Hegel e a interdisciplinaridade - Revista Filosofazer

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Hegel e a interdisciplinaridade
João Alberto Wohlfart*
Introdução
O objeto do artigo que segue é associar o sistema filosófico hegeliano à estrutura epistemológica, acadêmica e curricular de interdisciplinaridade dos dias atuais. Sustentamos que a complexidade, extensão,
sistematicidade e organicidade metódica do pensamento hegeliano respondem aos conceitos da estrutura epistemológica atual da interdisciplinaridade. Até prova clara em contrário, mesmo que o conceito seja
atualmente muito difundido nos meios acadêmicos, ainda não há um
sistema de ciência formulado que seja tão complexo como o hegeliano
e que responda com tal profundidade à noção de interdisciplinaridade.
O conceito de interdisciplinaridade será abordado na perspectiva da
estrutura e do movimento do sistema hegeliano. Numa primeira aproximação, serão identificadas as disciplinas estruturantes da Ciência da
Lógica, da Filosofia da Natureza e da Filosofia do Espírito, numa função
sistemática imanente às diferentes esferas filosóficas e no processo de
desenvolvimento intraesférico. Ampliando a abrangência do conceito de
interdisciplinaridade a partir da estrutura do sistema filosófico, serão
* Doutor em Filosofia pela PUCRS e professor de Filosofia no IFIBE.
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consideradas as relações interesféricas responsáveis pela produção de
encaixes e entrelaçamentos entre os campos epistemológicos da Lógica,
da Natureza e do Espírito. Na dupla faceta da especificidade e autonomia
de cada uma destas esferas e na intrínseca compenetração de interrelacionalidade sistemática, a interdisciplinaridade tem a implicação da identificação das regiões nas quais há duplicidade ou triplicidade de relações
multilaterais. O raciocínio e a formulação do conceito seguem com os
níveis categoriais e intercategoriais de estruturas sistemáticas que atravessam transversalmente todas as esferas e produzem interligações qualificadoras do sistema. Em outras palavras, trata-se das correspondências
intercíclicas entre conceitos e estruturas conceituais da Ciência da Lógica
e estruturas do real que se encontram nas outras esferas da Filosofia do
Real. Por esta via há múltiplos canais de transversalidade que atravessam
o sistema filosófico em sua totalidade, e, portanto, de interdisciplinaridade.
A expressão máxima de interdisciplinaridade abordada no artigo
será a relação entre a Ideia filosófica universal e as esferas particulares
de Ciência da Lógica, Filosofia da Natureza e Filosofia do Espírito, no
melhor estilo de articulação entre interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. Em palavras mais simples, trata-se das múltiplas combinações
possíveis entre a denominação hegeliana de círculo dos círculos e os círculos particulares. Nesta esfera de interdisciplinaridade sistemática e de
intersubjetividade universal acontecem as mais variadas formas de mediação entre a universalidade da Ideia filosófica e as esferas particulares
e as múltiplas combinações entre elas.
O artigo pergunta acerca da noção hegeliana da concepção de filosofia e a sua posição na sistemática epistemológica de interdisciplinaridade. Na Enciclopédia das Ciências Filosóficas, onde Hegel faz um
esboço da estrutura e do movimento do sistema, uma das principais
funções da filosofia é a interligação entre todos os saberes e áreas do
saber na constituição de um sistema filosófico. Como sistemática de interdisciplinaridade, a filosofia constitui a razão intrínseca dos saberes, a
estrutura geral de interdisciplinaridade e a mediação fundamental entre
as disciplinas.
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Interdisciplinaridade na perspectiva intraesférica
Lida sob o ponto de vista da interdisciplinaridade, a Ciência da Lógica
é estruturada em várias disciplinas filosóficas. Por esta razão, para o
conhecimento em geral, a obra hegeliana pode ser interpretada como
uma fundamentação filosófica para todo o saber a partir das categorias,
estruturas categoriais lógicas e epistemológicas que dão sustentação às
disciplinas. Na estruturação da Ciência da Lógica em Lógica do ser, Lógica da essência e Lógica do conceito, as disciplinas filosóficas não ocupam lugares fixos, como se um livro fosse dedicado a uma disciplina e
outro livro a outra disciplina. Como nas outras partes da filosofia, as
disciplinas se interpenetram reciprocamente de forma que podem ser
atribuídas várias funções para um mesmo texto.
Na Lógica do ser há indicativos claros de uma metafísica. Diferente
da tradição filosófica clássica, o ser não é um começo absoluto e a esfera
filosófica de mais intensa racionalidade contraposta ao caos e ao nada,
mas o ser é sinônimo do começo mais abstrato, mais indeterminado e
mais vazio. A determinação do ser, devido ao caráter absolutamente
vazio e indeterminado, é o nada. Diferente da metafísica clássica, em
Hegel o ser e o nada são conceitos opostos que se integram dialeticamente na síntese de devir. O conceito de devir contém implicitamente a
determinação do ser porque caracteriza um começo de inteligibilidade
efetivado e o nada em função do universo ainda não realizado, mas com
potencialidade real de realização. Sob este viés, a metafísica hegeliana
esboçada no começo da Ciência da Lógica representa a inteligibilidade
do movimento, numa retomada do pensamento de Heráclito para quem
tudo está em movimento permanente de transformação qualitativa.
A ontologia é outra função implícita à Ciência da Lógica. É possível afirmar que o livro da Lógica da essência como um todo contém
a noção hegeliana de ontologia. Hegel retoma neste livro os conceitos
fundamentais da ontologia clássica, atribuindo-lhes outros sentidos em
outras estruturas de racionalidade. A estruturação do livro em essência,
aparência e efetividade é uma demonstração da função eminentemente ontológica, com críticas demolidoras contra a noção tradicional de
ontologia. A inclusão da aparência como estrutura racional expressiva
da essência contradiz radicalmente toda a tradição da ontologia clássica para a qual a aparência significava a negação da racionalidade. A
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fundamentação da ontologia hegeliana não está na afirmação de uma
essência imóvel e imutável na condição de causalidade primeira, mas ao
desqualificar a noção clássica de essência e de Deus, o filósofo estabelece a síntese entre essência e aparência na relação. Não se trata mais da
ligação vertical e unilateral entre a verdade da essência e a falsidade da
aparência, e entre a verdade da substancialidade e a falsidade da acidentalidade, mas da fundamentação de uma teia de relações multilaterais
e horizontais como estrutura da racionalidade. É significativo destacar
que isto é racionalmente viabilizado com a dissolução das coisas sólidas e impenetráveis por configurações de relações dinâmicas e flexíveis.
O que tradicionalmente era conhecido por coisa incomunicável e impenetrável, na ontologia hegeliana se transforma em configuração de
relações e polo de encontro e ultrapassagem de múltiplos sentidos de
racionalidade. Hegel aponta na Lógica da essência as relações de todo e
de parte, de força e exteriorização e de interior e exterior como as referências relacionais fundamentais. Um desdobramento destas estruturas
pode concentrar as relações todo e parte para o mundo dos objetos; a
força e a exteriorização para o universo da natureza; e interior e exterior
para o sistema do espírito. A partir desta concepção da ontologia hegeliana resulta o caráter ontológico e de substancialidade das próprias
relações. Para Hegel,
Se a substância como identidade em si e para si em si mesma é
diferenciada como a totalidade dos acidentes, assim ela é o poder da mediação. Esta é a necessidade, que na negatividade dos
acidentes persiste positivamente e a sua posição no seu subsistir;
este meio é assim a unidade da substancialidade e da acidentalidade mesma, e os seus extremos não tem subsistência autônoma
(HEGEL, 1993, p. 221).
A ontologia hegeliana tem um desdobramento significativo no
próprio livro da Lógica da essência no qual pode ser identificada a disciplina de Teologia racional. É uma disciplina que trata especificamente
do Absoluto através da unificação dialética da substancialidade e da acidentalidade, e da absoluticidade e da relatividade. O sistema hegeliano
de absoluto, pois ele é expresso por uma estrutura categorial adequada, é
desenvolvido por Hegel no capítulo final da Lógica da essência denominado “relação absoluta”. Cirne Lima formula esta lógica de forma clara e
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precisa: “tudo é relativo, exceto o fato de que tudo seja relativo. Absoluto
é somente o fato de que tudo é relativo. Só o Universo como Totalidade
em Movimento, como um todo, não é relativo” (CIRNE LIMA, 2006,
p. 165). A aparente paradoxal expressão relação absoluta, impensável
no modelo aristotélico tradicional, fica plausível na concepção hegeliana porque a categoria absoluto representa o círculo da inteligibilidade e
significatividade global, como se fosse a esfera de transdisciplinaridade
universal e oniabrangente, e o relativo representa a estrutura multidimensional e transversal de relações que atravessam o sistema do absoluto na sua totalidade no formato de uma teia de relações. Este sistema
trata da combinação entre a autorrelacionalidade do absoluto como universalmente relacionado a si mesmo, e a interrelacionalidade das determinações internas em forma de fios multilaterais e nós mediadores dos
fios. Neste sistema há uma estrutura de mediações que interligam o todo
com as partes e as partes com o todo, todas as partes entre si através de
todas, cada parte com as outras através do todo, e cada nó resulta numa
condensação universal de tudo e se desdobra através do todo. No final
do capítulo da Lógica da essência este dinamismo é formulado através
das categorias de relação de substancialidade ((Substantialitätsverhältnis),
relação de causalidade (Kausalitätsverhältnis) e ação recíproca (Wechselwirkung). A combinação entre estas categorias consolida a relação
absoluta numa circularidade, numa intercircularidade, numa transversalidade, numa interdisciplinaridade e numa intersubjetividade globais.
