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Brasília, 28 de Janeiro de 2014
A construção da democracia
Autor(es): Entrevista Francis Fukuyama
Veja - 21/10/2013
O cientista político americano afirma que o Brasil ainda não possui as bases de uma sociedade
avançada e diz que a manutenção da desigualdade pode levar ao radicalismo.
Por que alguns países se desenvolvem e outros permanecem arados pelo atraso? Para o cientista político Francis
Fukuyama, as teorias sobre o desenvolvimento quase sempre pecam pela "abstração excessiva (o vício dos
economistas)" ou pelo "particularismo excessivo (problema comum a muitos historiadores e antropólogos)".
Fukuyama, famoso mundialmente pelo livro O Fim da História e o Úhimo Homem, de 1992, procurou estabelecer
uma análise mais abrangente da evolução institucional no correr dos séculos, até o surgimento das primeiras
nações verdadeiramente avançadas. Em As Origens da Ordem Política, lançado originalmente em 2011 e
publicado no Brasil pela Rocco, Fukuyama trata do período que vai da Antiguidade até a Revolução Francesa. No
próximo ano, sairá o segundo volume de seu trabalho, Ordem Política e Decadência Política, em que estende a
história até os dias atuais. A construção das modernas democracias será o centro da palestra de encerramento
que o cientista político dará no seminário "O Brasil diante de um mundo em crise e transformação: riscos e
oportunidades", em 29 de outubro, em São Paulo, promovido pela consultoria Tendências. Fukuyama, 60 anos,
atualmente é professor da Universidade Stanford.
Em As Origens da Ordem Política, o senhor argumenta que existem três elementos indispensáveis para a
construção de uma sociedade virtuosa e desenvolvida. São eles: Estado forte, Estado de direito e governo
responsável perante a sociedade. Por que esses componentes são vitais?
O Estado é a expressão maior do poder, como o poder de aplicar as leis e de oferecer certos serviços exclusivos
para a população. Um Estado moderno é aquele capaz de cumprir essas funções de maneira impessoal. Isso
significa um Estado que trate todos os seus cidadãos de maneira indistinta, independentemente de eles possuírem
conexões com autoridades. O verdadeiro significado de Estado de direito é a limitação do poder. O poder deve ser
exercido unicamente dentro da lei.
Em certo sentido, Estado forte e Estado de direito são forças que empurram para lados opostos. Estado forte diz
respeito a concentrar e exercer o poder, e Estado de direito diz respeito a limitar o poder. Governo responsável
significa um Estado que trabalha para o interesse comum. A maneira mais usual de avaliar se o governo cumpre
seus objetivos é por meio de eleições livres e multipartidárias.
Eleições bastam para avaliar um governante?
Nem sempre. Existem países onde a população vai às umas. mas nem por isso podemos dizer que se trata de
governos responsáveis. Podemos estar diante de governos corruptos, que manipulam os resultados das votações,
ou de situações em que os eleitores não possuem as informações necessárias para fazer as escolhas corretas.
Uma ordem política moderna, portanto, depende de um Estado que exerça o poder, de leis que sejam respeitadas
e limitem efetivamente o poder e de um sistema que avalie se o governo atua em benefício da população. É muito
difícil, para qualquer sociedade, possuir esses três valores simultaneamente. Podemos pensar na China. O país
possui um Estado forte e competente, mas não dispõe de um Estado de direito nem de eleições livres.
O Brasil evoluiu bastante nas últimas décadas. O senhor acredita que o país já possui esses três componentes de
um Estado moderno?
Não há dúvida de que as instituições brasileiras fizeram um progresso extraordinário. Existem áreas de excelência
dentro da burocracia federal. Mas quando observamos abaixo da superfície, principalmente no nível de estados e
municípios, vemos uma queda na qualidade dos serviços, sobretudo em educação, saúde e segurança pública.
Ainda há muito a ser feito. Assim como em outros países da América Latina, a principal falha está na capacidade
de oferecer os serviços básicos de maneira satisfatória.
