Hegel e a interdisciplinaridade João Alberto Wohlfart* Introdução O objeto do artigo que segue é associar o sistema filosófico hegeliano à estrutura epistemológica, acadêmica e curricular de interdisciplinaridade dos dias atuais. Sustentamos que a complexidade, extensão, sistematicidade e organicidade metódica do pensamento hegeliano respondem aos conceitos da estrutura epistemológica atual da interdisciplinaridade. Até prova clara em contrário, mesmo que o conceito seja atualmente muito difundido nos meios acadêmicos, ainda não há um sistema de ciência formulado que seja tão complexo como o hegeliano e que responda com tal profundidade à noção de interdisciplinaridade. O conceito de interdisciplinaridade será abordado na perspectiva da estrutura e do movimento do sistema hegeliano. Numa primeira aproximação, serão identificadas as disciplinas estruturantes da Ciência da Lógica, da Filosofia da Natureza e da Filosofia do Espírito, numa função sistemática imanente às diferentes esferas filosóficas e no processo de desenvolvimento intraesférico. Ampliando a abrangência do conceito de interdisciplinaridade a partir da estrutura do sistema filosófico, serão * Doutor em Filosofia pela PUCRS e professor de Filosofia no IFIBE. Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 57 consideradas as relações interesféricas responsáveis pela produção de encaixes e entrelaçamentos entre os campos epistemológicos da Lógica, da Natureza e do Espírito. Na dupla faceta da especificidade e autonomia de cada uma destas esferas e na intrínseca compenetração de interrelacionalidade sistemática, a interdisciplinaridade tem a implicação da identificação das regiões nas quais há duplicidade ou triplicidade de relações multilaterais. O raciocínio e a formulação do conceito seguem com os níveis categoriais e intercategoriais de estruturas sistemáticas que atravessam transversalmente todas as esferas e produzem interligações qualificadoras do sistema. Em outras palavras, trata-se das correspondências intercíclicas entre conceitos e estruturas conceituais da Ciência da Lógica e estruturas do real que se encontram nas outras esferas da Filosofia do Real. Por esta via há múltiplos canais de transversalidade que atravessam o sistema filosófico em sua totalidade, e, portanto, de interdisciplinaridade. A expressão máxima de interdisciplinaridade abordada no artigo será a relação entre a Ideia filosófica universal e as esferas particulares de Ciência da Lógica, Filosofia da Natureza e Filosofia do Espírito, no melhor estilo de articulação entre interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. Em palavras mais simples, trata-se das múltiplas combinações possíveis entre a denominação hegeliana de círculo dos círculos e os círculos particulares. Nesta esfera de interdisciplinaridade sistemática e de intersubjetividade universal acontecem as mais variadas formas de mediação entre a universalidade da Ideia filosófica e as esferas particulares e as múltiplas combinações entre elas. O artigo pergunta acerca da noção hegeliana da concepção de filosofia e a sua posição na sistemática epistemológica de interdisciplinaridade. Na Enciclopédia das Ciências Filosóficas, onde Hegel faz um esboço da estrutura e do movimento do sistema, uma das principais funções da filosofia é a interligação entre todos os saberes e áreas do saber na constituição de um sistema filosófico. Como sistemática de interdisciplinaridade, a filosofia constitui a razão intrínseca dos saberes, a estrutura geral de interdisciplinaridade e a mediação fundamental entre as disciplinas. 58 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 Interdisciplinaridade na perspectiva intraesférica Lida sob o ponto de vista da interdisciplinaridade, a Ciência da Lógica é estruturada em várias disciplinas filosóficas. Por esta razão, para o conhecimento em geral, a obra hegeliana pode ser interpretada como uma fundamentação filosófica para todo o saber a partir das categorias, estruturas categoriais lógicas e epistemológicas que dão sustentação às disciplinas. Na estruturação da Ciência da Lógica em Lógica do ser, Lógica da essência e Lógica do conceito, as disciplinas filosóficas não ocupam lugares fixos, como se um livro fosse dedicado a uma disciplina e outro livro a outra disciplina. Como nas outras partes da filosofia, as disciplinas se interpenetram reciprocamente de forma que podem ser atribuídas várias funções para um mesmo texto. Na Lógica do ser há indicativos claros de uma metafísica. Diferente da tradição filosófica clássica, o ser não é um começo absoluto e a esfera filosófica de mais intensa racionalidade contraposta ao caos e ao nada, mas o ser é sinônimo do começo mais abstrato, mais indeterminado e mais vazio. A determinação do ser, devido ao caráter absolutamente vazio e indeterminado, é o nada. Diferente da metafísica clássica, em Hegel o ser e o nada são conceitos opostos que se integram dialeticamente na síntese de devir. O conceito de devir contém implicitamente a determinação do ser porque caracteriza um começo de inteligibilidade efetivado e o nada em função do universo ainda não realizado, mas com potencialidade real de realização. Sob este viés, a metafísica hegeliana esboçada no começo da Ciência da Lógica representa a inteligibilidade do movimento, numa retomada do pensamento de Heráclito para quem tudo está em movimento permanente de transformação qualitativa. A ontologia é outra função implícita à Ciência da Lógica. É possível afirmar que o livro da Lógica da essência como um todo contém a noção hegeliana de ontologia. Hegel retoma neste livro os conceitos fundamentais da ontologia clássica, atribuindo-lhes outros sentidos em outras estruturas de racionalidade. A estruturação do livro em essência, aparência e efetividade é uma demonstração da função eminentemente ontológica, com críticas demolidoras contra a noção tradicional de ontologia. A inclusão da aparência como estrutura racional expressiva da essência contradiz radicalmente toda a tradição da ontologia clássica para a qual a aparência significava a negação da racionalidade. A Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 59 fundamentação da ontologia hegeliana não está na afirmação de uma essência imóvel e imutável na condição de causalidade primeira, mas ao desqualificar a noção clássica de essência e de Deus, o filósofo estabelece a síntese entre essência e aparência na relação. Não se trata mais da ligação vertical e unilateral entre a verdade da essência e a falsidade da aparência, e entre a verdade da substancialidade e a falsidade da acidentalidade, mas da fundamentação de uma teia de relações multilaterais e horizontais como estrutura da racionalidade. É significativo destacar que isto é racionalmente viabilizado com a dissolução das coisas sólidas e impenetráveis por configurações de relações dinâmicas e flexíveis. O que tradicionalmente era conhecido por coisa incomunicável e impenetrável, na ontologia hegeliana se transforma em configuração de relações e polo de encontro e ultrapassagem de múltiplos sentidos de racionalidade. Hegel aponta na Lógica da essência as relações de todo e de parte, de força e exteriorização e de interior e exterior como as referências relacionais fundamentais. Um desdobramento destas estruturas pode concentrar as relações todo e parte para o mundo dos objetos; a força e a exteriorização para o universo da natureza; e interior e exterior para o sistema do espírito. A partir desta concepção da ontologia hegeliana resulta o caráter ontológico e de substancialidade das próprias relações. Para Hegel, Se a substância como identidade em si e para si em si mesma é diferenciada como a totalidade dos acidentes, assim ela é o poder da mediação. Esta é a necessidade, que na negatividade dos acidentes persiste positivamente e a sua posição no seu subsistir; este meio é assim a unidade da substancialidade e da acidentalidade mesma, e os seus extremos não tem subsistência autônoma (HEGEL, 1993, p. 221). A ontologia hegeliana tem um desdobramento significativo no próprio livro da Lógica da essência no qual pode ser identificada a disciplina de Teologia racional. É uma disciplina que trata especificamente do Absoluto através da unificação dialética da substancialidade e da acidentalidade, e da absoluticidade e da relatividade. O sistema hegeliano de absoluto, pois ele é expresso por uma estrutura categorial adequada, é desenvolvido por Hegel no capítulo final da Lógica da essência denominado “relação absoluta”. Cirne Lima formula esta lógica de forma clara e 60 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 precisa: “tudo é relativo, exceto o fato de que tudo seja relativo. Absoluto é somente o fato de que tudo é relativo. Só o Universo como Totalidade em Movimento, como um todo, não é relativo” (CIRNE LIMA, 2006, p. 165). A aparente paradoxal expressão relação absoluta, impensável no modelo aristotélico tradicional, fica plausível na concepção hegeliana porque a categoria absoluto representa o círculo da inteligibilidade e significatividade global, como se fosse a esfera de transdisciplinaridade universal e oniabrangente, e o relativo representa a estrutura multidimensional e transversal de relações que atravessam o sistema do absoluto na sua totalidade no formato de uma