A Ciência da Lógica também é uma lógica. É uma das disciplinas
abrangentes da obra hegeliana, pois caracteriza a estrutura como um
todo. Ela trata dos diferentes níveis de organização do sistema lógico,
nos círculos restritos da categorialidade e da intercategorialidade, até os
círculos mais amplos das regiões categoriais (essência e conceito) e da
interregionalidade. Como função lógica, trata dos raciocínios dialéticos
estruturantes desenvolvidos em toda a obra através das características
específicas da Lógica do ser e sua estrutura categorial, das características específicas da Lógica da essência e seu sistema categorial, e das
características específicas da Lógica do conceito e seu sistema categorial.
Aqui pode ser destacada a equioriginaridade na Ciência da Lógica entre
a pura lógica e a ontologia, ou a identificação dialética entre as leis do
pensamento e as leis do ser. Como pura lógica, ela é compreendida na
perspectiva dos raciocínios lógicos e sistemáticos que atravessam a obra.
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Como ontologia, o sistema lógico se desdobra na estrutura dinâmica da
realidade e se transforma na totalidade ontológica do real na configuração
do sistema filosófico em sua totalidade. Para Hegel:
O silogismo categórico, segundo seu significado cheio de conteúdo no primeiro silogismo da necessidade, onde o sujeito está
vinculado com um predicado por meio de sua substância. Sem
embargo, a substância, elevada à esfera do conceito, é o universal, e está posta como o que existe em si e por si, de modo que
tenha como forma, quer dizer, como maneira de seu ser, não a
acidentalidade, como em sua própria relação particular, senão
a determinação do conceito. Por conseguinte, suas diferenças
são os extremos do silogismo, e propriamente a universalidade
e singularidade (1993, p. 392).
A Ciência da Lógica também contém uma epistemologia filosófica,
na condição de referência conceitual para conhecer a realidade. A Lógica
do conceito, na qual a subjetividade é estruturada nas categorias de universalidade, particularidade e singularidade, e o livro é estruturado em
subjetividade, objetividade e ideia, pode ser lida na perspectiva da disciplina de epistemologia filosófica. O livro da Lógica do conceito consolida a passagem da necessidade na liberdade, da lógica da objetividade na lógica da subjetividade, da interrelacionalidade objetiva na
intersubjetividade. Neste ponto da Lógica aparece com força a noção
hegeliana de contradição que integra epistemologicamente os extremos
opostos numa única estrutura racional. Nesta lógica, a significatividade
da universalidade inteligível baixa na multiplicidade e materialidade da
particularidade como um autodesenvolvimento imanente e reconduz este
movimento racional à universalidade, na condição da totalidade e universalidade concreta e sistemática. Diferente da teia de relações que marca
a Lógica da essência, o conceito marca uma lógica de intersubjetividade
e transsubjetividade, de interdisciplinaridade e de intercircularidade na
medida em que cada uma das suas determinações, a universalidade, a
particularidade e a singularidade constitui, em momentos diferenciados, a totalidade do conceito. Cada categoria contém em si mesma as
outras e concentra a síntese das outras. Em momentos diferenciados,
cada passa pelas outras e assume a configuração das outras numa circularidade epistemológica que se amplia sucessivamente em novos círculos de universalidade, particularidade e singularidade. Este pensamento
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cumpre o seu ciclo por envolver o sujeito do conhecimento, a realidade
em sua particularidade e a síntese entre subjetividade/intersubjetividade
e a objetividade. Puntel escreve:
A Ideia do conhecimento expõe-se no processo de suprassunção
de uma dupla unilateralidade: a subjetividade e a objetividade da
Ideia. Este processo de suprassunção é um explícito e completo
movimento de contraposição, que como estrutura do conceito
foi antes explicitada. Isto significa agora que a suprassunção das
duas unilateralidades separadas: como movimento da objetividade
na subjetividade e como movimento da subjetividade na objetividade. A Ideia no primeiro movimento é a Ideia da verdade ou
a Ideia teorética, a Ideia como o segundo movimento é a Ideia do
bem ou a Ideia prática (1981, p. 215).
Outra disciplina filosófica identificável na Ciência da Lógica é a
teoria do método. Esta função é encontrada no final da obra hegeliana no
capítulo intitulado Ideia absoluta. Este capítulo faz da Ciência da Lógica
uma unidade, um círculo que gira ao redor de si mesmo, um sistema
integrador das disciplinas estruturantes, recuperando na Ideia absoluta
todas as determinações anteriores no melhor estilo de uma interdisciplinaridade filosófica. O autodesenvolvimento metódico imanente à
obra em questão não é de uma horizontalidade segundo a qual o capítulo seguinte simplesmente deixa para trás os anteriores, mas no momento presente são restabelecidas e atualizadas todas as determinações
anteriores, e no capítulo da Ideia absoluta todas as esferas da Ciência
da Lógica são reconduzidas na sua estrutura metódica. Como o último
capítulo completa o processo lógico, abre para as esferas seguintes da
Filosofia da Natureza e da Filosofia do Espírito na condição de estrutura
metódica de todo o sistema filosófico. Em relação ao sistema em sua
totalidade, a Ideia absoluta representa a pulsão imanente da inteligibilidade do método e a estrutura dos movimentos de interligação e de
interesfericidade global que constituem o sistema filosófico em movimento. Enquanto método, a Ideia absoluta significa a autodeterminação
e autoconsciência do conteúdo ordenado num processo metódico de
autodesenvolvimento no qual a interiorização reflexiva é exteriorizada
num novo grau de objetividade e de totalidade concreta na condição de
novas esferas de efetividade.
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A Filosofia da Natureza também aparece como um continente de
disciplinas sistematicamente ordenadas. O segundo círculo do sistema
filosófico é a Filosofia da Natureza em função do conhecimento racional
do autodesenvolvimento imanente da natureza e a sua organização em
categorias filosóficas. Hegel nos oferece o significado de uma Filosofia
da Natureza porque expõe metodicamente a significação filosófica deste
universo da Filosofia do Real. A primeira disciplina que aparece nesta
esfera filosófica é a física. As categorias fundamentais para expressar são
espaço, tempo e movimento. Espaço e tempo são conceitos contrapostos, pois o espaço representa determinada superfície e o tempo a abstração da espacialidade. A contraposição entre as duas categoriais é tal de
forma que, para determinar o espaço, ele é mensurado pela abstração do
tempo para determiná-lo. É necessária uma determinada mensuração
de tempo para percorrer o espaço e, por consequência, determiná-lo.
O tempo também pode ser delimitado em determinadas configurações
de tempo que circunscrevem a multiplicidade de objetos e de situações,
mas esta determinação de tempo é superada por outra esfera de tempo,
tal como uma época que configura múltiplas ações e situações. As frações de tempo são suprassumidas pela absoluticidade do tempo, pois o
tempo presente é a eternidade de todos os tempos. Para Hegel, tempo e
eternidade são conjugadas na permanente atualidade do tempo presente
no qual convergem todos os tempos.
A física hegeliana ainda é constituída pelas categorias de movimento
e objeto. Todo o movimento é relativo, pois um objeto que percorre um
determinado movimento é relativo em relação a algo que não está em
movimento. Neste contexto, movimento e repouso são mutuamente
condicionados, pois o movimento é estabelecido em relação a algo que
está em repouso. O objeto é neutro em relação ao espaço e ao tempo,
pois permanece o mesmo no movimento percorrido num determinado
espaço e numa fração de tempo. Dentro da individualidade e singularidade dos corpos, com peso e massa corporal, está a luz como materialidade universal, como incondicionalidade abstrata e imóvel, como
movimento absoluto não condicionado por outro movimento, na condição de conexão universal de tudo. Para Hegel, “somente a luz existe
por si mesma como esta pura manifestação, como esta universalidade
não-singularizada. A luz é matéria incorpórea, é matéria imaterial; isto
parece ser uma contradição, mas esta aparência não pode depender de
nós” (1995, § 276, Zusatz).
