. — Dora foi imprudente — acrescentou a sra. Pomfret —, ao transferir tudo para ele. — Todas empregavam "ele" ou "dele", em deferência a Dora. Até mesmo o nome Bruce Ingot teria sido uma declaração de traição. — Uma mulher nunca deve se desfazer de seu capital. Nem mesmo em benefício da pessoa mais próxima e querida. — Dora confiou demais — comentou a srta. Morphew. — Ele me convenceu — gemeu Dora. Era difícil imaginar o major com disposição de ânimo para cortejar alguém. Mais fácil era acreditar que jamais cortejara coisa alguma, com exceção do desastre. — Esqueçam-me! — uivou Dora. — Estou decidida a não incomodar ninguém. A srta. Morphew ajudou Caro a tirar os pratos. Na cozinha, ela abriu a torneira e disse, sem olhar na direção da outra: — Prata está envolvido com o major. Procure Salgado, na Rua do Bom Jardim. Quando finalmente ficou decidida a pensão de Dora, ela permaneceu no Algarve, durante o inverno. "Como bem pode imaginar, anseio ir embora deste lugar horrível", escreveu ela a Caro, "ir para longe desta gente cuja fala não entendo. Felizmente, a Inglaterra ainda significa alguma coisa, mas bem poderia agüentar o inverno aqui, já que nunca o tornarei a ver. Além do mais, é aconselhável suportar até a primavera, uma vez que não confio em Manuel Salgado." Mais tarde, ela escreveu que rompera relações com Glad Pomfret. O principal era que Caro continuasse totalmente feliz. — Eu tinha certeza de que algo seria resolvido — disse Christian. Ao encontrar Caro no corredor, o sr. Leadbetter lhe recordou que sua porta estava sempre aberta para ela. Em uma tarde de domingo, Nicholas Cartledge telefonou para Caroline Bell. — Será que nunca a verei novamente? — Não. — Procurei-a várias vezes. — Estive em Portugal o mês passado. — Você é que tem sorte. 21 Nas noites e fins de semana do inverno, Caroline Bell passeava sozinha pela cidade, indo a labirínticos subúrbios da zona norte ou sul. Após tais expedições — às quais nunca faltava a esperança improvavelmente salutar de um encontro face a face com Paul Ivory —, ela voltava para casa às vezes molhada, sempre com frio. Então, após tirar os sapatos, ficava na cozinha, tentando esquentar-se perto do fogão. O pagamento do empréstimo bancário fizera-a adiar a calefação para o inverno. Ela sabia que muita gente havia queimado peças finas de mobiliário durante o inverno no tempo da guerra. Sabia por que os homens lhe dirigiam a palavra nas ruas. Sabia ainda de muitos atos de destruição e sobrevivência, anteriormente incompreensíveis. Parada na cozinha, pensava: Que país frio! Caro jazia em sua cama gelada e olhava para a clarabóia, que era uma lâmina de gelo amontoado. Ficava na escuridão ou à luz do luar, recordando como, certa noite do ano anterior, chegara do trabalho e encontrara Paul sentado à sua mesa, escrevendo. Lembrava-se de como ele se levantara e a abraçara, perguntando: "Como se sente, encontrando uma luz acesa e alguém à sua espera?" Ele pousara a boca em seus cabelos e dissera: "Eu gostaria que Tertia não existisse". Agora era Caro quem, por conveniência própria, ele desejaria bem distante. O amor não tinha sido inocente. Era estranho que o sofrimento devesse parecê-lo. A mente de Caro perambulava inutilmente no silêncio, ansiando tanto por dar como receber. Uma sensação de perda formava uma tensão cética em seus olhos, seus seios e em seu estômago. Sua mente vagava no silêncio como um navio no disco do oceano que representa o globo. De joelhos, ela disse: — Meu Deus! Eram remotas as possibilidades de misericórdia. Deus era impotente, apenas Paul podia ser misericordioso. Deus nada tinha a propor, exceto uma renúncia que significava a própria desintegração dela. Havia ainda a morte, que não provocava qualquer comoção, mas que de tempos em tempos rompia o silêncio com um reverberar de bronze. A criança Caro, Dora Bell inculcara uma obrigação moral de considerar o mundo abominável e de prontamente falar em dar sumiço em si mesma, em protesto. Esta corrupção era agora reconsiderada pela mulher Caro como, possivelmente, uma tradução barata da verdade sagrada. Para Dora, a morte havia sido uma recorrente e ostensiva recordação da existência. Para Caro, apenas a morte, despercebida, seria suficiente. Como Paul, com quem havia outras semelhanças, a morte tinha sua própria chave e esperava o regresso de Caro, à noite. Seu espectro não apresentável podia ser socialmente claro quando havia visitas — cujas monótonas e racionais trocas existenciais pareciam manifestações de uma normalidade grotescamente desinformada, tão dignas de pena quanto o papel de parede floral em um edifício desmoronado ou o piano intacto em um aposento bombardeado e sem teto. Houve aquela tarde, a tarde de domingo, em que Cartledge telefonou, dizendo: "Você é que tem sorte". Sem dúvida, a insensibilidade era imensurável. A própria Caro havia passeado com Paul em um cemitério e pilheriado sobre suicídios. Jazendo em sua cama não consagrada, ela se perguntava: "Terei vindo aqui para morrer?" Caroline Bell via o quarto se encolher, no início da escuridão. A clarabóia formava uma incisão de cinza mais pálido. Tive um sonho no qual eu jazia em uma comprida encosta. Então, uma grande pedra, maior que as pedras de Avebury, rolou em minha direção. Eu a via chegando e não podia levantar-me, porém não tinha medo. Quando ela chegou mais perto, virei o rosto em sua direção, como para um travesseiro, como se fosse finalmente descansar. Uma dor tão horrível como a morte de alguma outra pessoa. Trazia desordem ao problema. Nenhum problema, a morte sem problemas. Certa vez, durante duas semanas, pensei que estava esperando um filho de Paul e receei contar a ele. O ato da morte não tinha nenhuma existência hipotética — ou, tendo sua hipótese em todos, devia ser sancionado para obter significado. Então, o significado é total, como para nada mais. Um fenômeno conhecido como Black Drop. Um fenômeno não menos do que lógico. Existem condições para morrer, assim como condições para viver. Vénus para esconder o sol. Não me lembro de ter vindo para o saguão. Tão terrivelmente quente! Aquilo era impossível, então? Não mais como a morte de outra pessoa, agora é como a minha própria. Nada mais de pensamentos, a coisa em si, em si mesma. Escuridão, escuridão como jamais tive. Ao voltar do trabalho, certa noite, Caroline Bell encontrou uma carta do major Ingot. Levando-a para cima, colocou-a sobre a mesa, enquanto acendia o gás para seu jantar. Depois, sentou-se para lê-la. Não tirou o casaco, por causa do frio. O major pedia que fosse feito um acordo. De outro modo, as perspectivas eram negras. "Não tenho as suas vantagens", escreveu o major. E "dia após dia, havia uma discussão ou choradeira. Quando não ambos. Era tanto o choro, que jamais se viu igual. Você não acreditaria, não pode imaginar. Ela vivia falando, um dia em morrer, no outro em desaparecer, até quase me convencer a fazê-la cumprir a ameaça, e sem engano". Na miséria, as pretensões sociais do major tinham se dissolvido, ou talvez ele acreditasse que a linguagem sem afetação pudesse atingir Caro. O major não podia imaginar que sua capacidade de observação estava em precárias condições. Caro entregou a carta a Christian, que lhe disse que logo ajustaria contas com o major. — Vou enviar uma palavrinha através da embaixada. Afinal, sempre existem certas vantagens, quando se tem acesso aos canais oficiais. Chegada a primavera, Dora partiu em um cruzeiro para Capetown com uma nova amiga, Meg Shentall, a quem conhecera no Algarve, em um salão de chá chamado O Lusitânia. Em um parque sem canteiros ou regatos, sobre ondulações de folhas de novembro, Caro estava caminhando sozinha. Os galhos estilhaçavam um céu esbranquiçado, a casca de árvores antigas era encordoada como os tendões de um velho vigoroso. Em uma tarde livre, obtida como recompensa por horas extras de trabalho no escritório, ela fora até lá sem objetivo, mal percebendo as ruas que se entrecruzavam em seu mudo delírio privado. No interior do parque, aquela falta de objetividade a deixou inquieta, e ela ficou fisicamente constrangida, com os ouvidos doendo de frio, os pés deslizando em dunas de folhas. O cheiro da terra era pútrido, eterno. As cores desbotadas ofendiam, a melancolia era plena, total: a natureza surpreendida em um ato de apagar. Ela parou na alameda, com os ombros caídos e as mãos erguidas, a fim de proteger as orelhas geladas; imóvel e espiando. Poderia ter sido tomada por uma mulher horrorizada ante algum cruel espetáculo. No entanto, a pessoa solitária que se aproximava lia uma carta e ainda não a tinha visto. Que Paul e Caro devessem encontrar-se dessa forma, por acidente, talvez parecesse um ato calculado de um destino que se encarniçava contra vidas indefesas. O que, em retrospecto, teria sido razoável — uma vez que, ocasionalmente, encontravam-se por acaso quando eram amantes, e o parque era território familiar — naquele instante surpreendia com predestinação. Nisso, ambos eram egoístas e humildes — os dois encarando-se na alameda cerimoniosa, as folhas desviando-se e movendo-se no chão ou caindo inertes, as cascas senis dos troncos, a diminuta claridade alvacenta. Paul entrou no cenário trazendo cor ao ambiente lívido — cabelos, casaco leve, pernas das calças. Caro baixou as mãos da cabeça nua, mas ele já a vira naquela atitude e atribuiu a si mesmo a causa do gesto de aparente terror. Paul estava vindo de um demorado almoço no hotel que dava para o parque. O documento que segurava era um contrato, no qual fórmulas mágicas — "a seguir designado como" ou "pagável em dólares dos Estados Unidos" — garantiam a sua segurança. Penetrando tais defesas, Caro irrompeu como claro ou escuro, elementar. Ele lhe viu duas coisas distintas no rosto: que, tendo, perpetuamente conjurado a visão dele em fantasia, ela podia não ter certeza de que tal homem fosse ele e quase se julgava mentalmente perturbada; e que ela temia exasperálo com um encontro do qual não tivera culpa — a respeito do qual ele poderia lhe dizer: Será que nunca vou ficar livre de você? O próprio silêncio dela era o terror silente de desagradar. Assim como um homem poderia imaginar nua uma mulher vestida, também naquele momento Paul viu Caro quase descarnada, os pulsos descobertos, trêmulos como o crânio de um recém-nascido. O medo ou êxtase dela o atingiram com incomum vergonha, como se o encontro o expusesse em uma colossal mentira, como se aquele encontro, em si, fosse verdade. Observando os dois, poder-se-ia pensar que tivesse sido planejado — a maneira como se encaravam, o homem com o papel enrolado na mão, a mulher esperando. Poder-se-ia imaginar, sem dúvida, um encontro, não a separação da qual eles procuravam tornar-se dignos. Poderiam ter se sentado em um banco ou sobre as folhas úmidas, amontoadas aqui e ali em elevações tumulares. Se eles se sentassem, contudo, haveriam de tocar-se. Alguma reticência, que mal poderia ser considerada honra, impediu que Paul fizesse isso. Ele continuou segurando o contrato, comprimido e agora esquecido — embora, alisado, mais tarde, ele pudesse tornar-se imperativo —, e esboçou um breve gesto. Talvez tenha falado, dizendo: "Caro". Enquanto ela observava, da desesperada extensão de sua agonia. Ambos convergiam de extremos, eram dois comandantes opostos que se encontravam, enquanto suas forças se trucidavam, um encontro não para fazerem as pazes, mas para trocarem uma grande, conhecida e egoística tristeza, antes de tornarem à batalha: um silêncio de dois minutos, seu breve armistício. À distância, uma mulher de capa de chuva parou para libertar um cão de sua coleira vermelha — um esguio cão branco, manchado de negro, que logo correu para eles e ficou parado, ofegante e de pernas afastadas, esperando ordens. Até mesmo aquele animal, para quem o parque mortal significava o paraíso, espiou, sentindo o que não era comum. Embora o cão saltitasse de um lado para outro, eles não se distraíram. O cão latiu um pouco, reprovando todos aqueles que não eram gentis com os animais. Sua dona chamou: — Split! Split! Paul e Caro se moviam lentamente pela alameda, enquanto o cão rodava em torno da circunspecção de ambos, rodeando-a como a uma presa, antes de perder o interesse e disparar em frente, a fim de ser novamente preso à coleira. Eles eram duas pessoas que se conduziam bem em meio ao ultraje, elevando-se acima dele. As árvores se moveram pelos dois, em procissão. De pé, junto aos portões trabalhados porém abertos, Caroline Bell tinha as mãos nos bolsos do casaco, e, se pretendia algo, era ficar no parque, que se tornara um cerne de resistência nesse momento, a sua armadura. De pé, estava novamente cônscia de seus ouvidos, que doíam, embora seu corpo, por outro lado, se houvesse dissolvido em uma ascensão e queda de respiração e sangue. Era mais simples ficar ali e permanecer livre de explicações. O cão encontrara um rato ou uma toupeira morta, e o farejava. Saindo do parque, Paul caminhou pela extensão do Mali e, em seguida, tomou um táxi para casa. Em seu vestíbulo, deixou sobre uma mesa o contrato com as respectivas garantias amarrotadas e pendurou o casaco em um cabide. A sala de estar estava pálida como o céu frio — paredes, tapete e poltronas, tudo na condição desbotada denominada neutra. Duas pequenas telas de Sisley, encimadas por lâmpadas fluorescentes, explícitas como etiquetas de preço, apareciam exauridas de cor como se deixadas ao relento, na chuva. Nesse aposento acinzentado, a esposa de Paul estava sentada num poial de janela e olhava através do que poderia — ou não — ter sido a turvação de lágrimas. — Tertia — disse Paul, com delicadeza bastante para qualquer um, quanto mais ele. 22 Em seu quarto, Caroline Bell mergulhava em longo sonho, recordando vistas, episódios e sensações, ou linhas já lidas, embora não os ponderasse. Era como uma velha, ruminando o longo, longo passado. Começava a ver homens e mulheres como sobreviventes iguais a ela: bons dissimula-dores dos próprios desgostos que, com poucos indícios de pesar, haviam contido, assimilado ou colocado em uso a respectiva destruição. Via aqueles que tinham suportado o pior, nem todos se portando com nobreza ou coerência. Não obstante, involuntariamente todos se haviam tornado parte de alguma afirmação de vida mais profunda. Embora a dissolução do amor não criasse heróis, o processo em si requeria algum heroísmo. Havia o risco de que a resistência pudesse se parecer a uma façanha. O risco já surgira antes. (Aos dezenove anos — quando viajava na Espanha como babá — Caro passara uma semana em Granada, com a jovem e antiquada família inglesa que a contratara. Um amplo balcão guarnecia o hotel em toda a sua extensão, perto do Alhambra, dando para a Sierra Nevada. Diretamente abaixo desse balcão, havia uma acentuada descida para a cidade, no fundo do vale. Nas manhãs cristalinas e nos fins de tarde, os hóspedes do hotel se sentavam em espreguiçadeiras, na presença branca das montanhas, e pediam que lhes trouxessem mantas ou xícaras de chá. Folheavam livros da biblioteca do hotel — onde títulos e autores, há muito esquecidos nos respectivos países, assentavam-se no exílio. O ambiente de sanatório não era dissipado pela proximidade de monumentos mouros e jardins de rosas perfeitas. Era como se houvéssemos morrido e ido para o céu. Ao jantar, no refeitório eduardiano — onde o patrão de Caro às vezes anotava, com seu punho enérgico e saliente, os anos dos vinhos ou os nomes de pratos, podendo também garatujar o número de sua suíte no rótulo da garrafa de sherry —, havia um trio que tocava em uma alcova tão discretamente, que mesmo seleções ciganas se tornavam recatadas. Todas as noites, da entrée à sobremesa, aquele trio composto de piano, violino e violoncelo prosseguia triste e suavemente com Adelaide, Caprice viennois e o Arabeske, de Schumann; ao café, eles reiniciavam, com uma seleção de The land of smiles. Então, um punhado de hóspedes aplaudia, funebremente. A cadeira que Caro ocupava ficava de frente para a violoncelista — uma mulher de uns trinta anos e com uma pele branca que, no peito e nos pulsos, contrastava com o crepe preto das roupas, sugerindo o palor do torso sob um vestido volumoso como o traje de uma freira. Aquela mulher estava visivelmente passando de jovem madona a devotada solteirona, em calma renúncia. De vez em quando, seus olhos escuros encontravam os de Caro melancolicamente, com distinta ternura, parecendo firmar um elo. Como que declarando: Eu e você não fazemos parte dessa luta enervante e degradante. A cada noite, a suave confiança da violoncelista na disposição de Caroline Bell para renunciar às suas reivindicações frente ao destino lançava sua mortalha. Mais tarde, no quarto do hotel, a jovem se contemplava ao espelho e tentava descobrir por que havia sido escolhida como alma gêmea. Em certos estados de ânimo, uma reação deprimida exibia a perspectiva de décadas solitárias, castas e ineficazes. Em outras ocasiões, uma imagem vital e colorida no espelho obliterava a pálida aquiescência da violoncelista e a ameaça daquele corpo de cera, em seu escuro envoltório.) Em certa manhã de primavera, ainda muito cedo, o telefone tocou na mesa-de-cabeceira de Christian Thrale, e ele ficou sabendo que seu pai sofrera um ataque cardíaco brando. Com perfeita compostura, sua mãe forneceu detalhes, enquanto Grace se apoiava em um cotovelo e uma criança despertada chamava do quarto vizinho. — Pegarei o das oito e vinte — disse Christian. Sefton Thrale jazia em um leito de hospital, em Winchester. Sua firme expressão empalidecera, o maxilar entalhado era um queixo barbado, a respiração, um trabalhoso suspiro. Aos pés da cama, a esposa ouvia um médico dizer: — Há um leve comprometimento. Era como se o doente fosse um objeto avariado em uma loja, com o valor agora diminuído. Havia um anteparo na beira da cama, semelhante a uma pequena cancela. Ele viu o teto, o biombo branco; sobre uma mesa, uma tintura vermelha de anémona. Charmian aproximou-se e colocou a mão sobre a dele. — Você vai ficar bom — disse. Os olhos dele fizeram um esforço, era uma criança amedrontada, tentando ser corajosa. O ímpeto da existência enfraquecera, e ele podia estar indicando que, afinal, tudo aquilo tinha sido uma impostura. — Christian logo estará aqui — disse ela novamente. Ele sabia quem era Christian, mas o nome o atingiu como uma estranha escolha. Lembrava-se de todos indistintamente — um borrão de Christian, Grace, Tertia e muitos outros, de quem sua esposa era o representante autorizado. Todos eles tão afortunados, comparados a isto. O homem rico em seu castelo, o pobre em seu portão. Quando ele acordou da vez seguinte, Christian já chegara. Sefton Thrale recordava que aquilo lhe fora prometido e ficou confiante por sua capacidade de poder lembrar-se. — Eu sabia que você. . . — começou, terminando em uma longa exalação — ia chegar. Não obstante, Christian entendeu que seu pai pretendera dizer "eu sabia que você viria", e ficou comovido. A esposa dele permaneceu aos pés da cama e lhe tocou delicadamente o contorno dos pés, para em seguida cobri-los com uma colcha. Nos dias e semanas seguintes, o velho que ele agora definitivamente se tornara recuperou-se bastante, fez progressos com a terapia e começou a distinguir, entre as enfermeiras, aquelas que apreciava e as que detestava. Quando os médicos chegavam, ele expunha pequenas críticas e algumas queixas. Como uma bola lançada a grande altura, deu seus últimos e reduzidos giros. Em função de sua própria fraqueza, ou para compensá-la, ele começou a notar sinais de envelhecimento em Christian — ombros encurvados, indícios de um ventre que se avolumava, e um gesto que desenvolvera, de passar a mão pelo rosto e pela testa, como se afastasse uma teia de aranha. Sefton Thrale ignorava por que tais detalhes o deixavam satisfeito, mas os observava com indiferente auto-indulgencia, não se esforçando em ignorá-los ou achá-los tocantes. Os médicos tinham dito que tudo quanto o divertisse lhe faria bem. Na época de Pentecostes, ele já conseguia escrever uma nota ocasional aos amigos. Sua caligrafia, que sempre fora minúscula, aumentara ante aquele primário florescer de realidade. Ele não ponderava os próprios erros nem pensava nos inimigos com tolerância: a esta altura, admitir qualidades em seus adversários seria reconhecer o erro cometido em relação a eles. No verão, permitiram-lhe que voltasse para casa, e, em Peverel, foi contratada uma enfermeira para acompanhá-lo à noite. Foi ela que o encontrou morto, em certa manhã de setembro, quando ele parecia ter superado a fase crítica. Os obituários não foram tão extensos quanto poderiam ter sido, mas houve um notável funeral e, de Londres, chegaram pessoas de trem para acompanhá-lo. A cerimônia, como uma boa baldeação, esperou pela chegada do trem. Houve música, houve flores. A congregação ficou de pé, ajoelhou-se e cantou. Um diminuto e jovem ministro atraiu uma razoável dose de atenção com um texto dos Gálatas, bem como dos inevitáveis Coríntios. Durante outras partes do ritual, observou-se que o arco do coro pertencia ao final do período normando, um exemplo primitivo na Inglaterra, e também foi notada uma nota de lavagem a seco ainda pregada ao casaco de um empregado que indicava os lugares na igreja. A mãe de Tertia, com alguns anos de viuvez, sentou-se na parte central de um banco de frente: o cinzento torreão de seu chapéu com véu parecia lanternas de alguma solene abadia ou catedral. — "Mesmo assim, nós, quando crianças, estivemos em servidão, sob os elementos do mundo." Com esse texto, a vida de um cientista foi engenhosamente panegirizada, enquanto Grace Thrale evocava, sonhadora, a servidão infantil de incêndios nas matas, secas, o Murrumbidgee inundado e o frio vento do sul fustigando Sydney, após um dia escaldante. Ela segurava a mão enluvada da sogra, sabendo que Charmian Thrale lhe permitia fazer isso por civilidade e também para não parecer ingrata. No entanto, aquilo poderia dar uma idéia de condescendência, inclusive ser uma forma de mostrar que o equilíbrio afinal fora rompido. Grace pensou em Sefton Thrale com leniência; seu sogro havia sido afável com ela, na medida em que o temperamento dele o permitia. Ultimamente, Grace via seu filho pequenino — Hugh, o segundo — pegar a bengala do avô, quando o velho se sentava debilmente em sua poltrona, para girá-la, balançá-la ou atirá-la, em inocente brincadeira. Uma pontada de remorso era dirigida mais a si mesma ou à humanidade que a Sefton Thrale, desaparecido tão abruptamente. Agora ele estava com seu amor, em sua fria sepultura. Na extremidade do banco, pressionada contra uma multidão em torno de um pilar, Caro ficara recordando Robert Browning: "Há um grande texto nos Gálatas, Que, se nele tropeçarmos, ocasiona Vinte e nove diferentes condenações, Uma garantida, se falhar a outra". Tais condenações eram distintamente dadas como adultério, fornicação, luxúria e semelhantes, e ela havia praticado todas. Era uma curiosidade, quase um pensamento indolente, saber-se tão grande pecadora. A perdição carecia de peso, comparada à laceração do amor perdido. Ao lado disso, a morte de um velho era mera distração. Ela premiu a face contra o arenito gelado, como fizera certa vez na infância, inclinada para uma placa de faiança, em egoísta desolação, sem saber que a mudança estava ao seu alcance. "Existem também corpos celestes e corpos terrestres: mas a glória dos celestes é uma, e outra, a glória dos terrestres. Há uma glória do sol, e outra glória da lua, e outra glória das estrelas: porque uma estrela difere em glória de outra estrela." A congregação levantou-se pela última vez, e Sefton Thrale havia superado o pior, para sempre: sua mortalidade tudo mitigava, pelo menos por algum tempo. Pobre velho! As críticas de Ted Tice agora pareciam demasiado exigentes. A morte podia colocar facilmente os vivos em erro, por mais corretos que eles fossem. As costas de Christian eram as costas do homem que assume seriamente sua responsabilidade. Em louvável controle, era também visto por seu louvável esforço: já, na postura e no jeito, deixara de ser um filho. O professor Thrale deixou uma herança maior do que qualquer um teria previsto. Embora sua viúva tivesse ficado com o usufruto de Peverel enquanto vivesse, além de um rendimento adequado, virtualmente tudo foi legado a Christian, que, dessa forma, ficou em excelente situação financeira. Explicando o testamento a Grace, ele disse: — Acho que devemos conservá-lo para nós. Christian aludia ao conteúdo legal, mas poderia ter sido interpretado mais explicitamente. Terceira parte O Novo Mundo 23 Por toda Londres as jovens se levantavam. Vestiam pijamas listrados, floridas camisolas Viyella, camisas de algodão, que elas mesmas costuravam e embainhavam confusamente, ou de puro náilon, a que fora acrescentado um velho cardigã para aumentar o calor. Eram jovens que empurravam as cobertas da cama para um lado e buscavam os chinelos. Atavam o cinto dos robes e enfiavam grampos nos cabelos, introduziam a moeda no medidor e colocavam a chaleira sobre o bico de gás. As que moravam juntas empurravam-se umas às outras para fora do caminho, dizendo: "E ainda é terça-feira". As que moravam sozinhas bocejavam e ligavam o rádio ou a televisão. Algumas diziam preces; uma cantava. Seria difícil dizer o que elas possuíam menos — passado, presente ou futuro. Seria difícil dizer como ou por que suportavam aquilo, o quarto gelado, a caminhada na chuva até o ônibus, o escritório onde não tinham perspectivas e nenhum divertimento. Fins de semana lavando o cabelo e roupas de baixo, indo ao cinema em pares melancólicos. Para algumas, aquelas que, em outras circunstâncias, jamais fariam aquilo, era o seu destino, decretado por mamãe, papai e uma falta de fundos ou de sentido empreendedor. Outras tinham vindo do fim do mundo para fazê-lo — haviam chegado de Auckland, Karachi, ou Jo'burg, tendo economizado durante anos apenas para tal finalidade, tendo espremido ou bajulado os pais de rostos marcados pelas lágrimas, para conseguirem algum dinheiro. Nem todas eram muito novas, mas todas — ou quase todas — ambicionavam um vestido novo, um namorado e a vida doméstica subseqüente. Entretanto, nem duas delas eram idênticas, o que significava uma vitória da natureza sobre as ciências de condicionamento, publicitárias e de comportamento — nenhum triunfo, mas uma conquista contra as probabilidades. Naquele Ano-Novo, Caroline Bell estava entre as mulheres que despertavam. Caro tinha sido aprovada em outro concurso e se mudara para outro apartamento, onde havia tetos altos e correntes de ar devido às grandes janelas. Ao saber do endereço, Christian comentara: — Eu não sabia que houvesse algo barato por ali. — Fica em cima de uma loja — explicara Caro, para tranqüilizá-lo. Pela primeira vez, ela possuía uma mesa e duas cadeiras que lhe pertenciam, bem como um tapete indiano cor de ouro. De manhã, ela estava fechando uma das janelas, puxara-a para baixo e pousava as duas mãos nos fechos. No peitoril interno havia um salpico de fuligem e pingos de tinta branca. Um galho florido de marmeleiro, trazido por Ted Tice na semana anterior, fora posto em um vaso de vidro. Caro permanecia de pé à sua janela do segundo andar, vestindo um robe verde e pensando nas mulheres, das quais era uma — aquelas mulheres despertas, mas ainda sonolentas, que se levantavam por toda Londres. Do outro lado da rua, um homem na calçada ergueu os olhos para ela; olhava da mesma forma rápida e fixa que ela espiava para baixo. Ele parecia ter atingido seu destino, e poderia ser uma personagem de algum conto de espionagem, montando guarda a uma casa fatídica: um homem corpulento, alto, imóvel em seu abrigo azul-escuro, de pé, com uma bengala negra, os pés afastados e a cabeça descoberta erguida, de cabelos escuros, confiante em que a casa — ou o mundo — se renderiam ao cerco. Caro se inclinou, ele olhou. Não era grande a distância entre o corpo arqueado dela e o daquele homem inexorável. Os olhos de ambos encontraram-se, como poderia ter acontecido em um aposento. Houve uma imobilidade momentânea e complexa, até que, com uma mostra de normalidade, Caro ergueu as mãos e rompeu o feitiço. Ele fez uma mesura graciosa, como se fosse originário de alguma nação galante, a França ou a Itália. Reiniciaram seus movimentos interrompidos, cruzando ruas ou aposentos. Os pés descalços de Caro sobre o tapete amarelo, seus dedos finos tirando um vestido de um cabide; a mão larga do homem erguida para um táxi. Todas as jovens de Londres estavam arrepiadas, esperando o ônibus. Algumas haviam tricotado agasalhos de lã marrom que não lhes assentavam, com luvas da mesma cor piores ainda. Outras seguravam um ovo cozido, ainda quente, dentro da luva — para esquentar a mão e ser comido frio na hora do almoço, no lavatório das mulheres. Àquela hora, Londres inteira estremecia, esperando o ônibus. No escritório de Caro, nesse dia havia uma delegação da América do Sul. Quatro exilados tinham ido interceder por seus companheiros aprisionados: que uma mensagem do governo fosse enviada, apenas uma mensagem, propondo clemência. Pedidos de tal natureza não eram incomuns, quando havia execuções programadas em outras terras. O incomum era que a mensagem fosse despachada. Desta feita, havia quatro solicitantes — ou peticionários — e um homem dos Estados Unidos, que lhes respaldava a causa. Apenas eles cinco e Caro foram pontuais na sala de reuniões. O inverno do norte esbatia as faces de verão dos quatro exilados como lívida doença; sem traços característicos, eles eram os mais sujeitos àquela atual contingência. Mais tarde, poderiam tornar-se diferentes pela eloqüência, mas agora permaneciam como um amálgama, uma equipe. Suas roupas eram demasiado leves e excessivamente coloridas, muito americanas, para lhes serem favoráveis ali. Apenas o homem de Nova York estava bem-vestido, com um abrigo azulescuro aberto sobre um bom terno de flanela. Era o homem da calçada da Mount Street. Ele cruzou a sala para deixar o abrigo e a bengala em uma cadeira vazia. Disse a Caro: — Esperemos que seja um bom augúrio. De novo, ele mostrava uma graça natural, embora não de uma graciosa nação. Oito homens iam ser enforcados. Ou fuzilados, não estava bem claro. Dois funcionários agora entravam na sala, com seu ar de meticulosa benevolência, pressagiando recusa. Para sermos absolutamente francos, não achamos que a intervenção do governo de Sua Majestade pudesse ser útil. Por outro lado, temos que levar em consideração a longa e singularmente íntima cooperação entre nossas duas nações. O americano declarou que justamente aí residia a questão. Era o porta-voz, um homem público que criara algo — talvez uma fundação ou uma orquestra, um museu, podendo ainda ser tudo isso. Residira durante algum tempo no país latino em pauta e, recentemente, fora aconselhado por via oficial a não voltar para lá. Deram-lhe atenção porque era rico e não provinha de um país turbulento como o dos outros peticionários — ou os próprios auditores. Em vista disso, mostraram-lhe consideração, embora ficasse claro que ele não tinha autoridade. Quando descreveu certas torturas, os dois funcionários ficaram desconcertados, retraídos e fascinados, como se estivessem discutindo o ato do amor em público. Os quatro companheiros do indivíduo começaram a tornar-se discerníveis, novamente coloridos pelo sentimento: velhas fotos em sépia, cujo brilho pouco natural havia sido aplicado externamente. Um deles era baixo e atarracado. Outro, exaurido e idoso — inclinado para diante a fim de oscilar o corpo, como se sentisse dor. O terceiro apresentava feições andinas fortemente coradas e dentes em mau estado, inferiorizados por um pequeno molar de ouro. O quarto, que era alto e bem-apessoado, tinha cabelos crespos e arruivados, com as densas sardas de uma extravagante pigmentação. Seus compatriotas se voltavam para ele, tornando-o um líder. Esse homem sardento possuía vastas propriedades —■ lavouras e pastagens. Em seu caso, uma possibilidade de interesse próprio confortava seus ouvintes funcionários, introduzindo um elemento de racionalidade. Ted Tice observara certa vez que um ato independente de humanidade é o que menos a sociedade se pode permitir. A distinção naqueles homens era o fato de pedirem em benefício de outros. Isso lhes emprestava uma autoridade que as autoridades jamais teriam. Aquele que se inclinava para diante tinha um enorme e cintilante alfinete na gravata florida e seus dedos alisavam aquela espécie de amuleto. Entre os lábios, com um cigarro apagado, havia um lápis. Os dois olhos apresentavam uma secreção remelosa, como um velho cão. Caro sabia que não havia solução para aquilo. Já ouvira na véspera: é algo inteiramente fora de questão, permitiremos que eles se apresentem, não haverá um fim para isso se interferirmos em assuntos internos, uma interferência provocará mais mal do que bem. Houvera ainda um telefonema para Washington, que resultara na resposta: "Contraproducente". — Qualquer perda de vida é sempre algo a ser lamentado. Se pelo menos estivéssemos em condições de ajudar. . . Sou franco em dizer-lhes que lamento muito sua situação, muitíssimo. Falo de um ponto de vista estritamente pessoal. Não obstante, devo indicar-lhes que, quanto às acusações existentes de abusos físicos, naturalmente nada pode ser verificado. — Mesmo se apresentarmos um homem sem os testículos? — Não irá convencer-me perdendo a calma, sr. Vail. O americano estava tranqüilo. — Não tem o direito de censurar-me. E eu tenho o direito de ficar aborrecido. Ele tornara presente algo mais que orador e ouvinte; algo mais que meros homens. E se as famílias dos condenados fizessem um apelo pessoal? Infelizmente, o parecer era de que isso não faria a menor diferença. Não correra a notícia de que o papa. . . ? Evidentemente, aquela era uma opção que Sua Santidade poderia escolher. Não recebemos qualquer indicação em tal sentido. Soubemos que o secretário-geral das Nações Unidas cogitava numa intercessão. — Sem dúvida, vocês estão brincando. Um silêncio, exato e jurídico, estabeleceu que a sentença havia sido pronunciada. Você será conduzido deste tribunal a um local de execução. O latino que se inclinava tornou a sentar-se, como que se recuperando de um desmaio ou tontura, e a impressão de uma convulsão era reforçada por uma seca nódoa branca em cada canto da boca e pelo lápis alojado entre os dentes. O peticionário atarracado tinha o rosto na claridade, o que tornava visíveis marcas de varíola e vasos capilares. Os quatro se tornaram inexpressivos no silêncio irresistível. E a manhã terminara. Os quatro exilados partiam para outro último e desesperançado encontro. A realidade deles intensificava-se com a derrota, destacando-os conclusivamente dos dois funcionários fictícios que os tinham recebido. Marcas variólicas e alfinetes de gravata cintilantes haviam sido investidos com certa grandeza ou, pelo menos, reservavam-se para uma exposição de maior importância. Ao escoltá-los até a saída, um funcionário confidenciou, em voz baixa. — Eu desejaria ser Deus. Pronunciou frases semelhantes, para depois, no lavatório dos homens, lavar as mãos e enxugá-las em uma toalha de papel. O homem de Nova York foi detido por um funcionário superior: — Tenho certeza de que houve um entendimento à hora do almoço. — Um desentendimento, então. Desta feita, a consternação foi real. O almoço fora na companhia de um membro do gabinete. — Se quiserem ter a gentileza de esperar, enquanto dou um telefonema. . . Por favor. Os peticionários não haviam suplicado pela vida de seus mártires com tanta despreocupação. Não, infelizmente ele estava atrasado para outro compromisso, e foi embora. Os documentos tinham que ser guardados em uma pasta vermelha, e Caro foi indicada para isso. Ficou também subentendido que deixaria a sala em ordem, com seu instinto de dona-de-casa, que, aliás, nela era mínimo. Caro ficou de pé junto à mesa, com as mãos úmidas apoiadas em sua superfície, e teria soluçado ruidosamente, se não fosse o inextirpável receio das atitudes grotescas de Dora. Naquele lugar, a incriminação e a infelicidade próprias de uma velha solteirona cresciam nela; estar sempre ansiando por algum acesso de decência que jamais ocorreria naquele contexto assemelhava-se a uma frustração sexual. O fato de seus pensamentos acompanharem quatro homens pouco simpáticos em uma rua fria era uma quebra de contrato com aquele lugar, da mesma forma que aconteceria com um soldado em luta que demonstrasse uma afeição pessoal e inofensiva pelos que combatem em linhas opostas. Havia regras de combate, pelas quais a vitória era dos que podiam apresentar-se sem nenhuma angústia na realização. — Esqueci isto aqui. Era a bengala do homem. Ele deixou a porta maciça se fechar às suas costas, e ficaram os dois frente a frente, na atitude do começo da manhã. O homem caminhara um bom trecho, antes de dar por falta da bengala, e trouxera ar fresco consigo. Embora tocando a face com os dedos, Caro mal ficou envergonhada, porque o episódio matinal tinha sido mais vergonhoso do que lágrimas. O homem corpulento sentou-se na borda da mesa e o frio se evolou de suas roupas de boa qualidade. As mãos amplas ficaram pousadas nas coxas. — Podemos ir a algum lugar, fora daqui? Estavam passando pelo trânsito e o barulho de uma rua. O restaurante ficava no andar de cima, havia um pub no térreo. Era um lugar que sempre estava cheio, porque turistas vinham observar o governo comendo. Está com sorte, senhor, tivemos uma desistência. Ele poderia estar acostumado a sorte daquela espécie. Sentaram-se junto à janela, em uma ligeira faixa de sol, e Caro pensou: Agora ele me decepcionará. Agora ele dirá: Oh, também posso ver o lado de vocês neste assunto. — São uns pobres coitados — disse ele. Estendeu-lhe o cardápio, que era uma folha estreita datilografada. Toda a sala estava ocupada por homens, com exceção de Caro. — Quando é que morrerão? — perguntou ela, referindo-se aos prisioneiros. — Dentro de um ou dois meses. — Quase pior foi o pânico sobre o almoço — disse Caro. — Ou melhor. Ele sorriu. O rosto de mastim tinha rugas nas pálpebras e na boca, agora em descanso, mas que poderiam ser postas em uso. Seus cabelos escuros, já ficando grisalhos, caíam soltos pela testa. O corpo, demasiado grande e indolente para a cadeira pequenina, era o de um homem ativo, que aprendera a esperar: uma incongruente paciência que talvez preocupasse quem procurasse saber o que poderia ser reprimido. — Há homens que passam a vida dizendo a si mesmos que chegará o momento em que demonstrarão de que são feitos — disse ele. — Então, o momento chega e eles demonstram. E ficam o resto de seus dias explicando que aquele não era o verdadeiro momento nem o verdadeiro eu. — Pelo menos, poderiam pensar quão cedo, historicamente, essas coisas se retraem. Como meus colegas de hoje, por exemplo. — 0 temperamento britânico, em particular, nunca foi de especulação. No final, Arquimedes prosseguiu com seu teorema, porém Drake continuou atirando bolas de madeira. — Alguns homens — ou muitos deles — comentou ela — tanto têm de Arquimedes como do soldado que o matou. Ele lhe tomou o cardápio. Era um homem com pouco mais de quarenta anos. Uma veia encordoava-se no dorso de sua mão. Havia o relógio de pulso, um punho de camisa listrada, a manga de flanela cinzenta. Ele a viu acompanhar tais detalhes, que Caro ponderou tão cuidadosamente como se vestissem um braço projetado de uma parede desmoronada: pistas para o indescoberto. Chamava-se Adam Vail. — Como é seu nome? — perguntou ele. — Já conheço seu endereço — acrescentou, pronunciando a última palavra, "address", à maneira americana. Os dois funcionários da manhã tinham entrado, inevitavelmente, e estavam comendo arenques miúdos. — Eles a culparão, durante o almoço — disse Vail. Já se podia vê-los fazendo isso, acima das fatias de peixe fino. Não desejando acreditar em nenhum controle moral, ficavam aliviados ao atribuírem algo impudico a alguém. Da perspectiva do arenque, os braços de Vail em torno da borda da mesa pareciam oferecer um abraço, no qual jazia Caro. Aqueles dois homens estariam comentando que ela dormira com ele, sendo capazes de anotar aquilo em uma ficha, para assim acalmarem os próprios sentimentos. Cônscios da imaginada intimidade lançada sobre ambos, ele e ela sorriram francamente, e sua intimidade aumentou. No hotel cujas extremidades de chaminés podiam ser vistas das janelas de Caro, Adam Vail tinha dois grandes e sombrios aposentos com pesadas cortinas. Na sala de estar havia jacintos colocados em um espesso vaso redondo de vidro, sobre uma mesa baixa, ao lado de um sofá semelhante a um zepelim de brocado. Cartas jaziam empilhadas em uma secretária, juntamente com catálogos de pinturas em cores lustrosas e um monte de embrulhos ainda por serem abertos. Uma tela, em moldura trabalhada, pendia entre as janelas. — Um negociante de quadros espera que eu acabe gostando deste. Você é a primeira a percebê-lo, pois todos o consideram parte do mobiliário do hotel. Não estou bem certo se sua nota seria boa ou ruim. Postou-se junto a uma mesa sobre a qual havia copos e garrafas em uma bandeja e ficou observando Caro se mover pelas sombras dispendiosas do aposento. Viu a manga vermelho-escura acentuarse à luz da lâmpada e a corrente em torno de seu pescoço. Vail a vira duas vezes, na janela e no escritório, solitária, familiar, mas não resignada. Mentalmente, reencenou o momento em que erguera os olhos para a janela, atraído pelo ramo florido no vaso. Ela não possuía nenhum setor desocupado de sentimento objetivo. Vail supôs que os homens achassem irritante ou formidável aquele seu ar de quem aguarda algum evento solene, que talvez fosse diverso do enfoque que imaginavam. — É um quadro sem expectativa — disse ele. Ao observá-la, pensava como em certas grandes telas cada partícula de luz é usual, rotineira, sendo um milagre ao mesmo tempo, o que nada mais é senão a precisa verdade. Acrescentou: — Certas pinturas transmitem a própria expectativa da vida. Ponderou que a maioria dos homens dificilmente ousaria tocá-la, ou apenas o faria com raiva, porque ela não simulava que coisa alguma fosse casual. Em decorrência de tal idéia, era pouco lisonjeiro o que, aparentemente, ela desejava pôr de lado. Ele despejou bebida nos copos e falou sobre o quadro. Entreabertos na fala, seus lábios eram dessemelhantes: o inferior, protuberante e conclusivo; o superior, fino, delicado e ponderado, a ponto de sugerir fraqueza. O que, sem dúvida, era melhor que o contrário. Caro Bell sentou-se no estofado adamascado, segurando um copo de vodca, com o homem Vail a seu lado. Os dois estavam com os pés espichados na direção das flores e da mesinha baixa, em calçados de idêntico e fino couro marrom. Era de notar que ambos tinham excelentes calçados. — De que está rindo? — Da democracia dos sapatos. A lâmpada desenhava pregas aveludadas na manga e no colo de Caro. Através da porta, a luz baixa mostrava chinelos alinhados sobre um pequeno tapete branco. Haveria um lençol cuidadosamente dobrado para trás, um bom robe à espera sobre a colcha, livros novos ao lado de uma cama: tudo isso uma forma de liberdade, desde que ele assim o quisesse. Mesmo quando Vail girava o corpo para pegar um lenço ou apanhar cigarros, era um movimento não-inglês, que sugeria energias, opiniões, conceitos, afinidades e panoramas novos. Nele havia uma alteração de tempo, o reacertar de um relógio mental. Tudo o mais era aquele tempo de ontem. Em breve, ele e ela desceriam para o jantar, como hóspedes de uma casa de campo. Ele sugeriu que no domingo dessem um passeio de carro, caso ela estivesse livre. — Um giro, como vocês costumam dizer, não? Acha que me sairei bem, dirigindo pelo lado errado destas estradas? — Claro que sim. E ninguém mais diz "giro", há anos. Exceto, possivelmente, Sefton Thrale. Ela concordou — gostaria de visitar Fens. Havia muito desejava fazê-lo. O vaso de flores estava sobre um telegrama aberto em cima da mesa. Através da água, o texto impresso aumentava, amplificado desequilibradamente: "E EXECUÇÂO INEVÍ-tável", como uma lição de declamação. — Letras pequenas ficam maiores, se vistas através de um vaso com água — disse Adam Vail. — Foi Séneca quem descobriu isso. Um conceito básico da óptica. — Acrescentou: — Séneca está repleto de boas coisas. Pegou o vaso pela borda e o afastou. As letras recuperaram sua insignificância: insetos impotentes, que haviam aterrorizado quando sob um microscópio. Havia a foto de uma adolescente na cômoda de Vail, no hotel. — É minha filha — explicou ele. Notava-se a semelhança entre ambos, porém não se davam bem. — Josie me responsabiliza pela morte da mãe. A acusação geralmente toma outros rumos com a idade. Pelo menos, assim espero. — Em uma carteira, havia a foto de uma mulher magra, vestindo calças compridas e uma blusa de malha. — Minha mulher suicidouse. Minha mulher tirou a própria vida — acrescentou, como em uma rima1. — Sente-se culpado? — Ela vivia dizendo isso, quero dizer, que morreria. Teve todo tipo de tratamento. Finalmente, tornou-se difícil saber como manejar a situação. Como Dora: Eu sempre posso morrer, acabarei morrendo. — Ambos os lados saem perdendo — comentou Caro. — Teve alguma pessoa chegada, nesse mesmo caso? — perguntou ele. Certa vez, ele dissera que possivelmente seria comentado que os dois se viam. 1 No original: "My wife took her life". (N. da T.) — De qualquer modo, farei com que não seja prejudicada, em nenhum sentido. — Quem nos vigiaria? — Meus conterrâneos e os seus. Porque hoje em dia um homem sem qualquer interesse pessoal é considerado um revolucionário. — Você simplesmente se manteve fiel aos princípios proclamados por eles. — Aí está o que significa uma moderna revolução. — Naquela primeira manhã, quando você estava na rua, parecia uma figura de contos de espionagem. — Se puderem, eles transformam tudo em contos de espionagem. — Por que precisa de bengala? — quis saber ela. — Tenho o hábito de levá-la quando vou a lugares perigosos. Vail estendeu-lhe a bengala e o seu peso surpreendeu Caro, como um opinião inesperada. Ele a tomou de volta e pressionou o punho, a fim de mostrar a lâmina. Então, aquele homem de paz saía armado com uma espada! Havia a foto de uma casa caiada, luzindo ao sol: limoeiros e vinhedos. À distância, uma cidade branca, manchada pela pobreza e pelo tempo. — As ilhas Lipari. — Oh, então é assim que se pronuncia. . . — Quando Josie era pequena, chamava-as de ilhas Slippery1. — Ele recolocou a foto no lugar. — Você verá as ilhas. — Depois perguntou: — Há mais alguém que a ame? —Está com sorte, senhor. Houve uma desistência. Nada teria sido mais sedutor ou imprevidente que a receptividade daquele homem, sua generosidade de espírito: farei com que não seja prejudicada, em nenhum sentido; talvez algum conhecido seu tenha passado por isso; você verá as ilhas. Aquela era uma noite de extraordinário silêncio. 