teia de relações. Este sistema trata da combinação entre a autorrelacionalidade do absoluto como universalmente relacionado a si mesmo, e a interrelacionalidade das determinações internas em forma de fios multilaterais e nós mediadores dos fios. Neste sistema há uma estrutura de mediações que interligam o todo com as partes e as partes com o todo, todas as partes entre si através de todas, cada parte com as outras através do todo, e cada nó resulta numa condensação universal de tudo e se desdobra através do todo. No final do capítulo da Lógica da essência este dinamismo é formulado através das categorias de relação de substancialidade ((Substantialitätsverhältnis), relação de causalidade (Kausalitätsverhältnis) e ação recíproca (Wechselwirkung). A combinação entre estas categorias consolida a relação absoluta numa circularidade, numa intercircularidade, numa transversalidade, numa interdisciplinaridade e numa intersubjetividade globais. A Ciência da Lógica também é uma lógica. É uma das disciplinas abrangentes da obra hegeliana, pois caracteriza a estrutura como um todo. Ela trata dos diferentes níveis de organização do sistema lógico, nos círculos restritos da categorialidade e da intercategorialidade, até os círculos mais amplos das regiões categoriais (essência e conceito) e da interregionalidade. Como função lógica, trata dos raciocínios dialéticos estruturantes desenvolvidos em toda a obra através das características específicas da Lógica do ser e sua estrutura categorial, das características específicas da Lógica da essência e seu sistema categorial, e das características específicas da Lógica do conceito e seu sistema categorial. Aqui pode ser destacada a equioriginaridade na Ciência da Lógica entre a pura lógica e a ontologia, ou a identificação dialética entre as leis do pensamento e as leis do ser. Como pura lógica, ela é compreendida na perspectiva dos raciocínios lógicos e sistemáticos que atravessam a obra. Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 61 Como ontologia, o sistema lógico se desdobra na estrutura dinâmica da realidade e se transforma na totalidade ontológica do real na configuração do sistema filosófico em sua totalidade. Para Hegel: O silogismo categórico, segundo seu significado cheio de conteúdo no primeiro silogismo da necessidade, onde o sujeito está vinculado com um predicado por meio de sua substância. Sem embargo, a substância, elevada à esfera do conceito, é o universal, e está posta como o que existe em si e por si, de modo que tenha como forma, quer dizer, como maneira de seu ser, não a acidentalidade, como em sua própria relação particular, senão a determinação do conceito. Por conseguinte, suas diferenças são os extremos do silogismo, e propriamente a universalidade e singularidade (1993, p. 392). A Ciência da Lógica também contém uma epistemologia filosófica, na condição de referência conceitual para conhecer a realidade. A Lógica do conceito, na qual a subjetividade é estruturada nas categorias de universalidade, particularidade e singularidade, e o livro é estruturado em subjetividade, objetividade e ideia, pode ser lida na perspectiva da disciplina de epistemologia filosófica. O livro da Lógica do conceito consolida a passagem da necessidade na liberdade, da lógica da objetividade na lógica da subjetividade, da interrelacionalidade objetiva na intersubjetividade. Neste ponto da Lógica aparece com força a noção hegeliana de contradição que integra epistemologicamente os extremos opostos numa única estrutura racional. Nesta lógica, a significatividade da universalidade inteligível baixa na multiplicidade e materialidade da particularidade como um autodesenvolvimento imanente e reconduz este movimento racional à universalidade, na condição da totalidade e universalidade concreta e sistemática. Diferente da teia de relações que marca a Lógica da essência, o conceito marca uma lógica de intersubjetividade e transsubjetividade, de interdisciplinaridade e de intercircularidade na medida em que cada uma das suas determinações, a universalidade, a particularidade e a singularidade constitui, em momentos diferenciados, a totalidade do conceito. Cada categoria contém em si mesma as outras e concentra a síntese das outras. Em momentos diferenciados, cada passa pelas outras e assume a configuração das outras numa circularidade epistemológica que se amplia sucessivamente em novos círculos de universalidade, particularidade e singularidade. Este pensamento 62 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 cumpre o seu ciclo por envolver o sujeito do conhecimento, a realidade em sua particularidade e a síntese entre subjetividade/intersubjetividade e a objetividade. Puntel escreve: A Ideia do conhecimento expõe-se no processo de suprassunção de uma dupla unilateralidade: a subjetividade e a objetividade da Ideia. Este processo de suprassunção é um explícito e completo movimento de contraposição, que como estrutura do conceito foi antes explicitada. Isto significa agora que a suprassunção das duas unilateralidades separadas: como movimento da objetividade na subjetividade e como movimento da subjetividade na objetividade. A Ideia no primeiro movimento é a Ideia da verdade ou a Ideia teorética, a Ideia como o segundo movimento é a Ideia do bem ou a Ideia prática (1981, p. 215). Outra disciplina filosófica identificável na Ciência da Lógica é a teoria do método. Esta função é encontrada no final da obra hegeliana no capítulo intitulado Ideia absoluta. Este capítulo faz da Ciência da Lógica uma unidade, um círculo que gira ao redor de si mesmo, um sistema integrador das disciplinas estruturantes, recuperando na Ideia absoluta todas as determinações anteriores no melhor estilo de uma interdisciplinaridade filosófica. O autodesenvolvimento metódico imanente à obra em questão não é de uma horizontalidade segundo a qual o capítulo seguinte simplesmente deixa para trás os anteriores, mas no momento presente são restabelecidas e atualizadas todas as determinações anteriores, e no capítulo da Ideia absoluta todas as esferas da Ciência da Lógica são reconduzidas na sua estrutura metódica. Como o último capítulo completa o processo lógico, abre para as esferas seguintes da Filosofia da Natureza e da Filosofia do Espírito na condição de estrutura metódica de todo o sistema filosófico. Em relação ao sistema em sua totalidade, a Ideia absoluta representa a pulsão imanente da inteligibilidade do método e a estrutura dos movimentos de interligação e de interesfericidade global que constituem o sistema filosófico em movimento. Enquanto método, a Ideia absoluta significa a autodeterminação e autoconsciência do conteúdo ordenado num processo metódico de autodesenvolvimento no qual a interiorização reflexiva é exteriorizada num novo grau de objetividade e de totalidade concreta na condição de novas esferas de efetividade. Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 63 A Filosofia da Natureza também aparece como um continente de disciplinas sistematicamente ordenadas. O segundo círculo do sistema filosófico é a Filosofia da Natureza em função do conhecimento racional do autodesenvolvimento imanente da natureza e a sua organização em categorias filosóficas. Hegel nos oferece o significado de uma Filosofia da Natureza porque expõe metodicamente a significação filosófica deste universo da Filosofia do Real. A primeira disciplina que aparece nesta esfera filosófica é a física. As categorias fundamentais para expressar são espaço, tempo e movimento. Espaço e tempo são conceitos contrapostos, pois o espaço representa determinada superfície e o tempo a abstração da espacialidade. A contraposição entre as duas categoriais é tal de forma que, para determinar o espaço, ele é mensurado pela abstração do tempo para determiná-lo. É necessária uma determinada mensuração de tempo para percorrer o espaço e, por consequência, determiná-lo. O tempo também pode ser delimitado em determinadas configurações de tempo que circunscrevem a multiplicidade de objetos e de situações, mas esta determinação de tempo é superada por outra esfera de tempo, tal como uma época que configura múltiplas ações e situações. As frações de tempo são suprassumidas pela absoluticidade do tempo, pois o tempo presente é a eternidade de todos os tempos. Para Hegel, tempo e eternidade são conjugadas na permanente atualidade do tempo presente no qual convergem todos os tempos. A física hegeliana ainda é constituída pelas categorias de movimento e objeto. Todo o movimento é relativo, pois um objeto que percorre um determinado movimento é relativo em relação a algo que não está em movimento. Neste contexto, movimento e repouso são mutuamente condicionados, pois o movimento é estabelecido em relação a algo que está em repouso. O objeto é neutro em relação ao espaço e ao tempo, pois permanece o mesmo no movimento percorrido num determinado espaço e numa fração de tempo. Dentro da individualidade e singularidade dos corpos, com peso e massa corporal, está a luz como materialidade universal, como incondicionalidade abstrata e imóvel, como movimento absoluto não condicionado por outro movimento, na condição de conexão universal de tudo. Para Hegel, “somente a luz existe por si mesma como esta pura manifestação, como esta universalidade não-singularizada. A luz é matéria incorpórea, é matéria imaterial; isto parece ser uma contradição, mas esta aparência não pode depender de nós” (1995, § 276, Zusatz). 