O TERMO MORAL (texto condensado através de recortes da referida obra*) O termo “moral” é utilizado hoje em dia de maneiras muito diferentes, dependendo dos contextos.Essa multiplicidade de usos dá lugar a muitos mal-entendidos. [...] O termo “moral” como substantivo. A. Emprega-se às vezes como substantivo (“a moral”, com minúscula e artigo definido), para referir-se a um conjunto de princípios, preceitos, comandos, proibições, permissões, normas de conduta, valores e ideais de vida boa que, em seu conjunto, constituem um sistema mais ou menos coerente, próprio de um grupo humano concreto em uma determinada época histórica. Nesse uso do termo, a moral é um sistema de conteúdos que reflete determinada forma de vida. Esse modo de vida não costuma coincidir totalmente com as convicções e os hábitos de todos e de cada um dos membros da sociedade tomados isoladamente. [...] A moral é, portanto, nessa acepção do termo, um determinado modelo ideal de boa conduta socialmente estabelecida e, como tal, pode ser estado pela Sociologia, pela História, pela Antropologia Social e pelas outras Ciências Sociais. [...] B. Também como substantivo, o termo “moral” pode ser usado para fazer referência ao código de conduta pessoal de alguém, como quando dizemos que “fulano possui uma moral muito rígida” ou que “Beltrano carece de moral”. Falamos então do código moral que guia os atos de uma pessoa concreta ao longo de sua vida: trata-se de um conjunto de convicções e pautas de conduta que costuma constituir um sistema mais ou menos coerente e serve de base para os juízos morais que cada um faz dos outros e de si mesmo. Esses juízos, quando são emitidos em condições ótimas de suficiente informação, serenidade, liberdade, etc., são chamados às vezes de “juízos ponderados”. Tais conteúdos morais concretos, pessoalmente assumidos, são uma síntese de dois elementos: a. o patrimônio moral do grupo social a que alguém pertence e b. a própria elaboração pessoal com base no que alguém herdou do grupo; essa elaboração pessoal está condicionada por diferentes circunstâncias, tais como idade, condições socioeconômicas,biografia familiar, temperamento, habilidade para raciocinar corretamente etc. Embora em geral a maior parte dos conteúdos morais do código moral pessoal coincida com os códigos moral social, não é obrigatório que seja assim. De fato, os grandes reformadores morais da humanidade, tais como Confúcio, Buda, Sócrates ou Jesus Cristo, foram em certa medida rebeldes ao código moral vigente em seu mundo social. Tanto a moral socialmente estabelecida como a moral pessoal são realidades que correspondem ao que Aranguren chamou de “moral vivida”, para contrapô-la à “moral pensada”, de que falaremos em seguida. C. Freqüentemente se usa o termo “Moral” também como substantivo, mas desta vez com maiúscula, para referir-se a uma “ciência que trata do bem em geral, e das ações humanas conforme marcadas pela bondade ou pela malícia”. Pois bem, essa suposta “ciência do bem em geral” a rigor não existe. O que existe é uma variedade de doutrinas morais (“moral católica”, “moral protestante”, “moral comunista”, “moral anarquista” etc.) e uma disciplina filosófica, a Filosofia Moral ou Ética, que por sua vez contém uma variedade de teorias éticas diferentes e até contrapostas entre si (“ética socrática”, “ética aristotélica”, “ética kantiana” etc.) [...] D. Existe um uso da palavra “moral” como substantivo que nos parece extraordinariamente importante pra compreender a vida moral: referimo-nos à expressão que a utilizam no masculino, tais como “ter o moral bem elevado”, “estar com o moral alto”, além de outras semelhantes. Aqui moral é sinônimo de “boa disposição de espírito”, “ter forças, coragem ou confiança suficiente para 2 fazer frente – com dignidade humana – aos desafios que a vida nos apresenta”. Essa acepção tem uma profunda significação filosófica, tal como mostram Ortega e Aranguren[1]. A partir dessa perspectiva, a moral não é apenas um saber, nem um dever, mas, sobretudo, uma atitude e um caráter, uma disposição da pessoa inteira que abarca o cognitivo e o emocional, as crenças e os sentimentos, a razão e a paixão, em suma, uma disposição de espírito (individual ou comunitária) que surge do caráter que se tenha forjado previamente. E. Por fim, existe a possibilidade de empregar o termo “moral” como substantivo genérico: “a moral”. Desse modo, estaremos nos referindo a uma dimensão da vida