Por que o Brasil e outros países latino-americanos enfrentam tamanha dificuldade para modernizar as suas
instituições?
Existem, em primeiro lugar, razões históricas. Os espanhóis e os portugueses implantaram na região suas
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instituições pré-modernas. Além disso, não foram sociedades compostas inteiramente de colonos europeus, mas
sobrepostas, de maneira desigual, a uma vasta população de indígenas, tratados como escravos. No Brasil, assim
como no Caribe, a economia foi moldada ao redor do açúcar, uma agricultura baseada em grandes propriedades e
mão de obra escrava. Trata-se de um modelo cujo resultado é a desigualdade. Não havia os incentivos para
constituir uma burocracia administrativa de qualidade nas colônias. Em razão desse estágio inicial de profunda
desigualdade, as instituições foram se moldando para servir às elites. Nunca houve o princípio de oferecer
educação de qualidade a toda a população. Desde que a elite estivesse atendida, bastava.
Por que outros países, principalmente na Ásia, conseguiram se desenvolver em um espaço relativamente curto de
tempo, ao contrário do que vemos na América Latina?
O Japão, a Coreia do Sul, Taiwan, todos os chamados Tigres Asiáticos, possuem população relativamente
pequena, muito mais homogênea, além de um forte senso de identidade nacional. Isso facilitou. Esses países
investiram muito na formação de uma elite burocrática altamente capacitada. Houve ainda o investimento maciço
em educação. Na América Latina, historicamente mais desigual, a trajetória tem sido mais lenta. Houve avanço
no acesso da população ao ensino, mas persiste um grande desnível na qualidade da educação, sobretudo aquela
oferecida aos mais pobres. Os países asiáticos foram capazes de resolver essa questão mais rapidamente.
O senhor, assim como outros autores, argumenta que países com grande desigualdade de renda e oportunidades
são suscetíveis a retrocessos institucionais.
É algo que pode ocorrer no Brasil, portanto?
Acredito existir uma vulnerabilidade. O Brasil acaba de sair de uma década positiva, com crescimento econômico.
avanços sociais, redução da pobreza. Mas, se a China desacelerar, o boom das exportações de commodities ficará
para trás. A economia andará mais devagar. Isso traz consequências políticas. E fácil manter os eleitores felizes
quando as coisas vão bem e a economia cresce rápido, mesmo em uma sociedade profundamente desigual. Fica
mais difícil manter a coesão social quando a economia está estagnada. O Brasil estará vulnerável a retrocessos,
caso volte a ter uma década de crescimento lento.
A chamada Primavera Árabe poderá, no futuro, culminar em países mais democráticos?
Acredito que sim. O problema é que as expectativas com relação à democratização no mundo árabe têm sido
exageradas. Não se pode perder de vista como foi difícil estabelecer as bases para a democracia na Europa. Esses
processos não ocorrem da noite para o dia. Ainda levará tempo, ao menos duas gerações, para que vejamos a
formação de instituições realmente democráticas no mundo árabe.
Existem semelhanças entre esses movimentos e os protestos recentes na Turquia e também no Brasil?
São protestos tipicamente originários de uma classe média descontente. Os protestos sociais e as revoluções
nunca se originam dos pobres. Na Turquia e no Brasil, houve um aumento da classe média. Existe, portanto, um
número maior de pessoas mais bem-educadas, detentoras de alguma propriedade e que utilizam a tecnologia
para se conectar com o resto do mundo. São indivíduos cujas expectativas em relação ao governo são superiores
às de seus pais. A população passa a reivindicar a melhoria dos serviços públicos, o fim da corrupção, o respeito
ao meio ambiente. As exigências aumentam quando os países ficam mais ricos, e, se os governos não atendem a
essas demandas, eles ficam vulneráveis. A desigualdade, quando extrema, dá chance ao populismo e a políticas
radicais. Por isso, todas as sociedades avançadas implementaram algum grau de Estado de bem-estar social. Essa
talvez seja a grande falha da América Latina. Os países da região nunca fizeram o suficiente para promover uma
redistribuição de riquezas capaz de dissipar a radicalização política e o populismo.