1"Ilhas Movediças", em inglês. (N. do E.) —Que horas são? Caro tinha um relógio ao lado de sua cama. — Quase quatro. — Então, eles já se foram. No dia seguinte, haveria um breve parágrafo, em uma folha interna de jornal: EXECUÇÕES LEVADAS A EFEITO. Caro deixou a cabeça cair no ombro de Vail e respirou fundo, para que seu seio pudesse encher a palma dele. — O que você pensava — perguntou ela —, naquela primeira manhã, na rua? — Previa tudo, menos você. 24 Christian Thrale acreditava-se possuidor de uma sensibilidade especial, no tocante a pinturas. Nas galerias em que a arte havia sido sabiamente institucionalizada, ele caminhava e fazia pausas, como todos os demais, porém acreditando que tinha um olhar mais penetrante que os outros. Então, quando eles seguiam em frente, ele continuava parado, visivelmente absorvido além do que seria normal. Ele também considerava que havia uma maneira inglesa de apreciar obras de arte (e nisso estava absolutamente certo). Não comentava o fato, mas o sentia. Termos como "a Vénus Rokeby", "o vaso Portland" ou "os mármores Elgin" para ele tinham mais sentido que o significado passageiro de propriedade. Eles sumarizavam uma custódia adequada e pareciam estabelecer uma situação desejável. Christian não dava muita importância a coleções particulares, exceto quando a magnitude as tornava impessoais. Embora se sentisse mais feliz — ou mais seguro — nos grandes museus, de vez em quando comparecia, como costumava dizer, a uma exposição de empréstimo, mas isso era raro. Quando — recusando o catálogo — ele entrou nas salas atapetadas de uma galeria privada, em um sábado de frio cortante, estava fugindo a um hábito, do mesmo modo como tinha, no Albert Hall, oito anos antes, atraído Grace para sua órbita e modificado várias vidas. Novamente se tratava de uma questão de trabalho num fim de semana, a visão de um poster, e ele sozinho. Agora, o próprio poster tinha sido intitulado Retrospectiva. Uma lembrança vaga de tudo isso lhe passou pela mente quando avistou Caro, cuja súbita materialização tanto teve de surpreendente quanto de inevitável. Caro continuava ali dentro com seu casaco vermelho e estava com as mãos frias enfiadas nas mangas. O cabelo lhe pendia até os ombros, em indecorosas madeixas e anéis negros, os lábios estavam pintados de escarlate. Sustentava o peso do corpo em um dos pés, como uma dançarina em posição, e atrás dela se postava um homem alto e forte que, a julgar pela estabilidade, poderia ser seu acompanhante. (Por algum tempo após o evento, a recordação de Christian produziria a imagem de Caro, em pé daquela maneira, com o homem Vail às suas costas, pronto para erguê-la.) Na tela diante deles surgiam as cabeças de duas mulheres, ardentes, uma encarando a outra, mas não à mesma altura. — Pois é isto, então — dizia Adam Vail, naquele momento. Ele emprestara o quadro, que era propriedade sua. Christian os observava do outro lado da sala. Permaneceu paralisado, tolhido pela imobilidade deles. Quando se moveram, também ele foi liberado e se moveu na direção dos dois. Adam Vail inclinou-se para diante, a fim de ver o quadro. — Acho que lascaram a moldura. Enfiou a mão no bolso superior, procurando os óculos. Havia gesso nos pontos em que deveria existir dourado. Vail pousou o indicador no lugar e imediatamente aproximou-se um empregado. — Por favor, senhor, não é permitido tocar nos trabalhos. — Quando Vail recuou, ele acrescentou: — Desculpe-me, senhor, mas é assim que acontecem acidentes. Ao vê-los novamente sozinhos e sorrindo, Christian chegou mais perto. Então, sentiu-se em desvantagem. Geralmente, via Caro em sua própria casa, onde ele ocupava — não querendo aprimorar demais a descrição — o assento do motorista. Agora, antes mesmo de abrir a boca para falar, foi tomado de uma sensação de intrusão ou irrelevância. Perguntou-se se isso se devia apenas ao ato da abordagem, não querendo atribuílo ao poder da beleza de Caro naquela manhã. Em um esforço para estabelecer o domínio, beijou Caro — o que não era tão necessário, e ele sentiu que isso não passara despercebido a ela. O fato de que o homem que estava com ela fosse americano tampouco proporcionou a costumeira vantagem. Vail não falava ruidosa ou didaticamente sobre si mesmo, nem fazia gestos deselegantes, mesmo quando provocado. Tal compostura de fala e mãos alertou Christian contra qualquer usual limitação de sua postura em conversa: a honestidade de Vail receberia transparência em retribuição, a qualquer preço para aquele que lhe respondia. Por tudo isso, cresceu nele uma necessidade de expandir-se, ao evocar uma recordação de Caro, anos antes, quando ela o compelira a mostrar-se à altura de um de seus momentos: em realidade, acontecera em uma tarde de verão, quando ele levara flores amarelas para Grace. Agora, os três estavam voltados para a pintura, e em pouco Christian se absorvia inteiramente, como era seu hábito, indo além do normal. Caro ia falar, quando ele disse — e a frase foi contrária ao melhor julgamento dele: — Claro, vocês jamais conseguirão fazer-me gostar desta série. Evidentemente, eles nem haviam tentado. Após um momento, Christian acrescentou: — Esta peça tem autoridade. Sabia ter dito "autoridade" porque o americano lhe trouxera essa palavra à mente. Havia outros americanos na galeria, elevando vozes dogmáticas, perambulando e fendendo o ar com mãos desconfiadas, as feições contorcidas por uma imprudente veemência. Contudo, tal não era o caso deste outro, que nem mesmo o aceitara como antagonista. Christian agora recordava ter ouvido o nome de Adam Vail e sentiu uma rápida, injustificada angústia, como se Caro houvesse levado a melhor sobre ele. Lembrou-se de um artigo de revista onde Vail, ao lhe perguntarem se se julgava um homem-mistério, respondera: "Não mais nem menos do que qualquer outro". A apresentação no catálogo da exposição havia sido escrita por um crítico de peso — ou importante, ou brilhante. Caro leu uma frase e perguntou: — O que significa? Vail olhou por sobre o ombro dela. — Eles acham que, pensando bem, tiveram algo a ver com a pintura dos quadros. Os três vagaram pelas salas, mais ou menos juntos. Christian não emitiu mais opiniões, mas tentou uma série de pensamentos bombásticos: Enfim, eis como é a terra, do jeito que o vento sopra. Ele vira a maneira de Vail olhar por sobre o ombro de Caro, com o corpo não chegando a tocar o dela: lã cinza separada da vermelha por uma vibração. Após algum tempo, Christian disse que precisava ir embora e os deixou, dando em Caro um outro beijo brusco e fora de propósito. Caminhou para casa perturbado por uma sensação — aguda mas assim mesmo forte — próxima ao desapontamento. Possivelmente tinha imaginado a cunhada talhada para alguma catástrofe que justificasse ou redimisse a cautelosa ordem da existência dele — uma culminação, inclusive trágica, que somente ela parecia apta a provocar. Ou talvez ele houvesse desejado, para o máximo bem comum, vê-la afundar em insípida domesticidade como outras mulheres, mergulhar nisso como as donas-de-casa mergulham, exaustas, em poltronas, ao anoitecer. Christian detestava a idéia de que ela e Vail fossem amantes, menos pela imaginada carnalidade do que por Vail ser um homem de personalidade, resoluto e rico. A satisfação de Christian em dispensar compaixão a Caro provinha diretamente da necessidade, da pobreza dela. Não existia nenhum poder agora em deixar Caro agir bem e alegremente, por si mesma. Como um luxo, ele se permitiu um pensamento honesto: eu poderia tê-la ajudado. Em casa, Christian ocupou a poltrona habitual. E seu filho menor o escalou como se ele fosse um brinquedo qualquer no playground. Certo dia de maio, Caroline Bell solicitou uma hora extra para o almoço e foi atendida. Quando voltou ao escritório, soube no corredor, pelo sr. Bostock, que Valda se recusara a preparar chá ou fazer sanduíches, fosse na hora do chá ou em qualquer outra. Quando Caro entrou no gabinete do sr. Leadbetter, ele lhe pediu que fechasse a porta. Abandonando a esferográfica em cima da mesa, Leadbetter deu a entender que o assunto era pessoal. Em verdade, ele apanhara a caneta de plástico apenas para fazer o gesto de deixá-la a um lado. Entrelaçou as mãos. — Talvez possa esclarecer-me, srta. Bell. — Apertou os dedos afastados e então os fechou, como se fosse jogar cama-de-gato. — A srta. Fenchurch tem alguma queixa? — Ela não gosta de servir. É uma imposição. — E isso não é algo absurdo? O fornecimento de. . . ah. . . víveres como parte aceita de suas funções? — Por quem foi aceita? — Por cada mulher aqui dentro, exceto a srta. Fenchurch e, agora percebo, também a senhorita. Se houvesse um descontentamento mais amplo, todas as moças o teriam manifestado. Em geral. — E, em geral, a maioria das pessoas necessita que lhes apontem seus motivos de descontentamento. Comumente, no início apenas uma pessoa faz isso. Conforme contou a sua esposa nessa noite, o sr. Lead-better poucas vezes ficara tão vexado. — E não acha que essa é uma atitude desprezível e egoísta? Afinal de contas, os homens deste departamento desistem da hora do almoço e permanecem em suas mesas, para um trabalho extra. Às moças, apenas pedimos — ordenamos — que os ajudem a cumprir tarefas extraordinárias pesadas. — Os homens nada fazem que diminua seu amor-próprio. Ficar em suas mesas, pelo contrário, exalta esse amor-próprio. — Noto que está extremamente defensiva. Não tendo sido acostumado a tais maneiras de falar, Clive Leadbetter as descobrira em anos recentes. Às vezes dizia "extremamente defensivo", às vezes "extremamente agressivo" — o que vinha a dar no mesmo. Igualmente, acusava: "Não estará sendo um pouco positivo demais?" ou "Negativo demais?" — proposições intercambiáveis e irrespondíveis, que nunca deixavam de confundir. Ele não imaginava o que as pessoas queriam dizer, quando falavam que o idioma estava em declínio. — Mantenho a minha análise de sua atitude — disse Caro. Os dedos libertados de Leadbetter caíram sobre o mata-borrão com um tapa sincronizado. — Não acha este incidente absolutamente grotesco, srta. Bell? — Sei que qualquer adesão a um princípio pode ser chamada de grotesca e mesmo forçada a parecer como tal. Pelo menos, por algum tempo. — Considera isto um princípio? Uma tempestade em uma xícara de chá! — Como disse o sr. Bostock, em um bule de chá. Ele agora estava rubro, como metal incandescente. (Para sua mulher, diria nessa noite: "Não me incomodo nem mesmo com insultos, mas não tolerarei abusos verbais!") —Uma vez que considera sua posição tão insatisfatória, srta. Bell, talvez devesse considerar seriamente seu retorno à. . . ah. . . Nova Zelândia. Em uma longa pausa, ela o fez sentir sua força superior e o fato de que a mantivera durante anos, vivendo de caridade. — De fato, eu vim para entregar-lhe a minha demissão. A boca de Leadbetter se abriu e fechou — como um cavalo de freio. — Posso perguntar-lhe os motivos? — Vou me casar. Então, ele a odiou — por sua liberdade, sua aparência e felicidade, por aquele comentário sobre o bule de chá. A metralhadora emperrou: as palavras não passaram de murmúrios balbuciados. Não obstante, desde que ela só podia garantir sua liberdade pela intervenção de um homem, ele sorriu finalmente e fez seu último ataque: — Eu já imaginava que algo assim estava para acontecer. 25 Grace Thrale estava saindo da Harrods através do departamento de tapetes, que tinha o espaço e a solenidade de uma catedral. Havia corredores formados entre as pilas-tras espaçadas do prédio, e espessas fileiras de tapetes enrolados jaziam de pé ou deitados, como colunas caídas em um templo. Tapetes Wilton empilhavam-se sobre os Axminster, compondo plataformas florais. E Grace sorria, embora não por causa daquilo. — Grace! — Ted Tice emparelhou com ela, em um transepto marroquino. — Veio fazer alguma queixa? Ela estacou e parou de sorrir. — Ted! — Como vão os garotos? Ela tornou a sorrir. — Terríveis. — Caminharam, tornaram a parar. — Vai ficar na cidade por algum tempo? — Apenas hoje. Preciso de alguns apetrechos para minha nova casa. Estou vivendo sozinho. — Seu colarinho estava amarrotado e o peitilho da camisa mostrava a marca ogival de um ferro de passar desajeitado. Ele ergueu seu embrulho. — Acabei de comprar um binóculo. — Quer dizer que, de vez em quando, costuma olhar para a terra. — Somente nos salões de concertos. — Ted estava jovial: Ela contará a Caro que nos encontramos. — Telefonei para Caro, mas ninguém atendeu. Grace nunca o vira tão seguro de si, tão confiante. Talvez ele pensasse que o tempo estava a seu favor. Ela ponderara tudo isso em um segundo, enquanto falavam de seus filhos. Então, soube que iria contar. — Tem um minuto de folga, Ted? Vamos nos sentar um pouco. A expressão dele imobilizou-se instantaneamente em apreensão, devido ao sentido para más notícias desenvolvido na infância. Grace sentou-se sobre uma coluna caída de lã cor de rubi. Ali perto, uma paródia rosa-choque de tapete persa estava sendo desenrolada por um vendedor, embora não para a prece. — Ted. . . — Grace nunca usara tanto o seu nome. — Ela vai escrever hoje para você. Naquele instante, Grace mostrava certa semelhança com Caro, como sempre quando os assuntos se tornavam sérios. Ted o percebia, pela maneira de virar a cabeça e entrelaçar as mãos. Se pusesse os dedos na nuca de Grace, sentiria os tendões proeminentes, como os de Caro. — Ela vai se casar — disse ele. — Sente-se. — Era como uma anfitriã recebendo. — Prefiro ficar de pé. — O herói vitoriano sobre o tapete, ou os tapetes. Um vendedor parou e começou a mostrar um de dois e setenta por três e sessenta. — Obrigada, estamos apenas olhando. Encarando-se, Grace e Ted criavam uma tensão não facilmente absorvida em meio a tapetes. Ele se limitou a perguntar: — Quem? — O nome dele é Adam Vail, um americano. — Grace conseguiu uma trégua descrevendo Vail, como se nesse processo esperasse deixar Ted Tice à vontade. Divagou: — Ele é cortês e interessante. Muito forte, quero dizer, de caráter. Isso atingiu Ted, mas, em realidade, Gracé fazia uma comparação instintiva com seu marido, em termos de contraste. — Sei quem é — respondeu Ted. Ele pensou: Estou me portando bem, mas o fato é que a notícia ainda não me penetrou. Grace balbuciou: — Quarentão, muito simpático, virão à Inglaterra com freqüência. O rosto de Ted Tice foi jovem pela última vez, como dizem que acontece na morte. — Quando será? — Bem, logo, dentro de duas ou três semanas. A gente precisa arrumar, eles precisam arrumar a documentação. Por não serem ingleses, entende? A gente — eles — irão a Caxton Hall. Onde casam estrangeiros. Dora tem que voltar, ela está em Malta, com sua amiga Dot Cleaver. Há uma filha, a filha de Adam, que virá de Nova York. Tem catorze anos. Quinze. Grace se perdia em mil detalhes e em pouco seria deixada absolutamente só com a angústia de um homem. Um vendedor passou por eles, acompanhado de um cliente. — Nós temos em verde-pálido ou limão. Também podemos conseguir em tangerina. Aquele casal estava absorvido, eram duas criaturas felizes. Caro teria sabido o que dizer: não a coisa certa, mas a verdadeira. Ela teria dito a verdade ou manteria um silêncio franco. Ao aceitar ser a meiga entre as irmãs, domesticada e tratável, Grace nem de longe tivera a intenção de isolar-se. Gostava de ser meiga e de que os outros a achassem meiga, mas acreditava que mantinha em reserva uma generosidade ainda não aflorada, de complacência mais difícil — o que agora teria que ser posto em uso. O sofrimento de Ted não lhe passava despercebido. Em verdade, a imaginação de Grace brincava ocasionalmente com tais assuntos, em algum império austro-húngaro do coração. Entretanto, era-lhe impossível despertar o verdadeiro instinto através do qual avaliaria o sofrimento dele ou o confortaria. Então, de repente, receou que pessoas meigas pudessem ser dotadas de pouca imaginação. A qualquer dia do ano, Grace Thrale recebia o sorriso, quando na rua, de algum casal de idade ou alguma jovem mãe guiando seu ruidoso rebanho: saudada, por assim dizer, como um espírito de natureza idêntica. Caroline Bell jamais atraía tão deleitosa cumplicidade. Por vezes, Grace desejava que o mundo não se mostrasse tão seguro a seu respeito, tão confiante de que o tédio a reclamara. No entanto, em sua existência diária, ela temia o menor desvio do hábito, como uma interrupção que poderia originar o caos. Grace desejava a aventura não mais do que Dora desejava a paz. Ela não se convencia, como acontece a algumas mulheres, de que possuía capacidade para uma vida totalmente diversa, dirigida por exaltadas e injuriosas paixões: Grace sabia perfeitamente como a praticada conformidade de seus dias gratificava seus desejos pessoais. Enfim, podemos aferrar-nos à segurança e, ainda assim, achá-la tediosa. Em seu apelo inicial, a segurança oferecia um excitamento que era quase romance, mas esse socorro poderia desgastar-se, como qualquer outro. À noite, guardando pratos e talheres, esta Grace ainda dourada suspirava mentalmente para si mesma, vendo-se uma dona-de-casa atarracada, com uma corcunda de viúva rica. — Se quiser, podemos subir e tomar chá — sugeriu a Ted Tice. No andar de cima do prédio, havia um lugar onde as mulheres se sentavam entre seus embrulhos e podiam pedir chá com leite ou limão. — Grace, minha querida, você estava com pressa quando nos encontramos. Permita-me descer com você. Ted Tice via — mas isso era incidental para seu estado de espírito — que Grace Thrale, antes sua tímida aliada, trocara de lado e o rejeitara, substituindo-o pelo vencedor Vail. Ele queria sair daquela ampla e indistinta solenidade, daqueles sarcásticos tapetes e das perguntas mecânicas dos empregados. Grace levantou-se, e os dois avançaram pelo departamento de luminárias, encaminhando-se para a escada. — Ou podemos conseguir em pele de cabra — bocejava um vendedor, atrás deles. Ted estava cônscio de um conjunto de veludo azul — não, apenas a gola de veludo, sendo o restante de lã pintalgada, um conjunto que tinha tudo a ver com a vida e os costumes de Grace, como a gótica denúncia do ferro de engomar na camisa dele. Ted lhe identificava o corpo, convulsionado duas vezes pela maternidade e novamente refeito, bem adaptado como aquele conjunto de lã, heroicamente normal. Também ele mantinha o movimento e o equilíbrio, embora rasgado em pedaços; até dissera, delicadamente: "Minha querida". No andar térreo, passaram pelos fardos de tecidos que agora as mulheres não usavam mais — georgette, crepe grosso, seda chinesa. Havia um cheiro seco e sério de material que devia ser medido, cortado e costurado. Um homem de preto media tecidos habilidosamente. — Três metros e meio, senhora? Uma voz aguda perguntou: Onde ficam os retalhos? Grace seguiu em frente, através de uma série de pesadas portas de vidro. Compradores entravam e saíam, manejando as portas de um lado para outro, nos movimentos formais de sua dança: "Quiou". "Quiou." No exterior, uma tarde fria denunciava a estação, meramente por sua relutância em escurecer. Um corpulento porteiro, usando insígnias de guerra, fazia sinais em código para táxis; um trio de músicos de rua, em velhas roupas de brim, cantarolavam sobre Tipperary, enquanto um quarto estendia um boné caqui, lastrado por uma única e centralizada meia coroa. — Detesto esses cantores — disse Grace. — Vamos caminhar um pouco. Moveram-se ao longo de vitrinas, onde manequins em roupas estampadas erguiam braços alaranjados contra cenários tropicais, em extasiante e vital contraste com as pálidas matronas que passavam apaticamente. — Tenho certeza de que estou atrasando-a, Grace. Ela não podia suportar aquelas boas maneiras ou o pensamento de que esse homem, em sua crise, pudesse dispensarlhe um tratamento cortês, como o oficial agonizante poderia pilheriar com um tagarela subordinado, em um campo de batalha. Grace encostou-se a um painel envidraçado onde estavam expostos artigos de praia e o olhou no rosto, procurando compensar, em um momento, anos de obstinada insipidez. — Não será melhor para você do jeito que ficou? Agora, cessam as falsas esperanças. Talvez seja terrível no início, mas. . . — A bolsa escorregou pela alça até o cotovelo de Grace e ela pegou o próprio casaco pela lapela, com ambas as mãos, mostrando tanta veemência como se agarrasse as lapelas de Ted. A lembrança de Dora surgiu fugaz em sua mente. Que eu não soe como Dora: Tenho certeza de que você será feliz. Disse, então: — Agora, você está livre. A cicatriz do cerzido nas luvas de Grace ficou impressa no cérebro de Ted. Brincos de pérola espiavam, os olhos brancos como de peixe. Havia uma faixa de echarpe estampada, inane, e a gola azul. O malogro tinha olho de pintor, assinalando ao caso um significado arbitrário — como Deus. Ted pensou que, realmente, se sentia muito melhor fora da loja. Estava totalmente entorpecido lá dentro. Afinal de contas, o claustrofóbico edifício proporcionara uma espécie de abrigo, com suas avenidas assemelhando-se ao planejamento de uma cidade, suas prateleiras e bandejas transbordando de vida diária, seus subúrbios chamados Chapelaria e Miudezas, em memória da infância. Na rua aberta, Ted Tice enfrentava um problema e experimentou a leveza de corpo que acompanha o perigo físico. Atravessaria aqueles momentos como um dever, em preparação para a fase seguinte, a conscientização que iria invadi-lo e torturálo. O que quer que ele tivesse pensado uma hora antes, enquanto comprava o binóculo, ou mesmo alguns minutos atrás, ninguém que o visse agora seria capaz de considerá-lo um jovem. Tomando uma das mãos enluvadas de Grace, ele a colocou contra seu paletó, onde ela, afinal e timidamente, lhe agarrou a lapela. Os brincos atacaram, margaridas de seda amedrontaram-se na echarpe. Atrás dela, uma palmeira prateada de plástico era recortada como um raio zigueza-gueante. — Tudo o que fiz foi esperar por ela. O que farei agora será por causa dela. — Ele deixou a mão de Grace cair e a bolsa escorregarlhe novamente pelo braço. — Acha que isso é liberdade? — Nem sempre é assim. Grace pensava que uma mulher não lesaria o futuro com semelhante proclamação. Caminharam de volta à esquina, onde os compradores entravam e saíam pelas portas. Os cantores agora passavam para Danny boy, a meia coroa solitária no boné, os pennies astutamente sacudidos sob o forro. Fora Christian que falara a Grace desse truque. Cruzaram a entrada para o subterrâneo. Havia vibração na rua, era uma respiração do subsolo, fluindo da boca do poço. Uma mulher de carnadura vermelha vendia raminhos de urze a pessoas que subiam ou desciam os degraus, mas não se aproximou daqueles dois que permaneciam de pé e calados. Grace pensava que a gente devia saber quando algo não oferece mais esperanças. No ar despejado pelo túnel, eles se viraram e encararam-se. Trocaram o olhar de duas pessoas que, tendo carregado um peso imenso até uma parada arriscada, agora o depunham ao chão e seus olhos se encontravam. Grace fora até ali, a distância máxima a que podia chegar; Ted desceria sozinho. A fotografia mostrava um queixo substancial e olhos de mastim, a face inexpressiva, como se a intrusão apenas tentasse ou reforçasse a resistência. Um parágrafo seguinte mencionava um casamento anterior e uma filha. Um homem corpulento, agasalhado com um sobretudo, de pé em um pórtico ermo. A seu lado, Caro era uma noviça na vida pública. Embora não trajasse vestes nupciais, ainda assim tinha o ar indiscutível da recém-casada. Onde o retrato fora cortado, o dorso das mãos dos dois se encontrava — a mão direita dela contra a esquerda dele, não entrelaçadas, mas transmitindo a mensagem privada, para que o mundo inteiro visse. — Aqui também há um. — Tertia sabia para o que Paul estava olhando e ergueu ligeiramente a sua página, para mostrar-lhe uma imagem indistinta. — Mostra o casal deixando o edifício. No jornal de Paul, Caro era uma datilografa australiana; no de Tertia, uma funcionária superior. Noticiava também que o casal se conhecera durante os trabalhos para um empreendimento humanitário, iniciado pelo governo britânico. — Finalmente, aquela terrível irmã conseguiu despachar as duas moças. Dora ou Flora, eu a vi uma vez, na casa dos Thrales. Tem-se que dar tal crédito a ela. Trouxe-as para Londres e as lançou. — Elas não são as irmãs Gunnings, compreenda. Ainda assim, ele as viu mentalmente, daquela maneira exata — beldades do século XVIII em seda pastel, com penteados em curva ascendente e olhares translúcidos, tomando Londres de assalto, tornando-se a Sensação. No jornal de Tertia, Caro tinha os olhos baixos, era uma mancha acinzentada, que nem ao menos carregava flores. O homem era grandalhão, uma fisionomia nada inglesa, de cabeça grande, pesada, impassível. Agora, Caro era aprovada, valiosa: uma obra obscura, atribuída recentemente a um mestre. Tertia trocou de jornal com Paul. — Flora-Dora acertou seu tiro no escuro — disse, para ver até onde ele se importava. — Prefiro pensar em Caroline Bell com bilhões. — Jamais alguém disse que esse Vail tinha bilhões. — Afinal, de onde vem o dinheiro dele? — Gado de corte. — Aqui diz bauxita. Seja lá o que for isso — Paul elaborou: — Coberturas com paredes repletas de Pkassos, iates, aviões particulares, limusines. . . — Guarda-costas — disse Tertia. — E amantes. Paul dobrou o jornal para lê-lo — perfeitamente, como um funcionário faria no trem. — De qualquer modo, o astrólogo não a conquistou. — O que significa "de qualquer modo"? — perguntou Paul. Tertia virava as páginas com seus gestos rudes. No andar de cima, uma criança chorou, riu, falou, depois murmurou, representando as idades do homem. Tertia respondeu, subitamente: — Nick Cartledge. Aquele que costumava hospedar-se conosco. Ela podia, finalmente, estar protestando. — O que foi feito dele? — Morreu. — De quê? — Problemas do fígado. — Bem. . . Não há dúvida de que ele se esforçou para isso. Tertia baixou o jornal. Nicholas Gerald Wakelin Cartledge. Para ela, tinha sido uma morte prematura. Comentou: — O velho roué. . . Com isso, tentava afastar a mortalidade, em si, mas permaneceu transformada na mulher que havia conhecido o morto. Após algum tempo, Paul disse: — Essa palavra significa "supliciado na roda". — Ele não é nenhum Febo Apolo — disse Dora a Dot Cleaver —, como você bem pode ver. — Ela diria Febo Apolo, Palas Atena ou Vénus de Milo, distinguindo tais imortais pelo título completo, sem os terrenos "lindo" ou "bela". — O retrato deles saiu simplesmente terrível. E os instantâneos não ficaram melhor. — Ela os mostrou. — Eu havia recebido uma pancada da porta do carro, pode-se ver a dor de meus olhos. — Naquele dia, Dora se havia mudado para o apartamento vazio de Caro, que estava cheio de flores. — A esta altura, eles já devem andar pela Itália. — Quando fui a Roma pela primeira vez — comentou Dot Cleaver —, fiz tudo o que podia. Tudo. Com um livro-guia, fiz tudo. Bem, isso agora terminou, e apenas procuro divertir-me. Absorve-se mais de um lugar agindo assim. Dora soltou um suspiro que influenciou todo o aposento. Após algum tempo, comentou que mesmo o rio mais esgotado de algum modo acaba chegando ao mar em segurança. — Uma xícara de seu excelente chá? — Dot Cleaver arqueou as sobrancelhas, o corpo e o pulso, pegando uma asa de porcelana que, em si, era um ponto de interrogação. — Depois, eles seguem para Nova York. — Oh, claro! Lá eles terão tudo o que desejarem, todos os seus interesses, livros, peças, música. . . Dot Cleaver tinha ido recentemente a um recital arrebatador, mas não conseguia recordar o programa. — De qualquer modo, será difícil arranjarem tempo para vê-la. — Por que se incomodariam? Não os censuro. No momento, a grande ambição de Dora era ser rejeitada. Aquilo significaria o ponto culminante de sua longa alienação, a justificativa de sua formidável crença em inimizade, ingratidão e todo um acúmulo de erros. Inclusive, já havia dito a Caro: "Não fique pensando que tem a obrigação de me visitar". Seus processos de checagem, agora perfeitamente afiados, nunca descansavam. A provocação se tornara a base de suas relações com o mundo. E Caro havia dito a Grace: — Ela está curiosa para saber quanto ainda agüentaremos sem explodir. Ele destacou a página, dobrou-a e tornou a rasgá-la ao longo da dobra. Então, recortou a fotografia e a legenda com a tesoura. Tais atos metódicos pareciam ter alguma finalidade, e, ao completá-los, Ted mal podia acreditar que ficara com uma foto do casamento de Caroline Bell. A legenda que a acompanhava, embora redigida convencionalmente, não era muito compreensível — como se escrita em caracteres unciais ou cirílicos. Ele examinou o esbatido e pequeno retrato, à procura de alguma coisa familiar que lhe permitisse uma reivindicação. Entretanto, as roupas de Caro eram novas, inadequadas para a ocasião. Na mão esquerda, ela segurava um pequeno objeto, sem dúvida não um livro de orações e mais acertadamente uma bolsa. A fotografia o banira por completo, rejeitando associação: uma crueldade extra, quando os bens de Caro sempre o haviam encantado — um cinto de seda verde, um caderno de apontamentos com capa de tecido azul, um prato branco onde ela colocava laranjas. Na foto, Caro dava meia-volta, abandonando todos eles. O recorte ficou sobre sua mesa de trabalho, agora mais amplo do que o supérfluo e constringente material de onde fora extraído. O aposento inteiro parecia incapaz de confiná-lo ou de conter a ofensa. Ted Tice colocou a mão direita em cima dele e pendeu a cabeça — como um espectador, cônscio de que sua postura inclinada requeria uma frase datada, à guisa de legenda: "Ele fracassou". Um homem adulto e cabisbaixo oferece uma tola visão, mal parece ser um homem. Não havia ninguém com quem precisasse escusar-se. A obrigação era o primeiro detalhe apagado pelo pesar. Ted Tice pensou em sair e andar até ficar cansado. Ou então embebedar-se, como um homem desiludido em uma história. Entretanto, sem se mover, contemplou seu suéter, o boné e uma echarpe listrada — coisas externas, em cuja racionalidade não tornaria a acreditar. 26 Assim, Caroline Bell foi residir em uma casa na Cidade de Nova York e tomou o nome de Vail. Do alto da casa, que se situava em uma fileira de edificações baixas, com fachada de pedra arroxeada, tinha-se uma vista do céu. Para o sul, uma cordilheira de arranhacéus obstruía o sol da tarde, certamente, como os montes Taígetos fazem com que a escuridão chegue mais cedo a Esparta. Os aposentos não eram numerosos, mas relativamente grandes, porque paredes divisórias aqui e ali haviam sido removidas. Adam Vail nascera naquela casa. Eram vários os objetos sobre os quais Caroline Vail nunca poderia desejar jurisdição ou firmá-la. Poltronas, livros, quadros, um biombo chinês, uma pasta de couro que se desgastava sobre uma mesa de trabalho, um pires de jade, um conveniente mas feio. abajurzinho ao lado de uma cama — cada coisa era habitual, exceto a própria Caro. Ela contribuíra com quatro caixas de livros, um prato trincado de Palermo e um anjo pintado em uma tábua andaluza. De tempos em tempos, ela olharia para aquelas lembranças ou para suas roupas nos armários e gavetas, a fim de acreditar. Uma fotografia da época a teria mostrado mais hesitante que outrora. O processo de adquirir equanimidade trouxera suas próprias dilacerações, como também algum sacrifício. Vários homens lhe escreveram, por motivo de seu casamento: "Querida Caro, o homem que a ganhar será um felizardo"; "Espero que ele perceba a sorte que teve". Havia um toque de alívio, por eles próprios não terem assumido o privilégio. A liberdade que ela adquirira ao deixar toda uma nação entregue à própria sorte havia sido, se não elo-giável, também natural. Nas ruas retas, a sra. Vail procurava modificar aquela cidade, tornando-a a imagem de outras, descobrir suas fontes de continuidade e consolo, seus lugares de glória e refúgio. Quando isso se revelou impossível, ela seguiu extravagâncias, manias e formas obscuras de complacência, assim como maneiras flagrantes de auto-afirmação e conformidade. No tocante à moralidade, a moda era indiscriminada, conferindo o mesmo peso ao capricho e à convicção. Um enxamear incessante de pessoas era antinatural, ridículo e determinado, como a aceleração de um filme antigo. Havia anonimato e extrema solidão, mas pouco sonho e nenhuma paz. Os apartamentos eram camarotes nos grandes transatlânticos ancorados ao longo das ruas. A cidade expunha suas condições como um teste: os que se revelavam aptos nas energias que ela possuía tornavam-se iniciados; os restantes deviam fracassar, partir ou esbanjar uma força irrelevante. Nos prédios modernos opostos à casa dos Vails, todos os pavimentos térreos eram ocupados por consultórios médicos. Ainda de manhã bem cedo, homens e mulheres idosos chegavam sem o café da manhã, para tocar aquelas campainhas. Fora isso, havia pouco espaço para relacionamento no pequeno quarteirão e poucas crianças. Os sinais de vida associavam-se freqüentemente a morte ou miséria: à noite, carros de bombeiros e ambulâncias eram ouvidos nas avenidas próximas e a lanterna giratória de uma viatura policial circulava sua luz amedrontada por aposentos particulares; comboios de caminhões rodavam deliberadamente aos solavancos, como os aprovisionadores de um exército de vanguarda. No inverno, os pneus dos carros giravam, estridentes, sobre a neve suja, e destroços abandonados se fundiam em fendas geladas de todos os imensos mas não contínuos edifícios. O panorama era esplêndido, os detalhes, soturnos. A obscuridade gerava ou facilitava uma falta de contato. Quando chegou o verão, os plátanos embaciaram a vista das janelas de Caro, tornando completa a reclusão. Nas primeiras semanas, Caro ficava na cama ou estirada em um sofá, lendo ou simplesmente quieta. A casa silenciava com a imobilidade da moradora, que não era langor, mas renovação. Enquanto isso, Adam Vail caminhava rapidamente pelos cômodos e corredores adjacentes, subindo e descendo com agilidade as escadas de toda a sua vida. Os hábitos do lar emprestavam flexibilidade a seu corpo, que era pesado no repouso ou no amor. A casa tinha um leve cheiro de plantas e polidor, de óleos usados para preservar livros ou móveis. No começo, Caroline Vail percebeu esse cheiro, que não conseguiu redescobrir mais tarde. No quarto de sua enteada havia um perfume de loção de calamina e também cremes para peles adolescentes e pílulas contra dor; havia livros de histórias em quadrinhos, dois violões e discos de ópera italiana. Havia também livros sobre animais de países distantes — Etiópia, Quênia. Estes pertenciam à morena Josie, que, quando da chegada de Caro à cidade, tinha ido para a África, em um safari com a família de Myra, sua colega de colégio. — Myra é uma má notícia — disse Adam. Ajustadas à moldura do espelho de Josie, havia fotos de mãe e filha. Una, a irmã de Adam, apareceu para almoçar. Era atraente, com um ar de elegante descrença. Fumava cigarros até a metade e, ao desfazer-se deles, sacolejava uma corrente de ouro no pulso. Sua risada, iniciada com forte clangor, extinguia-se abruptamente, incompleta. Olhou para Caro mostrando um franco interesse, que poderia ser gentileza. Ela estava tendo um caso com um burocrata. — Meu amigo é diplomata — contou a Caro. Empregava o termo "diplomata" como diria arquiteto, um termo cuja desonra ainda não o atingira. Nessa noite, quando o amante lhe perguntou: "Que tal a noiva?" ela se deixou cair em uma cadeira e cruzou as pernas: "Bem". Após algum tempo, acrescentou: — Não é, no caso, a segunda sra. de Winter — ela acendeu um cigarro, por fim. — A recém-casada é okay. Cabelos escuros, olhos escuros, uma morena avantajada. Vinte e tantos anos, talvez trinta. E nada tem de imbecil. Conversa, ri, mostra dentes britânicos. — Hansi continuava ocupado com um problema de palavras cruzadas, Una abandonou o cigarro ainda fresco e disse: — Intolerante. — Intolerante quanto a quê? — Pessoas como eu. — Pegando sua bolsa, Una disse: — Ama Adam. Tirou da bolsa uma diminuta caixinha esmaltada. Na mesa a seu lado havia caixinhas similares, arrumadas em fileiras. Hansi preparou drinques e deu um a Una. Ela fez um ligeiro movimento com o copo na direção dete e, com a outra mão, ergueu a caixinha. — Trouxe-me um presente. — Estendeu-o a ele. — Adam deve ter lhe contado. — Bebeu alguns goles e então apanhou a caixinha que estava com Hansi. Colocou-a na mesa, ao lado das outras, acrescentando: — Perspicaz. — Pergunte-me alguma coisa — disse Adam Vail. De noite, eles acordavam e faziam amor. — Você nunca tem perguntas. — Agora devo aprender o que não chega através de perguntas. Certa tarde, quando ela lia, espichada em um sofá, Adam chegou e a tomou nos braços. — Não entre em declínio. — É uma ascensão. Ele, então, ficou em pé e se movimentou pela sala, fazendo ruído com objetos, batendo gavetas, amarrotando um jornal. Sua esposa continuou lendo, lamentando que um homem tão cortês chegasse a tal ponto, e um tanto surpresa quanto ao fraco controle que ele mostrava. Bastaria Adam esperar e ela lhe daria a felicidade perfeita. Era para isso que Caro reunia energias, como também para objetivos mais adequados. Una resolvera passar o verão no estrangeiro. Já que se divorciara, ela comentou que finalmente poderia ter um grande verão. — Durante oito anos, fiquei pregada à cruz de East Hampton! Una fazia tilintar um novo bracelete. Seu rosto atraente mostrava um dispendioso resplendor e ela usava o que os antigos romanos chamavam de jóias de verão. Pouco mais tarde, do Mediterrâneo, ela e Hansi enviavam um cartão-postal com bangalôs cor-de-rosa em uma praia. — É um lugar para milionários no fim das forças — disse Adam. — Por que milionários deveriam sempre estar no fim das forças? — Existem aqueles que podem se dar a esse luxo. — Ele lhe tocou o rosto. — Você parece ótima. — Estou começando a perder as forças. Na rua, Caro tomou o braço de Adam e parou para olhar. Uma mostra de profissionalismo em máquinas e prédios era reproduzida, com menos sucesso, nas pessoas: a existência se voltara para os peritos. — Nós — ela se referia a pessoas de todos os demais lugares — seremos sempre amadores, comparados a isto. — Nosso grande e secreto temor — disse Adam — é que a América venha a se tornar um fenômeno, ao invés de uma civilização. Daí, em parte, a escala, a insistência, a necessidade de demonstrar os grandes mistérios obsoletos ou benéficos. Queremos que nossa concupiscência seja amada e chamada de bela. Queremos receber a homenagem devida ao amor. — Adam entrelaçou os dedos da esposa nos seus. — Daí também uma compulsão de nos justificarmos. Como eu, neste momento. — Entretanto, se os próprios americanos dizem tais coisas. . . — Apenas não vá concordando com tudo isso. — Vail riu. — Oh, Caro, nós somos muito piores, ou talvez melhores, do que você, por enquanto, imagina secretamente. Adam a levava para visitar um amigo que morava na 149 th Street. Ao voltarem para casa, ela perguntou: — Por que alguém deveria suportar isso? Una, que voltara da Sardenha, disse-lhe: — O negro americano está superajustado ao seu problema. — Mas não por muito mais tempo — declarou Adam. Certa noite de setembro, Caroline Vail sentou-se junto a uma janela, com um livro de poesias. — Por que não lê em voz alta? — pediu Adam. Ela começou, dizendo algumas linhas em voz aguda, pouco coerente e estranha: "Rochas primevas formam a margem íngreme da estrada, E muito elas viram lá, primeiro e último, Do transitório na longa ordem da Terra; Mas o que elas registram, em cor e sombra, É — que nós dois passamos". Ela baixou o livro e desviou o rosto, sem sair do lugar. — Triste — falou. — É por isso que estou chorando. Adam afagoulhe a cabeça e os ombros. Quando passou os braços em torno dela, o corpo de Caro mal podia ser visto. — Quem sabe por que ela chora. . . Quem sabe por que Caroline está realmente chorando? No outono, Grace escreveu que Paul Ivory fizera um tremendo sucesso com uma peça chamada A carne una. Ela também informava, mais timidamente, que Ted se casara com a filha de um cientista. Em breve chegava uma carta de Ted com a mesma informação e um novo endereço. Ele esperava que Caro e Margaret pudessem conhecer-se um dia. Escreveu: "Aqui, entre os jovens, sentimos um apego à nossa época, que é como um substituto para o patriotismo: um penhor de imaturidade. Para qualquer coisa, em termos de esclarecimento, precisamos de gente que não possua contemporâneos". Quando Ted escreveu "os jovens", Caro perdeu o próprio direito à juventude. Por falar em esclarecimento, prosseguia Ted, o grande telescópio havia sido inaugurado, no sul da Inglaterra, com uma cerimônia a que a rainha comparecera. Devido à total ausência de visibilidade, a realeza nada mais pudera conseguir senão uma demonstração de brumas. Dora escreveu que Gwen Morphew havia conseguido dinheiro misteriosamente e deixara Glad Pomfret com as mãos abanando. Sempre era melhor esperar-se a ingratidão, de modo que nada mais a surpreenderia. Dora, a quem Caro agora podia proporcionar uma casa perto da de Dot Cleaver, falava de dificuldades domésticas. Não queria ser um aborrecimento para Caro em sua felicidade, e, afinal, tudo se resolveria de algum modo. Ela aprendera uma coisa, e pela maneira mais difícil, e essa coisa era não incomodar ninguém. — Quase chega a ser verdade — comentou Caro — que ela não é um incômodo em minha felicidade. Caro levou a enteada ao recital de um grande violonista. Quando voltavam para casa, Josie disse: — Foi legal. O que pude ouvir do recital. — Na próxima semana, conseguiremos lugares melhores. Ela levou Josie ao balé. — Myra foi assistir a dois jogos hoje — disse Josie. Com isso, queria dar a entender que Caro fora favorecida. Se houve tal concessão a Caro, o motivo foi outro. Adam Vail fez uma viagem ao Chile e ao Peru. — Da próxima vez você irá comigo — prometeu a Caro. Una disse à cunhada: — Adam está obcecado. Você já deve ter percebido. Está obcecado pelo sofrimento dos outros. Trata-se de algo que você terá de enfrentar. — Já enfrentei aqueles que não se preocupavam em absoluto. Ela não via por que explicar a Una que havia fracassado. Certo dia, no entanto, Una disse: — Acho isso formidável — e amarfanhou um lenço de papel. Caro jazia em um leito de hospital, em conseqüência de um aborto, e Adam Vail voou para casa, vindo de Lima. Quando Caro fechou os olhos, a escuridão restaurou-lhe a existência privada. — Agora, vou ter de machucá-la — disse alguém. A dor era uma extensão da experiência, demasiado nova e espantosa para ter interesse intelectual. No escuro, podia ser Paul inclinando-se sobre ela: "Agora, vou ter de machucá-la". Como outro sofrimento, a separação da enfermidade tanto era irrealidade como realidade plena, afinal. Certa vez, ela permanecera afastada, em um corredor quente, e contemplara a própria morte. Na escuridão, seus pensamentos eram redistribuídos, por entre deslocamentos de esperança. — Seremos dois a partilhá-lo — disse Adam. — Não era isso o que eu queria partilhar. Quando Caro melhorou, Josie lhe disse: — De qualquer modo, fui ambivalente. Eu me senti bastante ameaçada. A confiança na própria simplicidade podia inspirar uma crueldade dificilmente crível. Josie se irritava com freqüência e, se contrariada, baixava a cabeça e chorava: — Estou me sentindo constrangida. Sua maior arma era a própria fraqueza, o maciço desânimo, ante o qual tudo cedia. Havia o temor de que Josie também apelasse para a morte, como seu instrumento letal. "Tenho tanto medo!", dizia, insuflando o temor a Deus em todos eles. — Ela não devia procurar classificar tanto suas emoções. — Está querendo que ela renuncie à sua condição de americana? — disse Adam. — Josie crescerá, ficará adulta. Caro recordou esperanças infantis, centralizadas no septuagésimo aniversário de Dora: "Teremos de afastá-la antes disso". Somente Una repelia os ataques de Josie ocasionalmente e não se impressionava com as lágrimas da garota. — Morda sempre, guria, e acabará sendo mordida também — dizia. Depois disse a Caro: — Você captou a mensagem. — Mesmo aquelas mensagens que ela ignora estar enviando. Josie possuía aqueles olhos que se notam nas jovens com problemas, olhos que fitam de esguelha, mesmo quando diretos. Ela possuía a inanição que anuncia a auto-absorção espiritual. Já estava montando um sistema de acusação, ante a apreensão do fracasso. Para Caro, Josie declarava o óbvio: — Você não é minha mãe! Para ficar certa do ferimento, ela gostaria de ver o sangue. — Antes de mais nada, não tenho idade bastante para isso. Caro explicou a Una: — A crença de Josie em sua inocência é sua garantia para causar mal. — Como a América — retrucou Una. Quando sozinhas e juntas, Myra e Josie zombavam de Caroline Vail — sua voz, suas maneiras e opiniões, seu hábito de tocar o cabelo. — Ela não pode ter filhos — disse Josie à colega. — E por causa disso está querendo mandar em você. Pois bem, diga a ela que corte essa. Caro podia sentir o desejo de que fosse afastada. Desde muito, percebia que Josie pensava nela com ressentimento, da mesma forma que, inclusive agora, ainda percebia Ted Tice pensando nela com amor. — Será que não vê a maneira como ela a usa? — disse Myra a Josie. Se dependesse de Myra, Josie nunca se imaginaria capaz de ser um objeto de afeição. Tudo era claro, como se a garota fizesse uma queixa: a indelicadeza ensaiada, o olhar direto e de esguelha, a duplicidade da frase explícita. Em presença de Myra, Josie precisava exibir-se: — Como pode falar uma besteira dessas, Caro? Na ausência de Myra, a garota era fielmente abusada, a fim de ter algo para queixar-se. Não há nada como o desejo de agradar para criar semelhante inverdade nas pessoas. Myra estava de olhos baixos, e o cabelo liso lhe escondia as faces. No momento, ela estava forte, porque consumia a vida de outro. Caro gostaria de saber que Benbow particular havia levado Myra para o fundo. — Ela confunde desconfiança com discernimento — disse Adam. Caroline Vail viu-se inadequadamente imune ao julgamento de Josie. Desejava apenas reprimir a garota em seus piores assaltos, certa de que, quando se lesa alguém, é impossível suportar a presença de tal criatura. Em segredo, Caro repisava na necessidade de libertar-se emocionalmente e podia ver como a indiferença era capaz de tornar-se sedutora. O que Josie tomava por exposição da parte de Caro havia sido uma oferta de confiança — um teste em que a garota fracassara, uma vez após outra. A confiança seria oferecida repetida, mas não indefinidamente. Adam tocou o braço da esposa: — Talvez você se preocupe mais do que demonstra. — Quando percebemos que alguém está tentando magoar-nos, a ofensa dói menos. — A menos que você ame esse alguém. Adam esperava que, um dia, Caro pudesse quase amar Josie, como ela amava a cidade — através da contiguidade e da experiência partilhada. Para ele, seria uma pena se somente fossem amados os dignos de amor. Tendo visto o interesse da filha pelo universo transformado em inveja e desconfiança, ele gostaria de dizer: "Foi sua mãe". No