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Outra disciplina importante na Filosofia da Natureza é a física orgânica. Grande parte do terceiro livro do volume dois da Enciclopédia
das Ciências Filosóficas é dedicado à biologia como a expressão máxima
da Natureza. Sem a pretensão de entrar nos detalhes dos argumentos,
pois isto excederia os limites do presente trabalho, a última parte é estruturada na Natureza Geológica, na Natureza Vegetal e na Natureza
Animal. Com a estruturação da Natureza nestes moldes, Hegel revolucionou a física de Newton com o estabelecimento da primazia da
luz sobre a gravidade, e expõe a Biologia como ciência da natureza
mais avançada. Entre a Natureza Geológica, Vegetal e Animal há um
desenvolvimento imanente e lógico, através da universalidade imediata
da vida geológica, da particularidade formal do organismo vegetal e da
subjetividade concreta do organismo animal. Neste processo lógico há uma
exposição pormenorizada do organismo animal, da dialética dos gêneros
e das espécies, a relação entre indivíduo e espécie, a relação e cópula na
qual cada um possui a si mesmo e ao outro, o sistema celular etc.
A Filosofia do Espírito é outro universo de disciplinas filosóficas
e científicas. Estruturada internamente em espírito subjetivo, espírito
objetivo e espírito absoluto, trata do universo humano distribuído no
sistema econômico (sociedade civil), no sistema de eticidade (Estado,
relações internacionais, Direito internacional, História universal) e no
universo teórico (História da Filosofia, Filosofia da Religião). A primeira
parte da Filosofia do Espírito pode ser identificada com a disciplina de
Antropologia Filosófica sistemática estruturada por Hegel nos rigores
racionais de sua lógica. Constituída a partir dos pilares da Fenomenologia do Espírito, da Antropologia e da Psicologia, o homem é categorialmente exposto a partir da visibilidade do corpo e dos sentimentos,
da interioridade do conhecimento teórico e da autodeterminação da
liberdade. Na dimensão do conhecimento teórico, o homem se torna
uma subjetividade racional na medida em que interioriza a objetividade
natural nas condições de seu conhecimento subjetivo, e no movimento
de exteriorização transforma a imediaticidade do mundo natural na racionalidade da objetividade significada no ato do conhecimento. Como
se sabe, da conjugação entre a exterioridade imediata da corporeidade e
da sensibilidade e da interioridade formal da alma racionalmente transformada no ato do conhecimento teórico, resulta na autodeterminação
da liberdade como síntese entre espírito teórico e espírito prático.
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Na filosofia do espírito objetivo, sistematizada de forma mais completa e ampla na conhecida obra Princípios da Filosofia do Direito, Hegel
esboça os pontos angulares da economia capitalista, na seção sobre a
Sociedade Civil. O filósofo esboça as coordenadas principais e as contradições fundamentais da moderna sociedade civil emergente e que, posteriormente, se denominaria de sistema capitalista, cujo texto hegeliano
seria ampliado por Marx em sua obra O Capital. Depois que os filhos
saem da família e alcançam a autonomia, buscam nas corporações a satisfação de suas necessidades materiais onde encontram análoga individualidade com interesses materiais idênticos. Do ponto de vista da força
do trabalho, um trabalhador trabalha por um, todos por um e todos por
todos, resultando num sistema de trabalho onde o trabalhador desenvolve
uma atividade abstrata e especializada. Neste sistema econômico, a superfície da sociedade é coberta por uma gigantesca estrutura material,
sem a contrapartida espiritual da substancialidade ética. Na organização
categorial deste sistema, as corporações econômicas expandem livremente
a sua estrutura produtiva e a sua atividade e encontram o limite da concorrência e da universalidade da organização do sistema econômico
globalizado. As necessárias contradições deste sistema são, num primeiro nível, a abstração do trabalhador e a produção em escala ampla
e, numa segunda expressão, a substituição da mão de obra do trabalhador
pela máquina. Esta lógica produz inexoravelmente uma plebe social
sem acesso ao trabalho e às benesses do desenvolvimento econômico.
Na posteridade hegeliana, esta configuração original desdobra-se numa
complexa e universal lógica econômica.
Disciplina estruturante do espírito objetivo é a ética. Há os que
afirmam que a Ética Filosófica não é apenas uma parte do pensamento
hegeliano, como o é na maioria dos filósofos, mas o sistema filosófico
hegeliano como um todo é um sistema de eticidade. Como se sabe, a
eticidade hegeliana não trata da abstração da consciência moral subjetiva, mas da inteligibilidade da liberdade como princípio organizador das
relações sociais. Trata-se de um sistema de intersubjetividade no qual a
sociabilidade é estruturada por instâncias institucionais de organização
política. O sistema de eticidade hegeliano comporta uma sucessão racional de círculos que começam pela família, pela corporação da qual se
faz parte, pelas instâncias comunitárias, pelo Estado, pelas instâncias de
organização internacional e pela História universal. A substancialidade
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ética é constituída pela dupla dimensão da consciência política de nacionalidade e da estrutura de organização política, pela participação
orgânica dos cidadãos na vida do Estado, pela distribuição racional dos
poderes do Estado e pela formação da opinião pública. Não se trata da
oposição entre a universalidade e totalidade do Estado e a singularidade
dos indivíduos, mas os sujeitos individuais são inseparáveis das relações
intersubjetivas que se ampliam através de múltiplos círculos de mediação resultantes na totalidade racional do Estado. Por outro lado, este se
singulariza na subjetividade e liberdade dos sujeitos individuais. Para
Hegel, a extensão da eticidade é evidenciada não na existência de um
único Estado cosmopolita, nem num Estado todo-poderoso que domina
arbitrariamente os povos, mas o Estado se amplia na relação com outros
Estados cujas relações interestaduais são reguladas pelo Direito internacional. Esta dinâmica de estruturação sistemática da Filosofia do Direito, desde as determinações mais simples e imediatas, até a determinação
mais complexa e universal da História universal constitui o tecido da
eticidade hegeliana.
Na concepção hegeliana de eticidade não pode ser ignorada a Filosofia
da História universal enquanto círculo máximo da objetividade. Ela trata
do progresso na consciência de liberdade, não como uma progressão dos
meios materiais de produção e da tecnologia, mas da universalização da
liberdade humana. A Filosofia da História contém o princípio subjetivo
do sentido da história, a inteligibilidade da liberdade que perpassa a
História mundial por dentro, e o princípio objetivo da sucessão das
épocas, das civilizações e das formas históricas de organização política.
Sabe-se que Hegel divide a História universal no império persa, no império grego, no império romano e no império germânico. O filósofo não
utiliza o critério cronológico para estabelecer esta periodização, mas o
processo de constituição da liberdade universal na perspectiva das épocas e civilizações. O critério de organização da história é a identificação
entre a consciência de liberdade e a liberdade efetivamente alcançada.
No último império todos os homens alcançaram a incondicionalidade
da liberdade, diante da qual não pode mais existir nenhuma forma de
escravidão. Sob este critério, no círculo maior da epocalidade, é inserida a estrutura global do mundo, configurada no sistema das relações
internacionais, nos círculos dos Estados, das esferas continentais e intercontinentais e das questões ético-políticas que atravessam o mundo
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em sua totalidade. Na perspectiva da epocalidade histórica, ainda são
configurados os sistemas de pensamento filosófico e científico, e o saber
em geral é atualizado em consonância com o desdobramento da historicidade. Para Hegel, não há conhecimento dogmaticamente afirmado ou
válido incondicionalmente, mas os sistemas do saber são mediatizados
pela História e mediatizam a História.
Interdisciplinaridade na perspectiva interesférica
Um estudo acerca do conceito de interdisciplinaridade hegeliana
não consiste apenas na identificação de disciplinas ao longo das esferas
filosóficas e na formulação de suas inter-relações, mas no nível mais
amplo das relações entre as esferas através da passagem de uma para
a outra. Para Hegel, mais importante que uma esfera determinada é o
conjunto do sistema em seus movimentos de estruturação e autodesenvolvimento. A leitura isolada de uma parte da filosofia desconectada das
outras prejudica a racionalidade. Nesta parte consideraremos os movimentos de passagem de uma esfera para as outras a partir de textos
referenciais de Hegel, tais como a Introdução à Enciclopédia das Ciências
Filosóficas, a Introdução à Filosofia da Natureza e a Introdução à Filosofia
do Espírito. Diante da restrição de um artigo, as considerações aqui esboçadas serão superficiais e breves. Sobre a passagem da Ciência da Lógica
na Filosofia da Natureza, Hegel escreve:
A filosofia da natureza pertence ela própria a este caminho do
retorno; pois é ela que suprassume a separação da natureza e do
espírito e que proporciona ao espírito o conhecimento da sua
essência na natureza. Esta, pois é a posição da natureza no todo;
sua determinidade consiste em que a ideia se determina a si própria,
isto é, coloca em si a diferença, coloca um outro, mas de modo
que ela em sua indivisibilidade é bem infinita e confere e entrega
ao ser-outro toda sua plenitude. Deus permanece igual a si mesmo
em seu determinar; cada um desses momentos é ele próprio, a ideia
total e tem de ser posto como totalidade divina. O diferente pode-se
aprender sob formas de três espécies; o universal, o particular e o
singular (1995, § 247, Zusatz).
