J Bras Nefrol 2001;23(4):213-16 213 Anticoagulação na síndrome nefrótica da infância: a relação dose-efeito do warfarin Anticoagulation in nephrotic syndrome of childhood: the relation dose-effect of warfarin Letícia Emy Tsujimoto Sato e Vera Maria Santoro Belangero Resumo Objetivo Descrever a experiência obtida no tratamento da trombose em casos de SN, enfatizando a determinação da dose ótima do warfarin. Métodos Foram revisados os casos pediátricos de síndrome nefrótica com trombose venosa ou arterial, entre 1989 e 1999, para determinar a dose ótima de warfarin utilizada. Resultados De 129 pacientes acompanhados com tempo médio de seguimento de 32,9 meses, sete apresentaram episódios de trombose, dos quais, em quatro, pôdese obter a dose ótima de anticoagulante para a obtenção de RNI próximo a 2,0; a dose foi de 0,06 mg/kg/dia a 0,1 mg/kg/dia. Conclusão Esses resultados sugerem que a hipoalbuminemia seja responsável pelo aumento da droga livre circulante (warfarin), permitindo o uso de doses menores do que aquelas recomendadas a pacientes nefróticos. Abstract Departamento de Pediatria FCM Unicamp. Campinas, São Paulo,SP, Brasil. Endereço para correspondência: Vera Maria Santoro Belangero Rua Pandiá Calógeras, 51/91 Cambuí, Campinas, SP Tel: (0xx19) 251-7633 E-mail: [email protected] Warfarin. Síndrome nefrótica. Infância. Trombose arterial. Trombose venosa. Nephrotic syndrome. Warfarin. Childhood. Arterial thrombosis. Venous thrombosis. 3-1349anticoag.p65 213 Objective The objective was to describe the results obtained while treating nephrotic syndrome patients with thrombosis, stressing the optimal warfarin doses. Methods Cases of pediatric nephrotic patients with arterial or venous thrombosis from 1989 to 1999 were reviewed to assess the adequate warfarin doses. Results Of the 129 patients followed up for an average of 32.9 months, 7 developed thrombosis and in 4 of them the optimal warfarin doses could be estimated to a RNI close to 2.0. The doses ranged from 0.06 to 0.1 mg/kg/day. 11/12/01, 11:35 214 J Bras Nefrol 2001;23(4):213-16 Sato LET & Belangero VMS - Dose do warfarin em SN Conclusion These findings suggest that hypoalbuminemia can increase the amount of drug free in the blood, enhancing warfarin therapeutic effects and allowing a low therapeutic doses. Introdução Os efeitos fisiopatológicos da proteinúria na síndrome nefrótica (SN) são responsáveis por grande parte da morbidade dessa entidade clínica. Particularmente, a hipoalbuminemia tem sido implicada direta ou indiretamente na tendência à hipovolemia e na intensidade da hiperlipidemia.1 A tendência à hipercoagulação é resultado de múltiplos fatores, incluindo a elevação dos níveis séricos de: fatores I, V, VII, VIII; fator de Van Willebrand; betatromboglobulina associada à diminuição de fatores IX, XI, XII; antitrombina III e antiplasmina; e aumento do número de plaquetas e da capacidade de agregação plaquetária.2 A tendência à hipovolemia e à presença de hiperlipidemia também podem atuar indiretamente, gerando aumento da viscosidade do plasma.2 Fatores genéticos que levam à hipercoagulabilidade não têm sido associados à trombofilia da SN.3 No entanto, o efeito da hipoalbuminemia na farmacocinética de drogas foi pouco estudado até a realização deste estudo.4 Como os episódios tromboembólicos correspondem às complicações potencialmente graves da síndrome nefrótica, e, no seu tratamento, o uso de warfarin é de grande utilidade, resolveu-se avaliar a dose utilizada desse anticoagulante em crianças com síndrome nefrótica descompensada e com diagnóstico de trombose venosa ou arterial, em que estivesse indicado o uso de anticoagulantes. Métodos De dezembro de 1980 a novembro de 1999, 129 pacientes foram cadastrados no ambulatório de nefropediatria com diagnóstico clínico de SN. Destes, 112 pacientes tiveram o prontuário revisto, obtendo-se o tempo médio de seguimento de 32,9 meses. Dentre esses pacientes, sete apresentaram trombose (duas arteriais e cinco venosas), correspondendo à prevalên- 3-1349anticoag.p65 214 cia de 6,2%. Destes, três prontuários estavam com dados incompletos, não sendo possível analisá-los. Os outros quatro casos incluíam três crianças do sexo masculino e uma do sexo feminino. Desses quatro pacientes, foram avaliados os dados clínicos e laboratoriais presentes na época do episódio de trombose. Os episódios de trombose venosa ou arterial foram definidos basicamente por meio de diagnóstico