entanto, sentia a indelicadeza e a inexatidão de acusar sua esposa morta, que ainda lhe vinha à mente como a havia conhecido, em irresistível juventude e beleza. Quando jovem, Adam Vail tinha admirado como intelecto o instinto plausível de sua primeira esposa para os erros humanos, não vendo nisto o presságio do desastre. Ele, que acima de tudo desejava ser racional, aliara-se ao despropositado, no interesse dela. Para demonstrar-lhe fidelidade, absurdamente colocara outros em dificuldades. Um dos motivos disso era o seu orgulho, que o impedia de admitir a própria indefensabilidade; outro era a força persuasiva dos antagonismos de sua esposa: honesta em sua alucinação, ela se livrava dos equívocos da sanidade. Aos poucos, tornara-se evidente que ela precisava de mais um inimigo e somente ele permaneceu para preencher o papel. Parecia ser isto o que ela pretendera: durante todo o tempo em que Adam se imaginava confortando-a ou ajudando-a a recuperar-se, sua esposa estivera preparando a condenação de ambos. Então começaram as ameaças de morte, para chamar as atenções desgarradas do mundo. Para quem a profere, a ameaça é um vício que requer crescente dosagem. Os espectadores, por outro lado, são lentamente imunizados. — Não há maior tirania que um estado permanente de desespero — disse Adam a Caro. Ele, que se considerava um homem, tornou-se vulnerável como uma criança intimidada ante a primeira esposa. Ela atuava sobre ele como uma doença alastradora: todos os elos saudáveis com a vida eram infidelidades a serem canceladas. A maturidade dele se amortecia dia a dia, fazendo-o recair em taciturno estupor, do qual o único despertar esporádico era o desejo físico. Com medo, ele sentiu sua vontade contrair-se, ficar cada vez menor, até transformar-se em uma dura e enrugada noz em seu peito. Ele desejara magnitude, mas era uma pequena e dura substância em uma concha. No pesadelo de sua enfermidade, ela era muito forte e ele, muito fraco. Adam Vail começara a sonhar que estrangulava sua esposa louca e, portanto, não culpada. Também sonhava com a própria asfixia. A insuficiência de espaço e de respiração se tornou uma preocupação das horas despertas: nas ruas, ele abria caminho por entre multidões, incapaz de ampliar o passo ou seu eu em dimensões plenas. Um dia, ela chegou ao alto da escada e o chamou pelo nome. Tinha a mão escura. — Charlotte! Charlotte! — exclamou ele. — Eu me machuquei. O sangue fluía de um talho profundo. O horror dele foi tanto pela liberação, pela desobrigação, como pelo evento. A esposa o salvara por chegar a tal ponto que, com todos os seus compromissos, ele não podia segui-la. Foi então que Adam aprendeu a paciência agora aparente e renovou laboriosamente seus laços com a vida. Não culpada, em virtude da insanidade, ainda assim sua esposa era incapaz de inocência. Por vezes, a loucura pode propiciar acesso a uma espécie de conhecimento, mas não é uma garantia. — Temos que atrair Josie — disse Caro. Ela se suavizara com nova juventude e estava contente. Se isso podia acontecer-lhe, por que não a Josie? Certa vez, havia dito a Paul que essa condição não precisava ser adversa. Como uma prece, o otimismo foi justificado quando o pai de Myra foi transferido para a Califórnia, levando toda a família. Hansi, o amante de Una, tinha uma suíte no Carlyle e uma ajuda de custo para diversões. De tempos em tempos, voava para Delhi ou Tóquio, a fim de assistir a um congresso que, jovialmente, designava como inútil. Era comum vê-lo com um livro na mão, qualquer livro, que servia de apoio para as palavras cruzadas que também carregava. As palavras cruzadas eram o seu único esforço mental. Hansi costumava dizer, sobre si mesmo: "O velho Hansi estava na pior, quando Deus, em sua infinita misericórdia, criou a conferência internacional. Que essa negociata providencial, imprevidente e peculiarmente iníqua, destinada a sustentar os degenerados morais e mentais de nosso mundo moderno, floresça para sempre!" Era com dificuldade que Josie se continha, às vezes nem isso. Enquanto Hansi ficava decifrando anagramas, ela lhe criticava os sapatos, as malas de viagem, o abrigo de vicunha e o Mercedes cinza, sua suíte no Carlyle e um arranjo ilegal que tinha algo a ver com bebidas grátis. Hansi ria, bocejava e ponderava um palíndromo. Apenas uma vez ele rompeu o silêncio. — Aos vinte anos, um homem que dirige inativamente um palavreado oco e bombástico contra a injustiça social é uma promessa; aos trinta, um demagogo. Aos vinte e cinco anos, eu, Hansi, identifiquei a aproximação da era da demagogia e então me fechei em copas. De fato, nesse ínterim, comecei a beneficiar-me da indústria organizada da demagogia internacional: essa idéia cuja hora soou. Tenho minha forma pessoal de ineficácia, mas não a enfeito com moralidade. Recuso' ombrear-me com aqueles que arengam a respeito de reformas para as quais nunca levantarão um dedo. Vivemos a idade da boca aberta e do dedo abaixado; daqueles que falam mais rápido do que o suficiente para que o mundo os entenda. Não é essa a base de toda a política moderna, para não mencionarmos os batalhões dos socialmente cônscios que, do mesmo modo, jamais verão a ação? Quando for escavada a nova Pompeia, encontrarão a intelli-gentsia agachada e petrificada no chão, de boca aberta para denunciar o materialismo, tendo dentro dos bolsos, petrificados, seus ajustamentos embutidos para o custo de vida. Eu, que, no devido curso, morrerei, não vou saudá-los. — E que diabo tudo isso quer dizer? — perguntou Josie. Adam respondeu: — Hansi receia que a falta de objetividade e o estilo bombástico andem juntos. — Devo corrigi-lo — disse Hansi. — Eu não receio, eu sei que é assim. Nenhum processo de reforma é comu-mente considerado plausível desde que envolva o sacrifício de uma hora de sono, de um dia de pagamento ou de uma oportunidade de fazer ainda mais escarcéu. Afirmo isso, não como uma disposição moral, mas uma disposição real. Reforma, meus caros, nada tem a ver com estandartes e bombas. É o trabalho mal pago, a pobreza, a solidão, a composição de cartas à luz do lampião à meia-noite e o comprometimento em esforços ignominiosos com uma máquina copiadora. Reforma significa anos passados no conhecimento profundo de temas áridos e incompatíveis. Reforma é desistir de banquetes, feriados e sexo, é ter tempo para estudar minuciosamente documentos implacáveis em um porão. É ser ignorado, insultado e isolado, possivelmente ser eliminado em uma manobra de governo. Reforma é concentração e resistência. A reforma, meus caros, ou qualquer mínima partícula dela, não é mais desejada a esse preço, por nossos modernos altruístas, do que é pelo bom e velho Hansi. Minha intenção, como a deles, é arrancar de meus empregadores o máximo dinheiro possível, ligar meu hi-fi, entregar-me a meus apetites e prazeres, dormir longa e profundamente todas as noites. Ao contrário deles, no entanto, minha intenção é declarada abertamente. — Hansi desdobrou seu acrostico duplo. — Falo em termos gerais, e aceitaria prazerosamente qualquer provada exceção. Josie comentou que nunca ouvira droga semelhante. — O que ele disse é lógico — afirmou-lhe Adam. — Aqueles que criticam continuamente a realização dos outros precisam realizar algo por si mesmos, ou se tornarão ridículos. — Ainda assim — disse Caro —, o que realizassem poderia ser simplesmente ganhar caráter. Como sempre, pensando em si mesma, notou Josie. Para ela, era insuportável que alguém se distinguisse apenas por seus pensamentos. — Sem dúvida — replicou Hansi —, mas as pessoas de caráter tendem a guardar suas opiniões. Posso confirmar, e conclusivamente, que elas não são encontradas expondo-se no circuito demagógico. Como exemplo do mencionado caráter — disse ele a Josie —, veja seu próprio pai. Ele nunca me censurou. Algo que considero muito agradável. 27 Retornando de dez dias na Sicília, Ted e Margaret Tice encontraram uma casa que ficava muito à mão. Isso permitia que Ted fosse para o trabalho e voltasse a pé, e que sua esposa caminhasse até um estúdio que alugara para pintar, juntamente com outra jovem, uma musicista. Naquela época, a vontade de pintar não era muito forte em Margaret, pois ela achava que tinha tudo o que queria e devia ser feliz. Não obstante, embora sempre representasse um esforço ir ao estúdio, ela se sentia perfeitamente à vontade, uma vez lá, a ponto de passar da hora, só interrompendo o trabalho quando ouvia a violoncelista subindo a escada. Ela ignorava o que encontrava naquele aposento desolado e sem calefação, e embora relacionasse a serenidade da sala a seu casamento, não podia descobrir onde jazia essa relação entre as duas coisas. Isso aconteceu anos antes de ela perceber que a escada, a sala, o cavalete, as telas e os tubos de branco de zinco simbolizavam a segurança. Em suas pinturas daquela época, formas sombrias representavam os fenômenos da terra ou dos sonhos. E assim eles montaram casa, e cada um podia percorrer a pé a distância até a segurança. Os pais de Ted os visitavam, assim como os de Margaret. Cabides foram aparafusados no lugar, lâmpadas foram escondidas em abajures e jardineiras nas janelas, um amigo derramou vinho no Piranesi desenrolado, que tinha sido um presente de casamento. Margaret fazia as compras e Ted pegava livros na biblioteca, a caminho de casa. — O nosso Ted leva o casamento a sério — disse a mãe dele a Margaret. O mais certo, no entanto, é que Ted se dedicara a isso e o fazia meticulosamente. Agora, mostrava pouco pendor para envernizar estantes de livros ou martelar coisas em casa, mas era visto trabalhando diligentemente com pincéis ou uma caixa de ferramentas. Também ele ficara à mão, à maneira de tudo o mais. A auto-suficiência surgiu completa, um treinamento para sobrevivência em uma ilha deserta. — Ted atirou-se à vida doméstica — disse a mãe de Margaret. — Em verdade, mergulhou nela. Uma vida que poderia ter sido um abismo. Os hábitos eram estabelecidos e, dentro de um ou dois meses, pareciam de toda uma vida. De vez em quando, Ted apanhava ou largava um jornal, com um gesto além de sua idade. Percorrendo fases de julgamento, Margaret Tice foi primeiro uma recém-casada, depois uma jovem dona-de-casa, em seguida uma futura mãe. Depois, seria forçada a falar de escolas, juntar-se a um clube de tênis e a um comitê. Podia-se ouvi-la falar, como se fosse outra mulher qualquer: "Jamais uso amido de milho" ou "Faço a limpeza à medida que vou me movendo pela casa". Margaret sentia isso acontecer a ela, como sintomas de uma doença branda, e não oferecia resistência. Entretanto, com incompreensível nostalgia de uma vida que nunca vivera, sabia que tudo teria sido sutil e profundamente diferente se o marido a amasse muito. Certa noite, no primeiro verão de seu casamento, eles foram jantar em casa de um colega de Ted. Para tais ocasiões, as esposas dos cientistas eram treinadas na auto-supressão — exceto aquelas que, elas próprias cientistas, pudessem também tomar pé na conversa de lareira. Outras, como Margaret, deviam munir-se de uma desculpa gentil ("Ela pinta", "Ela é música"), mas esperava-se que fossem ignoradas. Em tais reuniões, Ted freqüentemente se mostrava sombrio, desligado. Respeitado pelos colegas, era apreciado somente algumas vezes. Em seu relacionamento com assistentes, dispensava uma justiça fria e indubitável — quando eles talvez preferissem uma parcialidade mais humana e censurável. A mesma força objetiva era ainda menos bem-vinda, se manifestada em uma sala de estar. Em seu trabalho, Ted passara algum tempo estudando um objeto fracamente azulado, possivelmente uma estrela. Acabara de voltar de Palomar, onde a controvérsia sobre o "desvio para o vermelho" havia agora começado. Sabia-se que ele tinha coisas a dizer, mas que preferia não dizê-las ali. Tal concepção de reunião divertida era incongruente. O jantar fora oferecido a um físico que recebera um prêmio famoso: um monólito idoso, de corpulência rude e rosto seco, que presidia conferências lugubremente e dava ao governo influentes conselhos. Sua taciturna importância era implacável. As mulheres que tentavam conversar com ele ouviam as próprias vozes se elevarem até um guincho agudo: era como riscar o nome em um monumento histórico. Mesmo sentado, ele continuava lembrando algum objeto maciço. Arriado pesadamente em uma poltrona azul, usando um coçado paletó cinza com reforços de couro marrom nos cotovelos, ele agora parecia um navio de guerra enferrujado. Quando Margaret Tice apareceu a seu lado, ele se ergueu ligeiramente das ondas, expondo uma linha plimsoll1 marcada pelo cinto arqueado. Samuel Plimsoll, político britânico (1824-1898). Em 1876 fez votar um ato de navegação (Merchant Shipping Act), tornando obrigatório o uso das marcas de flutuação máximas, que foram batizadas com o seu nome (plimsoll). (TV. da T.) 1 Ted espiou sua esposa: ela era uma encosta de verde em uma cadeira de espaldar reto, com os olhos cheios de civilidade e a mão lisa sobre o joelho. O velho navio de guerra começou gradualmente a falar com ela: falar era o conceito dele sobre dar atenção. Aceitando o monólogo, Margaret recebia o que raramente tinha: o interesse indiviso de um homem. Era uma noite quente, as janelas se abriam para um jardim. Ted se recordava da iluminação noturna, tantos verões atrás: a mesa e a conversa dos jovens; duas moças, ambas bonitas, uma delas uma gazela. Deixou a conversa sobre quarks e quasars, como que despertando, para ouvir sua esposa falar — era a respeito de algum livro que o velho mencionara. — Sim, eu o li pela primeira vez em uma época em que me sentia infeliz, mas tenho voltado a ele freqüentemente. Ainda o acho. . . "Uma época em que me sentia infeliz." O que estaria ela conjurando ou exorcizando com tais palavras, sentada ali, em sua tranqüilidade verde? Ted sentiu ciúmes daquela infelicidade e desejou ser a causa dela — porque quem mais poderia reivindicar a melancolia de Margaret? No devido tempo, ela se levantou e foi conversar com uma amiga. O físico também se levantou, agitando sua bandeira da caveira e ossos cruzados. —Se quer saber, Ted, achei sua esposa uma mulher de grande discernimento. Sem saber o que responder, Ted olhou sua esposa cruzar o aposento: uma mulher de grande discernimento. Se ela discernisse o que havia freqüentemente em meu coração, se soubesse o que às vezes sonho. . . Desejou persuadir-se de que Margaret também podia ter segredos, dando-lhe recursos que poupariam a ambos. Alguém chegou até a janela aberta e atirou fora um cigarro já fumado, acertando com precisão um pequeno lago escuro no jardim. Houve o cintilar, o chiado e um breve protesto de insetos ou de um sapo. O velho físico ficou perto da janela, erguendo rapidamente o cinto. Recordava uma noite de guerra, quando permanecera no teto do Savoy como vigilante contra o fogo. Em vermelho e branco, o rio negro refletia as chamas e holofotes, a terra saltava e estremecia com o impacto e recuo dos armamentos. E um avião em chamas desceu girando do céu, expulsando seu piloto, que mergulhou em seu fogo separado. O aparelho explodiu em fragmentos antes de atingir a terra, mas o homem em chamas foi atirado ao rio, que — como se ele fosse um toco de cigarro — chiou ao apagá-lo para sempre. O velho recordou como, no final daquela noite, ao invés de voltar para casa-, tinha ido ao apartamento de sua amante, uma mulher culta com cabelos amarelados. Agora, morta havia muito. Ela lhe guardara um pouco da própria ração, mas ele não conseguira comer. Sentara-se na cama, com o rosto nas mãos, dizendo: "O som daquilo. . . Ainda posso ouvi-lo!" Em verdade, já experimentara coisa pior — e, como jovem oficial, com piolhos rastejando em seu corpo enquanto ele, rastejando na lama, atacara a Linha Hindenburg. No entanto, naquele alvorecer, sentou-se em uma cama e chorou. "Posso vê-lo." O busca-pé incendiado. "Posso ouvi-lo." A carne mergulhada. Ted Tice escreveu a Caroline Vail que passaria por Nova York, a caminho de Pasadena, onde ficaria algumas semanas. Caro respondeu: Venha almoçar, a qualquer preço. E, na manhã em que ele chegaria, saiu a fim de comprar flores. Era um dia de dezembro, frio e muito claro. Ted desembarcou do táxi em uma esquina e caminhou os últimos poucos quarteirões. Na rua de Caro, as casas eram idênticas no início, dispendiosamente uniformes — com números negros ou dourados acima da entrada, painéis de vidro gravados a cada lado das portas. Em sua maioria, as portas também eram negras, com um próspero brilho envernizado; uma ou duas haviam sido pintadas de vermelho. O último grupo de casas era menos regular, e quando chegou à de Caro, Ted a achou animada e graciosa — um filho vivaz entre pais carrancudos. Ted jamais conseguiu extrair a verdade daquele feitiço — se a casa era realmente distinta ou se tinha essa qualidade apenas porque, para ele, guardava um encanto incomparável. Parou no último degrau, mais desanimado do que anos antes, quando esperara na chuva, em Peverel. Pensou: Isto agora não ficará mais fácil, será ainda mais doloroso. Por uma faixa de vidro, avistou um piso encerado, espelho, parede branca; um pequeno quadro de cartas de baralho e uma garrafa de vinho. Desta vez, o jornal sobre a mesa era tão explícito quanto a natureza-morta. Um porta-chapéus, de louça azul e branca, era um monumento. Ir e vir à vontade, para sempre, por aquela porta, significava não simplesmente uma felicidade a ele vedada, mas encerrava um tão vasto significado, que mal parecia admissível a alguém. Tal encantamento teria sido pueril, se não fizesse parte da desamparada obsessão de um homem. Ele tocou a campainha, expectante, como se algo estivesse para ser decidido — quando todas as decisões há muito haviam sido tomadas. Um rumor apressado de passos nos degraus, e Caro, que em toda a sua vida jamais correra antes para ele, escancarava a porta e sorria. Estava alta, corada, forte e bonita, Seu rosto amplo se tornara mais largo e mais doce. Uma corrente de ar quente expandiu-se do corredor. Ted avançou um passo e abraçaram-se. Caro passou os braços em torno dele, o corpo descansou contra o seu, em pura amizade. — Oh, Ted, você está ótimo! Era verdade. O sulco na testa e a ruga nas pálpebras tinham adquirido distinção — o sulco agora seccionado por uma ruga horizontal. Ted entrou e tirou o cachecol. — Estava ansioso para que este dia chegasse. A casa parecia cheia de luminosidade, até em seu mais remoto interior. No solstício, o sol penetrava não apenas frontalmente, mas também obliquamente, por uma janela dos fundos. Uma jovenzinha de cabelos lisos saiu de uma sala e ficou parada, olhando, postando-se como o faria um animal doméstico, para avaliar uma visitante. Não como se postara Caroline Bell um dia, em uma escada, presidindo a vida dele. Ted viu a felicidade de Caro. Caro a conquistara, e luzia com ela. Daí por que correra ao encontro dele — podia ser generosa com ele, como para com todos os demais. — Com licença — disse ele, e assoou o nariz. O ar quente do interior da casa fazia seus olhos brilharem. Mais tarde, Adam Vail comentaria: — Gosto dele. Parece um auto-retrato mutilado por Van Gogh. No fim daquele inverno, Adam e Caro voaram até Londres. Houve dias inteiros de chuva com granizo, o balanço de pagamentos estava insistentemente desequilibrado e dois novos livros haviam sido publicados sobre Guy Burgess e Donald Maclean. Edifícios altos subiam, frágeis, mas todo-poderosos. Dora fez uma cena após outra. Ela as guardara como tesouros. A parte boa remanescente em Dora queria que as duas irmãs seguissem em frente e vivessem. A outra, a Dora que prevalecia, detestava a evasão de ambas e fora frustrada na esperança de que elas três, juntas, diriam da vida: "Que terrível!" — Nunca pedi nada a Deus — disse a elas —, mas digo obrigada. Outra noite vi uma paraplégica na televisão e pensei que, enfim, tenho que ser grata por alguma coisa. — Viemos aqui para vê-la, Dora. — Há cinqüenta e duas semanas no ano. Vieram para passar duas delas. Havia algo de treinado naquelas frases que vinham a calhar, em sua presteza, sua concisão, acompanhadas do olhar fixo que havia sido polido diante de um espelho, algo que trazia desespero à alma de Caro. Ela ansiava proporcionar a Dora a famosa e esquiva paz. — A paz não lhe faria bem. Ela está terrivelmente entediada — comentou Adam com Caro. — Acontece que os dias dela são cheios de drama. Dora está sempre tomando satisfações com Dot ou Daph. Era como uma mensagem em Morse1. — Sua irmã é do tipo para quem a morte de Sardana-palo seria insuficientemente fértil em acontecimentos — disse Vail. Caro levou Dora até Kew. — Você adorava camélias — disse Dora. — Naquele tempo. Caro quis negar as camélias, como se elas fossem uma armadilha. Envergonhada disso, gostaria de explicar que desejava partilhar sua paz de espírito, ao invés de oferecê-la em sacrifício. Kew não serviu para sanar a situação. Dora agora pretendia ir para a Nova Zelândia, onde tinha uma amiga em Palmerston North. — Trish Bootle precisa de mim. — Era outra das separações de Dora. — Sou necessária lá. Adam disse que lhe conseguiria uma passagem no melhor navio. — Qualquer coisa, desde que fiquem livres de mim. — Você terá uma passagem de volta. Dora comentou com Dot Cleaver: — É a solução mais fácil: preencherem um cheque. Informado da situação por Grace, Christian disse: — Vail será um tolo, caso se envolva nisso. No fundo, Christian se alegrava por Adam cuidar de Dora. Era como se fosse algo que um americano devesse fazer, como Empréstimo e Arrendamento, ou o Plano Marshall. —Já suportei essa carga o bastante — ele disse a Grace. Naqueles dias, Christian refletia sobre a idade, e receava assumir responsabilidades com a decrepitude dos outros. 1 Trocadilho fonético: dots and dashes, pontos e traços (— . — . —.)(N. da T.) Dora caminhava para os cinqüenta. Suas pernas estavam ligeiramente arqueadas, ela perdia a silhueta e os atrativos. A cada semana seu cabelo ficava mais grisalho. A mãe dele se tornava o que, em sua opinião, era uma preocupação, sozinha na velha casa, com apenas uma mulher que trabalhava durante o dia e um gato vermelho chamado Hots-purr. Estaria muito melhor em um lar. — Ela tem um lar — respondeu Grace, quando ele lhe falou a respeito disso. — Você quer dizer uma instituição. Comemorando uma demonstração de preferência ocorrida há muito, Christian disse para si mesmo que, ficando com Grace, havia feito a escolha acertada. Vira como as pessoas fracassavam, ciando vazão ao impulso. Em todos os sentidos, era graças à sua prudência que nada de terrível lhe acontecera 28 Somente em um verão dos anos 60 é que algo terrível ou, de alguma forma, lamentável aconteceu a Christian Thra-le. Ocorreu enquanto Grace estava em Peverel com os filhos — o que sugere a natureza da ocorrência. Grace mal ficara ausente o bastante para que sua falta fosse adequadamente sentida, quanto mais agudamente; e, sem dúvida, essa ausência não fora longa o bastante para que Christian telefonasse, uma vez que ela era frugal em tais assuntos. Iniciava-se uma noite de terça-feira e Christian estava de pé à janela de seu escritório, observando o brilho sedoso das luzes que se estendiam harmoniosamente sobre Londres: olhava para florestas de folhas espalhadas como mãos abertas, para colunas e portadas brancas, para ruas que cintilavam como rios. No parque, podia ser entrevista uma faixa relvada, uma pincelada de água, as empinadas agulhas azuis dos definíos. A noite carregava a marca de um êxito extraordinário, magnificentemente consumado após inúmeras e grosseiras tentativas. Christian apreciava não apenas o maleável êxtase do pôr-do-sol, mas a novidade de seu imenso prazer pessoal nisso. Tinha apenas olhado para fora, sem nada esperar, além do tempo. Embora o trânsito ribombasse, a luz mnemónica possuía uma qualidade de silêncio — mas ainda assim não parecia um simples fato da natureza, posto que mal se sentiria a existência de tal radiancia sem uma cidade semelhante para comparti-la. Havia nisso um envolvimento humano, como em alguma momentosa passagem de saudação ou despedida humana do mundo. Além do mais, Christian estava cônscio de si mesmo contemplando: um homem alourado, com altura e inteligência acima da média — não obstante, sempre mantendo ao alcance a toca de segurança da média; a medida, de preferência, pela qual podiam ser mensurados saídas e excessos. Uma porta se abriu às suas costas. Ele não se virou, satisfeito em ser descoberto no ato de inspeção e reflexão: um homem alourado, de ombros estreitos, que mantivera a perspectiva. Na infância, como acontece a tantas crianças, Christian se definira como sensível. E, como acontece a tantos adultos, não fizera quaisquer reajustamentos nesse sentido, à luz de estímulos posteriores. Nos assuntos do escritório, costumava avisar: "Se perdermos nosso lado humano, estaremos liquidados". Não obstante, em outras ocasiões, ele dizia: "Temos que traçar o limite em algum ponto" e "Não me compete dizer". Uma crise explodira e, que sorte, Thrale, você ainda está aí. Estava sendo convocada uma reunião, uma vez que havia telegramas a serem remetidos nessa noite. Que sorte!, pois Talbot-Sims tinha acabado de descer pelo elevador. Christian não podia sentir: Que sorte!, ao pensar em Talbot-Sims precipitando-se para casa como se sua vida dependesse disso, voando livre através de Londres, no que ele visualizava como um conversível, embora se soubesse que Talbot-Sims costumava viajar exclusivamente de metrô. Debruçado sobre sua pasta de mesa com desenhos de salgueiros, ele reuniu papéis e, com relutância, assumiu a expressão solícita que normalmente apresentava sem dificuldade. Christian Thrale agora se elevava em sua profissão. Aqueles que acompanhavam sua carreira comentariam: "Christian está crescendo", como se ele fosse um bolo ou massa de pão. Não diriam: "Ele irá longe", o que teria sugerido temperamento, mas, de tempos em tempos, confirmariam sua gradual ascensão: "Christian subiu". A sala de conferência dava para o parque. Apenas a sala se voltava para lá, porque os homens presentes se concentravam em uma mesa, em documentos ou no companheiro, quando não em si mesmos. Olhavam para a superfície lustrosa daquela mesa como se olhassem para um tanque. Revividos por uma rajada fresca de importância, eles faziam ruídos, murmuravam, riscavam fósforos e comparavam relógios — porque houvera um atraso. As estenógrafas de primeira classe haviam encerrado seu trabalho e, de algum modo, tinham-se amontoado com Talbot-Sims naquele alçapão de fuga do elevador para baixo — e a decana, srta. Ratchitt, ficara em casa esse dia, com uma crise hepática —, de modo que estavam à espera de uma moça que viria estenografar a reunião. Aquilo era uma agravante, e cada minuto se tornava precioso. Quando ela apareceu, foi como os delfinios. Para essa emergencia, tinham-na chamado no toalete das senhoras, onde ela se preparava para ir embora — talvez, quem sabe, para uma saída. Naqueles preparativos, a moça soltara inteiramente os cabelos, que eram louros como trigo maduro, e não tivera tempo para tornar a prendêlos. Limitara-se a penteá-los para trás, e eles caíam sobre seus ombros esguios, deslizando espinha abaixo. E até o pior dos homens ali presentes, cujas naturezas eram variadas, admirou aquilo. Christian não recordava tê-la visto antes, nos locais de encontro, no elevador ou no corredor. Entretanto, talvez ficasse diferente, com os cabelos soltos. Quando ela entrou, foi como os delfinios. Ela se sentou em uma cadeira pesada — que ninguém, falando sem exagero, puxou como gentileza. Como nunca haviam puxado a cadeira para Ratchitt, de qualquer modo o contraste os deixaria em evidência. Por trás do véu de sua expressão, Christan Thrale olhava, fascinado. Os movimentos tímidos e deliberados com que ela depositava seu bloco de notas pautado sobre a mesa e o dobrava impediam que um lápis extra rolasse. O cotovelo pousado na mesa, a cabeça inclinada, as longas pestanas voltadas para a página, evocavam a estudante que havia sido pouco tempo antes. Em volta do tanque, a tremulação intensificou-se, antes de ir desaparecendo cerimoniosamente. Era um momento ritual, como se o solista jogasse para trás as abas do fraque, sobre a banqueta do piano, ou fixasse a almofadinha protetora entre o queixo e o Stradivarius. Senhores, podemos começar. Não preciso acentuar que esta reunião será efetuada sob o máximo sigilo, e espero que isto tenha ficado claro para a srta.. . . Lamento, mas não sei o seu.. . Cordélia Ware. Srta. Ware. Muito bem. O gabinete concluirá suas deliberações dentro de uma hora e fomos informados disso. A bandeira de cabelos caiu para diante. Um braço se ergueu para jogá-la inutilmente sobre o ombro. Uma página se virou com rapidez. Uma gazela na sala. Louça em loja de macacos1. Tudo frágil e claro, face, orelhas, pulso e a suave curva azulada da cintura ao ombro. Tendo em vista os acontecimentos da semana que passou, o significado de tal decisão dificilmente pode ser superestimado, assim como suas conseqüências a longo prazo. Sublinhe esta parte, senhorita — creio que não recordo o seu. . . Senhores, o tempo está contra nós. Ela registrava na ata. Os minutos voavam, era ela que os absorvia. Cada momento era precioso e o tempo estava contra nós. Christan recordou linhas: "Como posso eu, a jovem lá de pé, Minha atenção fixar Em políticos romanos, Russos ou espanhóis?" O verso terminava: "Ah, se eu fosse jovem novamente e a tivesse em meus braços". Ele recordou isso também. Quando a gente aprende alguma coisa ainda jovem, nunca mais a esquece. Somos tão velhos quanto nos sentimos. Outra página se virou, e o pulso se arqueou ansiosamente. O mesmo gesto de jogar os cabelos para trás. O tempo estava a favor dela. Usava um relógio de pulso redondo e barato, com pulseira de fita preta — grosgrain, era como diziam na propaganda. Ela o estava afundando, ele adernava como um navio. Ó Cristo, estou na rocha Cabo-Polegada2. Isto é ridículo, e também muito injusto. Anos de feliz casamento não podem, decididamente, naufragar em tais sulcos ou recifes, como está subentendido aqui. A Espanha este ano e a excursão a Avon, em 63. O escritório é real. Entretanto, não ao extremo que o efeito desta moça parece insinuar. E assim, Christian caminhou, ziguezagueando por uma estrada de cabelos amarelos e flores azuis. Seus companheiros de bordo podiam ter estado presos ao mastro, as orelhas obturadas com cera. Eles se agitavam, eles zumbiam. Eles manejavam vigorosamente os cordames. Eles conheciam os cordames. Quanto ao aspecto humanitário, seria enunciada a mais profunda preocupação. Não obstante, isso será feito confidencialmente, a fim de não exacerbar um já delicado. Eles chegavam à fase de reclinar-se, com as gravatas 1 No original: "China in the buli shop". Inversão do dito "A buli in the china shop" (um touro em loja de louças), equivalente ao nosso "macaco em loja de louças". (N. da T.) 2 No original: Inchcape Rock, trocadilho fonético com Inchkeith, ilha rochosa existente no Firth of Forth, foz de um rio escocês. (N. da T.) fora do lugar. Uma precaução sensata, Bickerstaff. Uma boa indicação, Barger. A pertinácia aplaudida como na escola — nesta ocasião, sem Christian entre os alunos inteligentes. Não adiantava segui-la, quando finalmente ela foi dispensada, a fim de datilografar em alguma sala, onde as luzes agora eram acesas e as faxineiras teriam que ser excluídas. O conteúdo das cestas de papel seria incinerado. Extingue-se o fogo na duna e no promontório. Os capitães se fundem, partem os chefes. Vagando por um corredor cinzento, Christian foi detido por um colega esbranquiçado, chamado Armand Elphins-tone. Por vezes, Christian havia dito a Grace: "Não me dou bem com Elphinstone", acrescentando: "Acho que a culpa é minha". Elphinstone fez tilintar moedas soltas nos bolsos das calças amarrotadas. Ele encolheu os ombros vestidos de tweed e salpicados de caspa, listrados por fios caídos dos cabelos. — Eu gostaria de saber, bem, por que somos sempre tão desorganizados. Não houve preparação. Essa reunião podia ter sido marcada para pelo menos uma hora mais cedo. Claro. Não sei como podemos encarar a junta permanente. — Nos bolsos de Elphinstone percutiam sixpences invisíveis, com um molho de chaves formando os instrumentos de sopro. Ele desviou os olhos. — E mandarem essa moça desarrumada! Então, ele também. Até o branquicento Armand. Não adiantava ficar por ali. Elphinstone parecia ter estragado tudo. No dia seguinte aconteceu algo mais. A secretária de Christian estava saindo para suas férias de verão. — E quem eles têm em mente para substituí-la? — perguntou Christian, mas já sabendo a resposta. — Vão enviar-lhe uma moça do escritório geral. Ensinarei a ela o principal. Uma certa srta. Waring. Ou Ware. Naturalmente, quando eu voltar, encontrarei o caos por aqui. No primeiro dia, ela usava um vestido gasto de veludo marrom, o cabelo puxado e preso. Christian foi um homem de poucas palavras, durante toda a manhã, entregando isto ou aquilo para três vias: isto tem prioridade, faça aquilo em rascunho. Só conseguiu manter essa postura até a hora do almoço. À tarde, procurava sondá-la e pedia sua opinião. Ela estava sentada, anotando uma carta ditada, e ele mal podia crer que a tinha ali, à sua terna mercê: Christian se sentia mais terno do que misericordioso. Ao vê-la fechar o bloco de notas, disse: — Espero que não tenha sido retida até muito tarde, na outra noite. Ela ergueu os olhos, inexpressiva. Christian sentiu que se expusera. — Na noite da proclamação do gabinete. — Eu perdi o trem. Moramos em Dulwich. — Hesitou, como se transgredisse os interesses dele, oferecendo tanto como resposta: — Uma das moças me deixou ficar em sua casa. — Espero que não tenha precisado cancelar alguma coisa. — Era o aniversário de meu pai. Que vida oferecemos a estas criaturas!, refletiu Christian — não sem gratificação. Podia identificar certo prazer em afastar o pai dela, com quem se nivelava necessariamente — tem-se que ser cônscio dessas coisas — na condição de rival. Os olhos dela eram límpidos, virados para cima, quase circulares, pálidos como vidro cinza. A voz dela, como o vestido, parecia pele de gamo, uma coisa excelente em uma mulher. O pai dera àquela filha o nome de Cordélia. Quando a ouviu datilografando, Christian pretextou algo para ficar de pé algum tempo, junto da mesa dela. Havia algo quase sexual naquilo, como a relação entre tenor e acompanhante, ela sentada e subordinada, ele de pé e comandando. Cordélia exalava um odor adocicado de talco ou xampu. Seus dedos, enegrecidos pelo carbono, nervosos pela proximidade dele, viraram seis vias de papel para apagar um erro. Um Manual de estilo — que estilo poderia existir em tudo aquilo? — estava aberto com instruções de insano e infinito tédio. Tenho a honra de ser, senhor, de Sua Excelência humilde servidor. Na superfície da mesa, uma camada empoeirada de raspas de borracha, sobre os arranhões e pingos deixados por um bando de secretárias anteriores desaparecidas . Excelência e honra. Com menos satisfação, Christian perguntou-se: Como é que aturam isto? Quase pousou a mão naquele ombro de veludo marrom. Bem de perto, podia sentir a suave curva de vida amoldando-se à sua palma — e, no mesmo instante, afastou-se, desejou-a em segurança e livre do mal que lhe causaria, enquanto ela, tão ansiosa e inocentemente, se inclinava em sua tarefa de apagar. — Essa é de primordial importância — disse ele. — O resto pode esperar. De sua sala, ouvia-a dedilhando ruidosamente o teclado, girando o rolo, em arpejos de sentenças, o andante de um trecho com reentrâncias. Uma exclamação de enfado por uma nota em falso. Era curioso que uma máquina pudesse reproduzir a ansiedade da pessoa que a manejava. O globo imaginado do ombro aveludado permaneceu palpável na sua mão ainda em concha, formando aquele contorno. A noite crescia, como a aurora. A cidade a inalava como um suspiro de imenso alívio. Uma onda de excita-mento fez Christian levantarse da mesa e chegar à janela — onde a metrópole jazia novamente, indefesa e expectante, sob um crepúsculo fenomenal como um eclipse. Um homem cauteloso teria espiado através de óculos especiais ou de um buraco recortado em um cartão. Christian espiava a olho nu. Ele era alguém que ainda podia ver o céu. Que conhecia seu Yeats. Seu Freud. Não era em vão que tais nomes vinham precedidos pelo possessivo. Christian ficou tentado a perguntar-lhe, francamente, se queria jantar com ele. Mas não; não assim de chofre, logo na primeira noite. Que houvesse um intervalo decente e que o tempo ajudasse. Havia prodigalidade nisso — eles tinham tão pouco tempo! Mentalmente, Christian disse "eles" — e não pôde achar injustificado este recente pronome. O dia seguinte foi quente. A cidade escancarava as janelas, enquanto Christian ia de carro para o trabalho. Rodando em direção às torres de Camelot. Como por determinação, ela usava o vestido de centáureas azuis — seria? — e soltara os cabelos. Ele ouvira dizer que as moças nesse ano passavam os cabelos a ferro, a fim de usálos compridos e lisos, mas não acreditava que isso se aplicasse a ela. Não poderiam fazê-lo sozinhas — talvez as mães as ajudassem. Christian tentou imaginar a pequena cozinha em Dulwich, limpa e asseada como um alfinete novo, a mãe de corpo disforme em um avental estampado e ela com a cabeça apoiada na tábua de passar. Era como uma execução. Seria fácil retê-la após o expediente. Não havia dificuldade em forjar uma crise — muitas crises naquele lugar eram forjadas —, retardando algum memorando para a tarde. Quando ela voltasse de seu apressado sanduíche às duas (ele supunha um sanduíche, dada a pressa), então atacaria. Às seis estavam sozinhos, ele relendo atentamente, ela martelando a máquina. Christian levantou-se e foi ao banheiro dos homens para arrumar-se. Correu água da torneira, correu um pente, correu um olho crítico. Sorriu no espelho quadrado, que estava rachado de lado a lado. Caminhando de volta pelas inertes galerias cinzentas, podia ouvir ainda a máquina batendo, como um coração. Entre várias, havia escolhido a magistral asserção: — Eu a levo de carro para casa. — Naturalmente, esperava que ela não ficasse muito surpresa. — Enfrentemos o fato — com esta interpolação, Christian reprovava habitualmente uma forte tendência a ser negligente; — teremos que ficar aqui pelo menos mais meia hora. Aliás, bem poderíamos — conclusão previsível — comer alguma coisa em qualquer lugar, e depois eu a levaria a sua casa. Julgou captar uma leve hesitação — não a chamaria de desconfiança — misturada ao espanto dela. Não obstante, a moça devia estar satisfeita, inclusive excitada. Uma jovem que passava os dias virando folhas de carbono aceitaria com prazer qualquer divertimento. De Sua Excelência, o humilde servidor. Não que ele se encarasse como algum divertimento. — É muito gentil — respondeu ela, sem lhe causar qualquer aversão. Ela estava no carro a seu lado. Cruzaram um rio, o rio, após um chablis e linguado de Dover. Não estava escuro, em absoluto. À frente, o nivelado common 1 era uma inocência de retardatárias bolas de críquete, (erriers sem coleira e casais idosos, ocupando bancos em segurança. (A trapaça teria lugar mais tarde, com o cair da noite.) E as árvores, no entanto — ele nunca sentira isso antes —, aquelas árvores, como nuvens, como biombos, como enormes buquês. Ela conseguia isso: primeiro, centáureas azuis, agora árvores. Dríade de asas leves, faia verde, Rima, a jovem-pássaro que era o tipo dela, a ninfa constante que era seu nome, Tess de . . . não, nada disso: Tessa. Tudo isto em Clapham. Ele teria gostado de parar o carro, de vez em quando, só para olhar as árvores, e então a tomaria nos braços, quase incidentalmente. Não obstante, era necessário o intervalo decente. Ela havia falado tão pouco, tudo correto e nenhuma tolice. Estava ainda imóvel, olhando para a noite e as árvores com a cabeça voltada para o encosto do banco, embora não reclinada nele. Continuaram rodando, ao longo de avenidas suburbanas, pelas quais ele sentia a gentileza.dispensada a um amigo de infância que não prosperara. — Dobre para a esquerda, no colégio. Ele dobrou. — É bem aqui, à direita. Esta. Christian esperara uma fileira de desmoralizados jardinzinhos, três Área existente em uma aldeia ou perto dela, de gramado sem muros, e que pode ser usada por todos em geral. (N. da T.) 1 degraus na entrada, um pórtico de vidro opaco que sobressaía melancolicamente do tijolo. Não podia ter ficado mais irritado se ela o tivesse desapontado deliberadamente. Não que a casa fosse grande: era uma casa atraente, branca, mas século XVIII, margeada de fúcsias, ao longo de um breve crescente de cascalho bem-tratado. Entretanto, era uma casa precisamente do tipo que ele e Grace tinham visto e decidido que não podiam comprar. Havia luz em todas as janelas. Era como uma casa em festa, descrita em um romance: "feérica". (O próprio Christian preferia apagar as luzes, quando não em uso.) Ou era um navio, festivo e solene, com todas as velas e todos os estandartes flutuando. No andar térreo, uma cortina de seda enfunava-se atrás de janelas francesas, como uma vela principal. Christian parou diante da porta. O carro amesquinhou-se diante do brilho da casa. Ele recordou brinquedos de plástico no banco de trás. — O senhor vai entrar. Ela era quase social em seu próprio território. — Está ficando tarde. Tenho que voltar. Mostrava-se rude, pois a casa era uma ameaça. Podia sentir o olho do pai sobre ele, via-se piscando diante das luzes, exibido como em um posto policial. Devo avisá-lo de que tudo quanto disser. . . Ainda assim, ouviu-se anunciar: — Fica para outra vez. Desajeitadamente, inclinou-se à frente dela para abrir a porta, pousando a mão sobre a dela, que pressionava com ineficácia, como se selasse um contrato. — Para cima e empurre — disse. Depois: — Bata com força. Um terrier escocês precipitou-se pelos degraus em direção a ela, todo focinho, patas e cauda abanando. Christian a ouviu dizer: — Aqui, Hoots! Aqui, Hootsie! — em uma espécie de êxtase. Voltou para a cidade em confusão. Estivera preparado para seu papel, jovial mas contido, dono da situação na modesta casa de begónias e cozinha como alfinete novo, ajudando-os a vencer a timidez. Estava até pronto para um possível irmão socialista, cujos despeitados desafios poderiam ser graciosamente colocados no devido lugar. Entretanto, não distintamente preparado para a posse niveladora de Lowestoft, Regency, edições encadernadas, um desbotado mas valioso tapete Samarkand; e, talvez, um atribuído-aHoppner, acima da lareira original. Ele detestava, acima de tudo, a sensação de ter escapado por pouco. Não podia deixar de associar sua presente impetuosidade ao primeiro encontro com Grace. De fato, haveria ou não uma reconhecida condição chamada complexo de Cofetua? Ou teria ele maquinado aquilo? Chegando em casa, telefonou para Grace. A ligação, que podia ter sido uma ajuda, deu em nada. Uma vizinha viera visitá-la, era tarde demais para fazer as crianças virem ao telefone, um momentinho, que preciso desligar qualquer coisa. Jeremy tinha se mostrado cético sobre a autêntica Távola Redonda — que haviam pago para ver, nessa manhã — e Hugh ficara emburrado. — Alguma novidade no escritório? — Essa confusão na África nos deixa sobressaltados. Enfim, sempre existe o secretário de Estado. Estamos com falta de pessoal, como de costume. Deram-me uma secretária provisória. — A srta. Mellish foi embora, então? — Haverá um caos quando ela voltar. Christian desligou e tirou os sapatos. As venezianas estavam arriadas, para evitar que o chintz desbotasse. A partitura de Grace jazia dobrada sobre o piano fechado. Christian podia ver a Mansão Ware, coroada por seu velame branco. A moça inclinada, a portada iluminada como um palco. O rosto e as mãos dela animados de amor, quando alcançou o cão que lhe arranhava os tornozelos e os joelhos. Podia ouvi-la falando, em sua voz de gazela articulada; chegava até a sentir o próprio roçar do pêlo do animal. Christian mal podia esperar pelo dia seguinte. Na manhã seguinte, ele guardou os brinquedos de plástico no porta-malas do carro. O tempo se mantinha bom, o intervalo decente ia correndo. Uma sensação de quase abandono de sextafeira animou o departamento, como se existisse pela frente algo além de um fim de semana inglês. Até na África havia uma calmaria, onde os crocodilos preguiçavam em águas madraças, entre muralhas de bambus imóveis. A visão de Cordélia Ware, em um estampado rosa de flores primaveris, dispersou a derrota de Dulwich, exorcizando o espectro do Pai Inspetor-Detetive. Apenas Elphinstone estava resfriado. Naquela noite, voaria para uma importante conferência em Bruxelas e estava preocupado quanto aos efeitos da cabina pressurizada em seus ouvidos. Christian parou junto da mesa de Elphinstone. — Tudo bem? Elphinstone tossiu. A princípio fleumaticamente, como uma ignição defeituosa, o motor engasgando e engasgando, até pegar. Ele puxou um lenço do bolso, com o nervosismo de quem procura uma bandagem. Virando-se, Christian olhou para duas fotografias emolduradas, que pendiam da parede, ao lado do mapa: o avô de Elphinstone em traje diplomático e uma festa de casamento dos residentes britânicos, certa vez organizada por Elphinstone, no cemitério inglês de Capri. O mapa era tão antigo, que a índia era rosa. Por fim, Elphinstone respondeu: — Não há nenhum problema comigo. Disse a palavra "problema" com sarcástica ênfase, deixando bem claro que sabia ser um americanismo. — Sabe que estou de plantão amanhã. — Christian ia ficar trabalhando no fim de semana. — Caso aconteça alguma coisa. Elphinstone era pura compreensão. — Você não está aproveitando nada do verão. Sinceramente. Está perdendo seu fim de semana. — Ergueu o lenço grumoso até o rosto e olhou para Christian por sobre o tecido, como um bandido. — E trabalhando até tarde. Christian afastou os olhos das trolhas, dos sorrisos e dos agitados dentes-de-leão do cemitério inglês e os baixou para Elphinstone. — Não tem importância. Depois que ele saiu, Elphinstone tornou a assoar-se no lenço e o estendeu para secar no peitoril da janela. Ignorando tudo isso, na mais pura inocência, Cornelia Ware levantou os olhos de sua papelada mal-ajambrada, quando Christian ia entrando — o olhar dela um refrescante contraste com o de Elphinstone. Sentado à sua mesa, ele começou a assinar papéis, que atirava vingativamente em caixas. Sentia raiva, mas também certo triunfo. Os olhos de Elphinstone acima do lenço enorme eram algo de se ver. Um incompetente, um tolo insuportável que nos foi imposto, sejamos francos, porque seu avô negociou um desastroso tratado em 1908. Deus, se o público soubesse! A tarde foi se gastando, gastou-se. Firmemente aliviado do lastro das saídas antecipadas, todo o andar se tornou animado, flutuante. A srta. Ware — Cordélia — trouxe para ele o papelório que entrara. A bonança persistia, estendendo-se sobre continentes, amainando o