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Hegel rompe com a indiferença schellinguiana entre natureza e
espírito. Para o filósofo, a Filosofia da Natureza é a mediação entre as
estruturas antinômicas da natureza e do espírito, pois através dela a natureza terá uma dimensão de racionalidade e o espírito uma dimensão
de realidade e efetividade. Nestas condições, a natureza não é o outro da
Ciência da Lógica como a negação da racionalidade e da logicidade, mas
a Ideia no seu ser outro, na sua racionalidade. Neste raciocínio, Hegel
rejeita claramente a autossuficiência da Ideia lógica como uma esfera
completa em si mesma e a Filosofia da Natureza como uma estrutura
material superficialmente acrescentada àquela, mas a passagem de uma
esfera para a outra é a condição de autodeterminação da razão. Em outras
palavras, a inteligibilidade racional mais profunda e a estrutura metódica mais ampla somente são possíveis no movimento de passagem na
esfera da Filosofia da Natureza, como uma confirmação da equioriginaridade e inseparabilidade entre as leis do pensamento e do real. A
autodeterminação da razão consiste na determinação da diferença na
dialética da divisibilidade e da indivisibilidade do sistema da Ciência da
Lógica, ou seja, no movimento de exteriorização numa outra esfera, esta
confirma a sua universalidade e significatividade racional ao entregar-se
à natureza. Sem este movimento, a primeira esfera do sistema seria vazia
e não desenvolveria as funções que lhe são específicas como Lógica, pois
o outro não é outra estrutura exterior e estranha, mas resultado da autodiferenciação. A imagem religiosa introduzida por Hegel não consiste na
absoluticidade apriorística de Deus isolado na autotranscendência divina
e a contingencialidade da natureza rebaixada em relação a ele, mas a
sua determinação na natureza é constitutiva da incondicionalidade e
absoluticidade de Deus. Nestas condições, a Filosofia da Natureza não é
apenas uma parte, mas a totalidade da Ideia nas condições da natureza.
A natureza como totalidade divina e como constitutiva do movimento
de totalização divina deve ser lida na perspectiva dos três momentos do
conceito. Neste raciocínio, a universalidade é a inteligibilidade da Ideia
lógica implícita à natureza, a particularidade é a natureza como mediação
entre lógica e espírito, e a singularidade é a Filosofia do Espírito como
síntese entre logicidade e materialidade. Sobre a temática, continuamos
com Hegel:
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Quanto a isto há que dizer a eternidade não é antes nem depois
do tempo, não antes da criação do mundo nem quando ele se
acaba; mas a eternidade é presente absoluto, o agora sem antes
nem depois. O mundo é criado, vem a ser criado [está sendo criado]
agora e eternamente foi criado; isto acontece na forma de conservação do mundo. Criar é a atividade da ideia absoluta; a ideia
da natureza é, qual a ideia como tal, eterna. Β Na pergunta se
porventura o mundo, a natureza em sua finitude tem ou não
um começo no tempo, tem-se diante da representação o mundo
ou a natureza em geral, isto é, o universal; e o verdadeiramente
universal é a ideia da qual já foi dito que ela é eterna. O finito,
porém, é temporal, tem um antes e um depois; e quando se tem o
finito diante de si se está no tempo. O finito tem um começo, mas
nenhum [começo] absoluto. Seu tempo começa com ele e o tempo
é só do finito. A filosofia é compreensão intemporal também do
tempo e de todas as coisas em geral, segundo sua determinação
eterna (1995, § 247, Zusatz).
A relação entre as duas primeiras esferas não é de justaposição
entre eternidade e temporalidade, em conformidade com a concepção
da maioria das religiões, mas a eternidade é temporalidade absoluta. A
eternidade é definida por Hegel como presente absoluto sem passado e
sem futuro, em função de que no tempo presente convergem todos os
tempos. Na configuração atual do mundo e em sua auto-organização
sistemática reaparecem atualizados e reintegrados todos os mundos
existentes no passado e numa configuração sistemática do pensamento
filosófico do presente serão reconduzidas todas as formas de pensamento
desenvolvidas no passado. Hegel formula uma síntese entre a concepção
tradicional de eternidade, como um universo estável e sem movimento,
e a temporalidade, como referência do mundo finito e mutável no movimento e na atividade absoluta. Nesta perspectiva, o filósofo também
corrige o conceito clássico de criação compreendido como um ser eterno
e intemporal que cria, na posteridade do tempo, a natureza e o mundo.
Segundo a formulação hegeliana, o mundo não foi criado pela ação de
um ser absoluto preexistente, mas o mundo é uma eterna atividade de
permanente criação e autoconstituição. Na relação entre a Ideia absoluta
e a Filosofia da Natureza, ou entre ideia eterna e ideia da natureza, desenvolve-se uma atividade eterna e permanente que reside na natureza e
realiza o seu desenvolvimento. Não se trata, portanto, de uma relação
linear entre a eternidade, a criação da natureza e do mundo, como na
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tradição religiosa cristã, mas da coextensividade entre a reflexividade e
interioridade da Ideia como atividade universal e a fundamentação da
Filosofia da Natureza como uma exposição imanente. Hegel também
propõe uma nova forma de relação entre finitude e infinitude. Entre os
extremos da eternidade infinita sem começo e a natureza finita com começo
há uma mediação que restringe a infinitude na condição da natureza
finita e põe a finitude na perspectiva da eternidade e da infinitude. A
natureza não se restringe à compreensão comum como simplesmente
finita, mas é posta no dinamismo universal da autodeterminação infinita da Ideia universal, transformando os seus processos internos em
movimentos que contêm a infinitude e a absoluticidade. Na intencionalidade que vai da universalidade da Ideia para a particularidade da
natureza desencadeia-se a finitização da Ciência da Lógica figurada nas
condições da natureza finita. Por outro lado, na compreensão filosófica, a
natureza recebe uma configuração intemporal e é reconduzida à eternidade
e universalidade da Ideia. Na tensão entre os movimentos de finitização
do infinito e de eternização da temporalidade e da finitude está a autodeterminação universal do mundo em eterno movimento de criação e
ampliação sistemática configurada na perspectiva da interiorização reflexiva da inteligibilidade da ideia e da expansão sistemática das estruturas efetivas do mundo. Sobre a passagem da Filosofia da Natureza na
Filosofia do Espírito, Bourgeois escreve:
O absoluto ou a ideia – identidade de identidade e da diferença –
se diferencia primeiro no elemento da identidade: tal é a Ideia
Lógica, objeto da primeira parte da Enciclopédia. Depois, no
elemento da diferença: é a Ideia em seu ser-Outro, a diferença
ou a Natureza, objeto da segunda parte. Enfim, no elemento da
identidade da identidade e da diferença – portanto um elemento
adequado ao que nele se manifesta, e por isso terminal: é a Ideia
como Espírito, objeto da terceira parte da Enciclopédia. O Espírito é a unidade concreta da Lógica (do sentido) e da Natureza (do
sensível); o retorno a si mesmo no sentido a partir do (e para o)
interior do sensível – a sensibilização do sentido como sentido
(1995, p. 418-419).
