ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES 77 Christian Meier, a identificação íntima dos cidadãos com a esfera pública, transcendendo o indivíduo privado, por meio das solidariedades festivas, construindo, dessa forma, interesses comuns (MEIER, 1990, p.21). A democracia ateniense fazia confundir, de fato, a pólis com os seus cidadãos – era isso que denotava o termo politeía – é por isso que Licurgo enxergava, e com razão, a precisão da reconstrução do kósmos ateniense, o qual havia perdido muito de seu potencial de mobilização dos cidadãos em torno das necessidades comunitárias e tradicionais. Antes mesmo de Felipe avançar sobre toda a Hélade, Demóstenes já tentara “pegar na mão do povo” (como nos conta Jaeger), mas ele mesmo apontava o erro: “Sóis vós os culpados de os macedônios vos terem desalojado pouco a pouco e serem hoje uma potência a qual muitos de vós julgais fazer frente” (JAERGER, 1995, p.1397). Desse modo, Licurgo já havia aprendido o que era preciso para que, assim que fosse possível, reaver a liberdade da política internacional e tentar afastar o jugo macedônico em Atenas, e, diferentemente do passado, mobilizar o apoio dos demoi10. Com certeza, era um sentimento antimacedônio que corria mormente por trás das reformas religiosas licurguianas. Poseidon, divindade patrona de Atenas, não por acaso teria seu principal culto no maior porto da Ática, seu local de proteção por excelência, e sua exaltação reconstituída a partir de um trabalho que tivera origem no rearranjo da frota e dos muros que ligavam a região à cidade, apontava, possivelmente, ao passado, quando Atenas vivera um império marítimo e com tal cuidado que outros cultos eram instalados no 10 Provavelmente fora por isso, também, que logo depois saber da morte de Alexandre os partidários de Licurgo conseguiram apoio no dēmos para levar adiante sua participação na Guerra Lamíaca em 323-322 a.C., que colocou a liga chefiada por Atenas – em coalizão com os etólios, locrianos e fócios – contra as tropas macedônias de Antipatro. É o que afirma Claude Mossé em Alexandre, o Grande: “Ele [um certo decreto] atesta que, mesmo antes da morte de Alexandre, a maioria do demos (conjunto dos cidadãos) ateniense estava pronta para seguir os oradores do ‘partido’ antimacedônio e iniciar hostilidades” (69).