64 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 Outra disciplina importante na Filosofia da Natureza é a física orgânica. Grande parte do terceiro livro do volume dois da Enciclopédia das Ciências Filosóficas é dedicado à biologia como a expressão máxima da Natureza. Sem a pretensão de entrar nos detalhes dos argumentos, pois isto excederia os limites do presente trabalho, a última parte é estruturada na Natureza Geológica, na Natureza Vegetal e na Natureza Animal. Com a estruturação da Natureza nestes moldes, Hegel revolucionou a física de Newton com o estabelecimento da primazia da luz sobre a gravidade, e expõe a Biologia como ciência da natureza mais avançada. Entre a Natureza Geológica, Vegetal e Animal há um desenvolvimento imanente e lógico, através da universalidade imediata da vida geológica, da particularidade formal do organismo vegetal e da subjetividade concreta do organismo animal. Neste processo lógico há uma exposição pormenorizada do organismo animal, da dialética dos gêneros e das espécies, a relação entre indivíduo e espécie, a relação e cópula na qual cada um possui a si mesmo e ao outro, o sistema celular etc. A Filosofia do Espírito é outro universo de disciplinas filosóficas e científicas. Estruturada internamente em espírito subjetivo, espírito objetivo e espírito absoluto, trata do universo humano distribuído no sistema econômico (sociedade civil), no sistema de eticidade (Estado, relações internacionais, Direito internacional, História universal) e no universo teórico (História da Filosofia, Filosofia da Religião). A primeira parte da Filosofia do Espírito pode ser identificada com a disciplina de Antropologia Filosófica sistemática estruturada por Hegel nos rigores racionais de sua lógica. Constituída a partir dos pilares da Fenomenologia do Espírito, da Antropologia e da Psicologia, o homem é categorialmente exposto a partir da visibilidade do corpo e dos sentimentos, da interioridade do conhecimento teórico e da autodeterminação da liberdade. Na dimensão do conhecimento teórico, o homem se torna uma subjetividade racional na medida em que interioriza a objetividade natural nas condições de seu conhecimento subjetivo, e no movimento de exteriorização transforma a imediaticidade do mundo natural na racionalidade da objetividade significada no ato do conhecimento. Como se sabe, da conjugação entre a exterioridade imediata da corporeidade e da sensibilidade e da interioridade formal da alma racionalmente transformada no ato do conhecimento teórico, resulta na autodeterminação da liberdade como síntese entre espírito teórico e espírito prático. Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 65 Na filosofia do espírito objetivo, sistematizada de forma mais completa e ampla na conhecida obra Princípios da Filosofia do Direito, Hegel esboça os pontos angulares da economia capitalista, na seção sobre a Sociedade Civil. O filósofo esboça as coordenadas principais e as contradições fundamentais da moderna sociedade civil emergente e que, posteriormente, se denominaria de sistema capitalista, cujo texto hegeliano seria ampliado por Marx em sua obra O Capital. Depois que os filhos saem da família e alcançam a autonomia, buscam nas corporações a satisfação de suas necessidades materiais onde encontram análoga individualidade com interesses materiais idênticos. Do ponto de vista da força do trabalho, um trabalhador trabalha por um, todos por um e todos por todos, resultando num sistema de trabalho onde o trabalhador desenvolve uma atividade abstrata e especializada. Neste sistema econômico, a superfície da sociedade é coberta por uma gigantesca estrutura material, sem a contrapartida espiritual da substancialidade ética. Na organização categorial deste sistema, as corporações econômicas expandem livremente a sua estrutura produtiva e a sua atividade e encontram o limite da concorrência e da universalidade da organização do sistema econômico globalizado. As necessárias contradições deste sistema são, num primeiro nível, a abstração do trabalhador e a produção em escala ampla e, numa segunda expressão, a substituição da mão de obra do trabalhador pela máquina. Esta lógica produz inexoravelmente uma plebe social sem acesso ao trabalho e às benesses do desenvolvimento econômico. Na posteridade hegeliana, esta configuração original desdobra-se numa complexa e universal lógica econômica. Disciplina estruturante do espírito objetivo é a ética. Há os que afirmam que a Ética Filosófica não é apenas uma parte do pensamento hegeliano, como o é na maioria dos filósofos, mas o sistema filosófico hegeliano como um todo é um sistema de eticidade. Como se sabe, a eticidade hegeliana não trata da abstração da consciência moral subjetiva, mas da inteligibilidade da liberdade como princípio organizador das relações sociais. Trata-se de um sistema de intersubjetividade no qual a sociabilidade é estruturada por instâncias institucionais de organização política. O sistema de eticidade hegeliano comporta uma sucessão racional de círculos que começam pela família, pela corporação da qual se faz parte, pelas instâncias comunitárias, pelo Estado, pelas instâncias de organização internacional e pela História universal. A substancialidade 66 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 ética é constituída pela dupla dimensão da consciência política de nacionalidade e da estrutura de organização política, pela participação orgânica dos cidadãos na vida do Estado, pela distribuição racional dos poderes do Estado e pela formação da opinião pública. Não se trata da oposição entre a universalidade e totalidade do Estado e a singularidade dos indivíduos, mas os sujeitos individuais são inseparáveis das relações intersubjetivas que se ampliam através de múltiplos círculos de mediação resultantes na totalidade racional do Estado. Por outro lado, este se singulariza na subjetividade e liberdade dos sujeitos individuais. Para Hegel, a extensão da eticidade é evidenciada não na existência de um único Estado cosmopolita, nem num Estado todo-poderoso que domina arbitrariamente os povos, mas o Estado se amplia na relação com outros Estados cujas relações interestaduais são reguladas pelo Direito internacional. Esta dinâmica de estruturação sistemática da Filosofia do Direito, desde as determinações mais simples e imediatas, até a determinação mais complexa e universal da História universal constitui o tecido da eticidade hegeliana. Na concepção hegeliana de eticidade não pode ser ignorada a Filosofia da História universal enquanto círculo máximo da objetividade. Ela trata do progresso na consciência de liberdade, não como uma progressão dos meios materiais de produção e da tecnologia, mas da universalização da liberdade humana. A Filosofia da História contém o princípio subjetivo do sentido da história, a inteligibilidade da liberdade que perpassa a História mundial por dentro, e o princípio objetivo da sucessão das épocas, das civilizações e das formas históricas de organização política. Sabe-se que Hegel divide a História universal no império persa, no império grego, no império romano e no império germânico. O filósofo não utiliza o critério cronológico para estabelecer esta periodização, mas o processo de constituição da liberdade universal na perspectiva das épocas e civilizações. O critério de organização da história é a identificação entre a consciência de liberdade e a liberdade efetivamente alcançada. No último império todos os homens alcançaram a incondicionalidade da liberdade, diante da qual não pode mais existir nenhuma forma de escravidão. Sob este critério, no círculo maior da epocalidade, é inserida a estrutura global do mundo, configurada no sistema das relações internacionais, nos círculos dos Estados, das esferas continentais e intercontinentais e das questões ético-políticas que atravessam o mundo Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 67 em sua totalidade. Na perspectiva da epocalidade histórica, ainda são configurados os sistemas de pensamento filosófico e científico, e o saber em geral é atualizado em consonância com o desdobramento da historicidade. Para Hegel, não há conhecimento dogmaticamente afirmado ou válido incondicionalmente, mas os sistemas do saber são mediatizados pela História e mediatizam a História. Interdisciplinaridade na perspectiva interesférica Um estudo acerca do conceito de interdisciplinaridade hegeliana não consiste apenas na identificação de disciplinas ao longo das esferas filosóficas e na formulação de suas inter-relações, mas no nível mais amplo das relações entre as esferas através da passagem de uma para a outra. Para Hegel, mais importante que uma esfera determinada é o conjunto do sistema em seus movimentos de estruturação e autodesenvolvimento. A leitura isolada de uma parte da filosofia desconectada das outras prejudica a racionalidade. Nesta parte consideraremos os movimentos de passagem de uma esfera para as outras a partir de textos referenciais de Hegel, tais como a Introdução à Enciclopédia das Ciências Filosóficas, a Introdução à Filosofia da Natureza e a Introdução à Filosofia do Espírito. Diante da restrição de um artigo, as considerações aqui esboçadas serão superficiais e breves. Sobre a passagem da Ciência da Lógica na Filosofia da Natureza, Hegel escreve: A filosofia da natureza pertence ela própria a este caminho do retorno; pois é ela que suprassume a separação da natureza e do espírito e que proporciona ao espírito o conhecimento da sua essência na natureza. Esta, pois é a posição da natureza no todo; sua determinidade consiste em que a ideia se determina a si própria, isto é, coloca em si a diferença, coloca um outro, mas de modo que ela em sua indivisibilidade é bem infinita e confere e entrega ao ser-outro toda sua plenitude. Deus permanece igual a si mesmo em seu determinar; cada um desses momentos é ele próprio, a ideia total e tem de ser posto como totalidade divina. O diferente pode-se aprender sob formas de três espécies; o universal, o particular e o singular (1995, § 247, Zusatz). 