Ÿ - Falsafa

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MIGUEL ATTIE FILHO
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FALSAFA
A Filosofia entre os Árabes
São Paulo
2001
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
»€€¬Ÿ
FALSAFA
A Filosofia entre os Árabes
SUMÁRIO
Tabela de transliteração das letras árabes ....................................................................4
Tabela de pronúncia .....................................................................................................5
Introdução .....................................................................................................................6
1 – ALGUNS INTRÓITOS
1.1
A importância do estudo da falsafa........................................................8
1.2
A origem e o significado do termo falsafa.............................................9
1.3
As principais características da falsafa ................................................12
1.4
Árabes, islâmicos e muçulmanos ........................................................14
1.5
Filosofia árabe ou filosofia islâmica ? .................................................17
1.6
História do pensamento e história da filosofia ....................................21
1.7
Filosofia e teologia ..............................................................................23
1.8
Filosofia e mística ................................................................................27
2 – UM TAQUINHO DE UMA HISTÓRIA DA FILOSOFIA
2.1
...e, afinal, onde estamos?....................................................................31
2.2
Divisões na História ...........................................................................35
2.3
Os períodos da Filosofia......................................................................39
2.4
Alguns ditos sobre a filosofia dos medievais .....................................42
2.5
Um panorama religioso da época .......................................................46
2.6
O saber e alguns de seus centros ........................................................52
2.7
A chegada dos árabes .........................................................................57
3 – NO ISL¿
¿M NASCENTE
3.1
A Arábia pré-islâmica..........................................................................59
3.2
O Profeta Mu¬ammad ........................................................................61
3.3
O Alcorão ...........................................................................................64
3.4
A expansão muçulmana .....................................................................66
3.5
Os Omíadas ........................................................................................67
2
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
3.6
Os Abássidas.......................................................................................68
3.7
Os primeiros intérpretes ......................................................................72
3.8
O Kalām ..............................................................................................74
4 – “IDE BUSCAR O SABER ATÉ NA CHINA”... A RECEPÇÃO
4.1
Uma herança do saber ........................................................................78
4.2
Primeiras traduções..............................................................................81
4.3
Hunayn e a Casa da Sabedoria ...........................................................83
4.4
De Aristóteles a ArisÐýÐālis ................................................................87
4.5
De Platão a AflaÐýn ............................................................................91
4.6
De Plotino a AfluÐ÷n – o “mestre grego” – .......................................94
4.7
Outras presenças .................................................................................98
5 – A FALSAFA E OS FAL¶SIFA
5.1
Al-Kind÷, o anfitrião .........................................................................100
5.2
Al-Fārāb÷, o inventor ........................................................................121
5.3
Ibn S÷nā, o sistematizador .................................................................143
5.4
Al-¦azāl÷, o batedor .........................................................................172
5.5
Ibn Ru¹d, o reformador ....................................................................196
6 – AS DUAS FACES DA FALSAFA
6.1
O pouso das águias ...........................................................................220
6.2
Caminhos para o “Oriente” ...............................................................221
6.3
Caminhos para o “Ocidente” .............................................................225
6.4
Traduções para o latim ......................................................................227
6.5
A recepção dos árabes-filósofos .......................................................230
6.6
Maimônides e a falsafa......................................................................234
6.7
Santo Alberto e os medievais latinos ................................................235
À guisa de conclusão ...............................................................................................238
Bibliografia............. .................................................................................................240
3
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Tabela de transliteração das letras árabes
[
]
a
e
i
m
q
u
w
ā
b
t
t
j
¬
æ
d
d
Vogais
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´
_’_ u
( Â ä)
4
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Tabela de pronúncia
Letra
[
]
a
e
i
m
q
u
w
y
{
}
‚
†
nome tranlist. som aproximado
Letra
_______´____ a
Š
Ž
’
–
š
ā
¢
¦
ª
®
²
¶
¼
¾
Æ
_______ ____ i
´
______ ’_____ u
(Õ
alef
ā
aspirar
be
b
beleza
te
t
toda
te
t
think (ing.)
jim
j
junto
¬e
¬
H - aspirado
æ
æ
juego (esp.)