humana: a dimensão moral, ou seja, essa faceta compartilhada por todos e que consiste na necessidade inevitável de tomar decisões e levar a termo ações pelas quais temos que responder diante de nós mesmos e diante dos outros, necessidade essa que nos impulsiona a buscar orientações nos valores, princípios e preceitos que constituem a moral no sentido que expusemos anteriormente (acepções A e B). O termo “moral” como adjetivo Até aqui utilizamos uma série de expressões nas quais o termo “moral” aparece como adjetivo: “Filosofia moral”, “código moral”, “princípios morais”, “doutrinas morais” etc. [...] Aqui apenas apontaremos brevemente dois significados muito diferentes que o termo “moral” empregado como adjetivo pode adotar. Em princípio, e seguindo J. Hierro, podemos dizer que o adjetivo “moral” tem sentidos diferentes. A.”Moral” como oposto a “imoral”. Por exemplo, diz-se que este ou aquele comportamento é imoral, ao passo que aquele outro é um comportamento realmente moral. Nesse sentido é usado como termo valorativo, porque significa que uma determinada conduta é aprovada ou reprovada; aqui se está utilizando “moral” e “imoral” como sinônimo de moralmente “correto” e “incorreto”. Esse uso pressupõe a existência de algum código moral que serve de referência para emitir o correspondente juízo moral. Assim, por exemplo, pode-se emitir o juízo “a vingança é imoral” e compreender que esse juízo pressupõe a adoção de algum código moral concreto para o qual essa afirmação é válida, ao passo que outros códigos morais – digamos, os que aceitam a Lei de Talião – não aceitariam a validade desse juízo. B.”Moral” como oposto a “amoral”. Por exemplo, a conduta dos animais é amoral, isto é, não tem nenhuma relação com a moralidade, pois se supõe que os animais não são responsáveis por seus atos. Menos ainda os vegetais, os minerais ou os astros. Em contrapartida, os seres humanos que atingiram o desenvolvimento completo, e na medida em que possam ser considerados “senhores de seus atos”, têm uma conduta moral. Os termos “moral” e “amoral” assim entendidos não avaliam, mas descrevem uma situação: expressam que uma conduta é ou não suscetível de qualificação moral porque reúne, ou não reúne, os requisitos indispensáveis para ser posta em relação com as orientações morais (normas, valores, conselhos, etc.). A ética tem que esclarecer quais são concretamente esses requisitos ou critérios que regulam o uso descritivo do termo “moralidade”. Essa é uma das suas tarefas principais e dela falaremos nas páginas seguintes. Sem dúvida, esta segunda acepção de “moral” como adjetivo é mais básica que a primeira, uma vez que só pode ser qualificada de “imoral” ou de “moral” no primeiro sentido aquilo que possa ser considerado “moral” no segundo sentido. [...] O TERMO “ÉTICA” Freqüentemente utiliza-se a palavra “ética” como sinônimo do que anteriormente chamamos de “a moral”, ou seja, esse conjunto de princípios, normas, preceitos e valores que regem vida dos 3 povos e dos indivíduos. A palavra “ética” procede do grego ethos, que significava originalmente “morada”, “lugar em que vivemos”, mas posteriormente passou a significar “o caráter”, o “modo de ser” que uma pessoa ou um grupo vai adquirindo ao longo da vida. Por sua vez, o termo “moral” procede do latim mos, moris, que originalmente significava “costume”, mas em seguida passou a significar também “caráter” ou “modo de ser”. Desse modo, “ética” e “moral” confluem etimologicamente em um significado quase idêntico: tudo aquilo que se refere ao modo de ser ou caráter adquirido como resultado de pôr em prática alguns costumes ou hábitos considerados bons. Dadas essas coincidências etimológicas, não é de estranhar que os termos “moral” e “ética” apareçam como intercambiáveis em muitos contextos cotidianos: fala-se, por exemplo, de uma “atitude ética” para designar uma atitude “moralmente correta” segundo determinado código moral; ou diz-se que um comportamento “foi pouco ético” para designar para significar que não se ajustou aos padrões habituais da moral vigente. Esse uso dos termos “ética” e “moral” como sinônimos está tão difundido que não vale a pena tentar impugná-lo. Mas convém ter consciência de que esse uso denota, na maioria dos contextos, o que aqui denominamos “a moral”, ou seja, a referência a algum código moral concreto. Não obstante isso, podemos nos propor a reservar – no contexto acadêmico em que nos movemos aqui – o termo “Ética” para nos referir à Filosofia moral, mantendo o termo “moral” para denotar os diferentes códigos morais concretos. Essa distinção é útil, pois se trata de dois níveis de reflexão diferentes, dois níveis de pensamento e linguagem acerca da ação moral, o que justifica a utilização de dois temos diferentes se não queremos cair em confusões. Assim, chamamos de “moral” esse conjunto de princípios, normas e valores que cada geração transmite à geração seguinte na confiança de que se trata de um bom legado de orientações sobre o modo de se comportar para viver uma vida boa e justa. E chamamos de “Ética” essa disciplina filosófica que constitui uma reflexão de segunda ordem sobre os problemas morais. A pergunta básica da moral seria então: “O que devemos fazer?”, ao passo que a questão central da ética seria antes: ”Por que devemos fazer?”, ou seja, “Que argumentos corroboram e sustentam o código moral que estamos aceitando como guia de conduta?” A ética não é nem pode ser “neutra” A caracterização da Ética como Filosofia Moral leva-nos a enfatizar que essa disciplina não se identifica, em princípio, com nenhum código moral determinado. Pois bem, isso não significa que permaneça “neutra” diante dos diferentes códigos morais que existiram ou possam existir. Tal “neutralidade” ou “assepsia axiológica” não é possível, uma vez que os métodos e objetivos próprios da Ética a comprometem com certos valores e a obrigam a denunciar alguns códigos morais como “incorretos” ou até mesmo como “desumanos”, enquanto outros podem ser reafirmados por ela na medida em que os considere “razoáveis”, “recomendáveis” ou até mesmo “excelentes”. No entanto, não é certo que a investigação ética possa nos levar a recomendar um único código moral como racionalmente preferível. Dada a complexidade do fenômeno moral e a pluralidade de modelos de racionalidade e de métodos e enfoques filosóficos, o resultado tem que ser necessariamente plural e aberto. Mas isso não significa que a Ética fracasse em seu objetivo de orientar de modo mediato a ação das pessoas. Em primeiro lugar, porque diferentes teorias éticas podem dar como resultado algumas orientações morais muito semelhantes (a coincidência em certos valores básicos que, embora não estejam de todo incorporados à moral vigente, são justificados como válidos). Em segundo lugar, porque é muito possível que os progressos da própria investigação ética cheguem a evidenciar que a missão da Filosofia moral não seja a justificação racional de um único código moral propriamente dito, mas sim um quadro geral de princípios morais básicos dentro do qual diferentes códigos morais mais ou menos compatíveis entre si possam legitimar-se como igualmente válidos e respeitáveis. O quadro moral geral assinalaria as 4 condições que todo código moral concreto teria de cumprir para ser racionalmente aceitável, mas essas condições poderiam ser cumpridas por uma pluralidade de modelos de vida moral que rivalizariam entre si, mantendo-se desse modo um pluralismo moral mais ou menos amplo. Funções da ética Em nosso modo de ver, corresponde à Ética uma tripla função: 1) esclarecer o que é a moral, quais são seus traços específicos; 2) fundamentar a moralidade, ou seja, procurar averiguar quais são as razões que conferem sentido ao esforço dos seres humanos de viver moralmente; 3) aplicar aos diferentes âmbitos da vida social os resultados obtidos nas duas primeiras funções, de maneira que se adote nesses âmbitos sociais uma moral crítica (ou seja, racionalmente fundamentada), em vez de um código moral dogmaticamente imposto ou da ausência de referências morais. Ao longo da história da Filosofia ofereceram-se diferentes modelos éticos que procuram cumprir as três funções anteriores: são as teorias éticas. As éticas aristotélica, utilitarista, kantiana e discursiva são bons exemplos desse tipo de teorias. São constructos filosóficos, geralmente dotados de um alto grau de sistematização, que tentam dar conta do fenômeno da moralidade em geral e da preferibilidade de certos códigos morais, na medida em que estes se ajustam aos princípios de racionalidade que regem o modelo filosófico de que se trata. [...] *Bibliografia: CORTINA, A. e MARTINEZ, E. Ética . São Paulo: Loyola, 2005. [1] J. ORTEGA Y GASSET. Por qué he escrito El hombre a la defensiva, in Obras completas, Madrid, Revista de Occidente, 1947, 72, v. IV; J.L.L. ARANGUREN, Ética, Madrid, Revista de Occidente, 1958, 81.