68 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 Hegel rompe com a indiferença schellinguiana entre natureza e espírito. Para o filósofo, a Filosofia da Natureza é a mediação entre as estruturas antinômicas da natureza e do espírito, pois através dela a natureza terá uma dimensão de racionalidade e o espírito uma dimensão de realidade e efetividade. Nestas condições, a natureza não é o outro da Ciência da Lógica como a negação da racionalidade e da logicidade, mas a Ideia no seu ser outro, na sua racionalidade. Neste raciocínio, Hegel rejeita claramente a autossuficiência da Ideia lógica como uma esfera completa em si mesma e a Filosofia da Natureza como uma estrutura material superficialmente acrescentada àquela, mas a passagem de uma esfera para a outra é a condição de autodeterminação da razão. Em outras palavras, a inteligibilidade racional mais profunda e a estrutura metódica mais ampla somente são possíveis no movimento de passagem na esfera da Filosofia da Natureza, como uma confirmação da equioriginaridade e inseparabilidade entre as leis do pensamento e do real. A autodeterminação da razão consiste na determinação da diferença na dialética da divisibilidade e da indivisibilidade do sistema da Ciência da Lógica, ou seja, no movimento de exteriorização numa outra esfera, esta confirma a sua universalidade e significatividade racional ao entregar-se à natureza. Sem este movimento, a primeira esfera do sistema seria vazia e não desenvolveria as funções que lhe são específicas como Lógica, pois o outro não é outra estrutura exterior e estranha, mas resultado da autodiferenciação. A imagem religiosa introduzida por Hegel não consiste na absoluticidade apriorística de Deus isolado na autotranscendência divina e a contingencialidade da natureza rebaixada em relação a ele, mas a sua determinação na natureza é constitutiva da incondicionalidade e absoluticidade de Deus. Nestas condições, a Filosofia da Natureza não é apenas uma parte, mas a totalidade da Ideia nas condições da natureza. A natureza como totalidade divina e como constitutiva do movimento de totalização divina deve ser lida na perspectiva dos três momentos do conceito. Neste raciocínio, a universalidade é a inteligibilidade da Ideia lógica implícita à natureza, a particularidade é a natureza como mediação entre lógica e espírito, e a singularidade é a Filosofia do Espírito como síntese entre logicidade e materialidade. Sobre a temática, continuamos com Hegel: Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 69 Quanto a isto há que dizer a eternidade não é antes nem depois do tempo, não antes da criação do mundo nem quando ele se acaba; mas a eternidade é presente absoluto, o agora sem antes nem depois. O mundo é criado, vem a ser criado [está sendo criado] agora e eternamente foi criado; isto acontece na forma de conservação do mundo. Criar é a atividade da ideia absoluta; a ideia da natureza é, qual a ideia como tal, eterna. Β Na pergunta se porventura o mundo, a natureza em sua finitude tem ou não um começo no tempo, tem-se diante da representação o mundo ou a natureza em geral, isto é, o universal; e o verdadeiramente universal é a ideia da qual já foi dito que ela é eterna. O finito, porém, é temporal, tem um antes e um depois; e quando se tem o finito diante de si se está no tempo. O finito tem um começo, mas nenhum [começo] absoluto. Seu tempo começa com ele e o tempo é só do finito. A filosofia é compreensão intemporal também do tempo e de todas as coisas em geral, segundo sua determinação eterna (1995, § 247, Zusatz). A relação entre as duas primeiras esferas não é de justaposição entre eternidade e temporalidade, em conformidade com a concepção da maioria das religiões, mas a eternidade é temporalidade absoluta. A eternidade é definida por Hegel como presente absoluto sem passado e sem futuro, em função de que no tempo presente convergem todos os tempos. Na configuração atual do mundo e em sua auto-organização sistemática reaparecem atualizados e reintegrados todos os mundos existentes no passado e numa configuração sistemática do pensamento filosófico do presente serão reconduzidas todas as formas de pensamento desenvolvidas no passado. Hegel formula uma síntese entre a concepção tradicional de eternidade, como um universo estável e sem movimento, e a temporalidade, como referência do mundo finito e mutável no movimento e na atividade absoluta. Nesta perspectiva, o filósofo também corrige o conceito clássico de criação compreendido como um ser eterno e intemporal que cria, na posteridade do tempo, a natureza e o mundo. Segundo a formulação hegeliana, o mundo não foi criado pela ação de um ser absoluto preexistente, mas o mundo é uma eterna atividade de permanente criação e autoconstituição. Na relação entre a Ideia absoluta e a Filosofia da Natureza, ou entre ideia eterna e ideia da natureza, desenvolve-se uma atividade eterna e permanente que reside na natureza e realiza o seu desenvolvimento. Não se trata, portanto, de uma relação linear entre a eternidade, a criação da natureza e do mundo, como na 70 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 tradição religiosa cristã, mas da coextensividade entre a reflexividade e interioridade da Ideia como atividade universal e a fundamentação da Filosofia da Natureza como uma exposição imanente. Hegel também propõe uma nova forma de relação entre finitude e infinitude. Entre os extremos da eternidade infinita sem começo e a natureza finita com começo há uma mediação que restringe a infinitude na condição da natureza finita e põe a finitude na perspectiva da eternidade e da infinitude. A natureza não se restringe à compreensão comum como simplesmente finita, mas é posta no dinamismo universal da autodeterminação infinita da Ideia universal, transformando os seus processos internos em movimentos que contêm a infinitude e a absoluticidade. Na intencionalidade que vai da universalidade da Ideia para a particularidade da natureza desencadeia-se a finitização da Ciência da Lógica figurada nas condições da natureza finita. Por outro lado, na compreensão filosófica, a natureza recebe uma configuração intemporal e é reconduzida à eternidade e universalidade da Ideia. Na tensão entre os movimentos de finitização do infinito e de eternização da temporalidade e da finitude está a autodeterminação universal do mundo em eterno movimento de criação e ampliação sistemática configurada na perspectiva da interiorização reflexiva da inteligibilidade da ideia e da expansão sistemática das estruturas efetivas do mundo. Sobre a passagem da Filosofia da Natureza na Filosofia do Espírito, Bourgeois escreve: O absoluto ou a ideia – identidade de identidade e da diferença – se diferencia primeiro no elemento da identidade: tal é a Ideia Lógica, objeto da primeira parte da Enciclopédia. Depois, no elemento da diferença: é a Ideia em seu ser-Outro, a diferença ou a Natureza, objeto da segunda parte. Enfim, no elemento da identidade da identidade e da diferença – portanto um elemento adequado ao que nele se manifesta, e por isso terminal: é a Ideia como Espírito, objeto da terceira parte da Enciclopédia. O Espírito é a unidade concreta da Lógica (do sentido) e da Natureza (do sensível); o retorno a si mesmo no sentido a partir do (e para o) interior do sensível – a sensibilização do sentido como sentido (1995, p. 418-419). O movimento sistemático de passagem da Filosofia da Natureza na Filosofia do Espírito consiste num processo de universalização concreto, pois na sequência horizontal de disposição das esferas, a última é mais Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 71 ampla e mais universal que as anteriores. Na sistemática de composição do todo, o Espírito aparece como síntese entre a Lógica e a Natureza, pois recolhe para dentro de si mesma a sistemática racional da Ciência da Lógica e a estrutura material da natureza traduzida na segunda natureza da sociedade e da História. Não se trata mais da subjetividade lógica contraposta à objetividade da natureza, mas na Filosofia do Espírito a subjetividade da lógica e a objetividade do real compenetram-se no processo de autodesenvolvimento do espírito como autodeterminação do real. Neste universo não há mais uma ação extrínseca que determina o movimento de um objeto supostamente passivo e inerte, mas a autoatividade do Espírito caracteriza a conjugação