vento nas velas da África. A súbita atividade funcional oscilava ineficazmente, indo e vindo nas calmarias do globo. Havia cópias para informação e o texto de uma fala ministerial que não seria mais transmitida devido à mudança de circunstâncias. Havia papéis nos quais se lia SEP , subsecretário de Estado permanente, e em que a ação não era considerada nem requerida. Havia ainda um cartãopostal dos rochedos de Etretat, enviado pela srta. Mellish: Espero que tudo vá bem. — Mellish está no país de Monet. — Ela também me mandou um. Eram os mesmos rochedos: Esqueci de mencionar, deixe o arquivamento para quando eu voltar. Ficaram parados, cada um segurando um cartão-postal, um passe de saída, enquanto o tempo se escoava. Ele não podia ser enganado por aquela calmaria. O telefone tocou. Era de uma pessoa que, em um departamento paralelo, ocupava posição equivalente à sua. — Escute aqui, Thrale. Não estamos entendendo o caso na conferência de Bruxelas. — O que mais vocês querem? Estamos enviando um de nossos melhores homens. — Não se preocupe muito, meu velho. É apenas uma questão de comunicação. A palavra "comunicação" recebera o tom maroto que Elphinstone emprestara a "problema". Fazendo uma careta para a moça, Christian agitou o fone, em uma mostra de exasperação. Jamais cometera impropriedades com a srta. Mellish. Estava febricitante pelo fim do dia — ou seu início. A voz ao telefone zumbiu, atraída irresistivelmente para o jargão, mas não desejando ficar com a responsabilidade. Com uma esferográfica impaciente Christian traçou, sobre a pasta da mesa, os contornos do cartão-postal colorido, seu carnet de bui. Então, imediatamente ela disse: — Se não houver mais nada. . . — e já segurava a bolsa. Tinha um cardigã escarlate no braço e dizia: Até logo, sr. Thrale. Nunca ocorrera a Christian que ela pudesse sair imediatamente, por vontade própria. Antes que pudesse desligar, Cordélia já se fora e no corredor não havia mais ninguém à vista. Perdendo a cabeça por completo, caminhou em largas passadas, a fim de parar o elevador. Somente Elphinstone estava parado entre as portas do elevador, pronto para mergulhar. Sorriu para Christian por sobre o ombro e levantou os dedos, no sinal da vitória. Era como se fosse dar um salto de pára-quedas. Quando desapareceu, sua mão pousou sobre o coração, à procura da corda de abertura do pára-quedas. De volta a seu gabinete, Christian parou à janela onde tudo havia começado. Não estava bem certo do que pretendia, mas, definitivamente, não era a perspectiva de perambular através de uma noite fracassada. Com um último clangor de arquivos e gavetas sendo fechados, tudo caiu em silêncio. Por toda Londres, havia moças entrando e saindo de carros, enquanto homens mais novos se inclinavam para elas, dizendo: "Para cima e empurre". Casais transportavam bandejas e sugeriam: "Você traz o gelo", e a mobília da Harrods para jardins finalmente estava ao ar livre. Somente Christian permanecia inconsolável, à janela de seu gabinete. Se não fosse pelo suéter escarlate, talvez não a tivesse localizado. Ela atravessava a rua abaixo, caminhando devagar e tomando a direção do parque. Bem, podia estar indo para o metrô — mas ninguém caminha assim para um trem, erguendo a cabeça para o céu e jogando o cardigã casualmente sobre um ombro. Ela tinha pernas esguias e calçava sapatos sem salto. Como todos os seus movimentos, o andar era fascinante. Ele saiu da teia, saiu da névoa. Em três passadas, estava junto da mesa, batendo gavetas, agarrando caneta e óculos. Ainda teve suficiente presença de espírito para aferrar um envelope com documentos para o fim de semana, à guisa de um ponto de apoio. Na rua, quando a teve à vista, procurou controlar-se, mantendo na imaginação o sabor daquele deleite. Espreitando-a, sentiu uma segurança de felicidade que raramente experimentara como adulto e que era incompatível com a infância. Christian se apaixonara como jovem, depois como homem novo, pronto para aceitar esposa. Entretanto, nada como agora, quando, absolutamente fora de qualquer contexto, não representando forças senão aquelas além de seu controle, espiava Cordélia Ware em um frenesi de ternura, algo que se confundia entre a adoração e a condescendência. Alcançou-a quando ela ia entrando no parque. E houve a personificação de amistosa surpresa: Não vai para Dulwich? Ela explicou que a tarde estava muito bonita, o parque também. Passaram juntos pelo portão. Vagaram por rampas de flores iridescentes e entre árvores cornalinas. Cruzaram uma ponte e sentaram-se em um banco vazio. O envelope do escritório, cuja cálida e enchumaçada sensação se tornara repugnantemente viva na mão de Christian, agora estava acantonado em seu outro lado, como um cúmplice super-zeloso. Ali havia um amplo repouso, a terra toda relva, o céu todo firmamento, embora por causa de aves aquáticas altercassem crostas arremessadas e um jornal passasse por eles, com uma manchete atroz. Em algum ponto, lá no alto, Elphinstone estava a salvo em um avião, engolindo com força para proteger os ouvidos e pegando uma bala extra da bandeja oferecida, a fim de permanecer no lado seguro. Ela se sentou ereta, não como se estivesse em uma sala de aulas no ginásio, com os dedos entrelaçados sobre o joelho cruzado. E, com a tarde em seus cabelos e na pele pálida, tudo era luz. Cordélia o fitava, grave e pronta a ouvi-lo. Como a musa: paciente, mas acessível apenas àqueles que agiam com boa fé. — Janta comigo? Por enquanto, era o tom mais humilde que dirigia a ela. Flores rosadas elevaram-se em seu seio estampado. — Se não houver problema — disse ela. Christian não sabia como tratar aquele apelo à sua autoridade e o ignorou. Tudo agora parecia possível. O mundo inteiro, como o fim de semana, estava diante deles. Ele não esquecera que Cordélia certa vez passara a noite na cidade, com uma amiga. Já naquela época, arquivara a informação para possível uso futuro. — Não a esperam em casa? — Eu telefono. Christian não queria saber o que ela diria. Para o diabo com o Pai Inspetor. Os dois ficariam sentados entre a grama e o céu enquanto houvesse claridade e depois ele a levaria para jantar em um lugarzinho situado perto da Duke of York Street, onde costumava ir nos dias de correspondência de última hora. Ele havia descontado um cheque pela manhã. A ilimitada expansão de possibilidades irradiava nova tolerância sobre cada coisa mortal: as amortecidas buzinadas do empreendimento humano que chegavam até eles, soando na rua, o guincho desagradável de uma ave imoderada, quase a seus pés, o casal no relvado próximo, cujas ondulações sob um impermeável aberto eram como uma lasciva piscadela em direção a eles; os duques de ferro e almirantes de pedra, fixados no topo de pedestais e colunas. Tudo apropriado a esta terra, inclusive os oficiais da guarda em suas túnicas Mao de vermelhão e barretes afro, bem como o distante reticulado de um arranha-céu que se elevava, contra cuja ereção ele havia, nos últimos tempos, assinado uma petição. Christian afastava-se de insignificâncias, como acontece àqueles que sentem uma felicidade ou pesar imensuráveis. Sua preocupação com a importância o inadequara para a grandeza: era um homem de influência apenas delegada, mas, naqueles momentos, compreendia o grande coração dos heróis. A tarde se passou nesse estado de espírito. Christian tomou o braço de Cordélia no primeiro sinal verde e só o soltou quando chegaram ao restaurante. Durante o jantar, ele discorreu sobre a Espanha, onde ela nunca estivera. — Não adianta negar, Madri é o Prado! Falou depois sobre as Hébridas, onde ela estivera. Christian ficou sabendo que a casa de Dulwich fora do avô e que havia mais três irmãos, além de um tio ensurdecido por quinino em excesso, durante uma década em Bengala. Além do terrier, havia um gato franjado, chamado Ruffles. Tudo isso — os Grecos, os Couillins, o tio e o gato felpudo — desfilou em brilhante parada, através do espaço, em um estreito aposento. Caminharam de volta ao carro pelas ruas amplas e pelas praças imensas construídas em tempos mais limitados. Apenas um ou outro veículo passou por eles. Nem uma só alma subiu os degraus dos clubes adequados ou surgiu das pequenas portadas com petúnias das grandes corporações. Era possível ouvir-se uma passada ou gargalhada, por toda a extensão daquela nobre e não terrena avenida. Christian abriu a porta do carro para ela e a ficou segurando, mas de maneira a bloquear a entrada de Cordélia. — Preciso ver você. — Eu sei — disse ela. Ele deixou a porta se mover, e ela pendeu lentamente, abrindo-se como uma veneziana de uma casa abandonada. No assento traseiro, de onde havia retirado objetos infantis naquela manhã, Christian arremessou seu envelope recheado de falsos documentos. Apertou Cordélia Ware nos braços. Eles — eles — tiveram quase três semanas, antes da volta da srta. Mellish. E, por sorte, a sorte se manteve. Como o tempo. A África continuava quiescente. Os pais de Cordélia partiram para Dordogne, e Grace considerou que a quinzena extra faria um bem imenso às crianças. O próprio Elphinstone, embora tendo voltado de Bruxelas, estava fazendo um prolongado tratamento dentário. Christian Thrale conduziu Cordélia Ware, por seu perfeito e pequenino cotovelo, através de solitárias ruas noturnas e a abraçou em bancos de parque. Encostava o rosto contra a cabeça inclinada de cabelos lisos e presos, para então, tomando as tranças douradas — não havia outro nome para elas —, desfazê-las em mãos incrédulas. Retribuindo, ela deslizava os braços em torno de seu pescoço ou lhe aproximava a palma do rosto e a beijava. No Hillman Minx de Christian, eles cruzaram e recruzaram o Rubicão, na Ponte de Battersea. Alea jacta est. Como haviam sonhado fazer, sentavam-se entre as árvores elegíacas. No tocante a Christian, esses momentos deleitosos deixavam, de modo totalmente literal, algo a ser desejado. Embora a aparência virginal daquela jovem o tivesse atraído de início, Senhores, o tempo está contra nós — mas a favor de Grace, consultando horários de trens, e da srta. Mellish, no vapor que partia da cabeçadcponte na Normandia. — Sou feliz apenas em estar com você — disse ela. Deslizava a mão no braço dele, em um de seus gestos frágeis e precisos. — Decentemente, não pode se queixar disso. Ele riu. — Então — disse —, indecentemente me queixo. Seria incomum ela pertencer ao tipo pouco decente — as jovens daquela época nada tinham disso. Pelo menos, não quando se conhecia uma delas. Christian não saberia dizer qual postura de Cordélia mais o deliciava, se quando profundamente encurvada ou esguiamente ereta. Ou qual de seus movimentos, castos e extravagantes, como os de uma bailerina. Cordélia tinha aquela maneira de olhar. . . não se poderia dizer "confiante", exatamente, mas de alguém que "acredita". Ela solicitava um julgamento. Fazia perguntas simples, como legítima curiosidade, como querendo descobrir de que modo o mundo girava. A aparência, os apelos, as perguntas, tinham o efeito de designar responsabilidade. Christian apreciava ser o formulador de constituições, o dispensador de inalterável lei. — Seu método socrático — disse a ela, tomando entre as mãos aquela face erguida e que lhe sorria, da estatura que tinha sido a ele conferida. Cordélia não perguntou o que queria dizer aquilo, mas manteve firme sua imperscrutável franqueza. Era difícil ver como um olhar tanto podia ser uniforme como erguido. Nunca, em quaisquer circunstâncias, ela usou seu primeiro nome, o nome de batismo. A observação de Christian a esse respeito causou um ligeiro mal-entendido. — Achei que você não gostaria disso no escritório — disse ela. Christian havia imaginado, como lógico e natural, que Cordélia não o trataria pelo nome no escritório. Há certas coisas que não precisam ser ditas. Um dia, ela perguntou: — A desilusão o perturba? — De certa forma, para minha surpresa, não — respondeu ele. Não podia ficar apenas nisso, e acrescentou: — Apenas não gosto de ferir os sentimentos alheios. Não estava querendo aludir aos dela. Foi apenas no final da última semana que ele teve, como se costuma dizer, jeito para lidar com ela. Os Thrales moravam em um crescente de residências vitorianas, que um dia tinham sido da cor do marfim, robustas e ligeiramente irregulares, como uma boca cheia de dentes fortes. Agora, no entanto, elas estavam descascadas, riscadas, recapeadas e haviam se tornado uniformes. Foi ali que, trancando portas e puxando cortinas, Christian finalmente se deitou em seu leito matrimonial com Cordélia Ware. Em verdade, a questão das camas não pôde ser dignamente resolvida. Seria a das crianças ou a dele. Nesse sentido, ela fez uma de suas perguntas: — Você se incomoda? — Em absoluto. — Acrescentou: — De qualquer modo, este é o meu lado. É curioso como o abandono gera precaução. Foi naquela mesma noite que ele começou a esclarecer-se. — Jamais esquecerei isto. Nada do que aconteceu — disse ela. Certamente, para empregar sua própria frase, Cordélia não podia se queixar decentemente daquilo. — Sentirei um ciúme horrível do homem com quem você se casar — disse ele. — Aliás, já o odeio. Ela ficou contemplando o teto, de olhos arregalados, como se não conseguisse fechá-los. Após um momento, perguntou: — Como ficaremos, daqui por diante? — Minha querida, eu não sei. — Afinal de contas, ele não era um oráculo. Ela olhava para cima, esquadrinhando os céus. — Iremos tocando de ouvido — ele soltou o americanismo com a entonação de Elphinstone. No dia seguinte, Christian telefonou para Peverel. Grace estivera em Winchester e vira a sepultura de Jane Austen. — Eu gostaria que você estivesse aqui, Chris. — A única coisa que aprecio é Orgulho e preconceito. — Estou me referindo a este verão. Nunca mais será tão bonito! Seus dias e noites afastados, seus prazeres divididos o deixavam pesaroso. Grace mencionava o close1, as rosas, o labirinto de torrentes e os prados além da escola. Segundo ela, a vista de Peverel sobre o vale naquela manhã era, em suma, esplendorosa. Ele a interrompeu: — Não posso ficar falando tanto. Isto está custando um dinheirão. Durante três semanas, Christian havia se sentido um explorador em sua cidade nativa. Não porque tivesse levado Cordélia Ware a muitos lugares, a menos que se contasse uma vez a Chiswick, uma outra a Greenwich, e à Wallace Collection, onde não subiram ao andar de cima. Sim, porque a visibilidade clareara para ele, como para um piloto que navegasse na bruma, deixando à mostra tetos e espiras, jardins e o congestionado fluxo de ruas em excitante e 1 Área em torno de uma catedral, abadia ou escola, em geral cercada por suas edificações (moradias dos sacerdotes, etc). (N. da T.) perigosa proximidade; revelando aves em vôo e gatos caminhando sobre muros. As curvas da terra e da água haviam se tornado pontos de referência não mais considerados seguros. Acima de tudo, ele percebera na forma humana a doce glória dos olmos e carvalhos de Battersea: vira os homens como árvores ambulantes. Agora, em uma segunda-feira repleta de normalidade, uma manhã de donas-de-casa chamando o açougueiro ou vasculhando bolsos de calças antes de enviá-las ao tintureiro, Christian viajava mais uma vez pelo metrô. E a srta. Mellish havia chegado cedo, estava verificando o trabalho acumulado e ainda por fazer, enquanto murmurava: — Não estou muito certa. — Conseguimos ir tocando para diante. — Lealmente. — E, considerando-se as circunstâncias, acho que não fomos tão mal. A srta. Mellish, que não tivera sorte com os fruits de mer e cujo retorno a enchera de afeição pelo Château Gaillard, sentia-se condescendente. — Ela tem boa vontade. E isso é muito, nos dias de hoje. Christian concordou. — Naturalmente, não é como contar com a senhorita. — Apenas uma questão de experiência, sr. Thrale. No começo, eu tinha tão pouca prática como essa moça. A mesma coisa. Todos temos que começar por algum lugar. Christian poderia chorar, ao ouvi-la dizer aquilo. Trouxeram-lhe mais tarde um formulário para preencher, com respeito ao desempenho de Cordélia Ware. Ele registrou que ela mostrava boa vontade, que podia assumir responsabilidades e fazia um trabalho limpo e bem-cuidado. Grace voltou para casa trazendo uma pesada mala e um pote de cerâmica com mel de lavanda. Os dois meninos estavam de mãos vazias. Jeremy pôs jazz na vitrola; Hugh irrompeu por todos os cômodos, deixando tudo em tumulto: — Onde está Bimbo? Não consigo encontrar Bimbo! Todos os assuntos foram trazidos à luz, postos em ordem. Exceto Cordélia Ware. O vertiginoso espaço ilimitado centraía-se em uma área decente. Um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar. Cordélia Ware estava de volta ao escritório geral. Abruptamente, a situação de Christian tornou-se difícil. Para avaliar seu isolamento em meio a isso, dever-se-ia saber que Cordélia Ware havia sido o único episódio não premeditado de sua existência, desde Grace Bell. Qualquer outra ação precipitada tinha sido sancionada e requerida pela ordem social e — mesmo quando levada a efeito sozinha — executada em grandioso concerto. No empreendimento Cordélia Ware, ele se aventurara por conta própria. Era uma mutação, como a do peixe para a terra. E Christian, ofegando no deserto de seixos, sabia-se uma criatura do oceano e das águas rasas. Em um livro antigo, aquele era o ponto em que o protagonista podia acordar, para descobrir que tudo fora um sonho. Em sua solidão, ele disse: "Sou o culpado". Uma acusação que raramente encerra toda a verdade. Se Christian atirava a culpa em algo mais, era, curiosamente, na literatura. Ele culpava — mas esta não era a palavra — os incitamentos e colorações da linguagem que haviam colocado visões ante seus olhos e sentimentos em seu coração. Ele se sentia importunado por ecos que tinham precedido a dicção, traído por metáforas e exaltações que, adquiridas cedo, nunca poderiam ser erradicadas. A literatura era um bom servo, mas um péssimo patrão. No escritório geral, Cordélia Ware sentava-se ereta diante de sua Underwood de carro longo. Números orçamentários estavam em preparação: as máquinas arremessavam-se com violência de ponto a ponto tabulado, como lançadeiras em uma fábrica têxtil. Ela não se inclinava mais ansiosamente para a página e, aliviada dessa ansiedade, ganhara eficiência. — Aí está você — disse a supervisora. — A experiência lhe fez bem. Essa supervisora tivera um mau pedaço com os freios em um cruzamento e agora usava um suporte para pescoço, de espuma de borracha. — Uma chicotada — explicou. Não havia janela. Cordélia olhava para a parede, onde poderia ter existido uma janela. De algum modo, e relutantemente, Christian estava a par disso tudo. Agora, seu tempo não lhe pertencia. A África afinava os instrumentos: sons desafinados subiam de tetos de zinco e mesmo dos centros cívicos, forrados de fibra de vidro, onde se esperara que o ar-condicionado levasse a acordos. Christian conseguia encontrar-se com Cordélia Ware à hora do almoço, durante a segunda semana, em um pub bem distante do escritório. Embora ele tivesse se apressado, quando chegou já a encontrou lá; se ela tivesse o senso que lhe era nato, não pareceria tão deprimida. O tempo havia mudado. Agora, as próprias manhãs eram crepusculares. Por toda parte eram visíveis os sinais do outono, inclusive do inverno — tardes escuras, espirais de pétalas e folhas caídas, os mineiros ameaçando greve. Christian colocou o jornal no bolso do impermeável e sentou-se ao lado dela. — O mundo inteiro vai fumegar — avisou ele. Se aquilo ao menos desse a ela um sentido de equilíbrio... Se, ao menos, a condição mundial de estopim obscurecesse, minimizasse ou mesmo tornasse irrelevante seu próprio dilema. . . — Teremos um inverno amargo — anunciou ele. E ela olhava, olhava. — Se os mineiros pararem. . . — Não podia dizer se aquele olhar era firme ou implacável — e não era tampouco inteiramente desejável. — Claro, ninguém pode negar que a vida dos mineiros é insuportável. Se perdermos nossa benevolência. . . — O povo está do lado deles — disse Cordélia. — Aí está a questão. — Tépidas shandies1 foram postas sobre o balcão e ele pagou. — Isto é, eles são heróis. Enfrentar o risco e o poço. . . Todos sabemos que é aterrador. Em um escritório, nem mesmo isso existe. Ele não gostou,do que ouvira. — Não acha que está dramatizando? Ela se recostou no desenho eduardiano do couro plástico acolchoado, reclinando francamente a cabeça. Um rapaz no bar olhou para seu pescoço alvo. Christian pousou a mão no joelho dela, por baixo da mesa. Perdoe-me, Cordélia; que causa, a sua! Os olhos dela encontraram os seus imediatamente: Não existe causa. Christian não compreendia a própria indecisão — ora querendo isto, ora aquilo. Entendia ainda menos por que a indecisão, no presente, devia parecer sua única virtude. Nos livros e filmes, A Mocinha encaminha a situação até um ponto definitivo. Não nos encontraremos mais, isto é, Adeus, sr. Christian. Como a maioria das banalidades, via-se agora a fórmula originar-se em fundamentos. Sem dúvida, Cordélia Ware não iria beneficiar-se de sua intolerável e recomendável prerrogativa. Ela pegou um sanduíche coriáceo, cujos cantos levantados desnudavam uma sardinha esfoliada. Deixou no prato as crostas duras, com o meio pepino em conserva. Quando saíram, o homem no bar olhou aberta e ternamente para ela, ignorando a condição de Christian ou vendo através dela. Na rua, Christian disse: — Você arranjou um admirador lá dentro. — Ele não falava de si mesmo. — É. Depois de chamar-lhe a atenção para o homem, ele ficou irritado porque Cordélia o tinha visto. Obviamente, a qualquer momento ela irá se interessar por alguma outra pessoa. Tu que passas teus cabelos, tu que alcunhas as criaturas de Deus, segue o teu caminho. No táxi, ela se sentou ereta a um canto, com os dedos entrelaçados 1 Mistura de cerveja e gengibirra. (N. da T.) sobre o joelho. Tantos dedos — sem dúvida, compunham o número certo, mas aquilo parecia um verdadeiro entrançado de dedos, dedos. Ao lado dela, a janela estava obscurecida pela chuva repentina. O táxi escureceu. Cordélia quase o encarava de seu canto, os cabelos a única coisa brilhante e os olhos com a cor da chuva. A janela se embaciou como um espelho estragado. Christian disse: — Estamos chegando. Ele se perguntava como fazer a necessária separação quando descessem do táxi, no repentino aguaceiro — ou temporal. Perguntava-se se, afinal de contas, não amava aquela jovem incomparável. Quando ela retornou ao escritório, a supervisora dizia: — Não temos máquinas suficientes com carro longo. — Elas bem poderiam estar preparando uma solene procissão. Rolos de papel pautado eram distribuídos como proclamações. — Se o enrolarem ao contrário, ele ficará uniforme. Cordélia sentou-se à sua Underwood de carro longo, de cabeça baixa, como se desse graças. Saindo de um elevador, discretamente atrasado, Christian olhou em torno com a cabeça erguida, um perdigueiro que perdera o faro. Do escritório geral, chegava o som de máquinas de escrever trabalhando com medido desespero: últimas mensagens vindas da ponte. Ele recordou os termos amargos de Cordélia: o risco e o poço. — De volta às minas de sal. Era Elphinstone, ele próprio atrasado, chegando de um tratamento dentário de um canal. Caminharam lentamente. As notícias eram agourentas. Não poderiam também ter chegado em pior época, com Barger ainda sob o Mikonos e Talbot-Sims sob a Acromicina. Elphinstone tinha a última sobre o secretário de Estado. — Deixou cair um tijolo e perdeu seus mármores. O imperador Augusto, e daí? — Chegando ao fim de um corredor, deram meiavolta e caminharam vagarosamente, retornando, como uma guarda palaciana. — Como você sabe, acontece que tive oportunidade de observá-lo de perto. — Certa vez, Elphinstone se sentara brevemente no banco dianteiro de um carro no qual havia membros do gabinete no banco traseiro. — Para ser franco, não existe discrição. Nenhuma, em absoluto. Estavam à porta de Christian. Contudo, Elphinstone se deteve, Elphinstone lamentou. — Ouça o que lhe digo, Thrale. Não posso alegar que alcancei muito na vida. Sou franco. No entanto, o que quer que tenha alcançado, foi por observar os regulamentos. Nunca se é demasiado — ele começou a dizer "cuidadoso", mas substituiu por "escrupuloso". Se tais palavras estavam endereçadas a Christian, era discutível. E ele se envolveu em um debate por toda aquela tarde. A culpabilidade não sentida por Grace ou Cordélia fora despertada no que dizia respeito ao escritório. E quanto ao bolo crescente de Christian Thrale? Era possível que Armand tivesse boa intenção — e, como um velho amigo, falado em tempo. Ou seria pior continuar? — com Christian sendo convocado a uma sala silenciosa pela autoridade, a porta se fechando e um chefe dizendo: "Sua vida particular, Thrale, é da sua conta, naturalmente", e dando a entender, claro, que não era. "E eles se persignaram com medo, Todos os cavaleiros em Camelot." Entretanto, ele estava deixando a imaginação correr à solta. Desenfreada. Sua transgressão fora demasiado breve para provocar aquela punição tão amedrontadora. Em realidade, era absurdo não se poder ter um pequeno e verdadeiro amor, sem conseqüências para o resto da vida. Especulações razoáveis davam lugar umas às outras loucamente, repudiadas nos limites da crença. O compromisso mais inócuo se tornava convocação para a condenação social e profissional. Ele encerrou as tarefas do dia com a atenção destrutivamente dividida. Pendurado como um peso morto ao balaústre do metrô, ele pensou: Isto não pode continuar. Estou me portando como. . . bem, como Raskólhnikov. O risco e o poço. Naquela noite ele se manteve perturbado, embora não deixasse transparecer, durante um espetáculo benemerente para o qual Grace havia comprado dispendiosas entradas, com meses de antecedência. Na manhã seguinte, sucedeu algo espantoso. Cordélia Ware apareceu em seu escritório. Ela parou à entrada — mais tarde, ele fantasiou que Cordélia se apoiara contra o batente, mas um floreio tão grotesco apenas refletia o medo inspirado pelo incidente. Por um incrível e enorme golpe de sorte, a srta. Mellish não estava à vista. Christian se levantou de sua mesa — e, nesse ano, parecia que ele estava sempre afundando naquela mesa ou emergindo dela como de algum ancoradouro ou lugar de oração. — Cordélia — disse, procurando evitar que ela se aproximasse. — Eu talvez não possa. Este não é o lugar mais apropriado. Seria a última coisa que qualquer um de nós desejaria. Era hediondo. Pela expressão que mostrava, ela poderia ter feito qualquer coisa: chorado, gemido, arruinado o rascunho do relatório que ele elaborava. Christian a tomou pelo cotovelo — a sensação carregada de impessoalidade quase clínica, como se ela fosse uma paciente em um hospital — e a encaminhou para a saída. A própria submissão dela o alarmou. Ele falava, falava. — Não devemos delatar-nos. Deixar que as coisas transpirem. Não teria qualquer utilidade. Reflita, Cordélia. Ela não havia dito uma palavra. Saiu. O terrível diminuiu, com trabalhosos arquejos, para o altamente lamentável. Uma hora e um lugar para tudo. Ela não conhece o seu lugar. O posto já havia sido preenchido. A mulher era visivelmente neurótica. Desde o início, houvera aquela insolvida fixação no pai. Considerados todos os pontos, ele podia congratular-se, por ter escapado por um triz. Nada de falar o que ela poderia ou não fazer. Seria terrível se. . . mas isso estava fora de questão. Somente nas peças. Ofélia. A terrível aparição em sua soleira era, em retrospecto, a sugestão de uma cena louca. Tudo confuso. As árvores em farrapos, os arbustos desgrenhados pela chuva. As velas de Dulwich recolhidas e o vento sibilando nos cordames dos mastros. Era hora de fazer alto, naquele ponto e àquela altura. Com certa dificuldade, Christian articulou um encontro com Cordélia Ware após o trabalho. Telefonou para Grace, acusando a África. Às seis, levantando-se da plataforma de lançamento de sua mesa, ele podia apenas recordar a si mesmo, como uma criança, que a essa hora, no dia seguinte, tudo estaria terminado. Para resumir uma longa história — sendo essa a maneira como Christian colocava a questão para si mesmo em anos posteriores, na sinopse da recordação —, ele se fez claro, de uma vez por todas. Nada mais poderia haver a não ser o rompimento puro. Como disse a ela, era a coisa mais difícil que já fizera, em toda a vida. Sou eu o culpado. Se a magoei, Cordélia. S E , ela disse, e com uma voz. . . Se, como digo, eu a magoei. Ele nunca vira ninguém chorar antes em um restaurante — nem mesmo em outra mesa. Era estranho pensar que, originalmente, tinha sido atraído pela reserva dela. — Creio que aprendi minha lição — disse ele. Ela apoiou o cotovelo na mesa e o cenho na mão. Fios de cabelo descambaram-lhe ao longo da face e passaram sobre a orelha. Em seu coração, como o inconsciente costumava ser chamado, ele soube que havia procurado dificuldades. No entanto, odiou cada segundo daquilo. Cabia-lhe apenas aceitar a situação. Tentando um discurso racional, falou a ela sobre o concerto da noite anterior, onde ficara muito ofendido por interrupções desconexas de aplauso e pelos pedidos de silêncio que contra-atacavam esses aplausos. O movimento de censura o reviveu: mais uma vez, o mundo se revelara pouco merecedor de Christian Thrale. Ele não mencionou a música. Ela não pareceu atingida por tais observações. Poderiam ter sido uma isca para a qual não se içaria. Houve um instante em que Christian viu transparecer nela, de relance, que ele era insignificante e patético. Pôde vê-la medindo a ameaça dele. Pôde também vê-la identificar que a percepção chegara demasiado tarde, quando já estava presa na armadilha. Christian agradeceu a Deus por não ter ido de carro e acompanhoua até o trem. Inevitavelmente, tinham acabado de perder um. As pessoas olhavam em sua direção e depois desviavam a vista. — Por favor, vá — disse ela. — Vá embora. Não obstante, ele ficou ali, até o amargo fim. Afinal de contas, havia sido jovem um dia. No verão seguinte, Grace Thrale teve seu último e terceiro filho, ao qual foi dado o nome de Rupert. Quarta parte O zénite 29 Na América, um homem branco havia sido baleado e morto em um carro, e um negro, em uma varanda. Na Rússia, um romancista emergira do inferno para anunciar que a beleza salvaria o mundo. Tanques russos rodavam através de Praga, enquanto a América fazia guerra na Ásia. Na Grécia, as peças de Aristófanes eram proibidas; na China, os escritos de Confúcio. Na Lua, o espírito do homem moderno era impresso em solas de borracha, no mare Tranquilitatis. No Velho Mundo, a história jazia como uma paralisia. Na França, os generais morriam. Na Itália, uma população abandonava os campos para sempre, trocando-os por fábricas de carros ou cardigãs — e os economistas chamavam a isso milagre. Manifestantes haviam pulverizado Stonehenge de vermelho-escuro, com latas de aerossol. Em Londres, o tempo se tornara aterrador, e a balança de pagamentos estava à beira do abismo. Havia dois novos livros e um musical sobre Burgess e Maclean: a Inglaterra estava caquética, repetindo a anedota única. Paul Ivory tinha uma nova peça, Ato de Deus, sobre um sacerdote anglo-católico. Josie Vail tinha atirado os fichários de um professor assistente pela janela de um campus. Ela seguira seu guru à índia e vivera dois anos em uma comunidade no Arizona. Agora, preparando sua tese de doutoramento sobre técnicas mercadológicas, vivia em Massachusetts com um rapaz que abandonara os estudos de sociologia, mais jovem do que ela e que a chamava de imperatriz Josefina. Seu nome era Burt. Juntos, discutiam as tendências castradoras de Josie e a necessidade que Burt tinha delas. — Acho que foi a morte da mãe que a tornou tão convencional — disse Una. Burt e Josie referiam-se a seus contemporâneos como os garotos. Como dispensa de ação, alegavam sua juventude, como se isso fosse uma desvantagem. Josie explicava que Burt mantinha as próprias opções em aberto, não percebendo que as opções têm um tempo certo. — Eles se desgastam proclamando sua supremacia moral — disse Una. Una continuava brilhando. Com o pêndulo da era, ela oscilava de dia e de noite; luzia em contas e lantejoulas, quando não em jeans maltrapilhos. Seu nome estava no timbre de muitas instituições benemerentes, ela possuía uma casa em Vineyard e outra em Puerto Vallarta. Os cuidados estéticos com o rosto e o corpo, bem como com as mãos boas e fortes, haviam se tornado um ritual, que seria demasiado arriscado interromper. Agora, surgira certa solidão para Una e uma vitalidade ignorada ou sepultada: em seu brilho dispendioso e na desusada indumentária, ela era como uma mina abandonada. As feições de Adam Vail tinham ficado mais esguias. Ele estivera com alguma doença não diagnosticada. Em sua maioria, os homens se tornam indeterminados com a idade, mas Vail se reforçava. Sua paciência e suas energias eram inexauríveis. Em um lugar apinhado, atraía uma discreta atenção, como poderia acontecer a Ted Tice. Embora sem olhar para ninguém, os outros olhavam para ele. Josie ficara mais carinhosa com o pai, a quem visitava, mas não conseguia evitar a antipatia. Quando ia a Nova York, ficava em seu antigo quarto, onde se sentava, de pernas cruzadas, à frente de uma televisão colorida. — Papai não assiste. Não o censuro, em sua idade já passou da época. Eu sou jovem, interessada em tudo, certo? Complacente como uma matrona de cinqüenta anos. Caroline Vail observava que, para alguns, conhecimento era uma série de tópicos; para outros, profundidade de percepção. Bocejava para a própria mentira e para a televisão alaranjada. Josie não era mais jovem e receava chegar aos trinta; temia trabalhar em sua tese, quanto mais completá-la. Temia chamar as coisas por seus simples nomes humanos, em especial quando reagiam com certa forma de gentileza. Ela não sabia o que adotar, em troca da adolescência. Agora, quando não fazia mais diferença, Caro quase a amava. Caro disse que ela e Adam ficariam fora alguns meses, em um país da América do Sul. Josie mudou o canal da televisão. — Vocês têm que fazer isso? — Não há nenhum risco real, pelo menos no momento. — Acho que não. Se pudesse, Josie teria reconhecido que a coragem pode ser requerida mesmo quando não existe nenhum risco envolvido. Se pudesse, ela teria tocado a madrasta. No entanto, aquilo se desenvolvera através dos anos, isso de raramente se abraçarem. Um homem ficou parado a uma portada branca e olhou para os Andes. Teria uns cinqüenta anos, cabelos brancos, era magro, com um andar claudicante que sugeria um defeito ortopédico, mas que, em verdade, era resultante de pancadas recebidas em uma prisão. Em outros sentidos, sua aparência era ligeiramente antinatural — rosado, de lábios jovens e olhos de cílios claros, claríssimos: uma impressão quase albí-nica, acentuada pelo terno branco. Tantas das mulheres finalmente atraídas pelo poeta Ramón Tregeár haviam sentido uma repulsa inicial por sua aparência, que agora a aversão poderia parecer um prelúdio necessário. Aprisionado em represália a certos escritos e libertado por uma mudança de governo, Tregeár tinha vivido dois anos na zona rural. Sendo de origem urbana, justificava-se com polidas escusas de exílio. Mantinha a vestimenta perfeita, aquilo o destacava. Além disso, fizera algo que o colocava além da generalidade dos homens, algo que desempenhava um papel em sua atração. Havia mulheres que o amavam pelas degradações que sofrera, bem como por ele haver resistido a elas. Arriscar a própria vida por um princípio — e sobreviver — dava muita força, como uma grande renúncia. Se o governo atual caísse, como provavelmente aconteceria, Tregeár provavelmente morreria também — por decreto ou em algum acidente indispensável. Na varanda, uma mulher sentou-se sozinha a uma mesa. Nas proximidades, dois homens conversavam. Não se incomodando com a exclusão, ela contemplou as montanhas, o vale. Um livro em seu regaço. Não era jovem, apesar de flexível e esguia, com a basta cabeleira presa à nuca. Talvez juventude nunca tivesse sido o seu forte. Tregeár se sentiu atraído, como poderia tê-lo sido — em uma foto antiga de pessoas famosas — pelo "amigo" não identificado que fitava além da câmera ou se abaixava para acariciar o cachorro. Além do mais, eram raras as mulheres visitantes. Perguntou-se se podia sentar-se a seu lado. Ela ergueu o jornal de uma cadeira, para que ele ali depusesse o seu chapéu de palha. Alçados para o homem, seus olhos e sua testa eram belos e seguros. Ele não pôde ver o título do livro. O vale, que visto do ar formava um único e imenso estampado abstrato, ao nível dos olhos revelava elevações e declives verdejantes. Campos, vinhedos e pomares ofereciam todos os matizes e tessituras, os troncos das árvores treme-luziam como pontos costurados expostos, os cursos de água deslizavam. A onda de cultivo interrompia-se ao pé dos Andes, em uma crista de verde. Era outubro, primavera, portanto. Sentada na varanda, Caroline Vail tornou a dizer: Não, não era como na Austrália. Pensava: Todos estes lugares vistos de relance, em trânsito. Não conseguia recordar quem lhe dissera certa vez: "Não é viagem, mas deslocamento". Poderia ter sido Adam ou Ted Tice. Bauhinia e jacarandás acumulavam-se nos arredores. Em um jardim baixo, com flores e arbustos, formando um terraço, um jardineiro trabalhara toda a manhã. O dono da casa, em um terno de linho, estava sentado a certa distância da varanda, conversando com Adam Vail. A bengala de Vail arrimava-se a um cadeira, uma pincelada negra sobre uma cadeira branca. Folhas de papel jaziam sobre uma mesa de vime entre os dois homens, e de vez em quando um deles recolhia uma página e a lia cuidadosamente, antes de reiniciar a discussão. Falavam em espanhol, e o homem vestido de linho era o sardento solicitante que Caro vira com Adam, anos antes, em uma manhã de inverno, em Whitehall. Três mulheres viviam na casa — a esposa do proprietário, a irmã dela e uma filha adolescente. Não vinham ficar à frente da casa com os homens, embora não questionassem o direito de Caro: ela estava interessada na justiça, portanto, era como um homem. As três mulheres tinham cabelos negros, eram morenas, estatuescas; três latinas de faces rosadas, pescoço e ombros pálidos, que protegiam do sol, corpos para tardes atrás de persianas e noites frias, corpos macios, como as camas macias onde jaziam. Fisicamente, eram distintas dos criados, indios andinos. Em seu ambiente próprio, a sra. Vail seria considerada morena. Tais eram as ilusões de contexto. Haveria lugares — Etiopia, Bali — onde as latinas embranqueceriam, da mesma forma. Como eram poucos os visitantes, Tregeár sentou-se ao lado dela e disse: — Nunca supus que em minha vida viesse a me dedicar a tais questões — referindo-se à discussão' na outra mesa. — Nem a senhora, imagino. — Bem — disse ela —, não fico surpresa. — Deixou o jornal cair no chão. — Entretanto, não posso pensar que toda a inação (o que aconteceu antes e ainda está acontecendo) tenha sido sem importância. — Pelo contrário. Essa inação é a realidade que tem o direito de acontecer. Qualquer esforço adequado contra a injustiça é, meramente, um acesso para uma confusão mais normal. Quanto a mim, nada me deixaria mais satisfeito que voltar a discutir coisas usuais. Parecia difícil, indiferente, que semelhante homem devesse morrer, para que Dora ou Clive Leadbetter pudessem desperdiçar todo o tempo do mundo. Caro perguntou se ele não poderia abandonar o país antes que o governo caísse. Ele não respondeu, mas disse, após algum tempo: — Vicente se comprometeu por minha causa. A mulher olhou para o proprietário sardento à mesa de vime, a fim de observar sua qualidade. — Ele está do lado certo. — Melhor do que isso, ele não tem lado. Mesmo um lado certo impõe silêncios enganosos, inverdades requeridas. Como diz o tímido, existe força — ou segurança — nos números; a solidariedade, no entanto, é uma extensão de poder, isto é, o início da mentira. A única solidariedade adequada é com a verdade, se pudermos descobrir isso. — Tregeár ainda sorriu. Era o sorriso de um primitivo, que tinha pouco a ver com o que era dito. — Em qualquer grupo há mestres e seguidores. Mesmo o lado certo prefere antagonizar o homem que permanece só. Muito tempo antes, Valda tinha dito: "É o homem in-comum que se torna o alvo de todos". — Vicente também tem coragem, porque não sou um homem famoso. Para a maioria, é mais fácil apoiar uma pessoa eminente em merecida desgraça do que o indivíduo obscuro que tem estado errado. Caro estava ao lado daquele homem obscuro, que se arriscara e vivera para contar a história, sem constrangimento. Ela disse: — Também existem aqueles que apoiam os fracos porque se sentem imerecedores dos fortes. Porque não conseguem homenagear capacidades maiores que as suas próprias. Não obstante, ela se perguntava, quem são os fracos; quem são os fortes? Aquele homem, em realidade, havia demonstrado o heroísmo que a maioria confina em fantasias pessoais. Em sua natureza, ele nada deixara para ser contrariado ou exposto. Por sua causa, era possível contemplar-se a vega1 verdejante como um lugar onde um homem, pelo menos, conquistara o direito de estar. — Também há muitos — disse ela — que não se importam se estão cometendo erros. — Disse um de nossos poetas: "A desordem também detém seu encanto". Sua enunciação confere imortalidade, como um movimento lento faz com que qualquer ato humano seja belo, por uma aparência de controle. El desorden también tiene su encanto. — Ele apanhou o chapéu de palha na cadeira e sorriu. — Quer ver o jardim? O sol já estava alto. O homem e a mulher caminharam pelo jardim. Caro se voltou a fim de olhar para Adam, que ergueu a mão e espiou sua descida azul-clara por entre as flores, em companhia do repulsivo e encurvado herói. Através do vestido de algodão, era possível ver-se o formato das longas pernas de Caro em movimento, como os membros de um nadador. Um velho cão jazia acorrentado em um retalho de sombra, de língua pendurada e cauda abanando: um querido bote antigo, batido pelo tempo e ancorado em porto seguro. Havia um muro onde jasmins diferentes haviam sido guiados para o alto, um ou dois deles já despontando em flores. Tregeár chegou até uma copa florida, enquanto o jardineiro fazia uma pausa para olhar. As pétalas se sobrepunham ao céu azul. — Jardineiros e bibliotecários odeiam ver em uso aquilo de que cuidam. Ramón Tregeár mostrou o jasmim espanhol, o jasmim-do-cabo, o jasmim-dos-açores. Havia uma planta imensa em uma tina de terracota. 1 Terra baixa, bem irrigada e muito fértil. Em espanhol no original. (N. da T.) — Este é florentino. II gelsomino dei granduca. Um dos Medici, o grão-duque Cósimo, importou-o de Goa para a Itália, após enviar expedições para lá, em busca de plantas tropicais. Se recuarmos no tempo o suficiente, descobriremos que todos vieram da índia ou da Pérsia. Em uma manhã daquelas, poder-se-ia amar a terra florida de branco como se nós — ou ela — estivéssemos na eminência de morrer. Entregue a si mesma, Caroline Vail podia ter corrido por entre campos ou jardins. Um garoto chegou por entre os ciprestes, mantendo uma raquete de tênis junto ao rosto. Através da vegetação, olhou para eles de esguelha. Um garotinho vinha mais atrás, em passos curtos e incertos, gritando: "Andrés". Abaixo das árvores, o jardim terminava em uma pequena barranca. Homem e mulher viraram as costas à paisagem e seguiram as crianças pela alameda, subindo os degraus. O garoto mantinha sua máscara diante do rosto, como um esgrimista. O cão jazia de lado, agora uma rocha cinzenta, amarelada devido à idade ou aos liquens. Sobre os cabelos e ombros da mulher, pétalas brancas aderiam como lascas caídas de um teto em mau estado. À noite, em sua cama macia e estranha, a sra. Vail sonhou que voava sobre montanhas, para finalmente chegar não àquele vale fértil, mas a uma longa e lisa planície, ilimitada. Muito abaixo, quadrados e retângulos ocasionais, de difícil cultivo, alinhavam-se como pinturas colocadas sobre uma parede nua. Pequenas depressões mostravam-se neuríticas de lama rachada. Nesse ponto, acordou aliviada por nada ter feito de errado, pelo menos no sonho De manhã, ela escreveu a Ted Tice: "Sua carta chegou quando partíamos. Que pena deixar de vê-lo esta vez! Após algumas aventuras, mais da carne que do espírito, encontramo-nos entre amigos, em um belo lugar onde a terra ainda é suprema. Aqui há um poeta que esteve preso e foi torturado por dizer a verdade. Foi libertado há dois anos. Quando este novo governo cair, tudo se voltará contra ele. É um velho aos cinqüenta anos, tem a pele descolorida, os ossos entortados. Caminha como um atleta que tenha sido acidentado — talvez um artista da corda bamba que levou uma queda quando fazia seu número sem a rede. Tem uma bela voz. Seus poemas são muito bons. Tentarei traduzir alguns de seus trabalhos". Ela poderia ter encerrado a carta, mas continuou segurando a caneta e, finalmente, escreveu: "Querido Ted, estou contente. Não obstante, mesmo neste lugar silencioso existe o rugido de mau presságio. Como se um avião a jato passasse acima do paraíso". Adam Vail chegou até onde estava sua esposa, sentada e escrevendo. Colocou a mão em seu pescoço, por baixo do cabelo. Quando Caro se reclinou contra ele, Adam moveu a mão para diante, sobre o colo, no interior do vestido. — Você poderia se cansar desta vida e abandonar-me — disse. — Não acredito no que estou ouvindo. 