clínico, confirmado por ultra-sonografia com doppler. Na trombose venosa profunda, foi observada a presença de edema assimétrico com empastamento do membro e dor durante a palpação, e, na trombose arterial foram observadas alterações clínicas evidentes da alteração da perfusão como esfriamento do local, cianose com ou sem dor. A conduta terapêutica inicial incluiu o uso de heparina endovenosa ou subcutânea durante a fase aguda do episódio de trombose, seguido do uso de anticoagulante oral, sendo a dose diária individualizada com monitoramento do tempo de protrombina, em todos os pacientes, expresso pelos valores internacionais, o RNI [relação normalizada internacional RNI = RTPISI (índice de sensibilidade internacional)], a partir dos quais as doses de warfarin foram ajustadas. Os exames laboratoriais, como a eletroforese de proteínas, proteinúria de 24 horas, creatinina sérica, colesterol e triglicérides, e a resposta do RNI ao uso de anticoagulante foram realizados no Laboratório de Patologia Clínica do HC/Unicamp. A eletroforese de proteínas (g/dl) foi determinada em acetato de celulose, sendo as proteínas totais determinadas pelo método de biureto;5 a proteinúria de 24 horas foi dosada quantitativamente em urina de 24 horas pelo método de ácido sulfossalicílico a 3%;5 a creatinina sérica (mg/dl) foi dosada pelo método automatizado (aparelho Cobas Mira) baseado na reação de Jaffé, em que se desproteiniza amostras ictéricas, hemolisadas, lipidêmicas ou turvas; a quantidade de colesterol total (mg/dl) foi determinada pelo método enzimático-colorimétrico;6 o coagulograma completo foi obtido por método manual e automatizado apare- 11/12/01, 11:35 J Bras Nefrol 2001;23(4):213-16 215 Sato LET & Belangero VMS - Dose do warfarin em SN lhos Ortho e Organon (RNI: normal até 1,25); e o hemograma completo foi feito pela contagem global automatizada (contador eletrônico), e o diferencial, por microscopia e automação.6 O primeiro caso de trombose venosa ocorreu em 1993 e foi tratado de acordo com a dose preconizada de anticoagulante oral para crianças 0,2 mg/Kg (dose de ataque).7 Depois de 12 horas, esse paciente apresentou RNI superior a 6,0, indicando que a dose havia sido excessiva. Esse caso serviu de alerta aos cuidados a ser tomados quanto ao uso dessa droga em nefróticos, o que levou à conduta de se iniciar, em outros casos, com doses menores e acompanhamento diário do RNI. Essas doses eram iniciadas com ¼ de comprimido de warfarin 5 mg e, se houvesse necessidade de aumento, após 24 horas, acrescentava-se dose semelhante. A medicação era, então, mantida por até seis horas do episódio agudo de trombose. No revisar dos prontuários dos pacientes, foram levantadas as doses diárias prescritas e o valor do RNI, além de determinar qual a dose, em mg/kg/dia, que havia sido suficiente para se obter e manter RNI próximo a 2,0 mg/kg/dia. Resultados De acordo com o apresentado, foram estudadas as seguintes características clínicas em quatro pacientes: sexo; peso; estatura; e laboratoriais: albumina (alb), proteinúria de 24 horas (prot. 24 hs), colesterol total/ triglicérides (col T/Tgc), creatinina sérica (Crs) e hemoglobina/hematócrito (Hb/Hc (Tabela 1). As doses de warfarin em mg/kg/dia, o uso de outras drogas que podem alterar o valor do RNI, bem como o RNI correspondente encontrado para cada dose estão apresentados na Tabela 2. A evolução clínica dos pacientes com trombose apresentou bons resultados quanto à reperfusão dos locais acometidos. Nos casos de trombose, observouse, como seqüela, a circulação colateral visível em casos de trombose venosa profunda. Discussão O warfarin é um anticoagulante indireto (antagonista da vitamina K), derivado cumarínico, cujo mecanismo de ação é na interferência da síntese hepática dos fatores dependentes de vitamina K, diminuindo a síntese hepática de protrombina e dos fatores II,VII, IX, X. A resposta terapêutica depende do tempo em que se obtém a depleção dos fatores de coagulação.8 Essa droga pode ser administrada por via oral, intramuscular, endovenosa ou retal, com absorção rápida pelo trato gastrintestinal. Na sua distribuição, o warfarin é quase totalmente ligado às proteínas plas- Tabela 1 Dados clínicos e laboratoriais dos pacientes analisados Caso 1 2 3 4 Nome ACZJ FRC SDS GOA Sexo M M F M Peso/Estatura 17,7/ 100,9 41,4/ 151,0 35,5/ 134,0 25,8/ 119,0 Alb 0,81 1,16 1,10 1,60 Prot 24h 388 110 180 60 Col T/ 445/ 497/ 303/ 512/ TGLS 284 250 100 466 Crs 1,87 