intrínseca de subjetividade e de objetividade, de determinação do real e de autodeterminação da razão. O terreno da Filosofia do Espírito é o universo da História universal em relação à qual não há uma racionalidade divina que determina inexoravelmente o seu curso, mas neste círculo há um desenvolvimento no qual a totalidade da estrutura objetiva das civilizações e dos sistemas éticos produz a subjetividade e significatividade da racionalidade filosófica cuja organização sistemática é logicamente regrada. Neste universo, a Ideia absoluta proveniente do último capítulo da Ciência da Lógica não é um fundamento apriorístico absoluto, mas ela se constitui na permanente mediação com a efetividade da História universal. Para Hegel, O momento da atividade abstrata deve considerar-se como o nexo, como o medius terminus entre a Ideia universal, que repousa no poço íntimo do espírito, e o exterior, como o que tira a Ideia da sua interioridade e a põe na exterioridade. A universalidade, ao exteriorizar-se, logo se individualiza. O interno por si seria algo de morto, de abstrato; mediante a atividade, torna-se algo existente. Inversamente, a atividade eleva a objetividade vazia à manifestação da essência que existe em si e para si (1995, p. 93). Para Hegel, a constituição do Espírito a partir dos universos temáticos da Lógica e da Natureza como resultado do autodesenvolvimento metódico e sistemático, e ao mesmo tempo em que a terceira esfera constitui um universo mais qualificado na condição de uma fundamentação na qual o círculo mais amplo e mais elevado dá consistência aos anteriores. A Ideia universal permanece vazia e abstrata quando restrita à pura condição da interioridade, mas ela se torna concreta e efetiva quando exteriorizada. Na confluência entre a Ideia universal e a efetividade da 72 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 História universal produz-se uma mediação circular na qual a reflexividade da Ideia se exterioriza na objetividade da estrutura da História que se configura tão racional quanto àquela. Esta correlação produz um sistema de sucessão de ondas circularmente concêntricas na qual a Ideia se exterioriza na objetividade histórica e a ultrapassa na produção de um novo sistema de racionalidade filosófica. A estrutura da História, por sua vez, penetra na interioridade na condição de consciência histórica e na inteligibilidade da racionalidade filosófica como ponto mais elevado da cultura. Esta racionalidade filosófica torna-se a interioridade da nova objetividade histórica, ultrapassa a sua determinação efetiva e se eleva para um novo sistema filosófico. Por sua vez, o sistema de efetividade histórica constituída por formas de organização social complexas e por relações internacionais entre os Estados, expressa nesta inteligibilidade filosófica a sua racionalidade. Para Hegel, “a ideia é o percurso em que o conceito, enquanto é a universalidade que é singularidade, se determina em objetividade e em oposição à objetividade; e essa exterioridade, que tem o conceito por sua substância, se reconduz, por sua dialética imanente, à subjetividade” (HEGEL, 1995, § 215). As duas dimensões da Ideia, mediatizada pela atividade universal permanente que amplia os círculos da objetividade e da subjetividade, a interioridade é a subjetividade da objetividade, e a exterioridade é a objetividade da subjetividade. Para Kroner: A Lógica é toda a filosofia como momento de si mesma; e toda a filosofia é estendida ao sistema, Lógica completada. Só quem visualiza a relação dialética de Lógica e Sistema, entende, em que sentido o Sistema é governado pela Lógica. É por ela governado porque também a Lógica é governada pelo Sistema. A filosofia é Lógica porque é pensar; mas não é apenas lógica, senão cheia de conteúdo, pensamento ontológico, e isto já como Lógica. A relação dialética de Lógica e Sistema, e também aquela de Logos e Espírito é mesma uma relação lógica, como toda a relação, que sempre pode ser pensada; isto é logo não apenas uma relação lógica, pois o Espírito ultrapassa o Logos quando se pensa e se põe em relação com ele, se concebe como Logos e se contrapõe ao Logos, ele ultrapassa a Lógica (1961, b. 2, p. 509). Para a discussão do conceito de interdisciplinaridade na perspectiva do sistema filosófico hegeliano, as relações entre as esferas é um componente fundamental. Trata-se de diferentes regiões epistemológicas Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 73 que estabelecem entrelaçamentos estruturantes entre si a partir das quais resulta a estrutura do sistema hegeliano. A sistemática que expõe a Ciência da Lógica, a Filosofia da Natureza e a Filosofia do Espírito totaliza dialeticamente uma sucessão de círculos que se diferenciam e se integram, com a primeira que fornece a estrutura e o movimento lógico e as outras proporcionam o conteúdo real. A primeira proporciona para a segunda a estrutura lógica, e a segunda interioriza a inteligibilidade lógica nas condições e nos limites da natureza, resultando numa organização em diferentes estágios de desenvolvimento. A esfera da Filosofia da Natureza é mais ampla que o da Ciência da Lógica, pois aquela interioriza esta e acrescenta o universo do sistema da natureza. Por outro lado, a Ciência da Lógica ultrapassa a esfera da Filosofia da Natureza porque a sua força de autodiferenciação em outras esferas ultrapassa as condições da própria natureza, pois é portadora de dimensões de inteligibilidade racional que a imediaticidade da natureza não pode assimilar. O conceito de interdisciplinaridade é ampliado com a dupla noção da Filosofia do Espírito que recebe toda a carga lógica e ontológica de exposição das esferas anteriores, ampliando este movimento com a noção da autonomia da autodeterminação do Espírito. A última esfera como síntese entre as duas anteriores, proporciona uma nova configuração racional à Ciência da Lógica e novo estatuto ontológico à Filosofia da Natureza. Nesta última, a Ciência da Lógica se transforma na estrutura ontológica da racionalidade do real, deixando de ser uma pura lógica; e a Filosofia da Natureza é suprassumida na efetividade da sociedade e da história. Interdisciplinaridade na perspectiva sistemática universal O terceiro momento a ser considerado é a interdisciplinaridade na perspectiva sistemática universal. Trata-se da relação da Ideia filosófica com as esferas particulares e o caráter de transversalidade de algumas disciplinas filosóficas que perpassam o sistema. Neste âmbito, abordamos a partir de Hegel uma questão epistemológica e acadêmica atual da relação entre interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. Nesta linguagem, se Hegel fosse traduzido para a atualidade, as esferas do sistema seriam as áreas do saber e a Ideia filosófica seria a filosofia como a interrelação de todos os saberes. A diferença significativa é que Hegel expõe as ciências 74 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 do real na perspectiva da compreensão filosófica, num método dedutivo de reconstrução lógica das ciências particulares. Para Hegel, Cada uma das partes da filosofia é um Todo filosófico, um círculo que se fecha sobre si mesmo; mas a ideia filosófica está ali em uma particular determinidade ou elemento. O círculo singular, por ser em si totalidade, rompe também a barreira de seu elemento e funda uma esfera ulterior. Por conseguinte, o todo se apresenta como um círculo de círculos, cada um dos quais é um momento necessário, de modo que o sistema de seus elementos próprios constitui a ideia completa, que igualmente aparece em cada elemento singular (1995, § 15). Para uma abordagem hegeliana do conceito de interdisciplinaridade, este texto é denso, sistemático, profundo e amplo. O parágrafo que integra a introdução ao primeiro volume da Enciclopédia das Ciências Filosóficas não se restringe ao primeiro volume desta obra, mas é uma introdução condensada acerca da estrutura, do método e da articulação do sistema como um todo. O texto destaca vários elementos estruturantes, tais como cada uma das partes é um todo, a determinação da Ideia filosófica em cada um deles, a mútua abertura das esferas entre si, a relação da Ideia com o sistema filosófico e a interrelação complexa das esferas entre si. Numa primeira aproximação, cada uma das partes é um Todo filosófico, pois a circularidade de cada uma das esferas abrange um significativo universo do real e da filosofia. Cada uma das partes é um Todo porque é uma determinação da totalidade do sistema filosófico nas condições próprias da Lógica, da Natureza e do Espírito e a interrelacionalidade sistemática estende cada círculo particular aos outros e através deles. A circularidade sistemática da interrelacionalidade do todo e da interdisciplinaridade epistemológica não se dão apenas nas intersecções entre círculos diferenciados dos quais resulta a estrutura do todo, mas cada círculo contém o Todo do sistema. Cada um dos círculos, na combinação lógica de todo e de parte, representa a totalização do sistema porque os outros círculos são traduzidos nas condições de universalidade e totalidade de cada um. Por outro lado, partindo da especificidade de cada esfera, ela abre a sua circularidade “fechada” e se ramifica pelas outras. Neste raciocínio, a Ciência da Lógica é uma