30 — Gosto deste ecletismo. Na maioria dos casos, o ecletismo é demasiado sombrio. — Fico satisfeito. Ted jazia com os olhos fechados, e quando ela perguntou: "O que é aquele quadro?", ele respondeu, sem abri-los: — É um obrigatório grupo de girassóis. Nenhum hotel consegue licença para funcionar se não tiver um pendurado em cada quarto. Algo como colocar a lista de preços presa atrás da porta. — Está brincando comigo. Mesmo assim, gosto deste hotel, é o melhor. Gosto também do lago. Ele não lhe estragaria o prazer dizendo que o quarto era mais um espaço que um quarto, que era geometria sobre o plano do piso. A um lado, duas janelas expunham o lago, congelado e cinza como uma janela suja. Trechos degelados de lago eram cobertos por gelo à deriva. Um vento fustigava o prédio dia e noite, golpeando suas janelas incrustadas como se batesse tapetes. — A maior parte de nós trabalha no centro do prédio, as moças, quero dizer. Isto é, em um lugar sem janelas. Ser indicada para a conferência foi como sair para respirar, ou coisa assim. Seria no mínimo polido interrogá-la sobre si mesma, sua vida e seus pais. O dever social pesava sobre Ted, enquanto ele jazia com um braço sobre os ombros nus da jovem, porque não queria que ela se animasse com ânsias e pertences pessoais ou acrescentasse à sua consciência os detalhes de uma vida a mais. Até falar de tais coisas, ela permaneceria típica, uma amostra ao acaso; assim que os mencionasse, embora típica, iria tornar-se singular. No entanto, ele fatalmente começou: "Como foi que você. . .", abrindo os olhos e vendo apenas o teto em um quarto obscurecido, do qual pendia um lustre apagado. Via também a parede com o quadro recortado e o topo da poltrona verde-ervilha, sobre a qual ela estendera suas roupas. Toda a sua infelicidade naquele lugar havia sido típica, uma amostra ao acaso. A cidade estava condenada por frágil inevitabilidade — os mais sombrios pensamentos adquiriam um perceptível caráter e o prazer chegava já pronto, para rápida saciedade. Ele levara uma moça para o hotel, porque era isso o que a cidade esperava de sua parte: a solidão havia sido industrializada. Não obstante, a fornicação, em si, era a própria solidão. Quando, ali, ele pensou em sua esposa e seus filhos, em seus aposentos pessoais, eles lhe pareceram saudáveis, era impossível sentir que fossem banais. E quando invocou a presença de Caro, foi para opor a força que ela possuía contra uma cidade ou contra o mundo. — . . .e depois do que aconteceu, compreendi, hum, que estava envolvida com coisas negativas, como carências. Quero dizer — o braço dela girou na escuridão, com a palma para fora —, estava envolvida demais, entende? Os cabelos espalhados, o joelho, erguido, o delineado da sobrancelha e do seio eram adoráveis: quase faziam o quarto ganhar vida, saindo do plano do piso. Que sorte ela tem, pensou ele, em escapar impunemente a isto! Possuindo semelhantes características, ela poderia ser sensível. Uma geração antes e tal episódio significaria algo para a moça. Ela fingiria até mesmo que significava algo para mim. Desapontamento foi a única coisa de que fomos poupados. — Todos temos nossas depressões. Você é casado, certo? — Certo. — Essa pergunta, que, mais do que supostamente ela devia fazer, exigia mais que uma frígida afirmativa, não envolvia porém maiores explicações. — Ingleses não usam aliança. — Foi o que ouvi dizer. — Ela lhe tomou a mão e apalpou os dedos, para, então, inesperadamente, levá-los aos lábios. — Você é gentil, sabia? — Não creio que lhe tenha dado muitas demonstrações disso. — Pois você é gentil. — E, mecanicamente: — Grande. — Colocoulhe a mão sobre o peito bonito e jovem, para dizer, após um momento: — Casamento feliz, certo? — Certo — disse ele, sentindo o absurdo da resposta naquelas circunstâncias, mas desejando desabafar, uma vez mais. — Isto é muito bom, mas não costumo fazê-lo muitas vezes. Tudo quanto ele dizia era desinteressante, sentencioso. Dirigia-se a ela das arrogantes alturas de sua permanente virtude. — Já amou alguém mais, além da sua esposa? — Há muito tempo. Antes de me casar. Caro se transformara no há muito tempo, na lenda. — Oh. . . isso não conta. — Sim, isso conta. — Conta? — Conta. — Insanamente. Mais uma demonstração das próprias fraquezas, sou como aquelas pessoas — não como, sou uma delas — que precisam falar sobre o que as obceca, seus amantes, filhos, gatos, cachorros, inimigos, patrão, criados, escritório — mesmo cônscias de que entediam os outros e ficam em evidência. O anseio é compulsivo nesse sentido, virtualmente erótico. — Talvez seja a única coisa que conta. — Poxa! Ela sentiu, possivelmente, que ficara bem claro qual era seu papel, pois logo se levantou e apanhou algumas de suas roupas. A água gorgolejou com força nos encanamentos, um armário emitiu um ruído metálico, houve dois jatos de desodorante. Quando ela chegou do banheiro, com as mãos nos cabelos dourados, Ted estava quase vestido e pensando que nada havia de mais melancólico que fechar um zíper, à uma da madrugada. Ele intuiu que ela falaria alguma coisa mais sobre Caro. Havia sido a única coisa interessante que se passara entre eles. — Escute — disse ela. — Nós nos relacionamos. Nos comunicamos. Não acha que nos comunicamos? Então, também nós estamos fazendo parte do plano do piso: dois quartos com uma porta de comunicação, para luxúria ou solidão. Ted sentou-se na beirada da cama. — Venha cá. Ela ficou em pé, com as palmas das mãos em seus ombros, encontrando-lhe os olhos na semi-obscuridade. Um cão de boa índole, que se aproxima e pousa as patas na gente, a olhar-nos, tendo em mente sabe Deus o quê, se é que existe alguma coisa. No entanto, ela perguntou: — Você nunca mais a viu? O tom de sua voz baixou, de modo racional, crucial, como se o jargão — que ela havia empregado mesmo no ato — também em seu caso fosse uma afetação a ser posta de lado, em troca do autêntico. — Umas duas vezes por ano. — Ainda dorme com ela? — Nunca dormi com ela. — Proclamava o fato com grotesco orgulho, porque fornecia a escala de sua devoção. — Fantástico! — exclamou a moça, parecendo adequadamente reverente, embora talvez pensasse também: Deve ser biruta. — Ela regula em idade com você, certo? — É mais nova alguns anos. Àquela altura, três ou quatro anos, para aquela jovem, mal faziam diferença. — Você devia. . . — disse ela. — Devia o quê? — Bem. . . Pelo amor de Deus, a gente só vive uma vez! Ela supunha que Caro o amava. Ted a afastou e levantou-se, dizendo, antes que a verdade a atingisse: — É melhor chamarmos um táxi para você. 31 Adam e Caro voltaram da América do Sul para Nova York durante uma onda de calor. Houve uma demonstração contra a guerra. No final de sua rua, uma fileira de cavaletes cinzentos era guardada por dois policiais em cavalos avermelhados e por outro a pé. Havia o cheiro de alcatrão ainda recente e do suor de cavalo e homem. A rua estava rachada, as sarjetas, descuidadas. As árvores tinham sido podadas ou estavam doentes. A porta dos Vails, que agora tinha uma complexa fechadura, podia ser aferrolhada por dentro, depois trancada com cadeado. Tudo isso levava tempo. Quando eles depositaram as malas no corredor, Vail ligou o rádio, que dizia: "Os metais não-ferrosos caíram e as ações de algodão compradas a termo fecharam em alta". Eles podiam ouvir a polícia montada falando por rádio e, além da barreira, o neutro ulular de uma ambulância. Na casa trancada, homem e mulher abraçaram-se, porque um mínimo de segurança pode ser alcançado sob quase quaisquer circunstâncias. Havia cartas empilhadas sobre uma mesa. Um jornal dobrado revelava pela metade um escândalo presidencial: "É um ultraje", declarava um professor de Harvard, que pedia para não ser identificado. De Palmerston North, Dora escreveu que jamais perdoaria Trish Bootle enquanto vivesse, e que estava considerando seriamente a Irlanda. — Em sua idade — comentou Caro. — Ir para onde nada é familiar! Adam respondeu: — Séneca disse sobre Aníbal — que já velho ofereceu seus serviços a qualquer rei em guerra contra Roma — que ele podia viver sem um país, mas não sem um inimigo. Caro podia ver o epitáfio, fincado em relva irlandesa. Pela manhã, Caro sentava-se à mesa para traduzir o trabalho de Ramón Tregeár. Aqueles poemas haviam sido concebidos em uma prisão. Quando o poeta lhe escreveu: "Mas, então, eu os tinha apenas na cabeça", ela pensou em Rex Ivory, cavando sepulturas na Malásia, trinta anos antes. Como Rex Ivory, que no campo de morte homenageara o Derbyshire, também Tregeár, em sua prisão infernal, recordara o amor das mulheres. Tregeár havia dito que, se as coisas fossem bem, logo enviaria as páginas restantes. E Caro perguntou-se se chegaria a vê-las. O volume seria intitulado Luz a media-noche. Alguns meses após, um editor devolveu a ela as páginas de amostra, com explicações sobre o mercado. Ele notara o título miltoniano e fizera uma brincadeira literária a respeito do nome do tradutor: "C. Bell". Outro editor, que havia publicado um estudo acadêmico sobre literatura dissidente, devolveu o manuscrito com um comentário sobre o título koestleriano, acrescentando: "Temos antes a impressão de que fizemos nossa restrição pro bono publico este ano". Adam Vail falava ao telefone em espanhol. Ele foi ao outro extremo da cidade para ser entrevistado na televisão, e apresentaram-no ao chefe do noticiário da rede, que lhe disse: — Creio que estamos um bocado violentos, Adam, para fazermos esta entrevista. Tendo acompanhado Adam ao estúdio, Caro foi conduzida a uma sala às escuras onde, segundo lhe disseram, a imagem sairia nítida, em uma grande tela. Ela se sentou em uma cadeira aveludada, e esperou. Três homens entraram também e acomodaram-se à sua frente. Ela os vira no corredor, homens bem-vestidos, com cabelos pintados de escuro e lentes de contato coloridas. Ignorando sua presença ali, eles comentaram que os altruístas raramente recebiam o valor merecido. — Basta ver-se Stevenson. — Stevenson. . . Entrou em órbita nos últimos anos. Compromissado um dia, descompromissado no outro. Talvez ele acreditasse realmente que havia essa proposta de paz, de maneira que se manteve firme. — Acho que ele caiu por causa disso, dessa proposta de paz. Acredito que morreu convicto de que se Bundy e Rusk fossem reunidos em uma datcha, nos arredores de Rangum, Hanói forneceria as provas. — Entretanto, ele não pôde ser aprovado na Casa Branca. Rusk o deteve. — O que o impediria de pegar o telefone, pelo amor de Deus, e discar para a Casa Branca? Quando ele pensou nisso? — No outono de 64. — Não; eu diria que foi em junho de 65. E ele morreu em julho. Um mês, então. — Sessenta e quatro. Quem sabia alguma coisa em 64? Em último lugar, nosso serviço noticioso. — Nunca vou esquecer, fizemos um programa sobre Stevenson. Quando ele morreu. Seria embaraçoso repeti-lo agora — não que vá ser repetido, que diabo, jamais! Céus, foi o mesmo que nada — alguns instantâneos, a primeira convenção, a segunda campanha. Discursos, jogos de palavras, Stevenson perdendo pontos. Perdendo pontos, meu Deus, caindo e caindo. Um programa de nada. Nem uma palavra sobre Kennedy, sobre o Vietnam. — E sobre a baía dos Porcos? — É o que estou lhe dizendo, nada. Certo, eu divulguei aquilo, tudo bem, portanto, estou usando um cilício. Só que não mostramos nada. Quando o programa terminou, chegou alguém com o aviso, Washington na linha, a Casa Branca ficou muito satisfeita. Pode apostar que estavam satisfeitos — céus, quando agora penso naquilo, suspiro de alívio! Nem uma palavra sobre a guerra, nada. — Kennedy, é dele que estamos falando — Vietnam, os dezesseis mil. A baía dos Porcos. Encare a coisa. A baía dos Porcos. Sabem se esse biruta, esse Vail, pretende ressuscitar a baía dos Porcos? — Lembre-se dos birutas que costumavam tomar dinheiro emprestado com Ed. Lembre-se de que costumavam aparecer em seu gabinete: Ed, consegui esta história, Ed, arranje-me dez pratas. Bem, apareceu esse sujeitinho, Ed disse: Talvez haja alguma coisa nisto, Sam, você vai até a Flórida com ele. Sam voltou: Céus, Ed, o cara era doido! Esse doido pensa que Kennedy vai invadir Cuba. Desta vez comprou gato por lebre, Ed. Meu Deus, que louco! — Ele não acreditou na história? — Bem, ele pensou: Por Deus, se isto for verdade. . . Só que ele não podia acreditar. Mais tarde. . . — De qualquer modo, não podíamos divulgar o caso, seria traição. — Estou sempre me perguntando por que a imprensa não fez isso, eles tinham toda a história, o caso da baía dos Porcos completo. — Seriam crucificados, não poderiam divulgá-lo. — Pois sabe o que Kennedy disse a eles, mais tarde? Se vocês o publicassem. . . — Certo, se vocês o publicassem, poderiam ter me detido. — Ter me salvado. Vocês poderiam ter me salvado. Foi como ele disse: Se vocês o publicassem, poderiam ter me salvado. — Kennedy, é sobre o que estamos falando. Vietnam. os dezesseis mil. — E mais do que isso. As entrevistas. Dean Rusk, Mac Bundy, McNamara. — Lyndon Johnson. — Johnson pensava que fosse a Coréia. — Johnson pensava que fosse o Álamo. — Munique, é o que eles viviam dizendo. Céus, Munique! Onde eles estiveram. — Ensinaremos esta lição a eles. Esta lição aos homenzinhos castanhos. Era o que eles ficavam dizendo, daí o motivo de nunca se poder levá-los até aquela datcha, nos arredores de Rangum. Mac Bundy naquela datcha, ora, não me faça rir! — Então, a quem acusaremos? Quem são eles? O Pentágono? Ou seriam Westmoreland, Abrams, Walt? — Walt? Deus do céu! Ele foi o único que me disse: Você pode aparecer com um tiro nas costas. Aquilo foi Cam Ne, nem ao menos My Lai, foi Cam Ne, e eu perguntei: Onde estão essas pessoas, uma cidade inteira desapareceu, onde estão as pessoas? Foram realojadas, respondeu ele, contemplando seu leite, estão em acampamentos de refugiados, foram dispersadas. No final, ficou como se o exército dos Estados Unidos não houvesse tomado parte na coisa, e foi tudo atribuído aos sul-vietnamitas; eles tinham aquilo em sua lista, juntamente com outras aldeias que não haviam pago o que deviam, ó céus, meu Deus! Assolá-las, era essa a terminologia, assolá-las. Portanto, no fim de contas os responsáveis teriam que ser Rusk e Johnson, não é mesmo? Não seria o lógico? Colocá-los no banco dos réus? Imagine! — No fim, Rusk se passou para aspirinas e álcool. — Eu não sabia sobre as aspirinas. — Cambodja, Laos, fizeram o Vietnam parecer acadêmico. É melhor encarar isso. O Vietnam do Sul conseguiu um litoral a leste, eis o único motivo de agora precisarem dele. Uma vez contornando, uma vez estando no Cambodja, Laos, que importa a eles? Não se pode conseguir uma história no Laos. Diabo, consegue-se um bocado de histórias, mas é um reino de situações míticas. Quem vai arriscar o pescoço? Não se pode pedir a correspondentes que arrisquem o pescoço, que americanos morram lá, exceto um bocado de pilotos, que não temos permissão de mencionar. Excetuando-se um ou dois, são correspondentes de segunda linha no Laos e no Cambodja. Há vazamento de informações, todos sabem disso, pode-se descobrir o que está acontecendo. — Isso é pular de um assunto para outro. Estamos falando sobre o que não conseguimos sondar ou sobre o que não temos peito para publicar? — Escute, eu posso arranjar mais facilmente trinta e três histórias sobre uma greve dos Correios na Itália ou sobre a princesa Margaret Jones do que sobre o Laos ou o Camboja. Além do mais, há o risco, e quanto ao risco, é a sua palavra contra a deles, Washington entra de sola, a coisa não aconteceu. Se diz que nada aconteceu, o que você vai fazer? — Hum-hum. Veja San José. Nixon disse que nunca viu maior violência: buracos no carro, pedras, as pessoas jogavam pedras, Agnew contou, todos eles contaram. Pior do que a guerra. Na segunda-feira, estavam dizendo que era principalmente violência verbal. Então, após a votação, talvez não houvesse violência alguma. Sem denúncias, nada. Suponhamos que eu divulgue uma história nessa noite, suponhamos que eu diga: marmelada na eleição. Suponhamos que eu diga: o presidente está mentindo, está MENTINDO , O que imagina que farão comigo? Ninguém vai assumir tal tipo de risco. — Talvez aí esteja o erro. Talvez seja porque a televisão. . . — Não se trata apenas do governo, nem mesmo do governo. Pode imaginar os telefonemas, pode imaginar? E não somente dos telespectadores. Os telefonemas dos patrões, das autoridades. — Estou dizendo que talvez aí esteja. . . — E se todos divulgarem? Deixe-me terminar. Se você conseguir todos os noticiaristas, se conseguir tudo? Boas perspectivas. — De qualquer modo (uma semana mais tarde, quem se preocuparia?), ele mentiu, portanto, ele mentiu. Teddy mentiu, Henry mentiu, Laird mentiu, Helms mentiu, Nixon mentiu desbragadamente, George Washington jurou que não abateu a maldita cerejeira. Então, uma semana mais tarde, quem estará se importando? — Em ano de eleição, eles se importam como o diabo. — Não com a guerra. Guerra não é problema eleitoral. Nixon dirá que lhes demos a maior oportunidade. Desmentindo, afastandonos, não temos culpa. A paz está ao alcance, certo? Olhe para os rapazes — o arrebatamento morreu com o cartão de recrutamento, com o risco de suas próprias peles. A economia, o dólar, a grana. Ano de eleição é assim, o que vale é a grana. — A honra. Se posso terminar. A honra dos Estados Unidos. Você não me entendeu, falo sério. A honra é um truque tão bom quanto outro qualquer. Eis o que Nixon podia fazer. Jogá-la no colo do público: Eu me atenho aos princípios, vou parar com a guerra. Saindo. Agora. Jogar ao mundo: Vocês defendem os vietnamitas, certo? Vocês inventaram a maldita datcha nos arredores de Rangum. — Ninguém pode propor isso. Ninguém tem essa influência. — O presidente. Ninguém mais tem essa influência. — E sobre a influência nesta sala? A influência coletiva. — Agora faremos uma pausa para o comercial axilar. — Falo sério. A influência coletiva. — Seja como for, aí vem a coisa, veja a imagem. Os altruístas sempre têm algum interesse pessoal. Lembre-se de que não precisamos rodar isto de ponta a ponta. Na manhã seguinte, um jornal importante publicou um editorial: "O sr. Adam Vail executou um engenhoso trabalho em sua entrevista pela televisão, ontem à noite, ao descrever a 'séria agressão' praticada contra a América Latina por gigantescas corporações americanas, segundo suas alegações, com a conivência e o dissimulado apoio do Governo dos Estados Unidos. Ele arrancara entusiásticos — e automáticos — aplausos de elementos irresponsáveis de nossa dividida sociedade. Por vezes, Washington pode ter agido inabilmente na América Latina, mas o sr. Vail manejou sua vassoura verbal com exagerada amplitude, quando sugeriu que esforços clandestinos do Governo dos Estados Unidos assegurariam, como ele declarou, que pelo menos um líder latino eleito 'não completaria os cruciais próximos seis meses'. Sua pior distorção foi a afirmativa de que, em determinadas áreas, a intimidação dos eleitores foi levada a efeito com fundos de fontes oficiais dos Estados Unidos. Nos comentários do sr. Vail houve um elemento de perigosa deturpação, para o qual seus telespectadores deveriam estar cônscios". Adam largou o jornal e disse: — Nunca me agradou ver governo escrito com G maiúsculo. Antes de sua prisão, Ramón Tregeár deu a um amigo que abandonava o país a parte restante de seu manuscrito. Quando as páginas foram entregues a Caroline Vail, ela encontrou uma nota entre as folhas, endereçada a ela: "Se minha morte for espetacular, você conseguirá publicar isto. As pessoas tendem a acudir à cena do crime ou do acidente". O rapaz que levou o envelope contou a eles que Tregeár havia sido aprisionado em uma ilha distante da costa da América do Sul, em condições não propícias à sobrevivência. No fim do ano, soube-se que ele havia sido levado de volta ao continente, com a saúde abalada, e morrera em uma prisão, na capital. Foi o sardento Vicente que, do México, escreveu para eles dando essa notícia, e acrescentou: "Ele passou o cativeiro cativo". — E ascendeu — disse Adam —, tendo antes descido às partes inferiores da terra. A história da morte de Tregeár, quando revelada, mostrou-se atroz. E, como ele havia predito, resultou em uma acolhida favorável ao seu trabalho, fora de sua terra natal, bem como na distribuição clandestina dele na cidade em que nascera, onde, nos últimos anos, tivera poucos leitores. 32 — Contente por estar em casa? Margaret jamais fizera tal pergunta antes. Parou diante da mala aberta, separando o que devia ser pendurado do que seria lavado, manejando camisas e fôrmas de sapatos. Estirou um roupão em uma cama. Enquanto isso, Ted Tice também espalhava meias e gravatas, como condecorações, dizendo: — Não é uma volta, é uma ressurreição. — Desta vez, nem tenho certeza dos países em que você esteve. — Nem eu, neste momento. Entretanto, não fosse o decoro de desfazer a bagagem. algo que faz as coisas seguirem por fases, ele teria feito amor com ela ali mesmo, naquela hora. Se Margaret fosse sua amante, Ted a arrastaria para a cama. À sua maneira, o casamento impõe formalidades. Naquela manhã, ainda cedo, Ted atravessara Londres no topo de um ônibus do aeroporto, aflorando árvores e chaminés e descrevendo pesados arcos em torno dos pubs de esquina. Como Deus, ele havia espionado o interior de quintais com espinheiros e varais de roupas — e através da janela de um sótão, vira a luz fresca do sol batendo no assoalho e a figura alta, corpulenta, de uma mulher idosa lendo suas cartas. Um gato preto rastejou entre cortinas de renda, para instalar-se em um peitoril, estirado como um pão. Um homem com o boné caído para trás na cabeça e um relógio de ouro no pulso esguichava água com uma mangueira, em uma calçada da Fulham Road. Tudo isso podia ser normalidade — a menos que o que ele deixara, o mundo informe dos aeroportos e instalações, fosse agora normalidade, enquanto essas cenas humanas e racionais se reduziam ao anacronismo. O último segmento de sua jornada fora o melhor: ele nunca se divertira tanto em uma viagem de trem, sentindo um prazer consciente em irritações familiares com sujeira e atraso. Sua própria fadiga lhe trouxera sensações de bem-estar, porque ele cochilou e acordou, vezes sem conta, para o luxo da tranqüilidade. Sua presente acolhida à terra natal havia sido excessiva, porque antes a subestimara. Uma nota de desculpas também correu através daquela prece matinal de todo o seu distrito doméstico. — Escute, antes que me esqueça. . . — Estes são para as crianças, poderia colocá-los em algum lugar? — Oh, sim, que gentileza! Suas cartas estão na secretária, já me incumbi das contas. — Alguma coisa interessante? — Você verá. Abri um telegrama, mas não era nada. Há alguns recortes de jornal sobre o anel viário para descongestionar o trânsito. Viu, nos jornais de ontem, a morte daquele homem que você conheceu na América? — Vendler, não? Soube que ele estava próximo do fim. — Sim, acho que era esse o nome. Podemos tomar chá no jardim. — Quer que eu leve essas coisas para baixo? — Não precisa, obrigada. Eu dou um jeito. Ted foi preparar o banho, depois cruzou o banheiro e entrou em seu estúdio. Uma obscuridade congênita de cortinas cerradas, de mesa, cadeira e lápis em suspensão temporária; a secretária, um altar no qual haviam sido dispostas oferendas de jornais, por seu retorno em segurança. Era um instante arqueológico, ele poderia dizer como era aquele aposento sem a sua presença: o momento da entrada, vivo, em uma tumba. Tinha na cabeça a frase da música canalizada para seus ouvidos no avião, e começou a trauteá-la, enquanto permanecia de pé junto a suas cartas, a gravata afrouxada e pendendo para diante. A correspondência tinha sido dividida em profissional e particular, havendo também uma pilha de circulares, recortes, solicitações, e uma revista dobrada, marcada em vermelho. Embora há muito esperada, a morte de Vendler ainda era um choque. Nem seria preciso falar sobre quem venceria uma pequena e mesquinha disputa que agora teria lugar sobre a vaga daquele posto ou como, nesse ínterim, seria conduzido o trabalho. Ted recordou que apreciara Vendler como homem, e estava consciente de que isso lhe vinha como uma reflexão tardia. Escreveria à viúva com particular delicadeza, procurando isentar-se de qualquer mancha ou suspeita de desumanidade. Não era Vendler quem havia morrido. Morto na América. De repente, em sua casa, após uma ativa carreira, marcada por e culminando em, considerado arredio, mas com amigos leais como, recentemente condecorado, viajado, resistente, estabelecido, recuperado. Casado duas vezes: a primeira, e então com uma antiga. . . Uma filha da primeira união. Sofrera um enfarte. Morto e desaparecido, em um átimo. Tranqüilamente. Adam Vail jazia em paz sobre uma cama, sua bengala-espada repousando — ou impotente — em um armário. O cientista Vendler continuava vivo, sua sentença adiada temporariamente: ainda útil e apreciável. Era para Caroline Vail que Edmund Tice escreveria com particular delicadeza. E a antiga Caroline Bell, onde estaria agora? Para onde escrever-lhe, expressando seu abalo e sua simpatia? O abalo era bastante real, ele mal conseguia focalizar palavras ou objetos. Um peso de papéis de vidro subiu e caiu, ricocheteando no aposento obscurecido e no seu esbatido reflexo no espelho, pela porta aberta do banheiro. Ted Tice jamais desmaiara na vida, mas agora se sustinha com a palma das mãos sobre a secretária. A banheira estava cheia e a água começava a fluir pelo escoadouro cromado, abaixo das torneiras. Ele foi até lá e as fechou, resolvendo aquela emergência secundária, aliviando-se um pouco, dessa forma. Quando o borbulhar e gorgolejar cessou, houve também um decrescente fluxo e refluxo de percepção. O espelho mostrava apenas um reflexo de sentimentos, nem todos vergonhosos ou desavergonhados: ele jamais encontrara em sua mente um espelho ou palavras que pudessem refletir a potência ou a dor de sua obsessão. Voltou ao estúdio e recolocou os recortes onde haviam estado antes. Percebia que mudara: seu estado de ânimo da manhã não podia ser recriado, eles haviam visto o final dele. Não deviam saber que a mesa fora tocada nesse meio tempo. A manhã havia sido um estado de júbilo prematuro — horas em que ele havia esquecido Caro e fora livre. Suas mãos tremiam horrivelmente. Já havia pensado, por várias vezes, que seu amor podia ser loucura. Depois de tomar banho e vestir-se, desceu e foi para o jardim. A bandeja do chá estava sobre uma mesa à sombra do toldo. Sua esposa saiu da casa com um gato amarelo-avermelhado no colo e ficou parada ao sol, esperando sua deixa. A grama estava ligeiramente crescida, as flores tão delicadamente esbatidas em cores misturadas, que se poderia pensar estarem se tornando silvestres, incultas. Era o tipo de jardim que Margaret apreciava; ela o planejara por completo. Ted o elogiava com regularidade, exceto por uma parede, onde ela plantara pequenos arbustos, todos diferentes um do outro. Certa vez, ele havia dito: —Isto é muito calculado. Parece desapaixonado. Ela considerou aquilo uma estranha crítica a ser feita por um homem. Margaret tinha excelente postura, o que a tornava alta. Era sempre a mesma, calma e distinta, além de inocente, exceto na medida em que o sofrimento a transformava. Seus cabelos eram muito claros e brilhavam em pequenos anéis ao sol. Olhos grandes e azuis, não inquisitivos. Quando se aproximou, chegou o rosto ao pêlo do gato, oferecendo a carícia que seu marido poderia rejeitar. Mudou a posição do gato no colo, posto que ele parecia esperar algo mais. Ted permaneceu sob o toldo, perto da mesa. Ambos estavam quietos, encarando-se: não unidos, não opostos. Ele disse: — Se você conhecesse sua beleza. . . Até mesmo o gato ouviu. Margaret replicou: — Se eu conhecesse, o que aconteceria? — Você faria o mundo balançar. Os dois sabiam o que ele queria dizer: Você encontraria um homem que a amasse realmente. 33 Quando Rupert Thrale tinha treze anos e um problema nas costas, sua mãe o levou a um novo hospital, do outro lado do rio. Depois que as radiografias tinham sido estudadas, foi novamente Grace Thrale quem permaneceu ao lado dele em uma sala de espera, enquanto o garoto folheava um livro sobre marsupiais e testava um ladrilho frouxo de borracha com a ponteira de sua bota colegial. Quando, ao nome de Thrale, os dois se levantaram juntos para serem conduzidos a um consultório médico vazio, caminharam com os braços se tocando. E, ao se sentarem sozinhos ao lado de uma escrivaninha, Grace se inclinou para diante, levada por sua ansiedade, e beijou o garoto. Então, a porta se abriu. O homem que entrou viu a mãe pendida para a frente, com o braço estendido no espaldar de uma cadeira, o pescoço curvado em desamparada solicitude, os lábios nos cabelos do filho, os quais se confundiam pálidamente com os seus. Nesse instante, ela se virou e olhou. E Rupert, levantándose, desligou-se da carícia materna. O que Grace Thrale viu foi um homem robusto, de cerca de trinta anos, de cores nórdicas — corado, de olhos azuis, cabeleira brilhante e trajado de branco — parado na soleira de uma porta. Foi um quadro breve, mas até mesmo o garoto o recordou. Sentaram-se os três à escrivaninha e o jovem médico disse: — Não se preocupe. Colocou uma série de radiografias presas a uma armação metálica e as iluminou: os segmentos chanfrados, os arcos costáis, a cinzenta estrutura articulada de uma existência a descoberto, com seu augúrio mortal. — Estas são as que chamamos de vértebras dorsais. Ele apontou com um lápis. Grace olhou para a mortalidade de seu filho — irrompido todo o tecido respirante, tudo o que fosse móvel ou adormecido podia ressentir-se ou comprazer-se. Era como se ela olhasse para o remanescente ossificado, em uma sepultura de criança. Teria que haver uma cirurgia corretiva — que era delicada e raramente executada, envolvendo uma haste de aço inoxidável. Não afetava o crescimento. — Prometo a você que ficará melhor do que novo. O médico se dirigiu ao menino desta forma, animador, em voz grave e clara, com leve sotaque escocês, incluindo a mãe por um filamento de experiência que era quase terno. Em outra época, seu rosto, que revelava cor e gentileza, poderia ter sido belo. Seus cabelos luziam, dourados o bastante para serem vermelhos. Quando saíam, ele disse a Grace que ela devia marcar uma entrevista para vir com o marido. — Precisamos discutir o caso com o cirurgião. Christian Thrale estava envolvido em negócios de seu país, conferenciando em Dar es Salaam. Grace voltaria sozinha na quinta-feira. A porta, havia um letreiro saliente: "Angus Dance, médico". Na quinta-feira, ele iluminou as radiografias e apontou com o lápis. Disse que aquilo seria difícil, mas tudo terminaria bem. Contavam com o melhor homem de Londres para o trabalho. Grace Thrale sentou-se ao lado de Angus Dance, a fim de olhar para as chapas, e, manuseando uma delas, deixou uma trêmula impressão de dedos úmidos. Quando o cirurgião chegou, Dance levantou-se e ficou ao sol, junto à janela, -onde se tornou branco e dourado, um serafim, um risco de chama. Grace disse a ele que seu marido estava vindo para casa e que assistiria à operação. — A senhora será atendida por meu colega. Estarei de licença nessa semana. — Percebeu que ela ficou perturbada. — Serão apenas alguns dias. Quando o cirurgião os deixou, Dance se sentou para preencher sua parte em um formulário. Disse a ela que iria à casa dos pais, perto de Inverness. — Como está Inverness atualmente? — Oh, como todos os lugares, cheio de japoneses. — Relendo o formulário, acrescentou: — Somos vizinhos. Vejo que mora no Crescent. Eu moro na esquina, no prédio pintado de azul. Ambos concordaram que não gostavam do tom. Grace disse que costumava passar freqüentemente pelo prédio, tomando o atalho pela passagem atijolada — que, anteriormente reservada aos pedestres, agora vinha sendo violada. Sabia que o médico estava dizendo coisas convencionais para acalmá-la, e foi acalmada pela intenção humana dele. O médico disse: — Rupert me atropelará lá um dia, em sua bicicleta, e eu vou sair de lá de maca. — Devolveu a ela o formulário e lhe tocou a manga: — A senhora está ansiosa, mas não há necessidade. A operação correu tão bem, que Christian Thrale voltou para Dar es Salaam em uma questão de dias. O garoto ficaria cerca de um mês no hospital. Grace ia lá de manhã e à tarde, levando revistas de histórias em quadrinhos, um quebra-cabeça, pijamas limpos. Havia uma lanchonete, onde ela almoçava. — Como estava Inverness? O dr. Dance carregava uma bandeja. — O acesso para o Oriente. Fico satisfeito por Rupert estar indo tão bem. O corpo ereto dele dava uma impressão ampla, ao mesmo tempo grave e forçada. Tinha braços curtos e musculosos, com pêlos ruivos. Sentaram-se juntos, e Grace transmitiu a gratidão de Christian, em viagem na Tanzânia, e mostrou-lhe até mesmo uma carta. O alívio emanava dela em formas de elogio: as enfermeiras eram muito gentis, o cirurgião, o médico de Karachi. A irmã Hubbar era uma santa, e Rupert ficaria irremediavelmente perdido com tantos mimos. Então, disse: — Bem. . . Não há motivo para estar ouvindo isto, em seus momentos de folga. Seus cabelos claros eram esculpidos, caindo de uma divisão central, em alas sobre as orelhas. De vez em quando, ela os tocava, e um anel cintilava na mão erguida. As unhas, sem esmalte, tinham o comprimento adequado a uma dona-de-casa. — Como foi sua viagem? Ele disse que sempre tomava o trem. Seus pais levavam uma vida isolada, mas agora tinham televisão. A casa, que ficava em Black Isle, era sempre fria, não apenas por falta de calefação, mas pela austeridade. — Eles gostam dela sem muitos móveis. Como seria de prever, eu e minha irmã preferimos o atravancamento. — Havia apenas um quadro na casa: — Uma foto emoldurada do Tirpitz, que afundou no dia de meu nascimento. Ou, pelo menos, naquela manhã é que chegou a notícia de que o tinham afundado. A irmã dele também era médica e vivia em Edimburgo. Grace imaginou os dois velhos sitiantes na casa rígida, proferindo monossílabos como aye, wee e yon '; a irmã solteira, uma corada pediatra vestindo tweed, provavelmente chamada Jean. — Eles devem sentir muita falta de vocês dois. — Meu pai ainda trabalha como consultor. É engenheiro. Então, eu os visito com regularidade. E Colette irá passar a Páscoa com eles. Em verdade, é duro para ela, sendo casada e tendo família. Nessa noite, Grace perguntou, em um jantar a que fora convidada: — Alguém se lembra em que ano afundamos o Tirpitz? Aconteceu que Grace Thrale e o dr. Dance se falavam todos os dias. Havia as radiografias para iluminar e examinar — cada uma delas tingida com o desabrochar da alta do hospital; havia a cabeceira de Rupert, havia os corredores e a lanchonete. Certa vez, ficaram conversando por dez minutos em uma escada. Logo afastaram os tópicos da vizinhança — a passagem de tijolos violada, o hediondo novo hotel nas proximidades, que aceitava grupos — e Grace descobriu que Angus Dance era divorciado de um casamento de estudantes, votava nos liberais, passara um ano na Colômbia em um programa de intercâmbio e mantinha um pequeno barco a vela em Burham-on-Crouch. Ele fizera visitas a penitenciárias de Wormwood Scrubus, mas agora não tinha tempo para isso. Um dia, ele estava com um livro sobre as Brontés, em sua mesa de trabalho. Comentando o casamento, ele disse: — Atualmente, os jovens não fazem tanto isso. Mais novo do que ela, ele já se considerava com idade. Grace lhe contou como seus pais haviam perdido a vida no naufrágio de uma lancha australiana, quando ainda era criança. Em seguida — ou assim pareceu, quando ela passou a relatá-lo —, acontecera Christian. Recontando tais ' Inglês arcaico: "sim", "pequenino" e "aquilo", respectivamente. (N. da T.) coisas, Grace sentia que sua história era pobre em acontecimentos. Faltavam anos, como se devido a alguma amnésia, de maneira que o único ato influente em sua vida havia sido o tão comum de dar à luz. A morte acidental dos pais permanecera maior que qualquer exploração consciente de si própria, continuando a ser seu único motivo para causar alguma sensação. Tal vacuidade poderia ter afetado o crescimento. Comparada à variedade dele, ela estava fixa, terrestre; presa à terra, em contraste com o mar aberto de Dance. Esses diálogos com o dr. Dance eram as primeiras conversas de Grace. Com Caro, tinha havido uma união inarticulada: o silêncio da infância, em uma praia de Sydney. Com Christian, havia o escritório, os três filhos, os padrões e crises dos dias domésticos. Ela não dissera com muita freqüência: "Eu acho", "eu sinto"; nem sentira falta disso. Agora, crenças e sentimentos ganhavam corpo deliciosamente para ela, multiplicando-se. Entre visitas ao hospital, Grace as ensaiava. Mantinha falas imaginárias com Angus Dance, trocas fantasmais, nas quais não se sentia envergonhada por brilhar. Havia uma compulsão para revelar-se e explicar-se, contar, a verdade pura. Os momentos em que geralmente se sentava junto dele e examinava as radiografias geraram uma gentileza mútua, que era a própria prova humana da perfectibilidade. Após essas ocasiões, havia uma conscientização do esforço — uma boa tensão, como o corpo poderia experimentar por um ato saudável e desacostumado. Certo dia, quando um papel trocava de mãos, os dedos de ambos se tocaram, mas isso foi tudo. — Imagino que Angus seja um nome escocês — observou Grace Thrale. — É uma versão de Enéias. Ela não se recordava do que Enéias havia feito, e achou melhor não perguntar. Dance a estava mudando. Mais do que tudo, ela desejava equipararse ao nível diferente de generosidade dele — àquela sensibilidade precisa como um instrumento, mas ainda assim com uma precisão natural; ao seu bom humor, que era uma forma de generosidade; à. sua leve e apropriada melancolia. Era a virtude que Grace mais desejava dele, como se fosse uma honra que Dance lhe pudesse conferir. Ele podia fazer dela uma mulher honesta. Se enumerados, os fatos puros do amor de Grace Thrale teriam parecido familiares, dignos de pena e — para alguns — inclusive cômicos. Ela estava cônscia disso. A doçura é que era incompreensível. Uma vez que a condição a impressionava por ser inata, ela esquadrinhava sua experiência em busca de um precedente. Travara conhecimento com um homem em Londres, muito tempo atrás, antes de seu casamento — um professor temperamental que freqüentemente desmarcava encontros ou chegava tarde, por quem ela sofrera durante um frio verão. Somente no ano anterior ficara sabendo que ele passara a dirigir um estabelecimento de ensino em Dorset, e procurara seu nome na lista telefônica. Ele não fornecera qualquer prólogo para Angus Dance. Por outro lado, em contraste com o professor, Christian parecera um modelo de consideração, um enamorado responsável, cuja pontualidade, desde o início, prefigurava casamento. Angus Dance não tinha precursor. Grace colocou a ponta de uma caneta entre os lábios. Hugh, o filho do meio, perguntou: — Por que você fica assim? — Estou pensando no que contar a papai. À noite, estava sozinha com Angus Dance, quando se estirava solitária no escuro, com o braço encolhido em volta do corpo. Pensava que Christian logo voltaria de Dar es Salaam. Saber que ele faria amor com ela imediatamente propiciou-lhe mera aceitação. Uma semana depois que Rupert voltou do hospital para casa, a sra. Thrale encontrou o dr. Dance na rua. Estavam ao lado de uma rua em reparos, de maneira que mal conseguiam ouvir-se, por causa da britadeira elétrica. Grace olhou para a pele clara e corada, a cabeça castanho-amare-lada dele, sua coloração de meio-dia, enquanto partículas de concreto explodiam e o pavimento vibrava. A consciência também vibrou, em alguma escala Richter interior. — Vamos sair daqui. Dance esboçou o gesto de tomá-la pelo cotovelo, mas não chegou a fazê-lo. Foram até a loja de doces e massas, concordando em que a mulher encarregada era rabugenta, mas os croissants, excelentes. Quando dobraram a esquina, Grace disse: — Todos sentimos sua falta. Ela ouviu seu comentário tornar-se recatado com a trepidação, e um ligeiro tique surgiu em seu rosto. Ele sorriu. — Ora, também já é exagero. — Entretanto, acrescentou: — Também senti falta de todos. Dizendo "todos", ambos tornavam aquilo possível e diminuíam-lhe a importância: um pacto, escrupulosamente observado. Na loja, Grace precisou esperar pelo bolo de sementes aromáticas. Angus Dance apertou-lhe a mão. — Os médicos estão sempre atrasados para algum lugar. Espero encontrá-la novamente. Depois que ele se foi, a mulher carrancuda atrás do balcão disse: — Então, ele é médico. Tem um rosto atraente. Quando Christian elogiou o bolo, Grace comentou: — Comprei naquela simpática mulher da esquina. Na primavera, os Thrales costumavam dar uma festa — bebidas e pequeninas coisas para comer. Denominavam aquele decoroso evento "nossa falência". Grace estudou a questão em silêncio: eu gostaria de convidar aquele jovem médico. Poderíamos convidar o médico de Rupert, que mora praticamente na casa ao lado. Que tal convidar aquele dr. Dance, que foi excelente para Rupert? A pergunta, quando finalmente formulada, Christian respondeu: — Boa idéia. Ele tinha em mente convidar alguém muito antigo em seu departamento e imaginou que um médico viria a calhar. Grace telefonou para o hospital. Dance reconheceu sua voz. — Alô? Ele não disse sra. Thrale — e nunca o dissera. Escreveu a data da festa e o horário das seis às oito. — É alguma ocasião especial? — Meu aniversário. Não que contemos aos outros. Ela usou um vestido novo, que lhe realçava os seios. Christian comentou: — Não está um pouco nua? — Com os dedos sobre seu corpo, desenhou o contorno da seda preta. — Feliz aniversário, Grace querida. Embora tivessem contratado um casal da Jamaica para cuidar das bebidas, foi Grace quem abriu a porta para Angus Dance. Antes de entrar, ele se inclinou e a beijou na face, murmurando: — Parabéns. Entregou-lhe um pequeno embrulho que, mais tarde, ela verificou conter água de lavanda. Grace estremeceu sob o surpreendente beijo, do qual se desviou com a impressão masculina de paletó indelével sobre sua seda e braços femininos. Quando Christian se aproximou, vindo do começo da escada, substituindo o rosto festivo pelo sério tema de Ru-pert, ela recuou para a curva do piano, onde logo Dance a procurou. — Quem é que toca? — Eu. Por esta vez, deixou de acrescentar: "Minha única façanha". Ele se inclinou para observar a pilha de músicas. Grace colocara Chopin no topo, desejando impressionar. Viu-o viras as páginas com mãos grandes e deliberadas; observou-lhe as feições quase espirituais. Naquele ambiente amador, a autoridade o abandonara e sua juventude era um choque, um desapontamento. De fato, a autoridade passara para ela. Estava presidindo sua casa como uma matrona — seus convidados, seus filhos encantadores: dona da situação. Não sabia como dirigir-se a ele, agora que ficara em destaque. No hospital, as enfermeiras o chamavam de doutor, da mesma forma que as mulheres com família chamariam seus maridos de pai — ou papai. Falaram sobre o centro comunitário, e Grace lhe contou sobre a exposição de arte que seria inaugurada no domingo. — Eu poderia dar uma espiada — disse Dance. Rupert apareceu com o uísque do médico e foram apresentados outros convidados. Em um espelho oval que haviam comprado em Bath, ela viu a sala, monótona em encanto floral e, como a Inglaterra, atapetada de verde, de parede a parede. Viu também a si própria naquele campo de flores — praticamente indistinta de almofadas, cortinas e enfeites, os quais não causavam inquietude, pois faltava-lhes personalidade. No espelho, pôde mais ver que ouvir seu marido dizendo "Encaremos os fatos", como viu Jeremy, o louro e adorado filho mais velho, portando-se maravilhosamente. Viu os anéis em seus próprios dedos e um bracelete que estava no seguro. Mesmo olhando, ela não podia ver Angus Dance naquele espelho (ele havia sido levado à sala de refeições, para comer uma fatia de presunto), e soube que nunca o veria. O chefe do departamento de Christian tinha uma feição de Mercado Comum. Depositou seu drinque sobre o Chopin e disse: — Não a conheço suficientemente para contar-lhe esta história. Grace viu a sala marulhar em águas espelhadas: em tão lento movimento e cores tão pastéis; e, novamente, ela própria — escudada, enfeitada, protegida e, pela primeira vez, inteiramente só. Uma mulher corpulenta, em roupas violeta, inclinou-se contra a platibanda da lareira, purpurejando a visão. O chefe de Christian disse: — Agora vem a parte pior. Grace ouviu distraidamente o final da anedota. Quando ela não sorriu, Sir Manfred ficou aborrecido e olhou para sua pele branca, como se dissesse: Você é que começou isto. Pegando seu drinque, ele se encaminhou para a estante de livros: — Sou um leitor voraz. Sir Manfred deixara uma mancha circular sobre um noturno. Ela viu, ou soube, que Angus Dance retornara à sala. Ao inspecionar alguns canapés de queijo, ela o viu perto de si, conversando com uma jovem de cabelos pretos e olhos azuis, que viera com os Dalrymples. Ora essa, por que não? Um homem como ele seguramente não levaria vida de celibatário, abstinente em tributo aos caprichos românticos acalentados por ela. — Consegui para você a informação sobre o Tirpitz, Grace. Era seu amigo mais antigo, de quem ela imediatamente desejou a morte. — Não pense que eu lhe falharia. Promessa é promessa. Doze de novembro de 44. Grace dobrou as mãos diante do corpo. Vexada. — Adernado em seu ancoradouro. Nós o tínhamos posto fora de combate com submarinos miniaturas, no ano anterior, mas a RAF lhe deu o golpe de misericórdia em 44. Em algum lugar do círculo Ártico, lá nos fiordes noruegueses, não me peça para pronunciar o nome do lugar, é uma daquelas palavras com trema. Angus Dance estava de costas para eles, podendo ouvir tudo. — Os idiotas dos alemães o colocaram bem dentro de nosso alcance, compreenda. Contamos sempre com a imbecilidade. Algo absolutamente simplório. Bem, isso explica tudo? — Fico muito grata, Ernie. Ernie não falava alemão, mas sabia como simular um bom sotaque, em festas. — Semprrre ao seu disporr — disse, batendo os calcanhares. Angus Dance apanhava um cinzeiro para a jovem Dalrymple. Ele havia dito: "Eles afundaram". Para Grace e Ernie era "Nós afundamos" — até mesmo a colegial Grace atacara o grande encouraçado Tirpitz com toda a sua encaracolada energia. Angus Dance estava fora disso, isento de culpa ou de glória. Por ele, Ernie e Grace poderiam, à vontade, provocar tumultos à noite em Mafeking 1. Grace girou um copo gelado entre as mãos. Ernie correu um dedo possessivo ao longo da cintada negra do piano, da mesma forma que Christian havia feito com a borda de seu vestido. — Ele levou mil homens para o fundo consigo. Sir Manfred libertava-se de um questionador. Cidade da África do Sul. Trocadilho com a palavra "mafficking": manifestações públicas de júbilo, durante uma guerra, por exemplo, quando há notícias de vitória. (N. da T.) 1 — Assim, de improviso, não recordo os números. Por que não telefona para minha secretária? Trouxeram caneta e papel. — Srta. Ware. Não, Waring, não, Ware, Cordélia Ware. É um tanto autoritária, mas conhece estatísticas de trás para diante. — Sir Manfred acrescentou um número de telefone e tomou o espaço diante de Grace. — Sinto muito, mas tenho que ir. As pessoas a beijaram, uma após outra. — Adorei sua festa, adorei. Simplesmente, adorei. Angus Dance se foi em uma onda de partidas, apertando mãos. Depois de tudo terminado, trouxeram o Spode do lugar seguro em que o tinham posto. Alguém quebrara uma taça de cristal lavrado. Jeremy observou: — Vocês disseram falência. Dois gatos brancos que miavam foram libertados do banheiro no andar de cima, porém não tocaram nas sobras. Jeremy e Hugh recolocaram a arca entre as janelas. Rupert, a quem não era permitido fazer esforço, ajudou Christian na contagem das garrafas vazias. — De quem eu mais gostei foi do dr. Dance. Eu também. Christian virou a meio a cabeça para Grace e piscou de leve. — Quer dizer que temos uma queda pelo dr. Dance, não é? — Ele havia reunido as garrafas em uma caixa. — Eu também gosto dele. Ainda mais tarde, dando corda ao relógio de cabeceira, Christian perguntou: — Afinal de contas, por que Ernie tagarelava daquele jeito sobre o Tirpitz? Ou seria o Scharnhorst? Grace puxava o vestido negro por sobre a cabeça. — Creio que era o Scharnhorst. Ele poderia ter telefonado no dia seguinte, agradecendo pela festa, mas não o fez, embora o