O movimento sistemático de passagem da Filosofia da Natureza na
Filosofia do Espírito consiste num processo de universalização concreto,
pois na sequência horizontal de disposição das esferas, a última é mais
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ampla e mais universal que as anteriores. Na sistemática de composição
do todo, o Espírito aparece como síntese entre a Lógica e a Natureza,
pois recolhe para dentro de si mesma a sistemática racional da Ciência
da Lógica e a estrutura material da natureza traduzida na segunda natureza da sociedade e da História. Não se trata mais da subjetividade lógica
contraposta à objetividade da natureza, mas na Filosofia do Espírito a
subjetividade da lógica e a objetividade do real compenetram-se no processo de autodesenvolvimento do espírito como autodeterminação do
real. Neste universo não há mais uma ação extrínseca que determina o
movimento de um objeto supostamente passivo e inerte, mas a autoatividade do Espírito caracteriza a conjugação intrínseca de subjetividade
e de objetividade, de determinação do real e de autodeterminação da
razão. O terreno da Filosofia do Espírito é o universo da História universal
em relação à qual não há uma racionalidade divina que determina inexoravelmente o seu curso, mas neste círculo há um desenvolvimento no
qual a totalidade da estrutura objetiva das civilizações e dos sistemas
éticos produz a subjetividade e significatividade da racionalidade filosófica
cuja organização sistemática é logicamente regrada. Neste universo, a
Ideia absoluta proveniente do último capítulo da Ciência da Lógica não é
um fundamento apriorístico absoluto, mas ela se constitui na permanente
mediação com a efetividade da História universal. Para Hegel,
O momento da atividade abstrata deve considerar-se como o nexo,
como o medius terminus entre a Ideia universal, que repousa no
poço íntimo do espírito, e o exterior, como o que tira a Ideia da
sua interioridade e a põe na exterioridade. A universalidade, ao
exteriorizar-se, logo se individualiza. O interno por si seria algo de
morto, de abstrato; mediante a atividade, torna-se algo existente.
Inversamente, a atividade eleva a objetividade vazia à manifestação
da essência que existe em si e para si (1995, p. 93).
Para Hegel, a constituição do Espírito a partir dos universos temáticos da Lógica e da Natureza como resultado do autodesenvolvimento
metódico e sistemático, e ao mesmo tempo em que a terceira esfera constitui um universo mais qualificado na condição de uma fundamentação
na qual o círculo mais amplo e mais elevado dá consistência aos anteriores.
A Ideia universal permanece vazia e abstrata quando restrita à pura
condição da interioridade, mas ela se torna concreta e efetiva quando
exteriorizada. Na confluência entre a Ideia universal e a efetividade da
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História universal produz-se uma mediação circular na qual a reflexividade da Ideia se exterioriza na objetividade da estrutura da História que
se configura tão racional quanto àquela. Esta correlação produz um sistema de sucessão de ondas circularmente concêntricas na qual a Ideia se
exterioriza na objetividade histórica e a ultrapassa na produção de um
novo sistema de racionalidade filosófica. A estrutura da História, por
sua vez, penetra na interioridade na condição de consciência histórica e
na inteligibilidade da racionalidade filosófica como ponto mais elevado
da cultura. Esta racionalidade filosófica torna-se a interioridade da nova
objetividade histórica, ultrapassa a sua determinação efetiva e se eleva
para um novo sistema filosófico. Por sua vez, o sistema de efetividade
histórica constituída por formas de organização social complexas e por
relações internacionais entre os Estados, expressa nesta inteligibilidade
filosófica a sua racionalidade. Para Hegel, “a ideia é o percurso em que o
conceito, enquanto é a universalidade que é singularidade, se determina
em objetividade e em oposição à objetividade; e essa exterioridade,
que tem o conceito por sua substância, se reconduz, por sua dialética
imanente, à subjetividade” (HEGEL, 1995, § 215). As duas dimensões
da Ideia, mediatizada pela atividade universal permanente que amplia os círculos da objetividade e da subjetividade, a interioridade é
a subjetividade da objetividade, e a exterioridade é a objetividade da
subjetividade. Para Kroner:
A Lógica é toda a filosofia como momento de si mesma; e toda
a filosofia é estendida ao sistema, Lógica completada. Só quem
visualiza a relação dialética de Lógica e Sistema, entende, em que
sentido o Sistema é governado pela Lógica. É por ela governado
porque também a Lógica é governada pelo Sistema. A filosofia
é Lógica porque é pensar; mas não é apenas lógica, senão cheia
de conteúdo, pensamento ontológico, e isto já como Lógica. A
relação dialética de Lógica e Sistema, e também aquela de Logos
e Espírito é mesma uma relação lógica, como toda a relação, que
sempre pode ser pensada; isto é logo não apenas uma relação lógica, pois o Espírito ultrapassa o Logos quando se pensa e se põe
em relação com ele, se concebe como Logos e se contrapõe ao Logos,
ele ultrapassa a Lógica (1961, b. 2, p. 509).
Para a discussão do conceito de interdisciplinaridade na perspectiva do sistema filosófico hegeliano, as relações entre as esferas é um
componente fundamental. Trata-se de diferentes regiões epistemológicas
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que estabelecem entrelaçamentos estruturantes entre si a partir das quais
resulta a estrutura do sistema hegeliano. A sistemática que expõe a Ciência
da Lógica, a Filosofia da Natureza e a Filosofia do Espírito totaliza dialeticamente uma sucessão de círculos que se diferenciam e se integram,
com a primeira que fornece a estrutura e o movimento lógico e as outras
proporcionam o conteúdo real. A primeira proporciona para a segunda
a estrutura lógica, e a segunda interioriza a inteligibilidade lógica nas
condições e nos limites da natureza, resultando numa organização em
diferentes estágios de desenvolvimento. A esfera da Filosofia da Natureza
é mais ampla que o da Ciência da Lógica, pois aquela interioriza esta e
acrescenta o universo do sistema da natureza. Por outro lado, a Ciência da
Lógica ultrapassa a esfera da Filosofia da Natureza porque a sua força de
autodiferenciação em outras esferas ultrapassa as condições da própria
natureza, pois é portadora de dimensões de inteligibilidade racional que
a imediaticidade da natureza não pode assimilar. O conceito de interdisciplinaridade é ampliado com a dupla noção da Filosofia do Espírito
que recebe toda a carga lógica e ontológica de exposição das esferas anteriores, ampliando este movimento com a noção da autonomia da autodeterminação do Espírito. A última esfera como síntese entre as duas
anteriores, proporciona uma nova configuração racional à Ciência da
Lógica e novo estatuto ontológico à Filosofia da Natureza. Nesta última, a
Ciência da Lógica se transforma na estrutura ontológica da racionalidade
do real, deixando de ser uma pura lógica; e a Filosofia da Natureza é
suprassumida na efetividade da sociedade e da história.
Interdisciplinaridade na perspectiva sistemática universal
O terceiro momento a ser considerado é a interdisciplinaridade na
perspectiva sistemática universal. Trata-se da relação da Ideia filosófica
com as esferas particulares e o caráter de transversalidade de algumas
disciplinas filosóficas que perpassam o sistema. Neste âmbito, abordamos
a partir de Hegel uma questão epistemológica e acadêmica atual da relação
entre interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. Nesta linguagem, se
Hegel fosse traduzido para a atualidade, as esferas do sistema seriam as
áreas do saber e a Ideia filosófica seria a filosofia como a interrelação de
todos os saberes. A diferença significativa é que Hegel expõe as ciências
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do real na perspectiva da compreensão filosófica, num método dedutivo
de reconstrução lógica das ciências particulares. Para Hegel,
Cada uma das partes da filosofia é um Todo filosófico, um círculo
que se fecha sobre si mesmo; mas a ideia filosófica está ali em
uma particular determinidade ou elemento. O círculo singular,
por ser em si totalidade, rompe também a barreira de seu elemento e funda uma esfera ulterior. Por conseguinte, o todo se
apresenta como um círculo de círculos, cada um dos quais é um
momento necessário, de modo que o sistema de seus elementos
próprios constitui a ideia completa, que igualmente aparece em
cada elemento singular (1995, § 15).
Para uma abordagem hegeliana do conceito de interdisciplinaridade,
este texto é denso, sistemático, profundo e amplo. O parágrafo que integra
a introdução ao primeiro volume da Enciclopédia das Ciências Filosóficas
não se restringe ao primeiro volume desta obra, mas é uma introdução
condensada acerca da estrutura, do método e da articulação do sistema
como um todo. O texto destaca vários elementos estruturantes, tais como
cada uma das partes é um todo, a determinação da Ideia filosófica em
cada um deles, a mútua abertura das esferas entre si, a relação da Ideia
com o sistema filosófico e a interrelação complexa das esferas entre si.
Numa primeira aproximação, cada uma das partes é um Todo filosófico,
pois a circularidade de cada uma das esferas abrange um significativo
universo do real e da filosofia. Cada uma das partes é um Todo porque
é uma determinação da totalidade do sistema filosófico nas condições
próprias da Lógica, da Natureza e do Espírito e a interrelacionalidade
sistemática estende cada círculo particular aos outros e através deles. A
circularidade sistemática da interrelacionalidade do todo e da interdisciplinaridade epistemológica não se dão apenas nas intersecções entre
círculos diferenciados dos quais resulta a estrutura do todo, mas cada
círculo contém o Todo do sistema. Cada um dos círculos, na combinação
lógica de todo e de parte, representa a totalização do sistema porque os
outros círculos são traduzidos nas condições de universalidade e totalidade de cada um. Por outro lado, partindo da especificidade de cada
esfera, ela abre a sua circularidade “fechada” e se ramifica pelas outras.