parte do sistema pela abstração e formalidade lógica que a caracteriza, e é a totalidade do sistema porque a sua estrutura de inteligibilidade se estende por todo o sistema na Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 75 sistemática de autodesenvolvimento do conteúdo. A Filosofia da Natureza é parte do sistema porque se restringe ao universo mecânico, físico e biológico, e é todo o sistema porque é uma forma de determinação da lógica e contém os pressupostos do Espírito. A Filosofia do Espírito segue a mesma dinâmica como parte do sistema em função da contingencialidade histórica, e é todo o sistema porque aparece como o círculo mais amplo da síntese entre os dois círculos anteriores. O parágrafo aponta a estrutura metódica de fundamentação da Enciclopédia das Ciências Filosóficas. O primeiro componente sistemático é o movimento de ascensionalidade progressivo segundo o qual há uma sucessão de esferas cada vez mais amplas em universalidade em concreticidade. Assim, a Ciência da Lógica se desdobra na Filosofia da Natureza que a compenetra e a integra parcialmente, e esta se desdobra na Filosofia do Espírito. Neste processo de fundamentação há uma sequência horizontal de estruturas epistemológicas logicamente encadeadas e que formam um sentido vertical de diferentes níveis de concreção de uma mesma racionalidade. Porém, o texto aponta para uma fundamentação retroativa na medida em que a Filosofia do Espírito, última esfera do sistema filosófico, integra as esferas anteriores e transforma a horizontalidade e a verticalidade num sistema de circularidade multidimensional. A combinação entre a progressividade e a regressividade produz a configuração sistemática do círculo dos círculos que mediatiza e interliga os círculos particulares em múltiplas combinações. Nesta perspectiva, cada parte realiza o seu movimento imanente conjugado com a circularidade dos outros círculos, todos passam sistematicamente pelos outros e são perpassados pelos outros, todos são eles mesmos e a totalidade dos outros e a partir desta efetividade circulam pelos outros. Bourgeois escreve: Desse modo, as três partes da Enciclopédia expõem o círculo da Ideia em cada um dos elementos que universalizam os momentos fundamentais da manifestação ou diferenciação de si que é a ideia. Cada uma dessas exposições particulares – enquanto exposição do universal concreto, do Todo, do Sistema, do círculo que é a Ideia – é por sua vez um todo, um sistema ou um círculo. Mas cada uma dessas particularizações da Ideia enquanto universal é a ideia se particularizando, se negando, e pelo fato – já que o universal é a potência que dispõe do particular – negando essa 76 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 negação de si, afirmando-se assim concretamente. Assim, as três partes totais da Enciclopédia são momentos particulares organicamente encadeados pela necessidade da vida imanente da Ideia (que é só livre, absoluta e verdadeiramente total) (BOURGEOIS apud HEGEL, 1995a, p. 419). Outra dimensão sistemática do parágrafo acima introduzido é a relação da Ideia filosófica na condição de círculo dos círculos com as esferas particulares também determinadas como totalidades. O sistema de interrelacionalidade cíclica entre as esferas produz o círculo dos círculos da Ideia filosófica universal, pois a Ciência da Lógica, a Filosofia da Natureza e a Filosofia do Espírito estão interligadas através da tridimensionalidade estrutural interna de ser, essência e conceito na primeira esfera; mecânica, física e orgânica na segunda esfera; e espírito subjetivo, objetivo e absoluto na terceira esfera. A densidade do círculo universal é ampliada porque cada uma das três colunas angulares é multiplicada várias vezes quando a intersistematicidade, interrelacionalidade, interdisciplinaridade e intersubjetividade universais formam o círculo dos círculos. Em outras palavras, a circulação de cada esfera em si mesma, as combinações multilaterais de cada uma com as outras e a autocircularidade multidimensional de cada uma através das outras produz o que Hegel denomina de círculo dos círculos. Isto representa uma ampla e dinâmica interconexão entre as totalidades parciais que são as diferentes esferas que precisam ser lidas na perspectiva das mútuas relações. Por outro lado, o círculo de absoluta universalidade e inteligibilidade reaparece na determinidade de cada esfera particular e nas condições dos elementos singulares. A consequência epistemológica deste retorno sistemático é a tradução de um conteúdo particular abordado numa ciência particular em disciplinas e em círculos filosóficos. É por esta razão que a Lógica, a Natureza e o Espírito se traduzem em Filosofia e Ciência da Lógica, em Filosofia da Natureza e em Filosofia do Espírito. Nesta organização do sistema filosófico, a combinação entre a macrossistematicidade universal e a multidimensionalidade dos círculos e movimentos resultam vários elementos de articulação lógica e epistemológica nas categorias de universalidade, particularidade e singularidade. Da relação entre a inteligibilidade universal do círculo dos círculos e a consubstancialidade sistemática das esferas resulta num sistema acadêmico que Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 77 pode ser expresso pelas categorias de disciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. E na condição de um sistema decididamente ético na perspectiva da Filosofia do Espírito esta organização pode ser expressa pelas categorias éticas de subjetividade, intersubjetividade e transsubjetividade. E como estrutura organizacional do sistema, o método pode ser designado com as representações geométricas de horizontalidade, verticalidade, circularidade e transversalidade. Estes raciocínios podem ser traduzidos na linguagem atual da racionalidade curricular, sobretudo na combinação dos conceitos de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. O primeiro deles é um conceito multilateral e polissêmico, pois abrange a organização curricular de um determinado curso de Ensino Superior no qual as disciplinas são entrelaçadas por conceitos e estruturas conceituais comuns. A interdisciplinaridade abrange uma compreensão muito mais extensa ao envolver a organização do saber na condição de sistema de ciência em geral na perspectiva epistemológica e sistemática interáreas. Na atualidade, as áreas do saber como as Ciências Humanas, as Ciências Sociais, as Ciências Exatas e as Ciências da Natureza constituem as grandes áreas do saber cuja totalidade sistemática possui disciplinas, teorias e conceitos que as atravessam transversalmente. Supõe-se que uma filosofia sistemática formulada na atualidade tenha como característica fundamental a capacidade de mediação e de interligação de todos os saberes como um sistema filosófico de interdisciplinaridade. No caso hegeliano, conforme exposto acima, a interdisciplinaridade filosófica se dá no sistema de relações multilaterais entre as esferas da Ciência da Lógica, da Filosofia da Natureza e da Filosofia do Espírito como uma totalidade dinâmica. Este conceito é inseparável da transdisciplinaridade representado pela ideia de círculo dos círculos que circunscreve universalmente o sistema filosófico, transmigra epistemologicamente para dentro das esferas e dos círculos menores e reforça os encaixes sistemáticos globais. É pelo círculo dos círculos que passam os movimentos de universalização cujo nexo sistemático das partes produz a universalidade da Ideia filosófica. No caso da lógica curricular, bem próximo da noção hegeliana, a transdisciplinaridade caracteriza um conjunto de conceitos universais que circunscrevem os sistemas curriculares, interligam estes saberes e os perpassam epistemologicamente. 78 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 Interdisciplinaridade e história Não é possível compreender a filosofia hegeliana sem o viés histórico. Até então, é o filósofo que deu ênfase explícita à história como componente implícito à filosofia exposta numa perspectiva claramente histórica. Em Hegel não há uma pura filosofia antinomicamente contraposta história, mas a filosofia deve ser exposta a partir da história. Na intrínseca compenetração entre filosofia e história, a filosofia é construída a partir da leitura crítica, sistemática, conceitual e abrangente da história. A racionalidade, portanto, mergulha para dentro da história, emerge dela para ser traduzida no discurso filosófico. A dimensão estruturalmente histórica da filosofia também é explicitada no desdobramento integrado que compreende filósofos, obras filosóficas, categorias e concepções filosóficas, sistemas de filosofia e modelos filosóficos. Esta questão fica tão clara que conceitos filosóficos básicos passam por vários filósofos e contextos para serem consolidados como conceitos. Por esta via, para uma abordagem interdisciplinar do sistema hegeliano, é necessário passar pela dimensão histórica de seu pensamento. Neste intuito, tecemos algumas considerações acerca da noção hegeliana de interdisciplinaridade que envolve intrinsecamente a filosofia e a história. Para Hegel, O terceiro gênero da história, a História Universal filosófica, conecta-se de tal modo com este último tipo de historiografia reflexiva que também o seu ponto de vista é um ponto de vista