telefone houvesse tocado a manhã inteira e o chefe de Christian tivesse enviado flores. — Quer dizer então que foi um sucesso — anunciou Jeremy, que estava ficando mundano. Grace selecionava a correspondência. Christian disse: — Nunca vi um ramo de margaridas tão bonito! Grace Thrale agora embarcava nos primeiros estágios do amor, sendo o primeiro a simples ânsia, se infinita. Em uma só manhã, era capaz de ver uma dúzia de Dances nas ruas. Então, ansiosa por um impossível toque do telefone, cujo tilintar elétrico reverberava em seu espírito, ela construiu mitos e lendas a partir de um beijo à porta. Essa foi a segunda fase. A terceira foi a crença em que todo significado era de sua própria e confusa invenção, e qualquer reciprocidade da parte de Angus Dance, uma fantasia. Não havia qualquer revelação para ser feita a ele. Dance vira, inclusive, seu melhor vestido. Se ele soubesse, faria alguma piada sobre as diversões de sua vida. Até mesmo o homem mais bondoso poderia dar boas gargalhadas sobre o assunto. O problema era que a própria abundância de seus sentimentos bastava para a mutualidade. Tanta gentileza amorosa também fazia com que isso parecesse moral. As frases se misturavam e alternavam. Se ele fosse à exposição de arte-, no domingo, ela saberia. Grace ficou acordada, depois dormiu inquietamente. — Você tem levantado muito cedo estes dias — notou Christian. — É o cachorro da casa ao lado, latindo ao amanhecer. Rupert começou a rir. — Como um galo. — Se isso continuar — disse Christian —, falarei seriamente com o dono. — Foi aquele fatal e pérfido latido — disse Rupert, e, rindo, entornou seu café da manhã. A esta altura, a sra. Thrale cometera adultério em seu coração inúmeras vezes. No domingo, Christian levou os garotos a uma exposição de cavalos. Ele entendia bastante de cavalos — suas dimensões, raças, acasalamentos, habilidades. Os garotos também sabiam usar corretamente palavras como ruão, malhado e castrado. — Devemos estar de volta às seis. Grace disse: — Eu poderia ir ver a exposição de arte. Depois que eles saíram, Grace maquilou-se com cuidado. Vestiu um pesado casaco azul, já velho, mas que lhe ficava bem. Era um dia úmido e frio, quase sem claridade; nuvens pesadas sugeriam chuva. Em uma vitrina, ela se viu aconchegando a echarpe ao corpo — apressada, excitada. Uma mulher à entrada cobrou-lhe dez xelins. O piso de tábuas sujas era desnivelado e rangia, enquanto caminhava por ele. Estava quase sozinha no saguão, mas não conseguia forçar-se a procurar Angus Dance. Um homem gordo, de impermeável, recuou para ganhar perspectiva e 'colidiu com ela. — Desculpe-me — disse. Havia dois ou três casais idosos que tampouco tinham algo a fazer, bem como uma jovem deprimida, que talvez fosse um dos expositores. Em muitos casos, a pintura era em verde e vermelho, turbilhonando, ou então fora aplicada uma leve camada, em tons cinza angulares. Grace soube que ele não viria. Quando saiu dali, já escurecia e caía uma chuva misturada a granizo. Ela não queria ir para casa; era como se sua humilhação, lá, pudesse ficar exposta. Recuava de casa como de algum castigo extra — como uma criança, surrada pelos companheiros, teme a punição dos pais pelas roupas rasgadas. No entanto, foi caminhando penosamente, sem nenhuma outra possibilidade. A dor lhe subia do tórax e descia como granizo, por detrás de seus olhos. Era quase incrível que não existisse ninguém para confortá-la. Ela pensou: Minha mortificação. E, pela primeira vez, compreendeu que a palavra significava morte. Sozinha em casa, foi ao banheiro e se inclinou sobre as duas mãos na pia, ponderando. Essa angústia tinha que estar centralizada em algum outro objeto que não Angus Dance. Tal paixão dificilmente teria algo a ver com ele — o dr. Dance arruivado, de carne e sangue, que ela conhecia havia três meses — e, sem dúvida, devia estar fixada em uma visão. O espelho, por seu turno, a mostrava ansiosa, exposta, respirando pesadamente. Ela nunca se vira tão real, tão rara. Tinha acabado de tirar o casaco quando eles chegaram da exposição de cavalos, falando de maneira prática sobre baios e castanhos. Christian tinha sido empurrado, no metrô. — Talvez eu não esteja adequado à sociedade de massas. Grace disse: — Talvez nós sejamos a sociedade de massas. Segunda-feira era o dia de a sra. Thrale ir ao cabeleireiro. — Estou com alguns fios grisalhos, Mario — disse ela, e levou a mão à testa. — Aqui. Ele lhe tomou a cabeça entre as mãos, debaixo de um foco luminoso, como se fosse um crânio mantido norma frontalis. Oh, pobre Grace! Depois de um momento, ele declarou: — Não é um caso para tintura. — Soltou-a. — A senhora ainda não precisa tingir o cabelo. — Não. — Sendo loura, pode esperar um pouco. Grace sentou-se em uma cadeira de plástico, e ele acrescentou: — É pior para as senhoras de cabelos escuros. Quando ela foi instalada sob o secador, com a Vogue e o Arquipélago Gulag, ficou impressionada pela imemorial qualidade patética do lugar. Havia apenas uma jovem presente, exceto a moça do xampu, com jeans sobre os quadris estreitos e um proeminente arco peitoral que fazia com que a carne macia de Grace Thrale parecesse histórica. Grace baixou os olhos para seus braços pequenos e redondos, contemplando-os como em um retrato de algum mestre antigo. Pensou em seu corpo, que nunca havia sido realmente esguio e mostrava um alvo emaranhado das gravidezes, agora esperando em passividade pela decadência e mutilação. Suas mãos, crispadas sobre uma revista com o retrato de um homem bronzeado em uma praia, assumiram instintivamente uma atitude de resignação. Ela leu: "O Aga Khan em um raro momento de relaxamento". Naquele instante, contudo, ela se sentiu penetrando em uma vasta suspensão, solitária e universal. Nessa noite, Grace sonhou com sua morte. Na manhã seguinte, encontrou um pretexto e ligou para o hospital. — O dr. Dance está com um forte resfriado e não veio. Ela disse que não era importante e desligou. Com o mau tempo aumentando-lhe a irritação, ela disse em voz alta: — Eu teria ido lá. Falava da exposição de arte, o que era perfeitamente verdadeiro. Foi para o andar de cima e arrumou as camas, pensando com desdém: os escoceses dificilmente seriam amantes latinos. O equilíbrio não perdurou. Ao descer para o térreo, havia a mesma dor torácica, um sofrimento colossal, grandioso, em uma escala à qual ela, Grace Thrale, de Londres, W8 7EF, dificilmente pareceria habilitada. Sentou-se na cozinha e pensou: Estou extenuada — e talvez esteja louca. Ó Deus, preciso romper isto! Romper, romper, romper. Vocês disseram falência. Ruína. Em seu isolamento, ocorreu-lhe que os livros poderiam ajudá-la. Pela primeira vez, reconhecia sua falta de leituras, que nem ela nem Christian liam — e aí estava a verdadeira descoberta, porque havia esperado que ele mantivesse um lar literário. Possuíam dúzias de livros, em estantes que tomavam metade de uma parede, para não se falar nas edições Penguin. E faziam pedidos regulares à livraria, dos últimos lançamentos. Em casa, Grace tinha íris Murdoch, bem como Soljenítsin. Leitores ávidos. Entretanto, um estado de receptividade, no qual o tormento de outrem pudesse atingir sua própria alma, e através do qual sua paixão fosse definida e celebrada — não havia nada disso. Christian se apresentava confiantemente como um homem de letras: — Estou lendo Conrad este inverno. No entanto, Within the tides jazia em sua mesa-de-ca-beceira desde dezembro. Christian chegou em casa e a beijou. — Falei com aquelas pessoas sobre o cão que uiva tanto. — Não devia. — É claro que devia. Você não pode ficar eternamente sem dormir. Eles concordaram em manter o animal dentro de casa. Grace desejou que ele não tivesse dito o animal. Ele deixou sua pasta cair ruidosamente sobre a mesa do saguão. — E, realmente, usei a palavra uivar. No sonho dela, Christian estava chorando. Grace levantou-se durante a noite e desceu ao térreo. Apanhou O morro dos ventos uivantes em uma prateleira e ficou perto das janelas, ao luar, mantendo a vigília incessante de sua paixão. Não tinha o direito de proferir o nome de Angus Dance ou dedicar-lhe ternura, mesmo em pensamento — nunca tendo feito tais coisas na vida. Da mesma forma, poderia ter requisitado Heathcliff ou Enéias. O livro, uma edição antiga, pesava em sua mão. Sabia que não o leria, mas seria interessante saber se era possível abrir em uma página qualquer e encontrar a verdade, como na Bíblia. Passou a mão pelo corpo e refletiu que seus pés pequeninos eram irresistivelmente belos, da maneira como assomavam de sob a camisola. De manhã, Christian comentou: — Talvez estejamos precisando de um colchão novo. Quando as margaridas começaram a fenecer, Grace as jogou no lixo. O cartão, ainda preso às flores, dizia: "Com homenagem", e tinha um traço a tinta, riscando o sobrenome. Ela passou água no vaso e recordou: — Eu não ri de sua piada sem graça. Christian ficou preocupado, mas disse: — Evidentemente, você não tem que aceitar insultos para impulsionar minha carreira. — Monopolizando-lhe os pensamentos. Após um instante, ele perguntou: — Afinal, como era a piada? — Eu não a repetiria por nada no mundo. Os dois riram com vontade. Nenhuma resposta o deixaria mais satisfeito. A perfeita e protegida Grace. Certa vez, durante umas férias na Córsega, ele lhe virara o rosto para que ela não visse o espetáculo, como o denominara, de uma briga a socos. Mais tarde, nesse dia, ela encontrou Angus Dance na rua. Havia comprado narcisos para substituir as margaridas e ficou segurando as flores para baixo, à frente do corpo. Não conseguia pensar no que dizer, em algo que se nivelasse ao mágico e silente discurso de seu sonho. — Está se sentindo bem? — perguntou ele. — Não tenho dormido direito. — Ela também poderia ter dito: Eu o amo. — Exceto com pílulas. — O que está tomando? Por um momento, ele voltou a ser uma autoridade. Falaram sobre o forte resfriado que o acometera. E ela lhe levaria Rupert para um checkup, no fim do mês. A despeito da falta de sono, a pele de Grace brilhava tanto quanto a dele. — Tem tempo para um café? — perguntou ele. Assim, Grace Thrale se sentou a uma mesa de fórmica e Angus Dance pendurou seu paletó de flanela em um cabide. Ele usava um suéter de lã pálida, tricotada por sua mãe. Seu cabelo, em si, já era suficiente para atrair atenção: aquela luminosidade do norte, o brilho do sol do meio-dia. Os dois mal falaram, embora inclinados para diante, com delicada presteza, até que a moça se aproximou para receber o pedido. Tanto o sotaque como um r estranhamente aspirado estavam mais pronunciados nele. Grace considerou sua própria fala indistinta e fez um esforço para expressar-se melhor. — Tenho me perguntado como você estaria. Consideradas todas as coisas, era a frase mais audaciosa que ela jamais pronunciaria. Ficou surpresa com sua voz definida, a mão firme e eficientemente servindo o açúcar, quando o todo da Criação, a própria tessitura do firmamento estavam trabalhados, receptivos e cor de creme, como o suéter dele. Dance comentou que precisaria ir a Burnham-on-Crouch para ver seu barco, que estava no estaleiro para ser raspado e levar uma camada de zarcão. Também havia necessidade de uma nova calafetagem. — De qualquer modo, não sinto muita vontade de ir. Os lugarescomuns, as reservas, eram uma realização em si. As flores perfumadas de Grace estavam entre eles, postas em um recipiente com água, comprimidas por um barbante verde. — Como se chama seu barco? — perguntou Grace. — Elissa. — E abriu espaço para o leite. — Não tenho muito jeito para navegar — os legítimos são fanáticos. Envolvi-me nisso após uma experiência ruim. Acho que era um meio de locomoção, quando tudo permanecia parado. — Foi quando seu casamento se desfez? — Não. Isso foi um repúdio posterior. — Ele sorriu. — Acho que nada disso pode ser muito interessante. Desgostos muito comuns. — Para mim não são comuns. Ela não podia imaginar Christian, para quem a aceitação era imperativa, falando de suas rejeições ou reconhecendo "meus desgostos". Mesmo no fascínio daquele café, Grace sentiu o aviso de que, nisso, Christian era o mais enfermo, o mais indefeso — e que Angus Dance ficara fortalecido pelos reveses e por sua recusa em dissimular. Recordou como ele se comprometera de maneira simples com Rupert, como havia dito: "Eu prometo". Uma temeridade semelhante não poderia ser exigida de Christian. Quando ela fazia comparações com Christian, não havia apenas a deslealdade, mas o fato de que seu marido sempre parecia ganhar. O dr. Dance ofereceu-lhe bolinhos de leite e passas. — Diverti-me muito em sua festa. Devia ter telefonado para dizerlhe isso. Grace pensou no afundamento do Tirpitz e nas flores comemorativas do chefe, uma encharcada coroa em águas turbulentas. A menos que esqueçamos. — Parece que foi há muito tempo. — Não a vi mais desde então. Era a fusão do grande com o trivial, que não podia ser mal entendida. Ele acrescentou: — No entanto, estivemos tão próximos. . . Ela ficou calada, inclinando-se para trás, penetrando nas cores e sombras do aposento: não em plenitude, que mal poderia existir, mas em voluptuosa calma, em paz. Estava com a mão estirada sobre a mesa, a manga arregaçada. Era a primeira vez que ele lhe via a parte interna do braço. Se os desgostos comuns a atingiam, finalmente, também era atingida por essa perfeição sem precedentes. Grace estava sentada ao piano. Virou uma página de música, mas não tocou. Rupert aproximou-se e ficou a seu lado. — O que é isso? — Scarlatti. Ele quisera perguntar: O que há de errado? Como uma amante, permaneceu perto o suficiente para sugerir que ela devia abraçá-lo. Com o braço direito, Grace o puxou para si. Sua mão esquerda repousava nas teclas. Inclinou a cabeça contra a parte superior do braço dele. Era como uma fotografia eduardiana. — Eu o amo, Rupey. Era o último filho com quem poderia fazer semelhante coisa — e isso apenas porque a doença dele fornecera a ambos um prolongamento, durante o qual muita coisa podia ser passada por alto. Os dois sabiam disso. Emulando-lhe o ânimo, o garoto ficou pensativo, lânguido, mas ao mesmo tempo permaneceu onipotente. — Eu o amo — repetiu ela. Para que ele lhe respondesse o mesmo, Grace pensou: Então, agora é assim: eu tentando extrair força deles. Refletiu na palavra "adúltera" e a considerou arcaica, como ser apedrejada até a morte — uma palavra intolerante, como negra, judia, costureira ou poetisa, mas precisa. Sua mão direita fez soar notas graves: sombrias, separadas, instruídas. A sala as recebeu desapaixonadamente. Houve um clique de seu anel no marfim. Ela embalou ligeiramente o garoto com o braço, e pôde sentir o gesso blin-dando-lhe as costelas radiografadas. Tirou a mão do piano e passou os dois braços em torno dele, com os dedos entrelaçados em volta do filho, o seio e o cenho voltados para o corpo do garoto. Isso era menos semelhante a uma fotografia. — O que é, mamãe? — perguntou ele. Movendo o braço aprisionado, ele pôs a mão sobre as teclas agudas e fez soar uma série discordante de teclas, acentuando e repetindo notas altas com veemência. Ela o libertou, mas ele ainda desferiu alguns últimos e perplexos sons excitados. E ficou ali, quieto e tocando a mãe, oscilando entre a infância e a sensualidade. Christian chegou, com papéis na mão. — O que é isso, um dueto? O garoto escapuliu e ligou a televisão. As notícias correram sobre devastações salteadas — Beirute ou Belfast, o Bronx ou Bombaim. — Preciso falar com você, Grace — disse Christian. Rupert gritou: — É um programa sobre Pompeia! Grace e Christian sentaram-se em um sofá que raramente era usado, por ser de veludo. Ele lhe disse: — Aconteceu algo importante. Grace Thrale sentiu-se desfalecer. — Designaram-me a África! Ele poderia ter sido Alexandre ou Antônio. O Cipião mais jovem. Grace ficou olhando apáticamente, e Christian acrescentou: — O sul do Saara. Ela olhava através de lágrimas. Lágrimas que nunca brotariam por Angus Dance, que não necessitava de piedade nem a evocava por falta de percepção ou ao se expor. Grace chorava por Christian, insulado na fatuidade isolante dos próprios dias, e então poderia ter-lhe contado tudo, por pura fidelidade ao significado das coisas. Disse: — Meu querido. . . — Nada existe, absolutamente, para chorar. — Christian lhe tocou a face, satisfeito. — Eu posso lhe garantir. A perfeita Grace. Ele desenrolou o gráfico do departamento, que tinha na mão. Uma pequena caixa, no alto da página, gerava caixas mais largas abaixo, concebendo intermináveis áreas muradas de auto-estima. Ele apontou — aqui, e aqui. — Talbot-Sims será apenas o diretor. Para mim, é a coisa real. — Quando ele se inclinou para mostrar o pedigree, havia uma área esparsa e acinzentada, no alto de sua cabeça alourada. — Minha pouca idade era uma desvantagem — disse ele, tirando uma sujeira da folha imaculada —, mas por fim eles prescindiram da antiguidade. — O gráfico insistia em enrolar-se nos cantos, lutando para voltar à forma primitiva. — Isso fará uma diferença incrível na pensão. Grace refletiu se a separação existente entre os pensamentos e os objetivos de ambos tivera, em alguma época, parecido tão conclusiva para ele; se ela jamais fora tão grosseiramente relegada. Perguntou-se se, durante as separações do verão ou quando viajara para Guernsey, ele talvez houvesse amado ou dormido ■— a primeira necessidade não impedia a outra — com mais alguém. Era difícil imaginá-lo suficientemente decidido para tanto, agora que ele não possuía autoconfiança para ler um livro. Se Christian tivesse amado outra mulher, Grace seria a primeira a compreender. A magnanimidade formava uma triste e vasta perspectiva. Ou podia ser, meramente, uma súplica de clemência, em seu caso pessoal. Christian passou o braço em torno dela, baixando das alturas onde funcionários prescindiam da antiguidade. — Lamento, mas teremos que desistir da Costa Brava. De qualquer modo, quando eu estiver dono da situação, prometo levá-la a algum lugar sossegado. — A mente dele disparou, como o noticiário, através de nações devastadas, buscando uma possibilidade. Tudo era um pandemônio — Portugal, Palestina, Tibete: rejeitados, um após outro. A euforia falhou estranhamente em sua garganta, como se por um soluço. Mesmo assim, ele acrescentou, audacioso: — Afinal, você me deu sorte, ao censurar aquele velho imbecil. Angus Dance chegou à passagem de tijolos quando a chuva começou. Correu, no mesmo momento em que Grace Thrale, entrando pela extremidade oposta, também corria, debaixo da chuva. Se fosse possível observar-se o encontro de ambos, visto de cima ou de lado, como numa seqüência filmada, os dois apareceriam precipitados, em primeiro lugar, as cabeças abaixadas devido ao mau tempo; depois, diminuindo a corrida, devido à percepção; finalmente, parando. A parada sendo em si algum ápice de ímpeto, uma consumação. Encararam-se a um metro de distância, e a chuva caía nos cabelos de Dance e, como gaze, no casaco azul-calamina de Grace. Ignorada, a chuva era um testemunho cósmico, mais conclusivo que um abraço. Quem os visse diria que eram amantes. A chuva prateava os cílios de Dance. Ele se continha segurando as lapelas do paletó. Tinha a expressão desarmada, pura devido à situação. — É a isto que chamo estar próximo. — Sim. — Devemos abrigar-nos? Como se já não estivessem abrigados. Patinhando ao longo do estreito túnel, ele finalmente a pegou pelo braço. Por não se abraçarem, eles haviam merecido tal indulgência. Agora estavam parados sob uma marquise, à saída de um supermercado. E ele disse, dando a Grace mais razão do que ela jamais tivera, sobre qualquer coisa: — Você sabe que a amo. Era a resposta que ela não fora capaz de extrair do próprio filho. Grace nem mesmo sacudiu a água de seu cabelo ou do casaco; talvez nunca mais precisasse tornar a considerar sua aparência. Após alguns minutos, durante os quais a chuva continuou e eles foram acotovelados por sacolas de compras, ela disse: — Isso me faz feliz. Grace achou que diria a verdade simples, agora que era indómita. Do lado oposto, erguia-se o hotel que hospedava grupos. Dance falou: — Seria um bom lugar para conversarmos. — Podemos atravessar a rua, quando a chuva parar. Sua serenidade a impressionou, como acontecera na casa de chá. Ele vacilou, depois decidiu. — Certo. Terei de telefonar, por causa das consultas. Grace não insistiu para que ele as mantivesse. Nem Dance perguntou se a esperavam no Crescent. Quando o céu clareou, cruzaram a rua. Ao entrarem no hotel, o homem ao balcão desligou o telefone, dizendo: "Céus!" Uma confusão de bagagens — malas, sacolas de golfe, sacos de viagem de náilon escocês — estava empilhada ao pé da escada. No saguão, que ficava um andar acima, elas poderiam estar num aeroporto, esperando a partida. As pilastras do prédio eram recobertas por plástico fino imitando madeira, com pequenos balcões em torno, para cinzeiros e drinques. Os sofás eram duros e brilhantes, mas nada tinham de alegres. As cortinas fartas tinham fios metálicos que lhes emprestavam uma aparência de mau gosto, e em uma parede havia a decoração de uma cornucópia em mosaicos, vomitando verdosamente. Quando eles entraram, um grupo de mulheres vestindo terninhos se levantava para sair. Um velho, com uma sacola de companhia de aviação, disse, quase em lágrimas: — Acontece que eles só tinham em bege! Grace Thrale sentou-se perto de uma janela, e Angus Dance foi telefonar. Se não fosse por ele, com que facilidade ela se ajustaria àquele lugar! A área murada, quase vazia, desfrutava da subserviência — desinteressava-se da cólera, do espanto e da tocante crença de seus agregados costumeiros. Não adiantava tentar isso agora com Grace, que mal via e estava além da condescendência. Com um desligamento que era outra face da paixão, ela se interrogou sobre as circunstâncias em que abandonaria aquele lugar e se jamais voltaria para casa. Abandonada pela dona, a casa no Crescent era pior que algo abandonado, extinta a vida que nela existia: o assado ganhando temperatura ambiente, sobre o balcão da cozinha, uma nota inacabada para Caro, anunciando a promoção de Christian, um álbum de rock que era uma surpresa para Hugh e Within the tides fechado, sobre a mesa-de-cabeceira. Tudo em suspenso, silencioso, enigmático — pequenas coisas que poderiam ter enfeitado os camarotes do Mary Celeste ou decorado um programa sobre Pompeia: insignificâncias, tornadas portentosas pela rejeição. Levantando-se, ela estendeu os dois casacos molhados em um assento próximo, para desencorajar. Ficou de pé no vão de concreto da janela, espiando a chuva, e soube que ele voltara. Dance sentou-se a seu lado, sobre o duro plástico vermelho. — Não há nada a temer — disse. Seus dedos tocaram os dela, como acontecera uma vez, no hospital. — Eu vou embora. — Era possível ver-se a cor refluindo, através dos claros e iluminados níveis de sua pele. — Ofereceram-me um posto em Leeds. Ela permaneceu com o ar de supremacia, a postura triunfante requerida por um resultado diferente. Como Grace não falasse, ele continuou: — Não precisa pensar que eu tentaria prejudicar sua vida. Sua vida, que estava disposta a rejeitar: cujos emblemas houvera dispersado friamente, como poderia ter arrancado os topos de flores mortas. — Como se eu quisesse fazer-lhe mal — disse ele. Como se ela não fosse com ele a um quarto naquele lugar fazer amor, se Dance assim o quisesse. Ele a estava fazendo uma mulher honesta. Ela não merecia crédito algum dos beneficiários, já os tendo repudiado. O amor seria dissimulado, como algo inútil, escondido, dele. Quando cobiçara os padrões de Dance, imaginara ingenuamente que fossem compatíveis com sua paixão. Ali havia outra auto-revelação — a de que deveria ter pensado que a virtude podia ser ganha tão rapidamente e por um acesso tão fácil como o amor. Em tudo aquilo, era difícil dizer onde terminava sua inocência e começava a culpa. Perscrutando o rosto exaurido de Angus Dance e seus olhos obscurecidos, a boca não de todo controlada, Grace Thrale era um navegante em busca de terra em um horizonte encoberto pela neblina. Perguntou finalmente, repetindo sua longa lição: — Isso significa uma promoção? — Sim, é um progresso. Esses conquistadores, com seus despojos, suas cidades e seus continentes — Leeds, África. . . Avançando, progredindo, sempre em movimento: um meio de locomoção. Apenas ela era estacionária, em calmaria. — Nesse sentido, também é necessário. Não posso continuar no cargo atual para sempre. Apenas ela poderia continuar na mesma para sempre. Poderia verificar Leeds na lista telefônica, como Dorset. A conscientização era um lamento baixo e prolongado em sua alma. Aqui, afinal, estava o seu próprio naufrágio — um afundamento além da lancha afundada de seus pais. Ela poderia ter bradado, mas, em vez disso, falou o que ouvira em peças: — Naturalmente, não haveria futuro. A cor retornou ao rosto dele, como o sangue nas contusões. Dance se levantou rapidamente e, como se estivessem em um aposento privado, parou diante da janela de concreto. Depois encostou-se a uma coluna, encarando Grace, os braços estirados ao longo do balcão destinado aos cinzeiros, seu corpo resistente compondo uma arquitetura melhor, um atlante. — Um homem deveria ter passado e presente, assim como futuro. — Ele moveu a mão enfaticamente e um prato de amendoins derramou-se em silêncio. Era um gesto que expunha perda, como se um fragmento da coluna se desintegrasse. — Pensa que não vejo constantemente os agonizantes que não viveram? É o que nós somos, não o que temos de ser. Ou melhor, eles são a mesma coisa. — Eu sei disso. — Até mesmo seus filhos já estavam escorados no futuro — suas aptidões para ciências ou idiomas, o que eles queriam ser; nunca lhes havia sido perguntado francamente o que seriam agora. Ela disse: — Mesmo aqueles que verdadeiramente viveram morrerão. É difícil dizer qual a ironia maior. Tais descobertas eram devidas a ele. Grace se erguia por causa de Dance e, sem dúvida, logo tornaria a afundar, indiferente. — Estou chegando aos trinta e quatro anos — disse ele —, e vivo com demasiada ociosidade. — Grace viu a retidão dele existindo em um espaço desimpedido, como a casa austera de seus pais. — Você não pode imaginar — bem, não estou querendo ser indelicado. Só que você, com sua plenitude — amor, filhos, beleza, bandos de amigos —, como pode compreender uma informidade como a minha? Como entender de solidão ou desespero? Eram temas que ela vira de relance em um espelho. Grace sentiu o conceito de Dance sobre sua existência encai-xandose nela como um enfeitado, debilitante vestuário, prendendo-a como uma ratoeira. Recostou-se no rígido sofá e ele continuou de pé, confrontando-a. Era um contraste alegórico — amor sagrado e profano: o arrebatamento dela oferecido como profanidade. Para insistir ou reparar um erro, ela disse: — Ainda assim, nada houve de mais belo em minha vida que as vezes em que ficamos juntos no hospital, examinando as radiografias. Ele voltou ao sofá e recolocou a mão sobre a dela — um contato tão essencial e externo como a impressão de dedos em radiografias. — Era como Paolo e Francesca. Ela teria de informar-se sobre isso, ao voltar para casa. No entanto, olhou para a mão sobre a sua e pensou, sem zombaria: Dificilmente amantes latinos. — É verdade que não suportaríamos as mentiras — disse ele. A primeira mentira em Grace tirando o vestido, a cabeça envolta em negro, sua voz sufocada dizendo "Scharnhorst". — Em minha vida de casada — disse ela —, jamais cheguei a trocar um beijo não casto, até aquele com você, em meu aniversário. Ele sorriu. A perfeita, protegida Grace. — Há tão pouco riso no amor ilícito! Seja qual for o tema, sempre deve existir a sensação de rir-se à custa de mais alguém. O último riso de Grace fora com Christian, sobre a piada de Sir Manfred. — Eu sou séria — disse ela. O beijo, a mentira, o riso — nada tornaria a ser sério, por aquele padrão de medida. "Eu sou séria", ela havia dito, quando ele sorriu em decorrência de sua maior experiência e menor discernimento, de sua contrastante virtude, posto ser ela quem desejava ferir. Olhou-a no rosto com a solicitude errada. Grace não seria convocada para testemunhar. Ela recordou como, na Córsega turbulenta, sua cabeça fora desviada. — Em um outro lugar — supôs ela —, você superará isto. — Ainda sonho com uma jovem que conheci aos dezoito anos. — Ele não se conformaria com as trivialidades dela, não perceberia a sua verdade. Em Leeds, sonharia com Grace. — As lembranças esfriam em temperaturas diferentes e em diferentes velocidades — disse ele. — Olhou em torno, para o tapete florido e as cortinas com seu brilho de ouropel, para a coluna salpicada de amendoins e a monótona cornucópia: — Que lugar pavoroso! E sua condenação era o prelúdio para a despedida. — É o mundo — disse Grace Thrale. — Eu lhe disse muitas coisas em pensamento, mas nunca foram tão desesperançadas como isto. Nem aconteceram em qualquer mundo material. — Ele então emendou-se. — É claro que houve desejo — acrescentou, eliminando tal extravagância. Seu sotaque intrometeuse e ele ganhou tempo para que a fala se recuperasse, dominando a linguagem como lágrimas. — Estou querendo dizer que, em pensamento, podemos manter uma reserva de esperança, a despeito de tudo. Não se pode dizer adeus em imaginação. Trata-se de algo que só se pode fazer em realidade, na carne. Inclusive, o desejo tem menos a ver com a carne do que com o adeus. O rosto dele nunca parecera menos contemporâneo. Era uma daquelas fotografias primitivas, o indivíduo com sofrimento e consciência. — Quer dizer que vou perdê-lo. Era como se ela estivesse se despedindo de um convidado: Adorei isto, adorei. Adorei você. — Nada mais posso fazer — disse ele. Ele retirou o toque refrativo e passou a mão pelo cabelo brilhante, como se em algum desconcerto normal. Tornou a levantar-se, apanhou o casaco na cadeira e ficou em pé ao lado dela. Todos esses atos, sendo executados rapidamente, recordavam que ele era um perito em litigar com a dor. — Eu a deixarei em casa. Vou tomar um táxi. Sua reversão às frases diárias era mortal. A prova final de que os homens eram fortes ou fracos. De pé, encararam-se, como contrários. E quem os observava ficou aliviado por vê-los normais. — Ficarei aqui alguns minutos. Ela não podia considerar o táxi, no qual, resolutamente, ele não a abraçaria. Entrelaçou as mãos à frente do corpo, no gesto comedido com que, às vezes, sustinha o desespero. Erguendo a cabeça à partida dele, era uma criança à beira do caminho que acena para um carro em velocidade, em uma estrada rural. Quando Grace chegou à rua, a chuva havia parado e começava a escuridão. Homens e mulheres vinham de seu trabalho, exaustos ou animados, todos pálidos. E a rua molhada brilhava com a luz das lâmpadas nos postes, cintilava mais que o claro céu negro e estrelado. Motores, vozes, passos e um ou dois transistores criavam seu tremor geofísico de um mundo em movimento. Essa demonstração de retomada a apressou, gratuitamente, em direção aos vitoriosos — a Jeremy, cujo olho precisava ser banhado em água boricada, à inclinação de Hugh para a matemática, ao súbito interesse de Rupert por Yeats e à frase de Christian: "Este é o melhor carneiro em anos". Todos eles iriam deleitar-se com o triunfo sobre ela, como em pouco descobriria. Eles é que ririam por último, o riso inocente e aterrador de sua justa reivindicação e de seu lícito amor. Com tais perspectivas e impressões, Grace Marian Thrale, quarenta e três anos, permaneceu silenciosa à entrada de um hotel, em seu surrado casaco azul, olhando para os carros e estrelas, com o bramido da existência em seus ouvidos. E, como qualquer grande poeta ou trágico soberano da Antiguidade, clamou ao seu Criador e perguntou-se por quanto tempo deveria permanecer em uma terra semelhante. 34 Paul estava escrevendo para sua mãe: "Minha querida Mónica, Seria muitíssimo lamentável se você vendesse a propriedade em Barbados, sem uma idéia definida de instalar-se em algum outro lugar. Por tedioso que possa ser, e disso não duvido, hoje o mundo é um dispendioso matadouro, regido pelas leis sobre impostos. Francamente, não a vejo na Irlanda nem imagino que você apreciasse a última reapresentação deles da Batalha do Boyne. Minha peça continua progredindo, embora os anúncios sejam exclusivamente de má qualidade. Isso deve significar que fui aceito em cheio pela nação. Talvez seja este abraço de jibóia que me impeça de prosseguir com novo trabalho. No momento, tenho desperdiçado bastante tempo ej-inclusi-ve, cheguei a ir ao zoológico — embora em verdade seja porque Felix pretende rodar um filme lá e quer que eu o financie. Acho que financiarei — o filho de todo mundo está fazendo um filme, por que não o meu? A única outra coisa que me lembro de ter feito ultimamente foi comparecer a uma festa na casa nova de Manfred Mills. A Victoria Square sempre foi um lugarzinho difícil e, em seu centro, agora existe uma elipse de concreto, à maneira de outeiro pré-histórico ou como se ali houvesse sido cimentada alguma monstruosidade inamovível, por razões de decência. Tertia não iria, eu levei Felix. O filho de Manfred — da idade de Felix, mas terrivelmente determinado, com um blue 1 por corrida através do país — recebeunos à escada e disse, com ar decidido: 'Espero que se divirtam'. Sempre imaginei que algo semelhante seja o Reino dos Céus. No andar de cima, uma estranha mistura — demasiados suburbanos discutindo trens e um rebanho de funcionários civis enxameando ao redor de Manfred, todos obsequiosos e expectantes, como pretendentes em torno de uma idosa viúva rica. Atentos a cada opinião emitida por ele. Em outras palavras, uma multidão absolutamente convencional — exceto por um pianista tão arisco que só podia conhecer celebridades, um padre católico que realmente não era casado e um dançarino soviético que ainda não desertou. Para o evento, Manfred mandou frisar as costeletas e empetecou-se de correntes. Madeline havia prudentemente contraído pneumonia e não apareceu. Entre os funcionários bajuladores estava Christian Thrale, agora uma caricatura de burocrata. Com ele, tudo se reduz a um boletim palaciano. Quando perguntei por sua esposa, que costumava ser bastante simpática, respondeu, com penetrante delicadeza: 'Grace hoje está indisposta'. Nem posso descrever a pomposidade. Ele compareceu com a cunhada — uma mulher que conheci bem tempos atrás, no momento viúva faz alguns anos, e a quem eu não via há séculos. Veio de Nova York para uma permanência breve, e ficou hospedada com os Thrales. Ainda atraente — pelo menos em comparação com os suburbanos e fiscais de impostos —, embora 1 Distintivo (boné, cachecol, etc.) concedido à pessoa que representou sua universidade (Oxford ou Cambridge) em atividades desportivas. (N. da T.) oscilando precariamente no limite da distinção, uma armadilha contra a qual as mulheres nunca são alertadas o suficiente. Quando jovem, ela já exibia tal perigosa tendência. O súbito encontro estimulou-me a uma ou duas páginas hoje. Eu gostaria de fazer algo a esse respeito, embora não apenas outra festa de pessoas arrebanhadas à maneira proustiana. Além de esse veio já ter sido explorado a extremos, ainda não sou venerável o bastante para o último volume de Proust. Não que Proust o fosse. Ele não era muito mais velho do que eu, quando escreveu aquela festa. Forjoua. Era tão bom no futuro como no passado. Acho que você agiria com inteligência aceitando o convite de Washington, uma vez que podemos em breve ter um novo governo e os parentes de mais alguém instalados na embaixada. Se você for aos EUA, como planejado, poderia enviar-me artigos de jornais que conseguir, a respeito do filme Ato de Deus, que estará estreando nessa época. Meu agente os coleciona, até tê-los todos, e não posso confiar em amigos para enviá-los, a menos que as críticas sejam altamente desfavoráveis. Felix pede que lhe agradeça o cheque pelo aniversário. Procure desculpá-lo por não escrever pessoalmente, e seja indulgente com ele. Seu filho que a ama" Almoçando com Ted Tice, Caro comentou: — Paul Ivory estava em uma festa a que fui esta semana. — Atualmente, Paul deve estar aparecendo bastante. — É curioso, mas ele não mudou nada. — Eu ousaria dizer que tem um retrato de si mesmo, putrefazendose em um guarda-louças. Caro refletiu em como Paul havia permanecido sereno, o sorriso agora raro e menos intenso. Ele se poupava, como um dançarino envelhecendo, e ocasionalmente reservava-se o direito de ser quem se entediava. — O filho dele estava lá — disse Caro. — Muito alto e muito magro. Um cavaleiro emaciado: cabelos compridos e soltos, uma elegância de testa e nariz, um refinamento de estrutura. Olhos verdadeiramente mais opacos que os de Tertia. Simples, talvez de uma forma egoística. No entanto, a criação pode parecer decepcionante, como a inteligência. Usava uma camisa branca, de tecido fino, bordada com flores coloridas, de punhos de renda franzida; a camisa caía por fora dos jeans bem-talhados, como a de um saltimbanco. Não usava meias. Poder-se-ia dizer: Que beleza! Em vez disso, Caro apresentou-se. Os monossílabos eram plantados como postes de amarração, fechando cada avenida. O rapaz não havia esquecido o que dizer: ele escolhera um papel que não tinha falas. Era um tipo frio e, exceto pelos punhos, imperturbável. Falava-se com ele como a uma criança: "Como é o seu nome, a que escola você foi?" Seu nome era Felix e iria para algum lugar no outono — sem dúvida para Oxford ou, indubitavelmente, para Cambridge. Quando alguém mais se aproximou, ele desapareceu instantaneamente, de certa forma tornando isso aparente até então. Uma mulher disse: — Garanto que será cirurgião; ele tem aqueles dedos maravilhosos, de pontas encurvadas. Caro não havia percebido que o rapaz tinha as mãos de Paul. E quando Paul a procurou, ela lhe observou as pontas dos dedos, a evidência do amor. — Vamos nos afastar daquele padre e de sua afetação ecumênica — disse Paul. No restaurante, Ted Tice olhava as pálpebras descidas de Caro: a tragédia não é o amor de breve duração. A tragédia é o amor que dura. Foi trazida uma bandeja com peixe à milanesa, dividido entre eles. Caroline Vail não previra que um dia poderia encontrar Paul Ivory e não sentir emoção. Ao invés da agitação, houvera a percepção da imprevisibilidade da vida e da pretensão de Paul sobre suas lembranças até a morte. — Cuidado com as espinhas — disse Ted Tice. Depois perguntou: — Como vai Josie? Com Caro, ele às vezes gostava de fazer perguntas domésticas, que o firmavam como seu familiar. E havia lutado a vida inteira para alcançar, pelo menos, tal grau de intimidade. Josie viajara para a Suécia com um congresso tarifário, permanecera lá e ia ter um bebê. — Irei vê-la em setembro, na Suécia — disse Caro —, depois que o bebê nascer. Eu gostaria. . . — acrescentou, e fez uma pausa no óbvio. Claro, desejaria, intensamente, embora sendo incapaz de imaginar Adam com o neto. Ela suportava sua perda com tanta compostura quanto o mundo esperaria de sua parte, sensatamente ou não. Entretanto, em particular, ainda fazia desajeitados apelos a Deus ou ao morto, desfigurando a recordação com lágrimas salgadas; no entanto, em seu pensamento, Adam sempre permanecia calmo. Ela disse a Ted Tice: — A recordação é mais do que aquilo por que se barganha. Quero dizer, se continua assim, esta percepção de passado, passado, passado, consegue transformar em aflições até mesmo as lembranças mais felizes. Sua aparência e a maneira impetuosa de dizer "passado, passado" estavam tão em desacordo com palavras tristes, que Ted quase sorriu. — Não somos velhos o bastante para essa lamentação, Caro. — Na outra noite, Paul disse que eu beirava a distinção da velhice. — Suponho que ficou irritado por você ser bonita. Ted a observava tirar uma espinha de peixe da boca. No pulso, tinha um grande e pesado relógio que devia ter pertencido a Adam Vail. O punho erguido de Caro e seu marido ali em seu pulso marcavam a passagem do tempo. Não tenho quaisquer recordações mais felizes dela; no entanto, as horas em sua companhia foram as melhores. — E então — disse Caro —, distorcemos a recordação em nosso proveito, por vaidade ou remorso. Enfim, é o que faço. Não você — você já nasceu correto e também tem sido treinado na verdade. Pensava no trabalho dele da mesma maneira vaga de sempre, imaginando uma grande dose de silêncio e de precisão. — Mesmo através de um telescópio, as pessoas vêem aquilo que procuram ver. Exatamente como fazem a olho nu. Nada fornece a verdade — declarou ele —, exceto o desejo por ela. Desviou o rosto, como que envergonhado. Da mesma forma, não posso dizer que tenho sido verdadeiro com ela; Caro jamais exigiu de mim essa forma de verdade. Caro enxugava os dedos, refletindo que talvez a falta de filhos é que provocasse a volta ao passado. Por outro lado, era difícil visualizar o futuro do filho de Paul Ivory. Perguntou a Ted: — Tem um retrato de seus filhos? Ted apanhou a carteira. Mostrou uma foto de duas adolescentes e um garotinho, de pé ao lado da mãe. A mulher era clara e um tanto séria, o menino, moreno, contorcia-se de riso. — Nunca fomos jovens assim — comentou Caro, sobre as crianças. Segurou o retrato cuidadosamente, pelas bordas. — Sua mulher é adorável. — Ela é totalmente adorável. — Há muito haviam cessado de surpreender-se por Caro e Margaret nunca se terem conhecido. Quando ela lhe devolveu a foto, Ted contemplou os retratos por alguns momentos. — Meu filho é a cara de meu irmão, quando ele tinha a mesma idade. Caro esquecera o irmão de Ted Tice, que existira apenas como uma risca no olho de Ted. — O que faz seu irmão? — Ele queria ser fazendeiro, e conseguiu fazer um curso de agronomia na faculdade. Já faz alguns anos que trabalha a terra, em um arrendamento em Yorkshire. Labuta como um escravo, mas também colabora com publicações agrícolas, e escreveu um respeitado tratado sobre arganazes. Tem uma esposa taciturna, que trabalha tão duro quanto ele, e uma bonita filha. (Na festa, Paul Ivory havia dito a Caro: "Meu irmão fugiu com uma balconistazinha". E ela replicou: "Também fui balconista. Não somos diminutivos, necessariamente". Paul sempre despertava certo sarcasmo. As associações de Ted tinham uma saudável candidez.) — Sendo assim, ambos fizeram o que pretendiam. — Em certo sentido. — Ted contemplava a foto, na qual seu filho segurava um desajeitado cachorro. — O cão se chama Fobos. Gerado por Marte. Deixou a foto a um lado e tirou da carteira uma fotografia amassada, em preto e branco, que mostrou a ela. Sentia curiosidade em ver como Caro desviaria o assunto. Contra um segmento de jardim em Peverel, havia a imagem de perfil de uma jovem, com os cabelos negros caindo soltos, uma das mãos erguida. Caroline Vail segurou o retrato na palma da mão. Um ligeiro tremor em sua expressão poderia ter significado receio ou a contenção de lágrimas. — Não me lembro desse vestido — disse ela. Devolveu a fotografia. Então, ela havia sido aquela pessoa. Em torno da sala, a fantasia da existência abrangeu tudo — garfos e pernas na mesa, o colarinho listrado de uma camisa e o macio formigar da banqueta de pelúcia, contra suas pernas. Ted lamentaria tê-la feito chorar, embora houvesse se esforçado para isso. — Quando passar por aqui, em setembro, você me comunica? — pediu ele. — Está prometido. — Não vai voltar atrás? Como uma criança. — É claro que não. Adorarei ver você. Um curto lance de escada levava à rua acima deles. Ted ficou espiando o balançar do casaco escarlate nos joelhos de Caro, enquanto ela subia os degraus. Também espiou seus sapatos, reluzentes como vidro negro, e refletiu que nunca a vira descalça. A tarde agora ia bem avançada. Caro ia tomar o metrô. Ted foi até o guiché com ela. — Adeus. Beijaram-se. Ele viu seu casaco escarlate transpor a borboleta, mover-se na escada rolante que descia, deslizando, diminuindo, baixando: uma Eurídice na hora do rush. No último momento, ela olhou para trás, sabendo que ele estaria lá. 35 Em uma quente manhã naquele início de verão, a sra. Vail estava sentada no consultório de um médico, fronteiro à casa em que ela morava. Lia em voz alta o que via em um cartaz. Seus olhos escuros estavam obscurecidos e dilatados. O médico disse: — Eu lhe darei uma receita. — Para colírio? — Para óculos. Ela se sobressaltou. O médico tinha cabelos brancos e um hálito azedo. — As coisas nos atingem. A senhora não foi sempre uma daquelas pessoas que conseguem ler o nome de um barco ou o anúncio em um cartaz? Conseguia decifrar a impressão miúda. Muito bem, as coisas a atingiram. A natureza não faz exceções. — Não estamos aqui apenas para agradar à natureza. — Ela dá vazão a seus ressentimentos em execuções. E tudo de repente, também. Nós, as pessoas comuns, podemos dizer mais ou menos como as coisas provavelmente continuarão conosco. O médico entregou-lhe uma tira de papel e puxou seu bloco de receitas. Três meses mais tarde, ele morreria em um desastre de avião, a caminho de um congresso de oftalmologistas, em Roma. Lá fora, na rua quente, os olhos de Caro lacrimejaram. Ela vasculhou uma bolsa de mão, adequada a Dora, em busca de um lenço. A borda da calçada lhe desnorteava a visão. Nesse momento, um homem saindo de um consultório médico, na porta vizinha, falou seu nome. — Justamente você, aqui! Era como Paul, em um continente estranho, ficando surpreso pela presença de Caro, precisamente na rua em que ela morava. — Você é Paul? Fez a pergunta como se fosse realmente cega. Ele a olhou enquanto ela enxugava as lágrimas que lhe embaçavam os olhos, mais corpulento e sombrio do que Caro podia lembrar. — Meu filho está com leucemia — disse Paul. As lágrimas brotaram dos olhos dele, sem qualquer indução. Ela ficou parada, com um dedo no queixo, os olhos fechados. O choque a afetava como um langor. — Que pesadelo! — Bastante real, aliás. Embora, de um mês para cá, eu venha tentando despertar dele. Estavam parados, não percebendo a rua ou o tempo. As pessoas passavam e olhavam, como sempre tinham feito. A cidade se deslocava pesadamente em torno deles, encharcada e exausta. Paul contou como a doença havia sido descoberta. Levara Felix a Nova York porque ali havia um médico, um hospital, um novo tratamento. Tertia chegaria após o 4 de Julho. Caro pousou a mão no cabelo ardente. — Quer vir até minha casa? Moro no outro lado da rua. Agora, era ela quem tinha a chave. Girando-a na complexa fechadura, falou: — Não há ninguém em casa. Vim à cidade passar os feriados, para trabalhar. A entrada estava fresca. As superfícies eram nuas. Sobre uma mesa havia uma lista escrita à mão: "Jornal, lavanderia, Gristede". Na sala de estar, cortinas silenciosamente enfunadas e frouxas sobre um condicionador de ar. Uma poltrona, um sofá e uma mesa de vidro estavam sem suas coberturas protetoras contra a poeira. — Tem alguma coisa para beber? — perguntou Paul. Ele nunca se interessara pelas condições de Caro e, em vista disso, podia reiniciar como se tivessem se separado na véspera, sem