Neste raciocínio, a Ciência da Lógica é uma parte do sistema pela abstração e formalidade lógica que a caracteriza, e é a totalidade do sistema
porque a sua estrutura de inteligibilidade se estende por todo o sistema na
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sistemática de autodesenvolvimento do conteúdo. A Filosofia da Natureza
é parte do sistema porque se restringe ao universo mecânico, físico e biológico, e é todo o sistema porque é uma forma de determinação da lógica
e contém os pressupostos do Espírito. A Filosofia do Espírito segue a mesma
dinâmica como parte do sistema em função da contingencialidade histórica, e é todo o sistema porque aparece como o círculo mais amplo da
síntese entre os dois círculos anteriores.
O parágrafo aponta a estrutura metódica de fundamentação da
Enciclopédia das Ciências Filosóficas. O primeiro componente sistemático é o movimento de ascensionalidade progressivo segundo o qual há
uma sucessão de esferas cada vez mais amplas em universalidade em
concreticidade. Assim, a Ciência da Lógica se desdobra na Filosofia da
Natureza que a compenetra e a integra parcialmente, e esta se desdobra
na Filosofia do Espírito. Neste processo de fundamentação há uma sequência horizontal de estruturas epistemológicas logicamente encadeadas e que formam um sentido vertical de diferentes níveis de concreção
de uma mesma racionalidade. Porém, o texto aponta para uma fundamentação retroativa na medida em que a Filosofia do Espírito, última
esfera do sistema filosófico, integra as esferas anteriores e transforma a
horizontalidade e a verticalidade num sistema de circularidade multidimensional. A combinação entre a progressividade e a regressividade
produz a configuração sistemática do círculo dos círculos que mediatiza e interliga os círculos particulares em múltiplas combinações. Nesta
perspectiva, cada parte realiza o seu movimento imanente conjugado
com a circularidade dos outros círculos, todos passam sistematicamente
pelos outros e são perpassados pelos outros, todos são eles mesmos e a
totalidade dos outros e a partir desta efetividade circulam pelos outros.
Bourgeois escreve:
Desse modo, as três partes da Enciclopédia expõem o círculo da
Ideia em cada um dos elementos que universalizam os momentos
fundamentais da manifestação ou diferenciação de si que é a ideia.
Cada uma dessas exposições particulares – enquanto exposição
do universal concreto, do Todo, do Sistema, do círculo que é a
Ideia – é por sua vez um todo, um sistema ou um círculo. Mas
cada uma dessas particularizações da Ideia enquanto universal
é a ideia se particularizando, se negando, e pelo fato – já que o
universal é a potência que dispõe do particular – negando essa
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negação de si, afirmando-se assim concretamente. Assim, as três
partes totais da Enciclopédia são momentos particulares organicamente encadeados pela necessidade da vida imanente da Ideia
(que é só livre, absoluta e verdadeiramente total) (BOURGEOIS
apud HEGEL, 1995a, p. 419).
Outra dimensão sistemática do parágrafo acima introduzido é a
relação da Ideia filosófica na condição de círculo dos círculos com as
esferas particulares também determinadas como totalidades. O sistema
de interrelacionalidade cíclica entre as esferas produz o círculo dos círculos da Ideia filosófica universal, pois a Ciência da Lógica, a Filosofia da
Natureza e a Filosofia do Espírito estão interligadas através da tridimensionalidade estrutural interna de ser, essência e conceito na primeira esfera; mecânica, física e orgânica na segunda esfera; e espírito subjetivo,
objetivo e absoluto na terceira esfera. A densidade do círculo universal
é ampliada porque cada uma das três colunas angulares é multiplicada
várias vezes quando a intersistematicidade, interrelacionalidade, interdisciplinaridade e intersubjetividade universais formam o círculo dos
círculos. Em outras palavras, a circulação de cada esfera em si mesma,
as combinações multilaterais de cada uma com as outras e a autocircularidade multidimensional de cada uma através das outras produz o que
Hegel denomina de círculo dos círculos. Isto representa uma ampla e
dinâmica interconexão entre as totalidades parciais que são as diferentes
esferas que precisam ser lidas na perspectiva das mútuas relações. Por
outro lado, o círculo de absoluta universalidade e inteligibilidade reaparece na determinidade de cada esfera particular e nas condições dos
elementos singulares. A consequência epistemológica deste retorno sistemático é a tradução de um conteúdo particular abordado numa ciência
particular em disciplinas e em círculos filosóficos. É por esta razão que
a Lógica, a Natureza e o Espírito se traduzem em Filosofia e Ciência
da Lógica, em Filosofia da Natureza e em Filosofia do Espírito. Nesta
organização do sistema filosófico, a combinação entre a macrossistematicidade universal e a multidimensionalidade dos círculos e movimentos
resultam vários elementos de articulação lógica e epistemológica nas
categorias de universalidade, particularidade e singularidade. Da relação
entre a inteligibilidade universal do círculo dos círculos e a consubstancialidade sistemática das esferas resulta num sistema acadêmico que
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pode ser expresso pelas categorias de disciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. E na condição de um sistema decididamente ético na perspectiva da Filosofia do Espírito esta organização pode
ser expressa pelas categorias éticas de subjetividade, intersubjetividade
e transsubjetividade. E como estrutura organizacional do sistema, o método pode ser designado com as representações geométricas de horizontalidade, verticalidade, circularidade e transversalidade.
Estes raciocínios podem ser traduzidos na linguagem atual da racionalidade curricular, sobretudo na combinação dos conceitos de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. O primeiro deles é um conceito
multilateral e polissêmico, pois abrange a organização curricular de um
determinado curso de Ensino Superior no qual as disciplinas são entrelaçadas por conceitos e estruturas conceituais comuns. A interdisciplinaridade abrange uma compreensão muito mais extensa ao envolver
a organização do saber na condição de sistema de ciência em geral na
perspectiva epistemológica e sistemática interáreas. Na atualidade, as
áreas do saber como as Ciências Humanas, as Ciências Sociais, as Ciências
Exatas e as Ciências da Natureza constituem as grandes áreas do saber
cuja totalidade sistemática possui disciplinas, teorias e conceitos que as
atravessam transversalmente. Supõe-se que uma filosofia sistemática
formulada na atualidade tenha como característica fundamental a capacidade de mediação e de interligação de todos os saberes como um
sistema filosófico de interdisciplinaridade. No caso hegeliano, conforme
exposto acima, a interdisciplinaridade filosófica se dá no sistema de relações multilaterais entre as esferas da Ciência da Lógica, da Filosofia
da Natureza e da Filosofia do Espírito como uma totalidade dinâmica.
Este conceito é inseparável da transdisciplinaridade representado pela
ideia de círculo dos círculos que circunscreve universalmente o sistema
filosófico, transmigra epistemologicamente para dentro das esferas e
dos círculos menores e reforça os encaixes sistemáticos globais. É pelo
círculo dos círculos que passam os movimentos de universalização cujo
nexo sistemático das partes produz a universalidade da Ideia filosófica.
No caso da lógica curricular, bem próximo da noção hegeliana, a transdisciplinaridade caracteriza um conjunto de conceitos universais que
circunscrevem os sistemas curriculares, interligam estes saberes e os
perpassam epistemologicamente.
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Interdisciplinaridade e história
Não é possível compreender a filosofia hegeliana sem o viés histórico. Até então, é o filósofo que deu ênfase explícita à história como
componente implícito à filosofia exposta numa perspectiva claramente
histórica. Em Hegel não há uma pura filosofia antinomicamente contraposta história, mas a filosofia deve ser exposta a partir da história. Na
intrínseca compenetração entre filosofia e história, a filosofia é construída a partir da leitura crítica, sistemática, conceitual e abrangente da
história. A racionalidade, portanto, mergulha para dentro da história,
emerge dela para ser traduzida no discurso filosófico. A dimensão estruturalmente histórica da filosofia também é explicitada no desdobramento
integrado que compreende filósofos, obras filosóficas, categorias e concepções filosóficas, sistemas de filosofia e modelos filosóficos. Esta questão
fica tão clara que conceitos filosóficos básicos passam por vários filósofos
e contextos para serem consolidados como conceitos. Por esta via, para
uma abordagem interdisciplinar do sistema hegeliano, é necessário passar
pela dimensão histórica de seu pensamento. Neste intuito, tecemos algumas considerações acerca da noção hegeliana de interdisciplinaridade que
envolve intrinsecamente a filosofia e a história. Para Hegel,
O terceiro gênero da história, a História Universal filosófica,
conecta-se de tal modo com este último tipo de historiografia
reflexiva que também o seu ponto de vista é um ponto de vista
universal, mas não algo particular, que abstratamente se extrai
ao prescindir-se dos outros pontos de vista. O ponto de vista
universal da História filosófica do mundo não é abstratamente
geral, mas concreta e absolutamente atual; com efeito, é o Espírito, que eternamente está junto de si e para o qual não há passado
algum. Tal é o condutor das almas, Mercúrio, a Ideia é, na verdade, o guia dos povos e do mundo; e o espírito, a sua vontade
racional e necessária, é que dirigiu e dirige os acontecimentos
do mundo. Chegar a conhecê-lo, nesta condição, é aqui o nosso
objetivo (1995, p. 22).