0,73 0,45 0,44 Hb/ 10,7/ 11,3/ 11,1/ 14,3/ Htc 31,2 33,0 35,2 42,3 Peso (Kg) e Estatura (cm); Alb= albuminemia (g%); Prot. 24h = proteinúria de 24 horas (mg/kg/dia); Col T= colesterol total (mg%); TG = triglicérides (mg%); Crs = creatinina sérica (mg%); Hb/Htc = Hemoglobina (g%) e hematócrito (%). Tabela 2 Apresentação do tipo de heparina utilizada na fase inicial da terapia e da dose de warfarin associada à manutenção do RNI próximo a 2,0; drogas em uso pelo paciente no período do episódio tromboembólico por períodos variados de tempo Caso Uso inicial de heparina 1 Endovenosa 2 Endovenosa 3 Subcutânea 4 Subcutânea *AAS foi iniciado após o diagnóstico de trombose. 3-1349anticoag.p65 215 warfarin (mg/kg/dia) 0,07 0,06 0,07 0,10 RNI 2,5 1,99 2,07 2,4 11/12/01, 11:35 Drogas em uso AAS* prednisona prednisona e ranitidina AAS*, prednisona e ranitidina 216 J Bras Nefrol 2001;23(4):213-16 Sato LET & Belangero VMS - Dose do warfarin em SN máticas (99%), principalmente à albumina. A droga se distribui rapidamente em um volume equivalente ao espaço da albumina (0,14l/kg). É inativada pelo fígado e rins e eliminada na forma de metabólitos inativos. Possui uma meia-vida de 37 horas, e sua concentração eficaz é de 2,2 ± 0,4 µg/ml.8 A elevada ligação à albumina faz dela um protótipo de droga, cuja a farmacocinética depende da ligação protéica. Teoricamente, indivíduos com perda protéica poderiam necessitar de maior dose para um mesmo efeito terapêutico.8 No entanto, em situações de hipoalbuminemia e perda protéica, essas drogas tenderiam a apresentar elevação da concentração de droga livre, dependente da diminuição da albuminemia, segundo a seguinte equação:9 Ganeval, em estudo realizado em 1986,3 usou uma dose de 8,0 mg de warfarin em adultos com SN, que não apresentavam trombose, e observou que houve aumento da droga livre, aumento do clearance renal da droga, efeito terapêutico máximo em 18 horas e que uma mesma dose poderia ser excessiva ou insuficiente, dependendo do paciente. No presente estudo, os pacientes estavam em uso de outras medicações (prednisona e ranitidina) que poderiam aumentar o valor do RNI,10 e a magnitude desse efeito não pode ser computada. No entanto, os dados apresentados neste estudo sugerem que, em situações em que a hipoalbuminemia está associada à perda protéica, podem ocorrer níveis elevados de droga livre, desde que foi observado efeito terapêutico da droga com doses menores do que aquelas recomendadas. Tal fato faz uma alerta à possibilidade de que outras drogas, com farmacocinética semelhante, possam necessitar de adequação das doses em casos de SN descompensada. 3-1349anticoag.p65 216 Agradecimentos Agradecemos à Profa. Dra. Joyce M. A. Bizzacchi e à Profa. Dra. Gun Birgitta Bergsten Mendes pela colaboração prestada para a realização deste artigo. Referência 1. Llach F. Hypercoagulability, renal vein thrombosis, and other thrombotic complications of nephrotic syndrome [editorial review]. Kidney Int 1985;28:429-39. 2. Andrassy K, Ritz E, Bommer J. Hypercoagulability in the nephrotic syndrome. Klin Wochenschr 1980;58:1029-36. 3. Fabri D, Belangero VMS, Annichino-Bizzacchi JM, Arruda VR. Inherited risk factors for thrombophilia in children with nephrotic syndrome. Eur J Pediatr 1998;157:939-42. 4. Ganeval D, Fischer AM, Barre J, Pertuiset N, Dautzenberg M, JungersP, et al. Pharmacokinetics of warfarin in the nephrotic syndrome and effect on vitamin K-dependent clotting factors. Clinic Nephrol 1986;25:75-80. 5. RJ Henry, DC Cannon y Winkelman. Diagnóstico clínico e tratamento por métodos laboratoriais. Nelson DA & Tomar HR (Eds). Ed Manole,18a Ed.,1995 6. Manual de Exames. Departamento de Patologia Clínica da FCM- Unicamp, 1998. 7. Evans DIK, Rowlands M, Poller L. Survey of oral anticoagulant treatment in children. J Clinic Pathol 1992;45:707-8. 8. Hardman JG & Limbid LE. Goodman Gilmans. The pharmacological Basis of Therapheutics. JoelG. Hardman (Ed), McGraw-Hill Professional Publishing, USA, 9a Ed.,1996. 9. Weismn RS, Howland MA, Reynolds JR, Smith C. Pharmacokinetics and Toxicokinetic Principles. In: Goldfrank LR, Flomenbaum NE, Lewin NA, Weisman RS, Howland MA, Hoffman RS, editors. Goldfranks Toxicology Emergencies. 5th ed. Connectast: Appleton & Lange; 1994. p. 85-98. 10. Michelson AD, Chair, Bovill E, Monagle P, Andrew M. Antithrombotic Therapy in Children. Chest 1998;114:748s-69s. Fonte de financiamento e conflitos de interesse inexistentes 11/12/01, 11:35