exigências de relato sobre a vida nesse ínterim. Ela também sentiu isso: um reinício. Ou uma culminação. Paul tirou o paletó e o deixou cair em uma cadeira. Caminhou pela sala amortalhada, enquanto Caro apanhava uma garrafa e copos. As distorções de sua visão quase a impossibilitaram de manejar a bebida. Paul atirou-se no sofá e levou a mão aos olhos, com os dedos para cima e o braço de manga branca no ar: desgracioso pela primeira vez — a perna em confusa postura, o cotovelo torto: um moderno mecanismo fraturado, mais fácil de ser substituído que reparado. Quando ele tirou a mão do rosto, Caro entregou-lhe o copo frio. — O tratamento é drástico — disse Paul. — Ele está sofrendo mais com isso, no momento. — Lembro-me do quanto era bonito. — Com estas novas drogas, há alguma esperança. Ela se sentou em sua poltrona. — Onde há esperança, existe suspense. — O tempo — disse ele —, o tempo que não passa! — Depositou o copo no chão, ao lado do sofá, onde se formou um círculo de condensação. A mão de Paul ficou pendurada ao lado do copo. — E isto pode continuar assim, sempre e sempre. . . aliás, é o que espero. Após a morte de Adam Vail, Caro repetidamente procurava saber as horas e descobria que o tempo mal tinha avançado. — Ele está a par de tudo? — Está, e, no momento, mais ressentido do que com medo — disse Paul. — Em certos aspectos, Felix é como Tertia. Caro começou a ver Paul mais claramente: a pele ruborizada pela falta de sono, corada, mas ainda assim cinzenta; os avermelhados olhos azuis e os cílios de cobalto; a ligeira desordem de colarinho e gravata. Era bizarro que um homem carregando aquela preocupação tivesse que fazer a barba, vestir-se e andar pelas ruas com decência convencional — e que a humanidade esperasse isso de sua parte. Apanhou o copo dele e o encheu de novo. — Vou trazer algo para comer. — Não. Não vá. Como se estivessem em sua casa, ao invés de na dela. Paul estendeu o braço para seu pulso, não o tocando, apenas encostando o copo nele. Um gesto sem contato, somente o desejo de deter. — Se não a encontrasse hoje, eu estaria acabado. É a possibilidade de falar que levanta o ânimo. Ou abaixa. — O que posso fazer? — Nada. Fique aqui. Dentro em pouco, terei de ir à cidade encontrar uma pessoa amiga de Felix, que está pondo em ordem fotografias — slides de uma viagem que os dois fizeram juntos. Pensamos que ele se distrairia vendo as fotos, já que não consegue concentrar-se para ler. — A namorada dele? — Felix é homossexual — disse Paul. Caro se sentou, com Paul rendido ao seu escrutínio. Como nunca, quando estivera deitado a seu lado. — É como se a gente nunca houvesse enfrentado um problema — até agora — disse ele. Estava chegando aos cinqüenta, mas não aparentava. — Olhando-se para trás, existe a terrível ignorância. Não saber que isto nos estava reservado. — A cólera. . . contra o destino, contra Deus — disse Paul. — Não apenas nos sabermos impotentes, mas que tudo está no poder de alguém. . . de alguma coisa. Os médicos e enfermeiras com autoridade para contar-nos o pior. . ou mentir para nós. Com autoridade para cometer erros. Sempre detestei qualquer sensação de poder sobre mim. Endireitou-se no assento, acendeu um cigarro e o deixou queimando nos dedos. Um espectador talvez se perguntasse se Paul recordava quem era Caro. — Posso voltar amanhã? — Estarei aqui todo o fim de semana, trabalhando. — Trabalhando? — Em uma tradução do espanhol. — Oh. . . sim. . . soube que fazia isso. — O fato de ele nada ter perguntado sobre ela, sua vida, sua perda, emprestou realidade a uma atmosfera de sonho. Tornou um fato a presença dele — algo material como poderiam ter sido dados estatísticos, ou falar de dinheiro. — Isto é um cinzeiro? — perguntou ele, e colocou ali o cigarro. — Então, até amanhã. Caro o acompanhou à saída. Fechou a porta contra o dia sufocante e se perguntou se ele chegaria a voltar. Carregou o prato colorido para a cozinha e o lavou na pia, sentindo um cheiro de nicotina molhada. À noite, ela desceu de seu quarto e olhou para as almofadas amassadas, para o gelo derretido em um copo. Foi à cozinha e viu o prato de Palermo. Anos antes, Caro buscara a evidência de sua própria presença naquela casa. Agora, a existência pessoal de Paul precisava ser provada ali. Quando o sol se ergueu, Caroline Vail espiou para um céu ferroso, do alto da casa. Um grosso jornal for entregue, uma nota de Una, uma carta da Irlanda. Caro abriu a porta sobre uma onda de calor. — Pensou que eu não viesse, não? Pontual como um ator, ele apareceu para recriar a cena ensaiada na véspera. Tirou o paletó e sentou-se no sofá. Sua camisa estava molhada sobre o peito e debaixo das axilas, tornando-lhe o corpo mais esguio, mais visível. — Onde está hospedado? Um hotel poderia corroborar a existência de Paul Ivory. — No St. Régis. Ela trouxe sanduíches em um prato e uma garrafa de uísque. Paul não encorajou a gentileza: tinha um favor maior a solicitar. Disse que Felipe dormira e não sentira dor. Tertia telefonara de Londres. — A pele dele, os dentes, o cabelo. . . O cabelo cai aos punhados, como palha — disse Paul. Segurou o copo entre as mãos, acrescentando: — Aquele lindo cabelo. . . Após algum tempo, disse: — Você talvez fique surpresa por eu me preocupar tanto com alguém. O que havia de novo nele não era o amor, mas a responsabilidade. Palavras, embelezando um estado de espera. À claridade lívida, o rosto de Paul era uma máscara do couro mais delicado e flexível ou de seda cor de limão: feições exauridas não só pelo sentimento interior, como pela demonstração externa. Os aparecimentos em público e fotos inumeráveis tinham esgotado o estoque de verossimilhança, deixando apenas aquilo. Cada exploração extraíra sua parte, até que somente permanecera urna capa de expressão. — O que se torna terrível não é a culpa — disse ele —, algo que ainda agora mal chego a sentir. É o sentimento de punição. Caro pensou que Paul dissesse aquilo aludindo a ela. Ele a fitava a meia-luz, que mostrava apenas uma poltrona, uma forma. Ela poderia ser apenas uma amiga íntima ou Helena de Tróia. — Muita gente sente dessa maneira — disse ela. — Está implícito na própria, pergunta: Por que eu? A sensação de ter sido escolhido para tal punição. — Você sabe que não é nada disso. — Paul ainda conseguia criar a cumplicidade. — Enfim, nunca estive muito certo de que você soubesse. Largou o copo e esperou. Por fim, Caro perguntou: — O que tem para me dizer? Paul se sentou no sofá, com as mãos levemente entrelaçadas nos joelhos. Agora, ele falaria com a voz — natural e quase bela — que reservara para a verdade. Foi nessa voz que disse: — Eu deixei um homem morrer. Manteve os olhos fixos no rosto de Caroline Vail. Foi o olhar dela que baixou para a escuridão. — Estava com vinte e cinco anos. Foi pouco antes de nos conhecermos, naquele verão em Peverel. — Poderia estar mantendo uma conversa normal. — Falei que o deixei morrer, mas a verdade é que o matei. Pensei que você talvez soubesse. Era isso o que ele viera dizer. — Eu vi. . . sabia que havia algo. . . Ela teria acrescentado "dessa espécie", mas assassinato não tinha espécie. — Por coisas que você disse, maneiras de falar, às vezes seu olhar, eu pensei que soubesse. Embora talvez não soubesse tudo. Os olhos de Paul estavam animados naquela máscara de couro fino, com nova e exposta proeminência, como se pestanas e sobrancelhas se houvessem chamuscado em seu olhar. A mulher o fitava também, com um esforço moral. — Você deve se lembrar — as frases convencionais raiavam o absurdo: devia existir uma linguagem em separado para devastação. — Em Peverel havia um casal de idade que costumava ajudar nos jantares, servindo e limpando, esse tipo de coisa. — Eles foram contratados para o casamento de Grace — disse Caro. — E estavam lá, na noite em que os Thrales comemoraram seu noivado com Tertia. — Eram os Mullions. Costumavam servir no castelo como empregados extras quando havia festa nos fins de semana. Tinham um neto, que às vezes ajudava — manobrando carros, levando pessoas à estação, trazendo e levando coisas. Foi como conheci esse neto no castelo, uns dois anos antes de conhecer você. Saí para o jardim depois do jantar e ele estava perambulando por ali. — Paul fez a careta de apertar as pálpebras, uma careta não recordada em tantos anos. — Eu deveria dizer que o vi no jardim, e saí por esse motivo. Seu nome era Victor. Eu o vejo à noite, olho para baixo e você está sozinho no jardim. Chamava-se Victor Locker. Com o casamento, a filha dos Mullions envolveu-se justamente com o lado pior da vida londrina, que seus pais sempre procuraram negar, enquanto viveram. Casou-se com um indivíduo brutal, chamado Godfrey Locker, de cabeça grande e achatada, olhos minúsculos, dentes aguçados, o perfil de uma baleia. Quanto a ela, era de um temperamento — ou o desenvolveu — de maneira a se nivelar ao dele. Ignoro o que esse sujeito fazia na realidade, mas era daqueles que se metem sempre em negócios com um toque escuso. Já estivera nas docas e em Smithfield, tendo dirigido um caminhão durante algum tempo. Havia quatro filhos, e todos passavam o diabo. Como disse, o nome do pai era Godfrey, mas eles não o chamavam de papai, e sim de God 1. Essa é a verdade. — Seria por aí que começou sua peça Amigo de César? — Exato. Depois que fiz camaradagem com Victor, costumava ir lá, até sua casa, com ele. Moravam em Ken-nington, em um cenário de devastação. Victor dizia que a profissão de seu pai era devastador de interiores. Os filhos sentiam terror do pai, por suas mãos, bstas e seu riso selvagem. A mãe era uma vaca, uma megera bêbada. Victor era o mais velho — estava com dezesseis anos quando o conheci —, embora houvesse uma filha ainda mais velha, que tivera o bom senso de fugir e desaparecer. Era lá que passava meus momentos de folga depois de conhecer Victor — com os Lockers, em Kennington — disse Paul. — Estou querendo dizer, claro, que Victor era meu amante. — Compreendo. — O pai era cauteloso comigo. Tinha seus planos é não queria assustar-me. Observava-me com aquele sorriso serrilhado, como se dissesse: Você terá q seu. Os avós, os Mullions, não eram grande coisa, mas ficavam vários pontos acima de Godfrey Locker. Queriam fazer algo pelo rapaz, por Victor. Tudo quanto puderam pensar foi em arranjar-lhe biscates nas casas de campo — algo que, pelo menos, o afastava ocasionalmente de Kennington, embora estivesse conduzindo a outro problema, porque ele começou a furtar coisas e pensava em fazer um "trabalhinho" por fora, com uma gangue de companheiros. Então, surgiram oportunidades à margem disso, comigo e com gente do meu nível. — Paul bebeu e enxugou a boca rudemente, em uma evocação de Godfrey Locker. — Está entendendo isto, não está? A meu respeito? — Estou. — 1 Significando o diminutivo de Godfrey, mas também a palavra Deus. (N. da T.) — Meu pai foi o primeiro a enxergar. Foi o primeiro, com sua citação do leito de morte. Podemos desligar esse aparelho um instante? Caro se levantou e desligou o ar-condicionado. Abriu a janela, segurando a cortina a um lado. A rua estava vazia, o lixo colado à sua superfície como que para sempre; as árvores eram coisas vivas, que pressentiam uma tempestade. — À medida que o tempo corre, uma pessoa se expõe, muitas vezes deliberadamente. Podemos ser identificados, por exemplo, por nossa ridicularização dos homossexuais. — Paul quase sorriu. Viu-a retornar à poltrona e sentar-se. — Está aceitando isto tranqüilamente. — O que mais poderia fazer? — Com isso, está indicando que esgotou toda a emoção que tinha por mim. — Paul mencionou aquilo sem o menor sinal de remorso, o reconhecimento do fato levando imediatamente ao egoísmo. — É horrível que, mesmo lhe contando o caso, falando desta maneira, mal consiga desviar meu pensamento de Felix. A esta altura, tais coisas não importam muito. — Houve um perplexo movimento animal da cabeça. — No decorrer daqueles encontros de fim de semana no castelo, Victor arranjou um emprego, se é que se pode falar assim, dirigindo e fazendo serviços diversos para um solteirão que tinha uma propriedade no campo, perto de Marlbo-rough. Entre Marlborough e Avebury. Era cenógrafo, algo muito em moda, então. Chamava-se Howard. Pode imaginar o quadro. Ele tinha um apartamento em Londres e passava os fins de semana no campo. E, pelo breve período em que Victor me considerou essencial, também fui para lá nos fins de semana e ficava em um mal-ajapibrado hotel dos arredores, ocioso, à espera da hora de folga de Victor. Nunca descobri se seu patrão sabia que o partilhava com outro ou não. Victor não merecia crédito no que dissesse, quanto a este ou outros assuntos. — Você ficava naquela hospedaria. Onde nós dois estivemos. Em circunstâncias muito diferentes, posso garantir. — Ficava. Então, houvera a satisfação dele ao enganar Tertia, na ocasião do noivado. Naquela época, era Caro quem estava a par de tudo. Agora existia sua ignorância do logro maior, mais íntimo: o de que Paul a possuíra no mesmo lugar — no quarto, na cama — que seu amante. Sua ignorância sobre o prazer mais profundo de Paul. Sempre gostei de aceitar as regras do jogo. — Tampouco jamais fiquei sabendo se Godfrey Locker e seu filho faziam chantagem com o decorador. Quando começaram comigo, foi em pequenas doses. Naturalmente, eu já dava dinheiro a Victor, de maneira que aquilo apenas pareceu um pouquinho mais. Uma história bastante familiar, e a minha única indicação de juvenil inocência, digamos, foi cair nela. Ou poderia ser autoconfiança — eu estava acostumado a vencer e à idéia de que os usava. Quando a situação começou a ganhar importância, eu ainda conseguia fornecer o dinheiro, mas podia ver a que conduzia aquilo. Victor apanhou uma revista no apartamento de seu patrão e percebeu que eu caminhava para o sucesso — havia uma reportagem sobre preparativos para a primeira peça e uma fotografia minha com Tertia. Por um lado, havia tudo aquilo, por outro, a derrocada, os Lockers, a chantagem, o escândalo, a possibilidade de ser condenado à prisão. Quanto mais eu obtinha do mundo o que desejava, maior era o poder dos Lockers. Até hoje — disse Paul —, nunca passei dias e horas como aqueles. Caro tinha estado em uma cozinha gelada e desejado morrer. — Parecia incrível que não pudesse conseguir o máximo deles, com as armas que possuía — inteligência superior, bons contatos. Victor não era inteligente, mas tinha perspicácia. Os filhos de homens brutais desenvolvem isso muito cedo, tentando manter-se um passo à frente do horror. Mostrava-se perspicaz, por exemplo, a respeito de minha peça — sabia exatamente o que era requerido, quando eu precisava de ajuda sobre falas ou reações. Nele não havia idéias, apenas sua astúcia. Entretanto, dava um valor imoderado à sua inteligência, por causa do ambiente de onde viera. Os filhos de pessoas rudes têm isso em comum com os dos ricos — não possuem nenhum contexto no qual avaliar suas limitações. "Bem, então aconteceu algo a meu favor. Godfrey Locker passara novamente a dirigir um caminhão por algum tempo e sofreu um acidente, na Great North Road. Quebrou um braço e o quadril, recebendo também um ferimento na cabeça que o deixou em coma por quase uma semana. Em um ou dois fins de semana, dei uma fugida a Marlborough — em Avebury —, mas então fui lá na sextafeira, pensando poder controlar Victor por uma semana, enquanto seu pai estava fora do caminho. À noite, quando ele podia se ausentar para jantar, ia ao pub como de costume, mas eu preferia encontrá-lo na estrada. A essa altura, eu estava começando a ficar nervoso quanto aos métodos dos Lockers, e pensei que poderiam estar reunindo provas com o encarregado — o qual, por sua aparência, poderia ter feito parte da própria dinastia Locker. Ficávamos no carro e Victor ria na minha cara, como se diz, à idéia de me deixar escapar do anzol. 'Você está em meu futuro. Uma cartomante me disse.' Ele tinha mania de cartomantes. 'Você é meu plano de aposentadoria', disse, e recostou-se no assento, rindo. Eu me interessara por ele devido à sua aparência, mas agora Victor só conseguia recordar-me seu pai." — E como era ele? — Louro, de olhos claros. Muito conveniente — os outros nos tomavam por irmãos, desde que ele não abrisse a boca. Como disse, naquela noite, Victor me lembrava seu pai. Recostado no banco e rindo. "Vou dar um golpe decisivo", disse, "agora que God está fora da jogada." Eu o via quase histérico de excitação — êxtase — sobre o acidente com o velho, e isso era uma satisfação legítima, embora incompleta, para toda a família. "Marcamos um encontro para a manhã seguinte, em um lugar junto do rio, aonde íamos algumas vezes, quando Victor tinha que passar a noite acordado. Ele voltava muito tarde para casa, geralmente retornando de alguma festa. Então, deixava o carro mais além e vinha andando ao meu encontro, sem ter dormido, depois que o sol nascia. Cruzava uma ponte mais abaixo e refazia a caminhada até onde eu estava. Havia uma curva do rio, aonde costumávamos ir, pouco abaixo da estrada, com um recanto sob as árvores. Naquele ponto, o rio se estreitava tanto, que mais parecia um riacho. Da estrada logo acima, ninguém suspeitaria da existência do rio e muito menos daquele recanto escondido na margem, debaixo dos salgueiros. O próprio Victor gostava dali." Com seu olhar conspícuo, Paul acrescentou: "Eu disse o próprio Victor, porque ele tinha medo de água e sentia-se seguro por ali quase não haver rio — um fiapo de água correndo sobre pedras e maciços de juncos inclinados. Ele tinha medo porque não sabia nadar, como a maioria dos pobres de sua geração, mas o orgulho o levava a fingir que um ledor da sorte, em uma feira de diversões, havia predito que morreria afogado. "Descobri isso — o pavor à água — porque certa vez o levei à Riviera por alguns dias, pensando que ele iria gostar. No entanto, apenas demonstrou seu terror do mar e a humilhação de ter de admitir que não sabia nadar." Calor, areia, o mar. Limoeiros, vinhedos, paredes brancas. — Depois que estive com ele naquela noite, voltei à hospedaria. Só consegui dormir alta madrugada, e, quando acordei, já passava da hora em que devia encontrá-lo no rio. Quando cheguei lá, deixei o carro em uma curva da estrada, como sempre fazia, e caminhei a última parte do trajeto. Desci a rampa até a margem e descobri Victor debaixo das árvores, dormindo. Estivera acordado a noite inteira e dormia profundamente, a qualquer momento. Tornei a achá-lo bonito — disse Paul —, e desejei que ele morresse. "Fiquei parado a seu lado, desejando que nunca acordasse. Não tinha idéia de fazer-lhe mal, só queria que deixasse de existir enquanto ainda era belo e não fora apanhado. Então, enquanto eu permanecia ali, um homem passou no outro lado do rio, a alguns metros de distância. Jamais alguém passara antes por aquele trecho, somente uma estreita faixa de relva ao lado do leito do rio. Ele parou debaixo das árvores e olhou para nós, para mim. Já falei que não tinha intenção de fazer mal algum a Victor, mas ele vira o suficiente em meu rosto para parar." Paul esperou que Caro falasse. Como ela ficou calada, continuou: — Encaramo-nos através dos poucos metros de pedra e água. Sorri para ele e assenti. Estava acostumado a convencer os outros por minha aparência e odiei-o por não ficar impressionado. De qualquer modo, ele percebeu que Victor estava apenas dormindo — olhou abertamente para certificar-se disso — e, após um minuto, reiniciou sua caminhada, subindo o rio. O que mais poderia fazer? Não obstante, sua passagem enervou-me, e comecei a temer que Victor acordasse, que ficasse novamente parecido com seu pai. Havia algo de aterrador naquela manhã radiosa e na minha maneira de, acordado, observar o sono de Victor. Após um momento, fiquei demasiado inquieto à perspectiva de ele acordar e transformar-se, de maneira que fui embora e o deixei ali, dormindo, como que morto. Houve outro movimento da cabeça de Paul, virada de lado da maneira como faria um paciente, para suportar a sondagem de um ferimento. — Quando me aproximei do alto do barranco, um policial uniformizado se preparava para descer. De relance, tive a confusa idéia de que o homem de passagem pudesse ter alertado a polícia e me dispunha a negar o que, de modo algum, eu havia feito. Ele parecia um policial de palco — idade indefinida, decente, responsável. Antes que eu pudesse abrir a boca, começou a dizerme que estavam evacuando aquela faixa do rio, a fim de inundá-lo. Havia uma grande tempestade aproximando-se pelo oeste e eles esperavam o rompimento de um dique, localizado a cerca de meio quilômetro dali, rio acima. Um fazendeiro havia represado um rio tributário para fazer um açude, no ano anterior, mas este não estava suportando a pressão das águas. Tinham trazido dois engenheiros para abri-lo sob controle antes que o dilúvio chegasse, de maneira a que a aldeia mais abaixo não ficasse inundada. E aquele lugar onde estávamos — sendo tão estreito — era o único ponto em que esperavam uma arremetida violenta das águas. "O rio subirá bastante até aqui", disse ele, "mas o resto será uma brincadeira." Tinham um colega estacionado mais além, rio abaixo, e estavam colocando barreiras na estrada. "Não há mais ninguém por lá", acrescentou ele. Nem mesmo precisei dizer não. Ele deu uma boa espiada na margem, olhando para cima e para baixo ao longo do rio, e, naturalmente, a única coisa que não podia ver era Victor. "Ele disse: 'Temos ordem para evacuar este trecho, mas se subir um pouco, pela estrada, poderá assistir ao espetáculo'. "Enquanto subia em direção à estrada, eu ia pensando: E se ele acordar? Meus pensamentos eram todos os que se poderia denominar práticos, sem nenhuma outra percepção, nenhuma hesitação. Pensei então ser possível dizer que nunca havia descido até a margem do rio. Se Victor gritasse, se aparecesse, não saberia que eu estivera lá. Era como se eu tivesse esquecido o passante. Assim, travei conversa com o agente policial e ele, pelo menos, foi seduzido. Quando subimos a rampa até onde eu deixara o carro, houve uma troca de sinais e um veículo policial desceu a estrada lentamente, para confirmar que fora evacuada. Após alguns minutos, soou uma pequena explosão, surgiu um pouco de fumaça entre as árvores e logo ouvi o som da água. Tudo terminou tão depressa, foi um momento — primeiro um fluxo, depois um turbilhão e então, justamente como eles tinham dito, a ascensão de uma crista na estreita curva do rio, onde ele corria fora de nossa vista. Ali, a crista chegou ao topo dos salgueiros e, depois disso, as árvores afundaram na corrente como cabelos molhados, de maneira que tudo sob elas ficou visível, até mesmo a pequena margem onde Victor tinha dormido. E onde, agora, nada mais havia para ser visto." Na janela, a cortina de gaze se enfunou e voou alto, liberada em um balanço natural. Um vento forte soprava antes da tempestade. Aquilo nada mais era senão uma tentativa de proporcionar à ocasião o que lhe era devido. Paul continuou falando. Em qualquer pausa da ventania podia-se ouvir, muito à distância, os trovões ribombarem. — A fala e o comportamento surgiram com uma calma sobrenatural. Eu me via e ouvia, assistindo ao evento. Enquanto Victor era afogado no Kennet. Tivemos de esperar que o outro policial voltasse à estrada, com o carro da polícia. Pareceu muito tempo — talvez tenham sido uns vinte minutos —, mas quando o carro chegou, nada havia a relatar de novo, de maneira que os dois homens ficaram conversando ociosamente na estrada, à espera de uma autorização dos engenheiros. Finalmente soou um apito, alguém desceu em nossa direção com uma bandeira verde e um ou dois carros recomeçaram a rodar. Eu já decidira voltar à hospedaria e ficar lá mais ou menos uma hora, parecendo esperar, como se fosse o caso. Sim, como se fosse o caso. Meu policial ia naquela direção, de modo que lhe dei uma carona. Ele não podia estar mais jovial. Quando nos aproximamos do dique que fora explodido, paramos para que ele pudesse falar com os homens postados ali. Então, alguém comentou: "Um indivíduo ficou retido aqui por causa de tudo isto e precisa de uma carona até a estação". Era o andarilho da beira do rio — disse Paul. — Àquela altura, já se passara mais de uma hora. "Ele veio até o carro e viu que era eu. Ainda não sabia de nada. No entanto, percebeu algo em mim. Parou junto ao carro e olhou dentro de mim. Senti seus olhos em mim, e ainda posso senti-los." Passou a mão pelos olhos. "Aquele foi o único momento em que a polícia — os dois policiais — vacilou. Por um segundo, os dois intuíram que havia algo errado e, naturalmente, foi dele que suspeitaram, não de mim. Ambos o observaram, fixando mentalmente sua aparência. Então, tudo terminou, o homem entrou no banco de trás e seguimos em frente, enquanto meu policial tagarelava o tempo todo. Dizem que são precisos três para uma piada — um para contá-la, outro para entendê-la e o terceiro para não pegá-la. Talvez seja assim com muitas coisas. E assim também era no carro — eu e ele, mais o policial que ignorava a questão. "A reação começava a envolver-me, e o esforço para dirigir era colossal. Minhas mãos. Dizemos a nós mesmos o que é preciso fazer — como se fosse um dever ou heroísmo. O homem no carro estivera fazendo uma excursão a pé pelo West Country. Começaria a trabalhar novamente naquele dia. Parara por ali para ver Avebury Circle, que Deus o danasse no inferno, e agora tinha que pegar seu trem. Deixara a bagagem na estação. Soube tudo isso porque o policial lhe fez algumas perguntas, pressentindo algo estranho naquele carro, mas não sabendo o quê. Voltei à hospedaria." Paul terminou de falar e bebeu um gole. Em seu copo, quando o ergueu, o barómetro permanecia firme. Após tantos anos, Caro reviu o balcão sujo, as garrafas turvas, o encarregado. O quarto. A cama. O sangue fluíra duas vezes. — Quando eu estava na hospedaria, a tempestade desabou. Naquela noite, eu estava de volta a Londres, dirigindo em meio à pior chuva que já vira. Nada se soube sobre Victor até a noite. Seu corpo devia ter sido empurrado pelas águas até a ponte mais abaixo, tendo ficado de algum modo retido sob ela. Quando a tempestade caiu, carregou a ponte, e o corpo foi encontrado entre os destroços. Assim, o caso nunca foi relacionado à inundação efetuada mais acima, no rio. Seu patrão, o homem chamado Howard, só acordou com a tempestade e não sabia a que horas Victor havia saído. Estavam apenas eles dois na casa, e Howard fora dormir, digerindo uma comezaina. Presumiu-se que Victor estava na ponte, quando a tempestade a fez desabar — era um lugar que ele cruzava freqüentemente, quando fazia compras na aldeia ou ia a uma garagem. Na hospedaria poderiam ter-me ligado a ele, mas o último desejo do encarregado seria convidar a polícia a intrometerse em seus negócios. Godfrey Locker continuava no hospital, com uma forte contusão — ficou lá durante semanas e, ao sair, enfrentou uma acusação de homicídio involuntário. Nunca mais se recuperou do acidente e, dentro de dois anos, estava morto. Essa parte fiquei sabendo mais tarde, pouco a pouco, através dos Mullions. "Eu não teria desejado melhor, se Deus o planejasse", disse Paul. Colocou o copo no chão. "Exceto por aquele homem. Ele leria aquilo nos jornais, mas não teria certeza de nada." Paul se levantou, foi até a mesa e se serviu de outro drinque. "Só que ele tinha certeza." Olhou para Caro, avaliando sua reação, como se fosse o próprio corpo dela. "Muita gente — a maioria das pessoas, talvez — já cometeu algo escuso, inclusive criminoso, mas continua vivendo legitimamente dentro da sociedade. O que estou lhe contando é de natureza diversa. Depois disso, a vida de um indivíduo em sociedade é uma impostura." Paul tornou a sentar-se, segurando o copo. "E, para mim, aquilo era fascinante, até mesmo excitante." De vez em quando as cortinas se separavam, expondo um céu que escurecia rapidamente. A sala agora estava próxima da escuridão. — Houve o terror, é claro, inclusive o horror. No entanto, havia também euforia — uma sensação de haver ludibriado — e dessa forma controlado — toda a humanidade, de ter desafiado leis naturais. A impressão de estar fortalecido, de ser onipotente, alguma louca analogia com o que devem sentir os heróis que arriscaram a vida para desafiar o Estado e sobreviveram. Todos os mistérios tinham se alinhado ao meu lado. Vivi então com energias supérfluas — comecei a reescrever minha peça, e, tendo essa realidade dentro de mim, a coisa foi muito melhor. Foi quando decidi casar com Tertia. Não fingimos amor. Ela conhecia minha dualidade de gostos. Cada um de nós possuía algo que o outro queria — ela desejava reter vantagens sociais, porém escapar do mausoléu para algo mais divertido ou bizarro, talvez um mundo novo, onde tivesse plenas possibilidades para sua capacidade de entediar-se. E eu queria não apenas o acesso à fortaleza da categoria social, mas um lugar seguro dentro dela. Como pode ver, ambos queríamos tudo em vários sentidos. — Você. . . Tertia sabe? — Não. Entretanto, um dos atrativos de Tertia para mim era que, se eu lhe contasse, ela não ficaria surpresa. Seria algo que já esperava. — Paul recostou-se no sofá e bateu várias vezes em uma almofada, com a ponta dos dedos. — Às vezes, mal posso acreditar que não lhe tenha contado — ela estava absolutamente convencida do pior em mim. Talvez eles soubessem o pior, um do outro: isso pode ser um elo. — Após a morte de Victor, procurei assegurar-me no castelo, mais do que nunca. Aquilo era como um salva-vidas, o último lugar onde alguém procuraria um suspeito. No castelo, cada um cuida da própria vida.. Bastava ter visto a maneira como a polícia se fixara no sujeito errado, aquela manhã em meu carro — a maneira como seus olhos se detinham naquele que ponderava e dizia seu papel, nada tendo para respaldá-lo além de sua inocência. — Paul cessou de bater na almofada e olhou para Caro. — Enfim, você afinal deve ter sabido algo a respeito disso por ele. — Por ele? — Por Tice. A água estava batendo e escorrendo contra as janelas. Caro disse, em voz alta: — Oh, Deus! — Ouviu a própria voz gritar, acima da tempestade: — Deus! Deus! — Era Tice quem estava à margem do rio. Claro que era ele. Você sabia que era Tice. Como uma acusação. — Oh, não! — Ele deve ter lhe contado. Tinha todos os motivos para contar. Paul poderia ter suspeitado de algum ardil. Caro apertou as mãos, uma contra a outra. — Não. O sentimento ondulou pela sala como o vento forte, como uma bandeira. A mulher estava imóvel, mas era como se estremecesse de angústia. — Aquela foi a primeira mudança na sorte. A única, então. Dirigir para Peverel, aquele dia, semanas mais tarde, quando tudo já ficara atrás de mim, e encontrar Ted Tice lá. O primeiro indício de que o senso de humor de Deus podia estender-se também a mim. Tice parado perto do carro, en-carando-me com aquele olho estriado, a cena inteira reensaia-da. Compreendi que deveria referir-me àquilo imediatamente, ao fato de nos termos visto no rio, caso pretendesse fazê-lo aceitar minha inocência. Não pude. Ele esperou e, como não pude mencionar aquilo, ficou duplamente convencido. Deus todopoderoso, como odiei estar naquela casa com ele, dormindo sob o mesmo teto! Partilhando um banheiro com minha nêmese! Tudo o mais marchara bem, exceto aquele detalhe, indicando a existência de outros fatores que eu não poderia controlar. — Paul olhou para as mãos apertadas de Caro. — Então, lá estava você. Levantando-se, ele fechou a janela contra a chuva. O ato de levantar-se e caminhar gerou um novo estágio. Havia alarma pelo que ele violaria em seguida. Caroline Vail sentiu uma barreira quase física ao reconhecer o papel de Ted Tice. Ela, que falara a Paul sobre ignorância, precisava avaliar a ignorância em que passara apaixonados anos de sua vida. Todo o orgulho e a presunção, a exaltação de suas próprias crenças, o desejo de ser humana, o esforço para praticar o bem, reduziam-se a isto: uma mulher de meia-idade, apertando as mãos e apelando para Deus. Ela quisera ter conhecimento, mas não conhecer aquilo. O conhecimento se tornara uma corrente atemorizante, na qual um homem podia afundar. Paul Ivory manejava a cortina, com o braço estirado para a janela não familiar. Caro sentia repugnância pela presença dele na casa de Adam Vail. Tornando a cruzar a sala, Paul perguntou: — E então? — Estou refletindo em como Adam odiaria isto. — Eu soube que ele se preocupava com pecadores. Ou seria apenas com criminosos? Mesmo agora, em Paul, uma pitada de ego. — Ele condenava todas as formas de violência. Um epitáfio formal para um sacerdote falecido quando, de fato, os sentimentos nela despertados eram animais: as cadeiras e mesas afastavam-se de Paul, como se afastava a mobília das lembranças pertencentes a essa mulher. Ele havia tornado tudo ordinário, destroços; o papagaio dilacerado, despegado do céu. Ele podia diluir, minguar, até nada mais existir além do equipamento de uma hospedaria duvidosa. No entanto, para ela, um dia as próprias possessões daquele homem tinham sido radiantes. Paul se sentou. Tamborilou com dedos que eram varetas ou hastes: evidência de amor. Poucos meses antes, na Victoria Square, os olhos de Caro haviam pousado e se demorado naquelas mãos. Naquela noite, ela brincara de ser uma mulher idosa, conhecedora, complacente, reconciliada. Toda a sua beneficente vaidade agora mirrava diante disso. — Então, foi para vingar-se de Ted — perguntou ela, — que você fez amizade comigo? — Havia isso, naturalmente. De que eu a conquistasse, enquanto ele ficava mais uma vez olhando, parado e impotente. Em todo caso, ciúme é uma expressão de impotência — e o dele se mesclava a outra frustração. Havia a vingança por ele ter aparecido naquele dia fatídico. E também uma quitação de contas com Tertia, que desfilava seus amantes na minha cara. Bem, naquela época, havia um sujeito da Guarda, que costumava passar os fins de semana no castelo; ele está morto agora, há muito tempo. Em ambas as coisas existia o risco — enlouquecendo Ted e antagonizando Tertia. E eu gostava do risco. — Sim. — Você se lembra disso. A experiência seria insípida se não houvesse algum risco ou desilusão. Com você, isso mudou. Sim, porque jamais esperei aquele grau de ligação, fosse com um homem ou uma mulher. O fato de poder despertá-lo conferiu-lhe influência, criando mais um motivo para eu deixá-la de lado, naquela tarde em que Tertia nos encontrou na cama — quando pude ver toda a minha construção desmoronando. Era difícil imaginar como Godfrey Locker poderia ter sido mais brutal. — Naquela tarde, quando fomos embora no carro, quando a deixamos à janela, Tertia me fez parar na estrada. Internamo-nos nos campos e ela me forçou a tomá-la, ali, no chão. Imprimindo sua marca em mim. Então, naquele dia, cada um deles fora de um parceiro para outro. Um sujeito da Guarda, que está morto agora, há muito tempo. — Depois disso, recuperei o controle. Trabalhei em minha peça e ela ficou boa. Por causa do estado exaltado em que me encontrava, cada dia era uma revelação sobre o que eu podia manejar. Nunca mais trabalhei tão rápido e tão bem. — Paul permanecia interessado em si mesmo. — Eles estão certos, papagueando que é a minha melhor peça, que nunca coloquei tanto sentimento em uma coisa. Eu queria fixar os Lockers na mente do mundo. Sei que isso pode parecer grotesco, mas eu queria que a peça fosse um memorial para. .. Ele quase disse "Felix". Um gesto rápido de apagar. — Um monumento a Victor — completou. — Então, eu não o tinha amado e não amara ninguém, mas comecei a vê-lo claramente — um pobre ratinho, que nunca tivera uma chance. Ele não me obcecou, e, em si, a experiência foi recuando, afastando-se, como aconteceu com o olho raiado de Ted Tice. A morte de Victor foi indolor, sem que ele despertasse, como eu desejara. A menos que comecemos a nos interrogar sobre o turbilhonar e o rugido das águas, o terror asfixiante. O único que me persegue de vez em quando é Godfrey Locker. Nunca perdi o medo dele, nem mesmo depois que os Mullions me disseram que estava morto. Ainda agora, há momentos em que quase o creio vivo, e tenho de calcular que estaria com noventa anos. Godfrey é daqueles que não podem morrer. Como Hitler. "Portanto, tudo correu bem. Eu sabia que a peça era boa, havia o sucesso público, dinheiro e o castelo. Quando você tornou a aparecer, fiquei surpreso sobre quanto a queria, porque não sentira a falta. Pensei que aquilo logo acabaria, mas aconteceu o contrário. Por vezes, eu não suportava ficar longe de você, tudo o mais era insuficiente. Depois do primeiro ano, comecei a refletir sobre divorciar-me de Tertia e viver com você. Isso provocou sua própria reação, uma vez que existia seu distanciamento dos alicerces de minha natureza. Nesse aspecto, seu amor era debilitante, como se você estivesse me forçando a sentir vergonha. Quando eu obtinha outra força, através do trabalho ou de algum golpe de sorte, queria usá-la contra você, mostrar que podia afastar-me porque, do contrário, previa que acabaria contando-lhe tudo. Contei-lhe sobre a morte de Victor e coloquei em suas mãos não apenas a minha segurança, mas minha própria natureza." O relâmpago era uma careta louca na sala, o trovão, um estremecimento sobre toda a terra. — Novamente, algo aconteceu. Certa noite, você me falou sobre o crime de Tice, e isso o jogou fora de minha vida com uma penada, porque então ele jamais poderia levantar o caso de Victor sem se expor também. Se o segredo dele fosse sabido, quem tornaria a darlhe emprego, em sua linha de trabalho? Eu não era tolo a ponto de pensar que ele ficaria quieto a meu respeito por medo. Uma coisa sobre a depravação é que ela lhe confere um faro — bem como um olho e um ouvido — para a virtude. Como eu poderia trabalhar, se meu caráter fosse conhecido? O próprio fato de existir nele uma complexa moralidade, no conceito de Tice, era uma garantia de segurança a mais. — Paul fez uma pausa, retornando à narrativa da qual se afastara. Disse: — Naquele tempo, você me amava o suficiente para aceitar tudo o que eu tivesse feito, inclusive assassinato. — Sim. — Não obstante, eu sabia que, se você me contara a história de Tice, poderia também acabar contando a minha. Se eu lhe contasse a respeito de Victor, um dia você amaria outra pessoa o bastante para confiá-la a ela. "Assim, fui punido duplamente por isso." Se não existisse o fato incontroverso de Adam Vail, a vida de Caro poderia decompor-se, obscenamente, em sua própria mente. — Aquilo foi uma coisa inteiramente feminina. Um aviso a tempo. A essa altura, Tertia havia percebido sua presença contínua em minha vida, o que lhe desagradou sobremaneira. A duração da ligação, também, sem dúvida sugeria que eu podia abandoná-la. Ela queria o filho, imprimir seu selo em mim, uma vez mais. Fiquei razoavelmente satisfeito por ter o assunto resolvido, em um sentido — porque sabia ser impossível prosseguir com aquilo: amor, revelação, metamorfose. — Ele pronunciou a última palavra em tom sarcástico, mas falara sério. — Eu também me dedicara novamente a um rapaz, de modo irregular, como parte do meu afastamento de você. O rapaz se chamava Valentine — sua mãe havia sido fã do cinema mudo. Ele me foi legado por um ator que apareceu em minhas primeiras duas peças. Foi como me aproximei dele — uma coisinha com cara de raposa chamada Valentine. — Lembro-me dele. Um radiador borbulhando e o rapazinho comendo uvas. — Deus sabe onde andará ele agora. Fiquei razoavelmente satisfeito por ter o assunto resolvido. Deus sabe onde andará ele agora. As pernas nuas e cruzadas de Caro deslizavam uma contra a outra, em uma confluência de suor e loção para o corpo, misturada à umidade criada pela tempestade. O suor escorreu, a respiração subiu e desceu. Em um vestido de algodão, o tremular animal de um coração. — Agora, é tentador alegar a minha juventude. Entretanto, não é o que estou fazendo, de maneira alguma. Além do mais, a capacidade de me excitar com semelhante experiência não era algo que, mesmo então, eu esperasse superar. Havia aqueles que alinhavam a Morte a seu lado, como estímulo ou instrumento: Paul, Dora, Charlotte Vail. — A compulsão para contar foi algo inteiramente arbitrário, alienado, que me chegou com o problema de Felix. É uma coisa que não se pode prever — isso de um estado mental nos colher de surpresa, como um evento. O ânimo confessional tem uma urgência que não se relaciona necessariamente ao arrependimento — pode ser um desejo de implicar outros. Suponho que, idealmente, deveríamos confessar-nos ao nosso pior inimigo, posto que somente ele pode, realmente, conceder a absolvição. No caso presente, caberia a Ted Tice. — Paul continuou: — Do contrário, há a sensação de ficarmos enfraquecidos. Da mesma forma como me senti fortalecido com a morte de Victor, o ato de partilhá-la agora com você é uma perda de força, indecente como o crime. Havia esse self irresistível em Paul, que fazia com que seus próprios pecados lhe fossem impressivos. Nesse momento, ele nada sentia por Caro, que recebia sua necessária confissão como uma vez já recebera o seu amor, sem fazer nenhum uso da autoridade que isso lhe conferia. — O que não posso acreditar — disse Paul — é que Tice jamais tenha falado nisso a você. Vendo-a se voltar para mim — e com semelhante arma na mão! É inconcebível. Qualquer outro teria contado. — Sim. Não. Adam Vail não contaria. — Dessa forma, o silêncio dele o torna supremo. Aliás, o silêncio tende a fazer isso, e este é um caso extremo. Uma nobreza ultrapassada — Paul ainda conseguia surpreender com a precisão de uma palavra —, sobre a qual se pode ler, mas na qual não se acredita. Eu já esquecera que se supunha existir. Era Tice na margem, claro que era Tice. Caro não podia assimilar o papel de Ted ou um terror sobre isso. Uma pavorosa circunstância, ainda a ser resolvida, que a mente mal suportaria tocar. No entanto, o que poderia lesar Edmund Tice, que agora era supremo? A menos que ela temesse por si mesma. O conhecimento ainda não chegara ao fim para ela. — Mal se pode acreditar — disse Paul. — O autocontrole. — Que conduz ao poder soberano. Ele a fitou com certa curiosidade. — A ascendência dele chegou com vinte anos de atraso. — Levantou-se e apanhou o paletó sobre a poltrona. — A esta altura, o crime de Tice é muito semelhante à virtude. Isso acontece a qualquer ato humano, quando se espera o suficiente. Minhas transgressões, por outro lado, são compostas apenas de tempo e segredo. Finalmente, falar sobre si mesmo revivera a convicção de Paul em uma importância que Ted Tice não podia detratar. Exaurindo seu tema, ele renovava energias. Até aquele dia, eles podiam ter imaginado que, estando sozinhos em um aposento, certamente se abraçariam em uma predestinada continuidade, como em uma peça, ou seguiriam alguma outra sugestão dramática. Entretanto, tais imitações haviam se tornado inconcebíveis, e, em palavras, nenhuma verdade surgiria que já não estivesse sobrepujada. Privados de possibilidades inarticuladas — de chorar ou fazer amor —, nenhum deles sabia como concluir. Vestindo o paletó, Paul sugeria que reivindicassem os respectivos eus sociais. — Vai à Inglaterra em setembro? Pelo tom, ele estava pronto a desmentir o que acontecera ali. Seu olhar dissolvia a mulher que ouvia na poltrona. — Sim, a caminho da Suécia. — No momento — disse ele —, não posso fazer planos. — Era duvidoso que desejasse tornar a ver Caro em sua vida. — Ficará em casa de sua irmã? Era notável como ele conseguia recuperar-se e vestir-se, de paletó e com normalidade, mesmo agora. Caro o levou até a porta. Substituindo a tempestade, um calor doentio; um sol úmido perolando uma camada de gasolina sobre a rua ardente. A água da chuva escorria em inativas sarjetas, depositando novamente detritos. Era o que se devia esperar de um dia em que ninguém conseguia procurar limpeza ou refrigério e em um lugar que parecia, em si, um taciturno desafio aos elementos. — Adeus, Caro. Paul tomou o metrô na 77th Street. No trem, o ar quente era substancial, a fetidez, tangível. Riscadas e arranhadas, as paredes cediam ao piso de borracha, que havia sido maltratado intermitentemente. Assentos perfilados de plástico desfigurado, duro como ferro, encaravam-se uns aos outros, em compridas fileiras de penitenciária. Sob os pés, pontas de cigarro, papéis manchados, as páginas esportivas amarrotadas sobre o ricto de um saudável atleta. Uma lata de cerveja rolava de um lado para outro, como que se balançando, o trem querenando, rangendo, estalando. Incapaz de alcançar uma alça para sustentar-se, Paul era suportado pelos flancos de zuarte de três jovens de rosto sério. Ao nível de seus olhos, enfileiravam-se os coloridos imperativos da propaganda: "Venha para onde está o sabor", "Confie na sua capacidade de escolha". Todos estão pensando, um toque de perigo. Um desses sombrios homens de pé pode apresentar seus próprios imperativos: Dê-me a bolsa, a carteira, o relógio. Todos têm uma compleição ruim, acne, erupções cutâneas ou uma pele cansada, curtida, como se houvessem ficado muito tempo ali embaixo. Bolsas de ar estagnado sob os olhos. Neste lugar, como em qualquer inferno, ninguém está com a vantagem: pastas não conferem compaixão nem imunidade, o enfeite de uma jóia é um alvo. Na 83th Street, uma mulher seca, com um vestido estampado de flores, abriu caminho com surpreendente força. As portas se fecharam, mas o trem continuou parado: um teste de resistência, durante o qual ninguém chegou a suspirar. Um rapaz e uma moça porto-riquenhos, apoiados num poste manchado, deslocaram a goma de mascar para se beijarem. Na atmosfera fétida, um altofalante liberou um som que foi como um chuveiro de fagulhas derretidas de um maçarico. Quando o trem reiniciou a marcha, não houve qualquer murmúrio de alívio ou surpresa. Aqueles poderiam ser os fundadores de uma nova raça que desprezava a expressão e era indiferente à crueldade ou compaixão — ou à própria enfermidade. Se, ali entre eles, Paul caísse morto no chão imundo, tornar-se-ia apenas um obstáculo para a saída. De igual modo, nenhum valor era dado ao fato de ele permanecer de pé, mesmo doente. Um rapaz de cabelos frisados, como uma pequena árvore, levantouse de seu assento; seu braço era um galho que, através de membros entrelaçados, chegava até o ombro de Paul. — Sente-se, papai. Sendo mortal, esse rapaz sorriu para o trem, em redor. Não podia evitar sua melhor ou pior natureza. E não havia cessado de estalar as juntas do polegar. Paul deslizou para o assento. Cônscio de uma inexplicável exceção, mas incapaz de agradecimentos. Em sua casa, Caroline Vail abria a carta da Irlanda, em tinta violeta, escrita por mão não familiar. "Sem desejar perturbar sua pacífica existência, julgo que desejaria saber do problema de Dora, de sua difícil situação. . . " 36 — Ela está perdendo a noção do tempo — disse Grace. No pequeno carro de Grace, ela e Caro iam visitar Charmian Thrale. Christian fizera valer sua vontade, e agora sua mãe estava em uma instituição para pessoas idosas, chamada Oak Dene ou Forest Manor ou Park View. — Em dado momento, ela se lembra dos meninos, de tudo. No outro, acha que eu e Chris somos recém-casados. — O carro fez uma curva e passou entre as colunas de tijolos do portão. — Eles dizem que é por causa da circulação. A grama ressequida estava morrendo, naquele excepcional setembro seco. A diretora da instituição era algo mais além de competente. Alta, grisalha, reticente, mantinha uma prudente distância e não aceitava a afinidade de Caroline Vail, de modo algum. Quando se chega a tal ponto, nunca há um final. Caro voltava a ser uma irmã, caminhando com Grace por um corredor ladrilhado: eram duas mulheres, fazendo coisas de mulheres. Ocasionalmente, chegava a ser um alívio parecer convencional e irrepreensível; inclusive para os olhos frios de uma diretora grisalha — no caso presente, diretora de uma escola terminal. Aquelas duas haviam caminhado junto ao mar salgado, depois da escola. Agora, a seu lado era a mortalidade que se expandia, uma imensidão. — Era de imaginar que tivessem encontrado um meio de disfarçar o cheiro desse desinfetante — disse Grace. Charmian Thrale estava em uma seção reservada aos residentes ambulatoriais. A inspetora do setor era frágil, espartilhada, uma barca de madeira confinada em um casco de ferro. Disse que receber visitas significava tudo. Foram conduzidas a um quarto minúsculo, onde Charmian Thrale estava sentada em uma poltrona de chintz, com as mãos estendidas nos descansos para os braços. Tinha os cabelos brancos e ralos, os olhos enormes escassamente azuis; o corpo descarnado, um mero cabide de casacos para mangas e ombros de algodão; o pescoço, uma segadeira de arame para a cabeça de dente-de-leão. A janela dava para uma faixa plantada, obra dos internados ativos. Havia uma planta dura e horrenda em um vaso, na parte interna do peitoril. A porta espelhada de um guarda-roupa permanecia aberta. Na mesa-de-cabeceira, uma fotografia do casamento de Grace e Christian. Ao lado de vidros de pílulas, havia uma pequena vareta, com pontas de algodão sujo, do tipo usado para limpar os ouvidos. Sobre a cama, um par de óculos de aros dourados jazia ao lado de um livro. Grace beijou a sogra e anunciou: — Caro está aqui. — Havia a tentação de erguer-se a voz. — Ela está a caminho da Suécia, para visitar a enteada. Charmian Thrale disse: — Eu amei minha madrasta profundamente. É cruel que as madrastas sejam estigmatizadas. — O mesmo se pode dizer das sogras — disse Grace. A velha lhe tocou a face com uma mão pintalgada. — Nós estivemos nos arrumando! — gritou a inspetora. Charmian olhou para ela com polida diversão ou terrível cinismo. Suas costas encurvadas de algodão tocavam a poltrona. Por si mesma, ela jamais escolheria um vestido de cores conflitantes. Seu rosto havia sido empoado por alguém, que lhe passara até ruge. Caro e Grace refletiam-se no espelho do guarda-roupa — sorridentes, ainda abençoadas. Agora, vá ao aposento de minha senhora e fale com ela, aceite sua pintura com uma polegada de espessura, com esta boa vontade ela pode vir. Faça-a rir com isso. — Ela vai ver seu programa de televisão às onze, está muito interessada nele. O sorriso da inspetora era radioso. Charmian Thrale era uma criança intratável, que finalmente tivera uma mudança encorajante. A velha declarou, com calma lucidez: — É um programa sobre um poeta, Rex Ivory. Eu o encontrei várias vezes, e Sefton o conhecia bem. — Veja só! A inspetora não conseguiu recordar quem era o Poeta Laureado, agora que John Masefield falecera. Depois que ela saiu, Charmian Thrale disse: — Quando uma pessoa fica velha, presume-se que seja um sábio ou um imbecil. Nada é permitido entre os dois extremos. — A vida é mais ou menos assim — comentou Caro. Auxiliada a ficar em pé, Charmian Thrale era uma frágil construção que podia ruir, cinzas cujas tênues fagulhas não tendiam a inflamarse, por temor do fim. Grace e Caro a sustiveram pelo corredor. Através de uma porta aberta, uma voz anciã e aguda gritou: "Não, por favor, não!" Em uma cadeira de rodas, um homem que parecia uma madeira flutuante uniu as pontas dos dedos e cantou, em voz esganiçada: "Dois oficiais alemães cruzaram o Reno, Parle-vu, Para beijar as mulheres e beber o vinho, Parlê-vu". Em uma sala interna, onde cadeiras vazias se postavam em julgamento, um aparelho de televisão estava em frenesi. Grace girou um botão habilidosamente. Barras coloridas se moveram em horizontal, vozes soavam e desapareciam. Um locutor de peruca sorriu e disse as horas. Pontos coloridos passavam em disparada. Ao som da música de Delius, foi revelada uma paisagem rural adorável, em tonalidades tropicais; uma voz em off disse, reverentemente: "Derbyshire". Um rapaz com uma oclusão da glote acreditava que o programa a ser mostrado possuía particular interesse, em vista do atual ressurgimento de Rex Ivory. Uma solenidade treinada, juntamente com óculos de aro de tartaruga, sugeria cursos especiais, em apresentação cultural. Fotografias foram reproduzidas na tela — um bebê violeta, um colegial, um jovem em uniforme militar, um espectro de meia-idade em um cardigã e, em dose, a página título de um livro. Os espectadores podiam recordar que uma cópia daquele exíguo volume, datada de 1915 e autografada pelo autor, alcançara recentemente uma alta soma em um leilão. Charmian Thrale riu, com absoluto autocontrole. Na tela, um homem roliço de costeletas brancas foi apresentado como o patrocinador do incremento de Rex Ivory. Em uma entrevista, feita nos Estados Unidos, o professor Wadding desfrutava o merecido sucesso de sua brilhante biografia crítica, um exemplar da qual era agora mostrado ao público: Abnegação como afirmação: Símboloe sacramento no empreendimento de Rex Ivory. Já um clássico moderno. O dr. Wadding suspendera seu estafante trabalho sobre os poetas do L a k e a fim de que Rex Ivory pudesse beneficiar-se da elucidação crítica. O professor Wadding explicou que, de modo algum, deixara Wordsworth de lado: "Não tenham esse receio". Recordou, no entanto, que durante sua visita à Inglaterra, em 1946, conhecera e entrevistara Rex Ivory. Tinha escrito ao poeta movido por um impulso e recebera uma resposta extremamente gentil, convidandoo ao Derbyshire. "E pensar agora que hesitei", disse ele. "Pés frios, dr. Wadding? 