O Fim da História..., publicado em 1992, é um dos marcos da nova era da globalização. Houve a queda do Muro
de Berlim, o colapso da União Soviética, e o capitalismo liberal tomou-se de fato a força hegemômica. Mas,
recentemente, o senhor tem demonstrado certo pessimismo em relação ao estado atual das democracias liberais.
Por quê? É extremamente difícil constituir um Estado democrático moderno bem-sucedido, bem mais difícil do que
eu imaginava há vinte anos. E ao contrário do que eu também imaginava no passado, esses estados também são
suscetíveis à decadência, com o passar do tempo. Nada assegura que um país será para sempre uma democracia
avançada apenas porque o foi no passado. Para os Estados Unidos, os últimos dez anos foram terríveis. Invadimos
o Iraque, e depois tivemos essa crise financeira horrível. Foram falhas de políticas de governo, que abalaram o
prestígio dos Estados Unidos como modelo internacional e expõem problemas estruturais mais profundos. Tendo
isso em vista, pensei ser necessário ajustar um pouco o pensamento.
O senhor está particularmente preocupado com a erosão na classe média americana. Não acha que se trata de
uma situação transitória, um reflexo do crescimento ainda fraco na economia?
Infelizmente, temo que a deterioração da qualidade de vida da classe média americana não seja algo transitório.
Ela se deve, essencialmente, à tecnologia. As máquinas são capazes de substituir milhões de trabalhadores, e é
mais fácil substituir trabalhadores de baixa qualificação. É por isso que está ocorrendo uma erosão na classe
média nos países desenvolvidos, e não apenas nos Estados Unidos. Não vejo como impedir o progresso
tecnológico. Obviamente não seria uma solução inteligente.
Por que essa nova revolução tecnológica não será positiva para a sociedade como um todo, da mesma maneira
como foi, no passado, a industrialização?
Quando Henry Ford inventou a linha de montagem para automóveis, há 100 anos, ele, na verdade, gerou
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empregos para milhares de pessoas com baixa qualificação. Antes, fabricar um carro exigia o trabalho artesanal
de pessoas habilidosas e bem preparadas. Ford criou um processo pelo qual uma atividade complexa podia ser
feita por trabalhadores com pouca qualificação. Agora, os robôs estão cada dia mais tomando o lugar dos
empregos antes ocupados por pessoas menos qualificadas. Não falo apenas das linhas de montagem. Já é simples
substituir funcionários em cargos administrativos, em áreas como contabilidade e recursos humanos, por
programas de inteligência artificial. Mas não se podem substituir, da mesma maneira, as pessoas altamente
capacitadas responsáveis por projetar essas máquinas. É por isso que uma tração crescente da renda dos Estados
Unidos tem ido para as pessoas extremamente bem preparadas e com grande habilidade cognitiva.
O senhor diz que a agenda para proteger a classe média não pode depender exclusivamente dos benefícios da
rede de proteção do bem-estar social. O que fazer então?
Gostaria de ter essa resposta. Estamos todos à espera de uma cabeça genial que formule um programa para
enfrentar com sucesso esse desafio.
O sistema educacional não foi capaz de acompanhar essa transformação tecnológica. Não deu às pessoas os tipos
de habilidade necessários para que elas possam ser competitivas. Alguns países parecem ter sistemas que lidam
melhor com esse desafio. O caso mais óbvio é a Alemanha. Os alemães não criaram grandes universidades como
a de Stanford, ou o MIT, mas são ótimos em preparar as pessoas e dotá-las das habilidades necessárias para
trabalhar na indústria. A Alemanha é um grande exportador. Talvez exista algo mais a ser aprendido com esse
país. Mas não tenho uma resposta inteiramente satisfatória para sua questão.
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