Na proposta de leitura do pensamento hegeliano como um sistema
de interdisciplinaridade pelo viés da consubstancialidade entre filosofia e história, depois da formulação de uma História primitiva e de
uma História reflexiva, culmina com a concepção hegeliana de História
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Universal filosófica. Ela não é abstratamente geral, pois não caracteriza
uma sequência linear e atomística de filósofos e de diferentes formas de
pensamento concebidas por elas mesmas, e não é reconstrução de uma
multiplicidade de ideias filosóficas construídas ao longo do tempo. A
absoluta atualidade e concretude da História Universal filosófica se dão
pela sistematização atualizada e integrada de todas as formas de pensamento filosófico construídas ao longo da história e que carregam a História do mundo. Nesta acepção, a história do mundo é traduzida no modelo sistemático e na inteligibilidade atual do pensamento filosófico que
reúne numa única formulação a unidade e a multiplicidade de posições
filosóficas, a atualidade e o movimento permanente de sistematização
filosófica. A filosofia, na perspectiva qualificada de História Filosófica, é
concreta porque carrega em sua significatividade racional e em sua organização metódica a concreticidade do mundo que se torna efetivo na
decisiva consubstancialidade entre História e Filosofia. Em outras palavras, a História universal seria abstrata sem a sua necessária mediação
com o pensamento filosófico que é concreto na condição da autorreflexividade sistemática da história. Em razão disto, o Espírito está eternamente presente a si mesmo na permanente atualização de tudo em cuja
dialética o passado é transformado na perspectiva do eterno presente. A
História Universal filosófica é a expressão racional do autoconhecimento sistemático do Espírito absoluto, do sistema do Cosmos e da História
universal enquanto universalização filosófica do pensamento humano
e do conhecimento humano do Absoluto. Isto significa dizer que o desenvolvimento do Absoluto, da Natureza e da História aparece na plena
atualidade na História Filosófica. Continuamos com Hegel:
Na Filosofia da Religião, consideramos a Ideia não apenas como
ela é determinada no pensamento puro, também não como aparece no seu saber finito, mas como Absoluto, como a Ideia lógica;
mas também como a Ideia aparece, se manifesta, mas também
como aparecer infinito do Espírito. O Espírito é automanifestação,
mas na sua manifestação infinita; o espírito que não aparece,
não é; ele se reflete em si mesmo. Esta é a posição da Filosofia
da Religião em relação às outras partes da Filosofia. Deus é o resultado das outras partes; aqui o fim foi feito começo. Que Deus
aparece como resultado, fazemos como o nosso objeto especial
– como Ideia concreta em seu aparecer infinito idêntica com a
substância, com a essência; este é o conteúdo, a determinação
deste conteúdo (1993, p. 37).
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A Filosofia da Religião, juntamente com a Ciência da Lógica e a
Enciclopédia das Ciências Filosóficas, é uma das obras mais densas e
sistemáticas da filosofia hegeliana. Ela plenifica a última e dá a ela a
efetivação do processo constante de autodesenvolvimento sistemático.
Em outras palavras, é particularmente na Filosofia da Religião onde se
percebe a abertura e a mobilidade permanentes do sistema filosófico. A
Ideia lógica, quando ela permanece restrita à pura logicidade, ela é vazia
e abstrata, necessitando manifestar-se sistematicamente. Isto confirma
a consubstancialidade entre Ideia lógica e sistema filosófico. Do ponto
de vista da construção sistemática da filosofia, a Filosofia da Religião é
resultado do sistema enciclopédico, invertendo a concepção clássica de
fundamentação para a qual Deus é o começo imóvel. Na visão hegeliana, a manifestação não caracteriza o aparecimento posterior a uma
substancialidade espiritual predeterminada, tal como o motor imóvel
aristotélico ou o Deus cristão, não caracteriza uma simples mediação
necessária do Absoluto para o seu retorno à eternidade, mas uma automanifestação eterna e infinita. Assim, Deus como resultado da filosofia
significa a síntese que envolve desenvolvimento histórico, uma sequência
lógica e epistemológica de sistemas filosóficos, e aparece como resultado
da equioriginaridade entre o sistema da Lógica e o sistema de determinações efetivas da Filosofia do real. Por esta via, a Filosofia da Religião
corrige possíveis assimetrias entre a universalidade da Ideia lógica e a
contingencialidade das determinações do real por uma síntese que caracteriza autoatividade universal absoluta em permanente processo de
automanifestação. A razão universal da História enquanto Ideia lógica
se automanifesta em contextos históricos e sistemas de eticidade, em
sistemas filosóficos e em sistemas cosmológicos. Nesta nova configuração
de sistema filosófico é esboçada uma autoatividade universal absoluta
na qual coincidem a inteligibilidade intrínseca da Ideia universal e a
sistemática circular do real composta pela esfera universal e pela sistemática interna de círculos particulares que esboçam movimentos de
intersubjetividade e interdisciplinaridade universais. Neste universo
absoluto e infinito coincidem o começo e o fim, o centro e a periferia, a
estabilidade e o movimento, a racionalidade e a realidade, absoluticidade
e relatividade, sistema e interdisciplinaridade etc. Na mesma direção
seguimos com Hegel:
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015
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A história da filosofia mostra nas filosofias diversamente emergentes que, de um lado, somente aparece uma filosofia em diversos
graus de desenvolvimento, e de outro lado que os princípios particulares – cada um dos quais está na base de um sistema – são
apenas ramos de um só e mesmo todo. A filosofia última no tempo
é o resultado de todas as filosofias precedentes, e deve por isto
conter os princípios de todas. Por este motivo, se ela é filosofia de
outra maneira, é a mais desenvolvida, a mais rica e a mais concreta
(1995, § 13).
Na introdução à Enciclopédia das Ciências Filosóficas Hegel inclui
um parágrafo fundamental sobre a História da Filosofia, numa indicação
muito clara que o sistema filosófico exposto nesta obra e a noção hegeliana de História da Filosofia são muito próximos. Hegel sustenta que as
várias concepções filosóficas surgidas ao longo do tempo, tais como o
realismo, o racionalismo, o empirismo são momentos do desenvolvimento de uma única filosofia em vários ramos filosóficos. No desenvolvimento histórico da filosofia, pois não há para o filósofo filosofia pura
abstraída do real, mas as concepções opostas e contraditórias recebem
sínteses mais abrangentes a partir das quais a filosofia evolui em densidade filosófica, em sistematicidade, em complexidade e em capacidade
de diálogo. Nesta formulação, a História da Filosofia é perpassada
verticalmente por uma única racionalidade ao redor da qual giram as
múltiplas filosofias. Nenhum filósofo é uma ilha na condição de um
pensamento absolutamente único e original, mas todos os filósofos são
interdependentes e se influenciam reciprocamente. O sistema hegeliano
esboçado na Enciclopédia das Ciências Filosóficas está perpassado por
uma universal historicidade, pois aparece como resultado do fluxo de
desenvolvimento filosófico que se desencadeou ao longo da História.