universal, mas não algo particular, que abstratamente se extrai ao prescindir-se dos outros pontos de vista. O ponto de vista universal da História filosófica do mundo não é abstratamente geral, mas concreta e absolutamente atual; com efeito, é o Espírito, que eternamente está junto de si e para o qual não há passado algum. Tal é o condutor das almas, Mercúrio, a Ideia é, na verdade, o guia dos povos e do mundo; e o espírito, a sua vontade racional e necessária, é que dirigiu e dirige os acontecimentos do mundo. Chegar a conhecê-lo, nesta condição, é aqui o nosso objetivo (1995, p. 22). Na proposta de leitura do pensamento hegeliano como um sistema de interdisciplinaridade pelo viés da consubstancialidade entre filosofia e história, depois da formulação de uma História primitiva e de uma História reflexiva, culmina com a concepção hegeliana de História Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 79 Universal filosófica. Ela não é abstratamente geral, pois não caracteriza uma sequência linear e atomística de filósofos e de diferentes formas de pensamento concebidas por elas mesmas, e não é reconstrução de uma multiplicidade de ideias filosóficas construídas ao longo do tempo. A absoluta atualidade e concretude da História Universal filosófica se dão pela sistematização atualizada e integrada de todas as formas de pensamento filosófico construídas ao longo da história e que carregam a História do mundo. Nesta acepção, a história do mundo é traduzida no modelo sistemático e na inteligibilidade atual do pensamento filosófico que reúne numa única formulação a unidade e a multiplicidade de posições filosóficas, a atualidade e o movimento permanente de sistematização filosófica. A filosofia, na perspectiva qualificada de História Filosófica, é concreta porque carrega em sua significatividade racional e em sua organização metódica a concreticidade do mundo que se torna efetivo na decisiva consubstancialidade entre História e Filosofia. Em outras palavras, a História universal seria abstrata sem a sua necessária mediação com o pensamento filosófico que é concreto na condição da autorreflexividade sistemática da história. Em razão disto, o Espírito está eternamente presente a si mesmo na permanente atualização de tudo em cuja dialética o passado é transformado na perspectiva do eterno presente. A História Universal filosófica é a expressão racional do autoconhecimento sistemático do Espírito absoluto, do sistema do Cosmos e da História universal enquanto universalização filosófica do pensamento humano e do conhecimento humano do Absoluto. Isto significa dizer que o desenvolvimento do Absoluto, da Natureza e da História aparece na plena atualidade na História Filosófica. Continuamos com Hegel: Na Filosofia da Religião, consideramos a Ideia não apenas como ela é determinada no pensamento puro, também não como aparece no seu saber finito, mas como Absoluto, como a Ideia lógica; mas também como a Ideia aparece, se manifesta, mas também como aparecer infinito do Espírito. O Espírito é automanifestação, mas na sua manifestação infinita; o espírito que não aparece, não é; ele se reflete em si mesmo. Esta é a posição da Filosofia da Religião em relação às outras partes da Filosofia. Deus é o resultado das outras partes; aqui o fim foi feito começo. Que Deus aparece como resultado, fazemos como o nosso objeto especial – como Ideia concreta em seu aparecer infinito idêntica com a substância, com a essência; este é o conteúdo, a determinação deste conteúdo (1993, p. 37). 80 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 A Filosofia da Religião, juntamente com a Ciência da Lógica e a Enciclopédia das Ciências Filosóficas, é uma das obras mais densas e sistemáticas da filosofia hegeliana. Ela plenifica a última e dá a ela a efetivação do processo constante de autodesenvolvimento sistemático. Em outras palavras, é particularmente na Filosofia da Religião onde se percebe a abertura e a mobilidade permanentes do sistema filosófico. A Ideia lógica, quando ela permanece restrita à pura logicidade, ela é vazia e abstrata, necessitando manifestar-se sistematicamente. Isto confirma a consubstancialidade entre Ideia lógica e sistema filosófico. Do ponto de vista da construção sistemática da filosofia, a Filosofia da Religião é resultado do sistema enciclopédico, invertendo a concepção clássica de fundamentação para a qual Deus é o começo imóvel. Na visão hegeliana, a manifestação não caracteriza o aparecimento posterior a uma substancialidade espiritual predeterminada, tal como o motor imóvel aristotélico ou o Deus cristão, não caracteriza uma simples mediação necessária do Absoluto para o seu retorno à eternidade, mas uma automanifestação eterna e infinita. Assim, Deus como resultado da filosofia significa a síntese que envolve desenvolvimento histórico, uma sequência lógica e epistemológica de sistemas filosóficos, e aparece como resultado da equioriginaridade entre o sistema da Lógica e o sistema de determinações efetivas da Filosofia do real. Por esta via, a Filosofia da Religião corrige possíveis assimetrias entre a universalidade da Ideia lógica e a contingencialidade das determinações do real por uma síntese que caracteriza autoatividade universal absoluta em permanente processo de automanifestação. A razão universal da História enquanto Ideia lógica se automanifesta em contextos históricos e sistemas de eticidade, em sistemas filosóficos e em sistemas cosmológicos. Nesta nova configuração de sistema filosófico é esboçada uma autoatividade universal absoluta na qual coincidem a inteligibilidade intrínseca da Ideia universal e a sistemática circular do real composta pela esfera universal e pela sistemática interna de círculos particulares que esboçam movimentos de intersubjetividade e interdisciplinaridade universais. Neste universo absoluto e infinito coincidem o começo e o fim, o centro e a periferia, a estabilidade e o movimento, a racionalidade e a realidade, absoluticidade e relatividade, sistema e interdisciplinaridade etc. Na mesma direção seguimos com Hegel: Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 81 A história da filosofia mostra nas filosofias diversamente emergentes que, de um lado, somente aparece uma filosofia em diversos graus de desenvolvimento, e de outro lado que os princípios particulares – cada um dos quais está na base de um sistema – são apenas ramos de um só e mesmo todo. A filosofia última no tempo é o resultado de todas as filosofias precedentes, e deve por isto conter os princípios de todas. Por este motivo, se ela é filosofia de outra maneira, é a mais desenvolvida, a mais rica e a mais concreta (1995, § 13). Na introdução à Enciclopédia das Ciências Filosóficas Hegel inclui um parágrafo fundamental sobre a História da Filosofia, numa indicação muito clara que o sistema filosófico exposto nesta obra e a noção hegeliana de História da Filosofia são muito próximos. Hegel sustenta que as várias concepções filosóficas surgidas ao longo do tempo, tais como o realismo, o racionalismo, o empirismo são momentos do desenvolvimento de uma única filosofia em vários ramos filosóficos. No desenvolvimento histórico da filosofia, pois não há para o filósofo filosofia pura abstraída do real, mas as concepções opostas e contraditórias recebem sínteses mais abrangentes a partir das quais a filosofia evolui em densidade filosófica, em sistematicidade, em complexidade e em capacidade de diálogo. Nesta formulação, a História da Filosofia é perpassada verticalmente por uma única racionalidade ao redor da qual giram as múltiplas filosofias. Nenhum filósofo é uma ilha na condição de um pensamento absolutamente único e original, mas todos os filósofos são interdependentes e se influenciam reciprocamente. O sistema hegeliano esboçado na Enciclopédia das Ciências Filosóficas está perpassado por uma universal historicidade, pois aparece como resultado do fluxo de desenvolvimento filosófico que se desencadeou ao longo da História. O caminho ascensional de exposição do sistema filosófico que começa pela Ciência da Lógica, avança para a Filosofia da Natureza e desta para a Filosofia do Espírito pode ser interpretado como homólogo à ascensionalidade grega, e o retorno da Filosofia do Espírito para a Ciência da Lógica e ao Espírito absoluto corresponde à descensionalidade cristã e à subjetividade moderna. Estes movimentos sistemáticos da História da Filosofia são suprassumidos por Hegel em seu sistema filosófico na pulsão do método como movimento articulador do sistema. Em relação ao Idealismo Alemão, Hegel unifica os dualismos kantianos de númeno 82 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 e fenômeno, e incorpora em seu sistema a síntese entre a estrutura vertical do sistema de Fichte entre sentença primeira e incondicionada e as sentenças secundárias e a indiferença schellinguiana entre subjetividade e objetividade. A fundamentação vertical fichtana se transforma em Hegel na fundamentação horizontal enquanto processo metódico de complexificação que suprassume no círculo atual os componentes anteriores. Igualmente, Hegel transforma a indiferença schellinguiana da Filosofia da Natureza no sistema diferenciado de círculos organizado na perspectiva dialética da unidade racional e da multiplicidade de círculos