1" O professor Wadding explicou que a expressão "pés frios" era derivada da ocasião em que o imperador Henrique IV ficara parado na neve, em Canossa, 1077, esperando o papa Gregório VIL Em seu próprio caso, a hesitação se devia mais a dúvidas sobre a introdução do fator pessoal no diálogo crítico-criativo. "E o senhor nunca hesitou em sua exposição crítica, dr. Wadding?" — Eles insistem em chamá-lo de doutor — disse Grace. — Como o dr. Goebbels — disse Charmian Thrale. O professor Wadding sustentava que Rex Ivory dera um significado cognitivo a uma ética de renúncia. Classificaria Rex Ivory como um escritor aristocrático, nobre, prestigiado e, indiscutivelmente, o poeta máximo de sua geração. — O terno dele não pode, realmente, ser dessa cor — comentou Grace. Os óculos de Wadding cintilaram. "Minha tarefa, como a entendo, é adumbrar as fontes de sua enteléquia." Um editor foi apresentado e descreveu como o mais penoso momento de toda a sua vida profissional uma manhã de sábado após a guerra, quando sua firma descobriu que faltava papel para uma pretendida edição de O campo semi-ceifado. "Não seria exagero dizer que nós, da firma, ficamos desolados." Felizmente, eles agora tinham o privilégio de apresentar o brilhante trabalho do dr. Wadding. "Get cold feet", em inglês, significa "desanimar" e não tem o sentido de "ter azar" da expressão correspondente em português. (N. do E.) 1 Um rapazinho usando uma tira em torno da testa falou sobre a ascensão de Rex Ivory como poeta do movimento contra a guerra. Ele achava que a mensagem de Rex aos jovens poderia ser resumida assim: "Mantenha a fé, baby". Essa frase, explicou o professor Wadding, era uma invocação do Menino Jesus. Ele estaria interessado em saber que papel contemporâneo poderia ser atribuído a um poeta como Wordsworth. O rapazinho deu de ombros. "Para mim, ele é um nome em uma camiseta", disse ele. "O barato, em Rex, é ele ser relaxante. Ele é um cara muito relaxante. E eu gosto disso." Os locutores olharam para uma platéia invisível, avaliando os efeitos de seus cálculos. — Como se eles é que estivessem olhando para nós — disse Grace —, e não nós para eles. O filme da entrevista foi substituído pelo da entrevista da BBC , após a guerra, nas Dukeries — os Sealyhams e os gramados floridos, uma sombria biblioteca, o rosto fino de Rex Ivory, cabelos ralos, cílios pálidos. Suas pontas dos dedos elevadas, pressionando o tabaco em um cachimbo, os olhos piscando a cada leve pancadinha: um brinquedo sincronizado. Após o colorido fictício da apresentação, o preto e branco parecia a realidade. — Em sépia ficaria ainda melhor — comentou Caro. O velho filme tremeluzia, piscando como o poeta. Ivory tinha uma voz leve e meticulosa de outro século. Embora respondesse com polidez, não fornecia qualquer informação voluntária. A primeira influência que recordava ter recebido fora um exemplar encadernado em couro de Sohrab e Rustum, que uma tia muito querida lhe dera em seu sétimo aniversário. "Ainda posso recitar toda a obra de cor — de coração, como afirma o belo provérbio." O entrevistador interpôs rapidamente: "Então, se não fosse o acidente da generosidade de sua tia. "Generosidade é algo que não acontece por acidente." O entrevistador sorriu, mas esperava ficar quite. "Nosso crítico mais eminente afirmou que somente a literatura capaz de modificar a sociedade será duradoura. Parece que o senhor rejeita esse ponto de vista, não?" "Quanto a ser duradoura", disse Rex Ivory, "é a conjectura de qualquer homem." "Sem dúvida. No entanto, o crítico em questão afirmou que nosso século é receptivo unicamente à persuasão moral da literatura. E o acusou de haver falhado, segundo diz, em perceber isso como uma obrigação." Os cílios pálidos de Rex Ivory descambaram. Ele poderia estar dormindo ou em algum apuro. Por fim, disse: "Compreenda, eu estive nas trincheiras. E ele não". A cor irrompeu de volta, com violência. O dr. Wadding observou: "Creio que posso elucidar esse ponto". Grace cortou o som. — Sem dúvida, vão convocar Paul para isso — comentou. A sra. Thrale falou: — O filho de Paul Ivory tem estado muito doente. — Christian soube que ele está se agüentando admiravelmente. Nesse momento, Paul foi apresentado. Grace restaurou o som. O semblante de Paul começava agora a dividir-se, como uma substância deletéria. Olhos, boca e expressão haviam deixado de ser totalmente complementares: um retrato composto, de um suspeito ou fugitivo. Mais magro, mais velho, não menos sedutor, ele conduzia aquelas coisas públicas com a maior facilidade. "Meu pai era um espírito puro, ingênuo. Tinha qualidades antiquadas — dedicação, modéstia, caridade, civilidade. Fidelidade a ideais superados. Não sou como ele, mas tive — e continuo tendo — um imenso respeito por sua pessoa e seu trabalho." Caro, também, poderia ter estado dormindo. O pote de extrato de carne sobre a mesa. Nós aqui também estamos com bastante fome. Adam Vail havia dito: "Eles atribuirão os maiores mistérios à prestação de serviços". Paul rejeitou delicadamente uma alusão a seu próprio trabalho: "Afinal de contas, estamos aqui para falar de meu pai". Convidado a determinar a estatura literária de Rex Ivory, ele foi franco, ao mesmo tempo que judicioso: "Talvez ele não fosse um grande poeta. No entanto, foi um poeta verdadeiro". Charmian Thrale olhava para a tela com extrema polidez. Quando o professor Wadding reapareceu, ela pediu que desligassem. Ajudada a voltar para seu quarto, sentou-se na poltrona florida. Disse: — Rex foi o único que restou vivo. Os outros é que pareciam mortos. E fechou os olhos. Christian estava de pé no corredor, quando Grace e Caro retornaram. Ficou surpreso ao pensar que, daquelas duas mulheres, ambas bonitas, uma era sua esposa. — A julgar por sua disposição — disse —, estão prontas para o chá. Grace rumou para a cozinha e ouviram-na enchendo a chaleira. Caro permaneceu no saguão. Tinha uma echarpe brilhante na cabeça, em tonalidades furta-cores, e ergueu a mão para retirá-la. O vestido aderiu ao corpo, debaixo do braço erguido. Pensando no flanco macio de um gato, Christian imaginou-se colocando a mão ali. — Bem, Caro, você se mantém em forma. Sou franco. Quer dizer que estou na fase do Você se mantém em forma. Ela afrouxava a echarpe. — De que cor diria que é seu vestido? — Terra de Siena queimada. — Não ouço esse nome desde que era criançola, às voltas com uma caixa de tintas. Como o pai antes dele, Christian havia mantido certas expressões sob custódia. Caro completou o gesto com a echarpe. Seus bastos cabelos caíram sobre os ombros. Mal se distinguia um fio grisalho. Christian perguntou-se: Estarão pintados? Havia um romance — o nome depois lhe ocorreria — no qual uma mulher amada na juventude, encontrada já com idade, revelava seus cabelos brancos. A idéia de que os cabelos de Caro estivessem pintados, porque assim lhe parecia, deixou Christian chocado. Ficou olhando. — São naturais — disse Caro. — Ainda. Ela foi para a sala de estar e, caminhando até a lareira vazia, apoiou um cotovelo na platibanda. Um espelho oval, comprado por Grace em Bath, reproduziu sua fadiga. Fez com que ela se risse. A chaleira estridulou na cozinha e foi silenciada. Naqueles dias, estava-se sempre ligando ou desligando algo. Christian se deixou cair em uma poltrona, que emitiu um suspiro abafado. Grace chegou com o chá em uma bandeja. Havia pequeninos sanduíches, um bolo. Os três se acomodaram — Caro e Christian frente a frente e Grace entre eles. Havia uma luminosidade cálida nas janelas e no bronze do vestido de Caro. — Bem, isto é muito confortável. Christian aprovava a cena doméstica como um digno substituto para a felicidade. Sobre sua mãe, as mulheres falaram o que lhe agradaria ouvir. Ele respondeu: — O lugar é de primeira. Absolutamente de primeira. — Sua mãe demonstra uma grande força interior — disse Caro. A frase obituária consignava Charmian Thrale à terra: Após uma longa existência, vivida com grande força interior. Quando Grace descreveu o programa de televisão, Christian exclamou: — Rex Ivory, santo Deus! Quando fiz dez anos, ele me deu O tesouro dourado. Ele agora é um monumento nacional, não? (Quer me passar um sanduíche?) Bem, isso faz com que me sinta um velho. Grace estendeu-lhe um prato. — O que há neles? — Agrião. — Receio que seja um tantinho fibroso para mim. — Os outros são de pasta de peixe. Christian se serviu. — A velha e boa pasta de peixe. . . — Afastou as migalhas. — O tesouro dourado. . . Ainda devo tê-lo em algum lugar. — Quando Grace se levantou para buscar água quente, ele disse: — Vou tomar minha segunda xícara no estúdio. Foi para o aposento ao lado, onde o trabalho do fim de semana estava sobre sua mesa. Sempre havia algo novo sobre a África. Através das portas duplas abertas, as duas mulheres viram — ou espiaram — Christian abrir um jornal e estirar-se em uma poltrona. De seu lugar no sofá, Caro ficou olhando, enquanto Grace levava o chá do marido. O queixo de sua irmã não era mais completamente definido, nem sua cintura. Por sob o fecho de um colar, a nuca se mostrava ligeiramente alteada. Caro olhava para a irmã com mais ternura do que nunca: a intimidade infantil sempre parecera suspensa, como se pudesse ser retomada. Nas lembranças de criança, Grace era sempre gentil. Caro refletiu que era raro uma criança ser gentil. A dicotomia entre ambas poderia ter significado mais: elas haviam exercido bem pouca influência sobre a vida uma da outra, além de trocarem poucas confidências. Agora nem mesmo era claro, como antigamente, que Grace se satisfizesse com chintz e porcelana — com Christian dizendo: "Um tantinho fibroso" ou pendurando as calças à noite e anunciando: "Preciso dormir minhas oito horas". Também não era certo se Grace permanecera como espectadora. Aqueles que a tinham visto como o alter ego de Caro poderiam estar enganados. Presumivelmente, Grace atravessara uma experiência que só podia ser amor — ou tivera alguma revelação íntima. Paul Ivory havia dito: "Um estado mental pode nos colher de surpresa como um evento". Na vida e nos pensamentos de Caroline Vail, Ted Tice se tornara supremo. A conscientização de Ted Tice era o evento que penetrava em sua vida, estivesse em vigília ou adormecida. A maior força dele havia sido seu segredo — sua própria verdade confinava seu mistério. Caro estivera se demorando em lembranças e possibilidades remotas como recordações. Pela primeira vez, tivera sonhos nos quais ela e Ted se encontravam como amantes, em uma terra vívida e desconhecida. Ficava acordada, pensando no pouco que dera a ele, mesmo em gentileza; recordava palavras fúteis, aborrecidas, insensíveis, dignas de Paul Ivory. Ted lhe mostrara sua própria imagem e ela replicara: "Não me lembro desse vestido". Pensou em como poderia ir até ele, mas, no entanto, não iria. Imaginou-se chegando, a felicidade dele. Seu olho estriado, sua alegria. Retratou Margaret Tice em sua dourada beleza. Caro se olhou no próprio espelho, vestida ou nua, consciente da condição patética. Consciente das mulheres que, antes dela, haviam feito o mesmo. Seu corpo era um vestido, agora por anos sem ser usado, sem ser mostrado; sem ser conhecido. Sabia que a ilusão dele poderia ruir. No entanto, era terrível que pudesse ir até ele e não fosse. Caro caminhara pelas ruas e pensara em Ted Tice. Dedicara-se ao trabalho, e temia morrer sem tornar a vê-lo. Certo dia, escrevera na página em que trabalhava: "Se ele chegar agora, farei tudo o que me pedir". Se Ted morresse, o mundo se tornaria um aposento onde ninguém olharia para ela. Não conseguia mais controlar tais fantasias, como não conseguira controlar as alterações corporais da adolescência. Tentou ver como isso acontecera e soube apenas que estivera buscando algum extremo. Um extremo que poderia ser a força, pura e terrível, da testemunhada força de vontade de um homem. Era como se Ted Tice houvesse criado nela esse evento, através do poder cósmico do amor. Ela se sentia impotente para mudar, embora não para agir. — Estou pensando em uma viagem à Austrália — disse a Grace. — Algum motivo particular? — Descobri que, nestes dias, tenho pensado muito na Austrália. Isso parece criar um motivo para que eu vá até lá. Você iria comigo? Grace perguntou: — Por apenas algumas semanas, poderia ser? As duas conversavam em voz baixa. Se ouvisse o som, Christian imaginaria que estavam discutindo doenças e ficaria tranqüilizado pela submissão de ambas. — Eu gostaria de ver o que fui incapaz de ver então — disse Caro. Ver tudo aquilo a que estivera cega, pelo menos isso podia ser recuperado. Em um instante, Grace reviveu certas noites de verão — caminhando por uma casa escura, cada janela e cada porta escancaradas para a entrada de ar. Toda uma cidade voltada para o mar, expectante. — Ver o Pacífico novamente. . . — murmurou ela. — Lembra-se de que mamãe, quando éramos pequenas, se sentava em uma cadeira de vime no gramado, ao crepúsculo, enquanto nós brincávamos? — Como que maternalmente, Caro esfregava a manga de seu vestido cor de bronze. — Havia uma treliça de malvas-rosa, uma fileira de alteias, o limoeiro e o balanço. Mamãe se sentava lá fora em uma cadeira de jardim, nas noites de verão, e olhava para nós. Ela dera a entender: Olhava por nós. — Essa era Dora — disse Grace. Levantando-se, ela foi até a outra sala. — Você me chamou? — perguntou a Christian. — Eu estava apenas bocejando. — Quando Grace se virou, ele disse: — Pode levar o jornal. Não há nada nele. Várias vezes pela manhã ou à noite, Grace abandonava o que fazia e se voltava para o marido. Deixava os pratos na pia da cozinha e subia para encontrá-lo. Certa vez, Christian estava usando o barbeador elétrico e não a ouvira; de outra, o seu Water-Pik. Christian estava satisfeito por se livrar do jornal, onde havia uma carta, a respeito de tratados, assinada simplesmente "Elphinstone". Isso porque Elphinstone, que tinha sido elevado ao pariato na lista de homenageados de um primeiro-ministro de saída, agora escrevia freqüentemente sobre temas públicos. Na época do pariato, Christian engolira o orgulho e telefonara para felicitá-lo. Acolhido delicadamente pela sra. — ou Lady — E., tinha ouvido uma voz ao fundo dizer: "Pelo amor de Deus, não me chame". — Não posso ficar excitado — disse ele a Grace — porque Elphinstone dormiu com alguém na Downing Street. Grace voltou à sala, carregando o jornal. Sentou-se no sofá ao lado de Caro. — Eu queria mostrar-lhe isto. Havia uma foto de cientistas saindo de uma conferência governamental. Flanqueado por políticos, Ted Tice olhava para diante. Mostrava o rosto civilizado e particular que costumamos ver no intérprete, entre dois taciturnos chefes de Estado. — Como vê, ele irá à Suécia na época em que você estará lá. Grace leu que o professor Tice apresentaria uma tese sobre o controvertido assunto. Grace tinha uma vantagem quanto a isso, tendo aprendido através dos filhos sobre buracos negros, desvio para o vermelho, a grande explosão1. — Pensei que você já soubesse — disse ela. — Não telefonei para Ted desta vez. Grace ficou olhando, enquanto Caro manuseava a borla de uma almofada. Comentou: — Acontece tanta coisa em sua vida! — Acontece comigo, apenas. Você, a sua vida, têm significado para outras pessoas. — Caro nunca tinha visto Grace dar de ombros antes. Prosseguiu: — Como pode uma vida ser desmotivada, se outros dependem dela? Grace sorriu. —Uma declaração de abnegação. Nenhuma delas esquecera a casa para idosos, a tela da televisão, como Charmian Thrale disse: "Eles já estão mortos", sobre aqueles que tinham perdido o contato com seus respectivos absurdos. Grace perguntou de repente: — Você amou Paul Ivory? — Amei. — Suponho que isso tenha terminado mal. — Terminou. — Você deve ter ficado muito infeliz. — Eu morri. E Adam me ressuscitou. Pretendera declarar isso aereamente, mas terminou dando um cunho de absoluta seriedade. As duas estavam atirando a cautela ao vento, como sua única válvula de escape para a violência dos sentimentos. — Eu os vi juntos na rua, uma vez. A maneira como você se mantinha afastada, não se deixando tocar. . . Eu gostaria de ter sabido — disse Grace. — Ou ajudado. No entanto, você não. . . não dependia, não precisava de mim para sua própria estabilidade. Teoria segundo a qual o universo se formou da explosão de um átomo primitivo, de dimensões incalculáveis. (N. da T.) 1 — Por falar nisso, em que eu a ajudei? — Oh. . . Naquela época, presumia-se que eu estava estabilizada. O mesmo sorriso, nem amargo e nem complacente. — Posso ajudá-la agora? — perguntou Caro. — Não. Sentadas, inclinaram-se uma para a outra e partilharam certa dor, não exclusivamente delas. Grace levantou-se e foi para o piano, como para um refúgio. De lá, ela se virou e fitou a irmã. — A princípio, existe algo que se espera da vida. Mais tarde, há o que a vida espera de nós. Quando chega a época de percebermos que são a mesma coisa, pode ser tarde demais para expectativas. O que somos, não o que seremos. São a mesma coisa. — Que eu saiba, o suspense nunca termina — disse Caro. O suspense da vida em si, depois a expectativa da morte. Valda dissera certa vez: "Existe a espera". Com suspense, as mulheres se referiam ao desejo de amar e ser amadas: grande expectativa. — Mesmo as pequenas expectativas fazem parte da incerteza maior — esperar uma chegada, um telefonema, uma carta. — Uma carta é o pior — disse Grace. Ficou parada junto ao piano, olhando para Caro. Se tivesse se virado, a irmã se levantaria para abraçá-la e diria "querida", como um amante. Daquele jeito, naquela postura, ficaram as duas em seu lugar, entreolhando-se. — Existe alguém, agora, a quem você ame? — perguntou Grace. Como Caro não respondesse, acrescentou: — Porque agora você me parece mais atraente do que nunca. — Eu estava lembrando que você sempre foi generosa quando criança — disse Caro. Não que algo aconteça por acaso. Grace continuou junto ao piano, escutando. Caro disse: — Se Ted telefonar. . . — Os cantos de seus lábios não estavam inteiramente dominados. Como se ela pudesse não tornar a falar. A emoção altíssima era ultra-sônica, audível. — Se Ted ligar para cá, não quero que saiba de minha ida à Suécia. E também não quero vêlo lá. Grace não imaginara que sua irmã pudesse ficar com semelhante boca. No entanto, pensava na carta — iminente, repleta, imaculada pelo atraso — que poderia chegar agora. Ou na carta paga pelo sofrimento particular — um lento e interior sangrar de esperança e humilhação —, que, de forma idêntica, poderia não existir. Talvez houvesse uma eventual notícia escrita, mas sem ser esperada, descompro-missada; um toque de leve na ferida. Nesse ínterim, ela aprendera a dar de ombros. Grace havia descoberto que os homens preferem não finalizar coisas, percorrê-las de ponta a ponta. Quando sucedia o oposto, havia história: algo de que a pessoa sempre se lembraria. — As mulheres têm que levar tudo a cabo. O nascimento, por exemplo, ou um amor sem esperanças. Os homens podem evadir-se para sempre. Havia exceções — Ted Tice ou seu próprio filho. Seria terrível se Rupert tivesse que permanecer sempre ligado à sua vida, como Ted fizera. Apavorante, mas não improvável. A claridade penetrou através de longas janelas, havia o perfume emanado de uma planta enxertada em um vaso. Duas mulheres estavam caladas, uma sentada, uma de pé. Enquanto um homem dormia, como um bebê, em uma sala ao lado. 37 Ele indagou na recepção. Ela havia saído. O saguão do hotel estava superaquecido pelo meio-dia de um verão interminável e chamejava, aqui e ali, em vitrinas iluminadas, exibindo jóias de prata e objetos encurvados de vidro ou madeira. Ted sentou-se em uma poltrona de couro; segurava uma revista, mas não a lia: um detetive, controlando o movimento. Casais a caminho dos elevadores olhavam para aquele homem anguloso e vigilante; para sua testa ampla e o olho defeituoso. Um corpulento turista americano, trajando linho listrado, tropeçou miopemente nos pés de Ted Tice. Uma mulher saiu de uma cabina telefônica, sorrindo. Um garoto magro foi empurrado por dois poodles, puxados pela correia. Ted voltou à recepção e escreveu uma mensagem, escreveu o nome dela. O encarregado fez um comentário sobre o tempo excepcional, lamentando a seca. — Esta manhã estava chovendo em Londres — disse Ted. O encarregado já vira o rosto daquele homem em um jornal, relacionado a uma cerimônia universitária. A referência à seca tinha sido seu polido e codificado tributo. Naquela semana, mais tarde, ele diria à família: "Ele esteve no hotel, na terça-feira. Grande como a vida". Edmund Tice aproximava-se do ápice de sua carreira. Ted saiu e foi até as docas. Ficou olhando para o porto: os pequenos navios, o barco finlandês, uma fileira de lanchas oferecendo excursões pelos lagos ou canais. Um céu amplo, de radiosa luminosidade. Não conseguia recordar adequadamente a aparência de Caro, tendo-a recordado demasiado. Ele parou na borda do cais, transpondo os últimos momentos de trinta anos. Na véspera, Grace havia dito ao telefone: — Sobrou tão pouco tempo para contar a verdade. . . Ele ficou parado ao sol, descolorando-se como todo o norte da Europa. A terra sueca soprava como areia fina: um mundo passando ao vento, dispersando-se à distância, pulverizando-se. No campo, vidoeiros inclinavam-se para baixo, secando em solo de pouca profundidade. Somente o mar permanecia cético, um azul ártico: o mesmo sal e cheiros salitrados, as gaivotas necrófagas. Dizia-se que a seca alteraria a topografia para sempre. Não era verdade: dentro de um ano a terra se recomporia. Quando ele voltou ao hotel, Caro estava na portaria, pedindo sua chave. Estendendo a mão, para receber a mensagem que lhe deixara. Ted parou a pouca distância, contemplando aquela morena estranha. Que se virou e, afinal, foi plenamente identificada. Ele lhe sustinha a mão para que entrasse no barco, que era aberto, com filas de assentos de madeira, como um pequeno ônibus. Tudo envernizado no interior, o verniz pegajoso por causa do sal e do sol. Mal havia uma dúzia de passageiros, mas duas vezes esse número em bóias salva-vidas, pintadas com o nome do barco, a metafonia selecionada em vermelho. — Embora ninguém se afogue em um canal — disse Caro. — Na realidade, é o mar. Um braço de mar. Havia um aviso, em três idiomas: a lancha fazia uma excursão pelos canais duas vezes ao dia, se as condições do tempo permitissem. Ela havia dito: — Vamos sair. Tinham caminhado pelo cais, onde não havia paredes confinantes, portas, cortinas ou camas. Caro se expusera e sugerira: — Podemos tomar a lancha. Entraram em uma embarcação que não retornaria por suas ordens. Aquelas foram as últimas decisões de Caro. Uma vez o barco em movimento, ela se tornou inativa. Caro se sentou em um banco de ripas e amarrou uma echarpe nos cabelos, a mesma brilhante echarpe que Christian admirara, uma semana atrás. Ao lado, Ted Tice observava seus movimentos, que pareciam, mesmo para ela, dotados de especial precisão e significado: gestos em sonho. Era ela que enchia os olhos dele, não o mar. Um homem uniformizado atirou seu cigarro ao mar e cuspiu. Com este sinal, as máquinas entraram em ação. Houve um branco turbilhonar de água, e um garoto descalço libertou a corda pela qual todos eles haviam ficado detidos. No último instante, um casal de turistas correu com uma criança, e os três foram postos a bordo com certa confusão — gritos, saltos, arquejos e alguns sons de metais se entrechocando. Uma família inglesa: ele com aparência feminina, a mulher parecendo um homem, a criança, um querubim. Escolhendo lugares ao sol, estavam corados, constrangidos, mas rindo por aquele final adequado para o seu momento de pressa e salvação. Em resultado, um final feliz. O barco zarpou, deixando para trás um palácio, um edifício de ópera, um museu, uma fortaleza; pontes, torreões, prisões, pináculos. Uma cidade inteiramente equipada. A atividade deixou de ser interrupção e se tornou parte do fluxo. Moviam-se à luz de um passado ou de um outro mundo. Também a cena, em suas dimensões humanas, era experimentada, descolorida e maculada, faltando-lhe o lustro moderno. Ou era a eles que faltava a retina moderna, capaz de dar precisão a cenas antigas e torná-las, como as reproduções coloridas de grandes pinturas, mais definidas, mais brilhantes e menos resplendentes que seus originais. A lancha balançou na esteira de um pequeno barco a vapor. A criança gritou agudamente, deliciada ante a nova emergência, tendo aprendido que todos os perigos são superados. Ted e Caro foram jogados um contra o outro — e não se afastaram. — Antes de você chegar — disse ele —, eu estava pensando que mal podia imaginar sua aparência. Havia perdido a imagem, ao retratála. Ted ficara parado no saguão do hotel e ela se virara: uma aparência além do reconhecimento. Caro comentou: — Nunca fiquei mais feliz ao ver qualquer rosto humano. Olhava agora para os entalhes e sombras no rosto dele com grande curiosidade, como uma consciência buscaria outra, no instante anterior à morte ou à batalha: a crise da existência partilhada tão intimamente, indivisível. O eu supremo, mas, ainda assim, impotente. O barco se dirigia lentamente para um braço de mar, calmo e estreito, onde a hera cobria um baixo talude e as árvores desciam em suaves encostas para a água. Deslizando ao lado, puderam ver relvados lisos entre as árvores e casas brancas quadradas. Homens e mulheres louros caminhavam por jardins estorricados e olhavam para a lancha, com a mão em pala acima dos olhos. Um jovem estava sentado em uma cadeira de vime, segurando um livro aberto. Caro tirou o relógio — seu próprio relógio, um relógio feminino, com uma pequena pulseira de ouro. Deixando-o no colo, baixou os dedos até a água. Ted apanhou o relógio. Era um modo de segurála, a pequena pulseira cálida como se viva. Quando Caro retirou a mão da água, Ted a enxugou e a manteve presa na sua. — Eu nunca a havia tocado, até agora. — É verdade. Ted Tice perguntou: — Você diria que me ama? — De todo o meu coração. O homem olhou para as árvores, reclinando-se na água branca. Aquelas árvores estavam em seus olhos, em listras, em lágrimas. — É difícil imaginar qualquer façanha que extraísse isso de mim. Ela disse: — Meu querido. . . — Meu querido. — Ele saboreava a carícia recebida em sua própria língua, um ato de amor. — Nunca estive com você na água, antes. — Tomando os elementos por testemunha. Pousou a mão nos cabelos dela e a echarpe escorregou para trás. Quando as cores caíram da cabeça de Caro, pareceu que alguma resiliência a abandonara. Tendo sido serena, obediente, ela agora se tornava solene e obscura. Ted podia vê-la ponderando, em um momento, as horas e os anos vindouros que lhe estavam cerrados, desconhecidos. Somente ele poderia saber, pois sempre se preparara para isso. Levara tanto tempo criando aquele momento, que ele não podia ser novo para nenhum deles. No barco que deslizava, Ted via o brilho escapulir. — Confie em mim — disse. Propunha seu amor a ela como sabedoria e até mesmo gênio. Como se ele soubesse e ela não. Os passageiros viram o Canal Real, como haviam desejado, mas viram também aqueles dois que representavam o amor. Uma mulher pálida, com os cabelos escuros soltos. O braço terno de um homem nas costas de seu assento, a outra mão segurando a dela. A ternura pela qual todos ansiavam, dia e noite. Podia ser vagamente adivinhada alguma tragédia — perda ou enfermidade. Ela possuía a luminosidade daqueles prestes a morrer. Passavam perto da margem, onde um antigo barco jazia em um dique seco, uma embarcação de madeira içada do fundo do oceano após séculos: carranca de proa, conveses, castelos de popa. Construída em pinho e carvalho, levando o nome de um rei. Carregada para o fundo pela sobrecarga dos canhões de bronze e atracada de volta a terra, como uma atração. A criança trepou em um assento para espiar e lhe contaram a história de tabicas e cofres de bordo, de utensílios de peltre e moedas de ouro ou prata, marcadas com uma coroa. E foi confirmada, uma vez mais, na crença da sobrevivência. A lancha navegou através de um braço de mar mais amplo. Caro contou a história de Paul Ivory. Tinha sido Paul quem dissera: Um dia, você amará alguém mais e contará a minha história. Anos atrás, sentada em um muro, ela havia assegurado a um rapaz bisonho: As coisas se confirmam tão estranhamente! Perguntou a ele: — Nunca mais encontrou o alemão que você ajudou durante a guerra? Era a primeira vez que se referia a isso. — Muitas vezes. — E nunca se identificou para ele? — Não. Nem ele me reconheceu, é claro — a despeito deste meu olho — disse Ted. — É tão confiante em si, tão alerta e assertivo. . . E eu o observo, a partir de nosso comum e não partilhado segredo. Como Deus. Isso confere uma autoridade à qual não renuncio. Apesar de toda a sua vigília, ele dorme e eu o vigio. — Foi o mesmo que sentiu em relação a mim, então, com Paul? — Eu nunca tive poder sobre você, e não o desejei. Isso não é verdade, claro. Eu queria o maior poder de todos, mas não uma vantagem ou autoridade. — Nestas últimas semanas, estive pensando no verão em que nos conhecemos. Recordo dias inteiros, conversas completas. Ou então os invento. — Sefton Thrale, o telescópio. . . — O passado que Ted Tice habitara sozinho, a vida inteira. Eles tentavam descobrir o que os levara a isso, e jamais o conseguiriam. Eram inocentes, em resumo, como qualquer casal enamorado. — Agora, falam em telescópios de muitos metros e plataformas espaciais. — Poderia ser um meio de rejeitar-se a Terra, sem melindres. — Porque não podemos fazê-la funcionar, é isso? — Porque ela foi demasiado boa e grande para nós. A lancha começava a girar, a fim de levá-los de volta. Descrevia um arco amplo e gradual, a água se. abrindo preguiçosamente em leque, na esteira formada. Tinham demorado bastante na vinda, mas agora retornavam rapidamente. Uma vez completada a curva, houve a transformação nervosa, com as máquinas mais potentes e barulhentas. Os passageiros também já haviam tido sua dose suficiente de ternura e, por outro lado, estavam com muito calor. O garotinho corria impetuosamente de um lado para outro da embarcação, como se lhe fosse possível aderná-la, e, com uma vozinha insistente, gritava perguntas sobre o fundo do mar. — Josie estará esperando no hotel. — De novo, era como se Caro saísse por uma porta e entrasse em um barco. — A que distância você irá? — Uns oitenta quilômetros. Mandarão um carro apanhar-me. — Nessa noite e no dia seguinte, uma universidade comemoraria as realizações de Ted Tice. — Terei de falar lá, amanhã à tarde. Toda essa gente irá a Roma e à Sicília, onde haverá uma conferência. — Ele acrescentou: — Farei o que você quiser e irei para onde quer que esteja. Caro espiava o garotinho. O bebê de Josie, que ela tivera nos braços ainda esse dia, em pouco estaria correndo em um convés e faria perguntas a que ninguém poderia responder. Não olhou para Ted, mas para o menininho e para o mundo ao qual retornavam. — Eles se arranjariam sem mim — disse Ted —, caso eu morresse. — Não aludia à conferência, mas ao mundo. — Por que não, se eu estiver vivo? Caro não sabia se aceitar ou negar significaria força. — Receio deixá-la, perder você —■ disse Ted. Baixou os olhos para aquele perfil, como já fizera uma vez, sentado em um ônibus rural. A mesma linha de cabelos vigorosos, concavidades sombrias nos olhos escuros. Em um vestido de verão, o busto de Caro era a realização do desejo. — Você não fugirá. Estará lá, quando eu lhe telefonar de manhã. Não morra, não desapareça. — Estarei. — De qualquer modo, eu a encontrarei. As janelas de seu quarto davam para a água. Tecida através das cortinas definho rústico, a luz matinal era tinta, rósea como a carne que circunda um dedo ou contorna um ouvido. Caroline Vail jazia sozinha em uma cama, pela última vez. — Você dormiu? Ela se recostava nos travesseiros, segurando o telefone. — Fiquei acordada, para pensar nisto. Para pensar em você. — Para mim, é uma novidade imaginar isso. Em sua conversa, já estavam juntos. Ted disse: — Eu não dormi. A cortina tinha um desenho de gavinhas enroscadas e flores semelhantes a estrelas. Do cais abaixo, subia a descarga de um ônibus matinal, o apito de um barco, ruídos de engrenagens, grasnidos laterais de aves marinhas. A tênue claridade iluminava uma mulher na cama. — Estou mais feliz do que nunca — disse ele. Virada de lado, ela podia ver-se em um espelho. Um ligeiro vale entre os seios, cabelos espalhados no travesseiro. Pele pálida, ombros alvos, tudo o que o coração de alguém poderia desejar. Ela se amou e desejou-se, como se fosse Edmund Tice. Como se aquilo fosse um eu, do qual também ela deveria separar-se para sempre. — Estou mais feliz do que nunca — disse ele. — Isso deve bastar. É plenitude. — Ela se viu refletida onde a porta espelhada de um guarda-roupa estava aberta. Acrescentou: — Um pouco disso durará. — Se você for embora, eu a encontrarei. — Ele perguntou: — Ante tal possibilidade, deverei sobreviver ao meu tempo como outros, interrogando-me, definhando e contando meus mortos? Felicitandome por minha quase escapada da vida? — Acrescentou: — Logo estarei com você. Depois que desligou, ela segurou a cortina de lado e olhou para a rua, para o porto. Pensou em como havia sido uma criança à beira do mar e mais tarde uma mulher, em altos aposentos como aposentos em sonhos, e jardins emaranhados. Pensou em continentes e cidades, homens e mulheres,, palavras, ou entes amados. O bebê de Josie. Como se enumerasse cada momento gracioso de sua vida, para oferecer como atenuantes. — Eu disse que a encontraria. No aeroporto, uma ausência total de manhã, clima e substância. Havia luz branca, ar rarefeito e um aviso que dizia "Partidas". — Eu já teria ido, se não fosse a greve. — Ela se recostava contra o balcão de passagens. Colocou a mão na dele. — Há uma greve do lado de lá. — Agradeço a Deus pelos movimentos sindicais. — Amor moderno. . . Em frente deles, um homem dizia: — Pode verificar que estou registrado como VIP . Uma jovem uniformizada movia o lápis, descendo por uma fila de nomes. — O senhor é VIP de primeira, segunda ou terceira categoria? — A senhorita verá que não sou uma pessoa sem importância. Caro era a seguinte na fila. Ted Tice impediu que um carregador apanhasse a bagagem. — Saia daí e converse comigo. Sentaram-se em poltronas de plástico. Havia um aviso com os dizeres: "Passageiros em trânsito". Ted tocou o rosto de Caro. — Há um vôo para Roma dentro de uma hora. — Ele tornava tudo tão simples, palavras de poucas letras. — Se você for nele, estaremos juntos lá, à noite. — Ted era ligeiro, mas sem pressa, indestrutível. — Ficarei aqui e farei minha conferência desta tarde. Pelo vôo charter, estarei em Roma esta noite. — Ted. . . — Ela começou a chorar como uma criança. — Ted, o que pode mudar para nós? — Algo já mudou. Como uma criança, ela parou de chorar, por medo ou curiosidade. — Telefonei para Margaret. Contei a ela. Foi como quando, na lancha, o brilho lhe caíra dos cabelos. — A angústia — disse ela, e inclinou-se contra o braço dele. Parou de chorar, em deferência às lágrimas de outrem. Como se lhe falassem de uma batalha, articulada à distância, na qual muitos devem morrer. Ted demonstrava a maior gentileza: ela precisava ser ajudada a superar aquilo. A despeito de si mesmo, sua força irrompia como regozijo. Era difícil crer que tanto infortúnio pudesse estar ligado àquilo. Tinha o braço em torno dela, a mão descansando em seu seio. Pensou em como Caro havia sido orgulhosa e decidida, como voltaria a sê-lo. Pensou também que ela estava ali, reclinada e chorando — amando-o tanto. Eram naturais e sobrenaturais, naquele lugar insípido, como figuras amorosas da mitologia. Quando se endireitou no assento, ela enxugou os olhos e disse: — Meu amor. . . Ele lhe afagou os cabelos. — Vou apanhar a passagem — disse, e sua boca estremeceu, ao pronunciar palavras prosaicas. Apanhou lápis e papel, escreveu o nome de um hotel em Roma. Ambos intercambiaram o nome e já viam o sul. Além do portão de partida, havia um dispositivo semelhante à estrutura de uma porta, onde os passageiros eram vistoriados — em busca talvez de ouro ou armas. A bagagem de mão era colocada em uma esteira rolante e deslizava através de um pequeno plano inclinado. Caro recordou a barreira onde dissera adeus a Edmund Tice pela última vez. Estava em meio a uma multidão, em uma escada rolante, e erguera a mão. Ele ficara vendo-a ir-se. Houvera uma despedida anterior, quando ele lhe havia dito: "Aceitarei quaisquer condições", e ela permanecera remota, não identificando aquilo como um ensaio. Os passageiros cruzavam o portal descorporifiçado, de um em um. Havia uma mulher vestida de linho rosa: — Esta máquina estraga pérolas? Eles se tornaram competitivos, quanto ao que podia ser estragado. — Afetará meu marcapasso? — E quanto à radiação? No pequeno plano inclinado, um homem de tweed deu um salto para salvar uma caixa de papelão. — Está levando as jóias da coroa aí dentro? — Em realidade, é um maravilhoso serviço de chá. Eles reivindicavam, aferravam-se, refugiavam-se: a partida provocava isso. Havia um homem corpulento, pálido, familiar, que vestia linho americano de listras e usava uma mala de couro como um aríete. Não cumprimentou Caro e bem poderia ser míope. Era o médico de Nova York, que lhe sugerira usar óculos. Paul, aquele dia, na rua acalorada, dizendo: "Caro?" Paul à sua porta, dizendo: "Adeus, Caro". Ela podia recordar despedidas em transatlânticos. O almoço a bordo, que Dora não apreciara. Bandeirolas, lenços, o mundo antes de uma guerra. A grande configuração passando através das Heads, calmamente, em sua trajetória para o paraíso. — O seu vôo — disseram. Tudo isso enquanto ela olhava para trás, procurando ver se Ted ainda estava lá. — O embarque para o seu vôo. No avião, indicaram-lhe um assento perto da janela. Além da pista, podia-se ver um pequeno bosque de abetos, escuro, recluso, genuíno. Na própria pista, os técnicos gesticulavam com mãos e bandeiras. Seus cabelos louros e suas roupas azuis eram fustigados pelo deslocamento de ar. Usavam dispositivos para proteger os ouvidos do intenso ruído. O ruído podia ser visto, reverberando em macacões azuis, encapelando-se entre os abetos. No interior da cabina, nada podia ser ouvido. Apenas, quando o avião se elevou do solo, um longo silvo de ar — como o arquejo da respiração da humanidade, quando um trabalho de eras se engelha em um instante — ou o grande ofegar de casco e oceano, no momento em que um navio afunda. A AUTORA E SUA OBRA Shirley Hazzard nasceu a 30 de janeiro de 1931, em Sydney, Austrália. Educada na Queenwood School, em Syd-ney, logo depois da Segunda Guerra Mundial mudou-se para Hong Kong, onde seu pai foi ocupar um alto posto na administração governamental. Ali, aos dezessete anos, começou a trabalhar no serviço secreto britânico. Em 1949, transferiu-se para Wellington, na Nova Zelândia, onde desempenhou importantes funções no Alto Comissariado Britânico. Em 1951, tornou-se assistente técnica para assuntos dos países subdesenvolvidos da Organização das Nações Unidas, em Nova York. Nesse posto, viajou por diversos países do mundo, adquirindo uma rica e variada experiência de lugares e pessoas que aproveitaria em uma série de contos publicados na revista "New Yorker", nos anos 60. Estimulada pela calorosa recepção do público a essas narrativas, abandonou seu cargo na ONU e tornou-se escritora profissional. Em 1963, surgiu seu primeiro livro, uma seleção de dez contos ("Cliffs of fali"), a maior parte dos quais focalizando mulheres infelizes no amor. Em 1966, veio à luz seu primeiro romance: "The evening of the holiday", uma tocante história de amor entre uma inglesa de trinta e poucos anos e um atraente arquiteto italiano de meia-idade. "People in glass houses: Portraits from organization life" (1967) enfeixa oito contos sobre os escalões inferiores da ONU. "The bay of noon" (1970) focaliza uma mulher que busca um sentido para a vida investigando seu passado amoroso. Em "Defeat of an ideal" (1973), a autora deixa de lado a ficção para refletir sobre a autodestruição das Nações Unidas. Mostra como a ONU é ineficiente e controlada pelos EUA. Ataca os secretários Trygve Lie e Dag Hammarskjóld e revela a discriminação das mulheres que reina na organização. Com "O trânsito de Vénus" (1980), Shirley Hazzard atinge o ponto mais alto de sua carreira, conquistando milhões de leitores em todo o mundo. Visite nossos blogs: http://www.manuloureiro.blogspot.com/ http://www.livros-loureiro.blogspot.com/ http://www.romancesdeepoca-loureiro.blogspot.com/ http://www.romancessobrenaturais-loureiro.blogspot.com/ http://www.loureiromania.blogspot.com/