O caminho ascensional de exposição do sistema filosófico que começa
pela Ciência da Lógica, avança para a Filosofia da Natureza e desta para
a Filosofia do Espírito pode ser interpretado como homólogo à ascensionalidade grega, e o retorno da Filosofia do Espírito para a Ciência
da Lógica e ao Espírito absoluto corresponde à descensionalidade cristã
e à subjetividade moderna. Estes movimentos sistemáticos da História
da Filosofia são suprassumidos por Hegel em seu sistema filosófico na
pulsão do método como movimento articulador do sistema. Em relação
ao Idealismo Alemão, Hegel unifica os dualismos kantianos de númeno
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e fenômeno, e incorpora em seu sistema a síntese entre a estrutura vertical do sistema de Fichte entre sentença primeira e incondicionada e
as sentenças secundárias e a indiferença schellinguiana entre subjetividade e objetividade. A fundamentação vertical fichtana se transforma
em Hegel na fundamentação horizontal enquanto processo metódico
de complexificação que suprassume no círculo atual os componentes
anteriores. Igualmente, Hegel transforma a indiferença schellinguiana
da Filosofia da Natureza no sistema diferenciado de círculos organizado
na perspectiva dialética da unidade racional e da multiplicidade de círculos epistemológicos. Com estas considerações, a História universal é o
cenário no qual se desenha o perfil da interdisciplinaridade e do sistema
de ciências. Para Angehrn:
Liberdade foi dada como centro e ponto angular do Sistema. A
filosofia como um todo se expressou como conceito de liberdade
como a determinação essencial de uma teoria de liberdade. Partindo de dois pontos de vista a serem especificados, o que significa
para o Sistema, que a sua forma e o seu conteúdo são constituídos
no conceito de liberdade. O Sistema é teoria de liberdade, no qual
é por um lado Filosofia da Historia, por outro, teoria do Espírito
Absoluto e, por último, teoria da filosofia, ou filosofia que a si
mesma se concebe. É demonstrada a unificação real entre o fim
do Sistema e a conclusão da História da Filosofia. Num sentido
análogo o desdobramento histórico representa para o conjunto
da esfera do Espírito Absoluto momento essencial, no resultado
conjunto das instâncias fundamentais a partir de cada uma. A
fundamental dimensão histórica do vir-a-ser da consciência do
Espírito em si mesmo que na correspondência de História do
mundo, História da ciência e filosofia sistemática expressa, há
uma congruência entre o conteúdo da História e o conteúdo da
Filosofia mesma (1977, p. 420-421).
Não é intenção do artigo o exercício de uma interpretação exaustiva
do texto citado, muito menos o de interpretar a obra do grande comentarista de Hegel. Uma leitura mais ampla e aprofundada do sistema hegeliano permite identificar uma configuração de interdisciplinaridade
na qual várias disciplinas “abrangem” o sistema por completo. Conforme
texto citado, o sistema filosófico é uma Filosofia da História porque a
filosofia traduz a história na sistematicidade do pensamento filosófico e
porque o modelo hegeliano é resultado da autossistematização dialética
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da História da Filosofia neste formato. O sistema hegeliano também
é uma teoria do Espírito Absoluto na condição de uma ontologia que
trata do Absoluto como um sistema universal de determinações em
movimento permanente de relações transversais. A noção hegeliana de
Espírito Absoluto consiste na combinação entre o círculo da Ideia filosófica universal que se particulariza em todos os círculos e na sistemática
circular de inter-relações entre a Lógica, a Natureza e o Espírito. Nesta
exposição, a Filosofia da História não é mais apenas uma manifestação
do Absoluto na condição de sua exteriorização no tempo, mas a teoria
do Espírito Absoluto é uma absoluta história que marca a construção
do sistema de eticidade e de intemporalização do pensamento filosófico
pensado a partir da história. Nesta perspectiva de interdisciplinaridade,
o sistema hegeliano também é uma teoria da filosofia na condição de
uma filosofia que se pensa a si mesma, uma filosofia da filosofia cujo resultado é a História da Filosofia. A filosofia não é uma abstração em relação
ao mundo, mas Hegel transforma o puro pensamento filosófico num
processo histórico de desenvolvimento lógico e sistemático da filosofia.
Hegel constrói, ao mesmo tempo, uma historia do mundo, uma história
das ciências e uma filosofia sistemática, tal como aqui ela é concebida.
Ramiro Flóres escreve:
A História da Filosofia é uma evolução ou desenvolvimento através
de muitos desenvolvimentos e evoluções. E cada desenvolvimento especial é um grau ou nível do Todo. O espírito é pulsão,
manancial de generatividade e inovação. E grau a grau vai produzindo, expressando-se, conhecendo-se, conscientizando-se,
plenificando-se. Em suma, a série de desenvolvimentos históricos
são os graus de seu próprio desenvolvimento ou evolução. O espírito caminha assim em direção ao ato identificador de si mesmo
instaurando-se em cada passo histórico em novas moradas temporais e geográficas. Descobrir e descrever estas moradas faria
do historiador da Filosofia para conhecer a autêntica e interna
periodização da História da reflexão filosófica (1983, p. 405-406).
Na síntese das considerações aqui realizadas, a noção de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade a partir da filosofia hegeliana e da
história, há um fluxo de racionalidade que avança no tempo e atravessa
a História da Filosofia e a História universal sobre a qual se escrevem
as concepções filosóficas e as ciências. Hegel não entende a História da
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Filosofia como uma sequência linear de filósofos e sistemas filosóficos
estáticos, mas como um dinamismo que desconstrói formas obsoletas e
cria novas formas de pensamento filosófico. Nesta torrente da racionalidade filosófica que aprofunda e amplia o seu caudal, vai estabelecendo
ao longo do percurso concepções, modelos e sistemas diversificados de
filosofia, tais como o de Platão, Plotino, Agostinho, Descartes, Espinosa,
Fichte, Hegel etc. As determinações filosóficas não necessariamente se
identificam com tais filósofos individuais, mas podem ser escolas filosóficas constituídas a partir de uma concepção de base que se transformam em modelos de racionalidade. Para Hegel, o fluxo sistemático da
racionalidade filosófica como fio condutor e eixo articulador caracteriza
um método dialético cujo movimento universal ultrapassa as estruturas
que aparecem ao longo do seu percurso e através das quais aprofunda a
sua própria reflexividade e inteligibilidade. No sistema filosófico hegeliano,
em relação à História da Filosofia, este fluxo de racionalidade assume
uma configuração universal que combina a linearidade do processo histórico-sistemático, contorna o sistema, se transforma na imagem denominada por Hegel de círculo dos círculos e estabelece internamente as
múltiplas conexões internas num sistema de mediações entre as diferentes
esferas. Como conjugação entre História da Filosofia, teoria do Espírito
Absoluto e teoria da filosofia, o sistema filosófico hegeliano recupera o
fluxo de racionalidade e as estruturas filosóficas num único sistema em
movimento que se amplia a partir das mediações entre as disciplinas
filosóficas. O ponto mais amplo da combinação entre interdisciplinaridade e transdisciplinaridade integra a universalidade da história e da lógica e o caráter multifacetário das disciplinas e das esferas sistemáticas
de integração dos universos temáticos, resultando no sistema filosófico
em evolução dialética.
Considerações finais
O artigo tentou considerar o sistema filosófico hegeliano na perspectiva das atuais implicações acadêmicas de interdisciplinaridade. O
ensaio consistiu em abordar esta questão em vários níveis, desde a organização da questão no interior das diferentes partes da filosofia, no nível
das relações entre as esferas, na sistemática universal e na perspectiva
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histórica do sistema. Os vários graus de organização do sistema filosófico
hegeliano, desde, por exemplo, da Lógica da essência a partir da qual
podem se pensadas disciplinas, partindo paras as correspondências
entre a Lógica e o Real e os campos de intersecção entre os diferentes
campos epistemológicos, avançando o processo de sistematização nas
transversalizações que atravessam o sistema constituem os caminhos da
interdisciplinaridade hegeliana.
O atual parâmetro epistemológico e acadêmico, que tem nos conceitos de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade os conceitos fundantes, torna o sistema filosófico hegeliano atual. Na atualidade, a organização dos saberes estabelece limites flexíveis e dinâmicos entre as
disciplinas e as áreas do saber, com conceitos, concepções e teorias que
não são exclusivas para uma ciência e uma área do saber, mas que transmigram epistemologicamente por vários saberes. Sabe-se que, na atualidade, conceitos que surgiram num campo do saber, consolidam-se em
outros universos epistemológicos e se tornam conceitos que efetivam a
interdisciplinaridade. A filosofia hegeliana como um todo apresenta vários graus de circularidade com limites dinâmicos de intercircularidade
e interrelacionalidade. Isto comprova a existência de conceitos e disciplinas que atravessam epistemologicamente o sistema e em cada disciplina
particular há conceitos e estruturas universais que a fundamentam.
Ao longo do artigo apontamos várias disciplinas filosóficas que
Hegel distribui ao longo do sistema filosófico e o conjunto epistemológico que representam. Uma leitura aprofundada da Ciência da Lógica,
por exemplo, é um único curso que reúne metafísica, ontologia, teologia racional, epistemologia filosófica, lógica, história da filosofia etc. É
impossível delimitar de forma rigorosa estas disciplinas dentro da obra
hegeliana. A interdisciplinaridade é evidenciada, conforme apontamos
no artigo, na conjugação de áreas do saber, e da filosofia com a filosofia
do real na Filosofia da Natureza, na Filosofia da História, na Filosofia da
Religião, na Filosofia do Direito etc.
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