del
d
divino
del
d
those (ing.)
re
r
roda
zain
z
zero
sin
s
seguir
¹in
¹
chance
½ad
Vogais breves
½
Seguir - enfático
nome tranlist. som aproximado
Åad
Å
Those - enfático
tá
Ð
Todo - enfático
dzá
Þ
Zero - enfático
‘ain
‘
--------------
§ain
§
--------------
fe
f
feliz
qaf
q
quente
kef
k
construir
lam
l
longo
mim
m
memória
nun
n
nada
he
h
heaven (ing.)
wau
ý/ w
um
ie
÷/y
inominável
’
-----------
---------- â
--------------)
hamza
( ÅA-----------AäA
5
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
INTRODUÇÃO
Este não é um escrito para especialistas na filosofia em árabe mas se
destina, com mais propriedade, aos estudantes de filosofia e ao público em geral,
limitando-se a contornos de caráter introdutório ao tema. Não pretendi, também,
escrever uma “História da Filosofia” no mundo islâmico. O meu objetivo foi mais
singelo: traçar um roteiro mínimo dentro da História e da Filosofia que pudesse
fornecer ao leitor um quadro da localização da falsafa como um momento crucial para
se compreender com mais clareza alguns aspectos do curso de transformações do
pensamento filosófico tanto do Oriente como do Ocidente. Para tal, procurei apresentar
alguns temas principais que compõem o cenário da falsafa para ser um guia de
assuntos ao leitor. Desse modo, é inegável que o caráter panorâmico deste trabalho
carrega todas as dificuldades e os riscos que são inerentes a tal opção. No entanto,
espero que, futuramente, outros autores venham a contribuir para preencher as lacunas
que aqui se apresentam.
Vale adiantar que o termo “falsafa” significa “filosofia”. Neste trabalho,
porém, adquire um sentido mais específico, e é entendido como o período clássico da
filosofia entre os árabes, a partir do movimento de recepção e desenvolvimento da
filosofia grega nas terras dominadas pelo Islām circunscrito entre os sécs VIII d.C. / II
H. e XIII d.C. / VII H. Visto, portanto, como um segmento histórico da filosofia, a
“falsafa” a qual me refiro é um movimento que inicia-se com as obras de Al-Kind÷ e se
encerra com a morte de Ibn Ru¹d sem que, com isso, se comprometa a sua
continuidade, quando entendida de modo genérico.
Uma importante razão que pode levar o estudante e pesquisador de
filosofia a dirigir sua atenção à falsafa é, em primeiro lugar, o seu relevante papel no
cenário histórico da filosofia do Oriente e do Ocidente. Além dessa importância
histórica, ressalte-se que a envergadura de suas teses traz elementos enriquecedores à
cena do debate filosófico. Muitas vezes, esse papel de primeira importância não é
reconhecido com evidência tanto pela dificuldade de informações como pela escassez
de obras especializadas em nosso idioma a esse respeito.
Neste trabalho, inicialmente, são analisados alguns conceitos que
guardam uma proximidade com a falsafa, tais como, os termos “árabe”, “islâmico”,
“filosofia” e “teologia”, indicando direções pelas quais essas discussões caminham
atualmente. Em seguida, são abordados alguns pontos da História da Filosofia no
6
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Ocidente, particularmente a respeito do período medieval, objetivando fornecer uma
localização da falsafa do ponto de vista histórico e filosófico. Após esse quadro geral
da História da Filosofia, há algumas informações básicas sobre o momento histórico do
surgimento da religião islâmica. Com o estabelecimento do texto sagrado dos
muçulmanos – o Alcorão – e a expansão do Islām, a atenção se dirige ao período de
traduções da ciência e da sabedoria dos antigos para a língua árabe. Em seguida, são
apresentadas algumas características básicas do pensamento dos quatro nomes de
maior envergadura da falsafa, ou seja, Al-Kind÷, Al-Fārāb÷, Ibn S÷nā (Avicena) e Ibn
Ru¹d (Averróis) e, também, alguns pontos da polêmica de Al-¦azāl÷. Ao final, há
algumas indicações a respeito dos caminhos seguidos pela falsafa no Oriente e no
Ocidente.