epistemológicos. Com estas considerações, a História universal é o cenário no qual se desenha o perfil da interdisciplinaridade e do sistema de ciências. Para Angehrn: Liberdade foi dada como centro e ponto angular do Sistema. A filosofia como um todo se expressou como conceito de liberdade como a determinação essencial de uma teoria de liberdade. Partindo de dois pontos de vista a serem especificados, o que significa para o Sistema, que a sua forma e o seu conteúdo são constituídos no conceito de liberdade. O Sistema é teoria de liberdade, no qual é por um lado Filosofia da Historia, por outro, teoria do Espírito Absoluto e, por último, teoria da filosofia, ou filosofia que a si mesma se concebe. É demonstrada a unificação real entre o fim do Sistema e a conclusão da História da Filosofia. Num sentido análogo o desdobramento histórico representa para o conjunto da esfera do Espírito Absoluto momento essencial, no resultado conjunto das instâncias fundamentais a partir de cada uma. A fundamental dimensão histórica do vir-a-ser da consciência do Espírito em si mesmo que na correspondência de História do mundo, História da ciência e filosofia sistemática expressa, há uma congruência entre o conteúdo da História e o conteúdo da Filosofia mesma (1977, p. 420-421). Não é intenção do artigo o exercício de uma interpretação exaustiva do texto citado, muito menos o de interpretar a obra do grande comentarista de Hegel. Uma leitura mais ampla e aprofundada do sistema hegeliano permite identificar uma configuração de interdisciplinaridade na qual várias disciplinas “abrangem” o sistema por completo. Conforme texto citado, o sistema filosófico é uma Filosofia da História porque a filosofia traduz a história na sistematicidade do pensamento filosófico e porque o modelo hegeliano é resultado da autossistematização dialética Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 83 da História da Filosofia neste formato. O sistema hegeliano também é uma teoria do Espírito Absoluto na condição de uma ontologia que trata do Absoluto como um sistema universal de determinações em movimento permanente de relações transversais. A noção hegeliana de Espírito Absoluto consiste na combinação entre o círculo da Ideia filosófica universal que se particulariza em todos os círculos e na sistemática circular de inter-relações entre a Lógica, a Natureza e o Espírito. Nesta exposição, a Filosofia da História não é mais apenas uma manifestação do Absoluto na condição de sua exteriorização no tempo, mas a teoria do Espírito Absoluto é uma absoluta história que marca a construção do sistema de eticidade e de intemporalização do pensamento filosófico pensado a partir da história. Nesta perspectiva de interdisciplinaridade, o sistema hegeliano também é uma teoria da filosofia na condição de uma filosofia que se pensa a si mesma, uma filosofia da filosofia cujo resultado é a História da Filosofia. A filosofia não é uma abstração em relação ao mundo, mas Hegel transforma o puro pensamento filosófico num processo histórico de desenvolvimento lógico e sistemático da filosofia. Hegel constrói, ao mesmo tempo, uma historia do mundo, uma história das ciências e uma filosofia sistemática, tal como aqui ela é concebida. Ramiro Flóres escreve: A História da Filosofia é uma evolução ou desenvolvimento através de muitos desenvolvimentos e evoluções. E cada desenvolvimento especial é um grau ou nível do Todo. O espírito é pulsão, manancial de generatividade e inovação. E grau a grau vai produzindo, expressando-se, conhecendo-se, conscientizando-se, plenificando-se. Em suma, a série de desenvolvimentos históricos são os graus de seu próprio desenvolvimento ou evolução. O espírito caminha assim em direção ao ato identificador de si mesmo instaurando-se em cada passo histórico em novas moradas temporais e geográficas. Descobrir e descrever estas moradas faria do historiador da Filosofia para conhecer a autêntica e interna periodização da História da reflexão filosófica (1983, p. 405-406). Na síntese das considerações aqui realizadas, a noção de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade a partir da filosofia hegeliana e da história, há um fluxo de racionalidade que avança no tempo e atravessa a História da Filosofia e a História universal sobre a qual se escrevem as concepções filosóficas e as ciências. Hegel não entende a História da 84 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 Filosofia como uma sequência linear de filósofos e sistemas filosóficos estáticos, mas como um dinamismo que desconstrói formas obsoletas e cria novas formas de pensamento filosófico. Nesta torrente da racionalidade filosófica que aprofunda e amplia o seu caudal, vai estabelecendo ao longo do percurso concepções, modelos e sistemas diversificados de filosofia, tais como o de Platão, Plotino, Agostinho, Descartes, Espinosa, Fichte, Hegel etc. As determinações filosóficas não necessariamente se identificam com tais filósofos individuais, mas podem ser escolas filosóficas constituídas a partir de uma concepção de base que se transformam em modelos de racionalidade. Para Hegel, o fluxo sistemático da racionalidade filosófica como fio condutor e eixo articulador caracteriza um método dialético cujo movimento universal ultrapassa as estruturas que aparecem ao longo do seu percurso e através das quais aprofunda a sua própria reflexividade e inteligibilidade. No sistema filosófico hegeliano, em relação à História da Filosofia, este fluxo de racionalidade assume uma configuração universal que combina a linearidade do processo histórico-sistemático, contorna o sistema, se transforma na imagem denominada por Hegel de círculo dos círculos e estabelece internamente as múltiplas conexões internas num sistema de mediações entre as diferentes esferas. Como conjugação entre História da Filosofia, teoria do Espírito Absoluto e teoria da filosofia, o sistema filosófico hegeliano recupera o fluxo de racionalidade e as estruturas filosóficas num único sistema em movimento que se amplia a partir das mediações entre as disciplinas filosóficas. O ponto mais amplo da combinação entre interdisciplinaridade e transdisciplinaridade integra a universalidade da história e da lógica e o caráter multifacetário das disciplinas e das esferas sistemáticas de integração dos universos temáticos, resultando no sistema filosófico em evolução dialética. Considerações finais O artigo tentou considerar o sistema filosófico hegeliano na perspectiva das atuais implicações acadêmicas de interdisciplinaridade. O ensaio consistiu em abordar esta questão em vários níveis, desde a organização da questão no interior das diferentes partes da filosofia, no nível das relações entre as esferas, na sistemática universal e na perspectiva Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 85 histórica do sistema. Os vários graus de organização do sistema filosófico hegeliano, desde, por exemplo, da Lógica da essência a partir da qual podem se pensadas disciplinas, partindo paras as correspondências entre a Lógica e o Real e os campos de intersecção entre os diferentes campos epistemológicos, avançando o processo de sistematização nas transversalizações que atravessam o sistema constituem os caminhos da interdisciplinaridade hegeliana. O atual parâmetro epistemológico e acadêmico, que tem nos conceitos de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade os conceitos fundantes, torna o sistema filosófico hegeliano atual. Na atualidade, a organização dos saberes estabelece limites flexíveis e dinâmicos entre as disciplinas e as áreas do saber, com conceitos, concepções e teorias que não são exclusivas para uma ciência e uma área do saber, mas que transmigram epistemologicamente por vários saberes. Sabe-se que, na atualidade, conceitos que surgiram num campo do saber, consolidam-se em outros universos epistemológicos e se tornam conceitos que efetivam a interdisciplinaridade. A filosofia hegeliana como um todo apresenta vários graus de circularidade com limites dinâmicos de intercircularidade e interrelacionalidade. Isto comprova a existência de conceitos e disciplinas que atravessam epistemologicamente o sistema e em cada disciplina particular há conceitos e estruturas universais que a fundamentam. Ao longo do artigo apontamos várias disciplinas filosóficas que Hegel distribui ao longo do sistema filosófico e o conjunto epistemológico que representam. Uma leitura aprofundada da Ciência da Lógica, por exemplo, é um único curso que reúne metafísica, ontologia, teologia racional, epistemologia filosófica, lógica, história da filosofia etc. É impossível delimitar de forma rigorosa estas disciplinas dentro da obra hegeliana. A interdisciplinaridade é evidenciada, conforme apontamos no artigo, na conjugação de áreas do saber, e da filosofia com a filosofia do real na Filosofia da Natureza, na Filosofia da História, na Filosofia da Religião, na Filosofia do Direito etc. Referências ANGEHRN, Emil. Freiheit und System bei Hegel. Berlim: Walter de Gruyter, 1977. 86 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 BOURGEOIS, Bernard. A enciclopédia das ciências filosóficas de Hegel. In: HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas. São Paulo: Loyola, 1995. p. 373-443. 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