Em todo esse trajeto, o meu maior intuito foi oferecer um conjunto
mínimo de informações que se traduzisse num estímulo para que, no futuro, os estudos
a respeito da falsafa, aqui no Brasil, estejam de acordo com sua importância histórica
e filosófica, encontrando espaço junto ao meio acadêmico para criar uma base mínima
para que outros possam continuar sem interrupção.
Setembro de 2001
7
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
1 – ALGUNS INTRÓITOS
1.1
A importância do estudo da falsafa.
Mesmo que não pretendessemos contar a História da Filosofia ocidental
em algumas páginas, mas procurássemos apenas traçar uma linha mínima que ligasse
as principais etapas da História da Filosofia, seria natural que tivessemos em mente
que, de algum modo, o mais atual pensamento do mais jovem filósofo do nosso planeta
teria alguma relação com o mais antigo pensamento do mais antigo filósofo da História
da Humanidade; fosse essa relação, uma relação de proximidade e concordância ou
fosse de afastamento e divergência. É justamente por admitirmos que tal relação é
inerente às diversas manifestações filosóficas que podemos justificar o porquê damos
a isso o nome de “História da Filosofia” e, também, o porquê do interesse em pesquisála.
Ao nos habituarmos em estabelecer um diálogo com a filosofia é
comum estarem presentes em nossas reflexões filósofos como Aristóteles, Platão,
Heráclito, e grande parte dos filósofos da antiga Grécia. Além desses, por vezes
fazemos figurar pensadores do Ocidente medieval latino como Agostinho, Rogério
Bacon e Tomás de Aquino. A estes, não raro, podemos acrescentar igualmente os
nomes de alguns modernos como Hegel, Kant, Nietzsche, Descartes e outros. Mesmo
sabendo que tais pensadores possuem extremas diferenças filosóficas entre si, não nos
sentimos cometendo nenhuma contradição em reuní-los, pois sabemos que todos são
tributários dos argumentos da razão – propósito da filosofia – para superar os desafios
particulares que se-lhes apresentaram em cada época. Se isso nos é natural, não
devemos ter, pois, a menor hesitação em trazer às nossas reflexões, por exemplo, os
nomes de Al-Kind÷, Ibn S÷nā, Al-Fārāb÷ e Ibn Ru¹d que são os nomes mais
representativos da falsafa, tendo sido a justo título conhecidos também como os
“filósofos árabes helenizados”.
Nascidos no período medieval em terras dominadas pelo Islām, entre os
sécs. VIII e XII d. C./ II e VI H., esses pensadores foram denominados, em árabe, pelo
termo “falāsifa”1, isto é, “filósofos” em vista de sua arte: a “falsafa”, isto é, a
“filosofia”. Em suas obras, justifica-se tal denominação em virtude de haver traços
profundos e marcantes de grande parte da tradição da filosofia e da ciência antiga dos
1
No singular, failasýf (filósofo).
8
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
gregos. O fato de tais pensadores estarem inseridos numa cultura mais distante da
nossa, talvez nos desse a falsa impressão de que o mundo árabe e o mundo islâmico
pouco teriam a acrescentar às nossas discussões histórico-filosóficas em vistas da
formação do nosso pensamento ocidental. Porém, ao se entrar em contato com as obras
dos falāsifa pode-se verificar que eles adotaram os princípios da filosofia através das
demonstrações lógicas, estabelecidos principalmente por Aristóteles para superar os
desafios impostos pelas mais variadas questões que se-lhes apresentaram. Assim, é
natural que eles figurem juntamente com os grandes nomes da História da Filosofia.
Curiosamente, em muitos aspectos, a sua importância se deu mais em vista do impacto
causado na História da Filosofia do Ocidente do que na do próprio Oriente. De todo
modo, a falsafa é um dos elos mais esclarecedores para a compreensão dos caminhos
da filosofia no período medieval visto que se deu no mesmo período em que o
Ocidente esteve sob a denominação (às vezes injusta) de Idade das Trevas.
Uma das coisas que mais chama a atenção ao atento estudante de
filosofia é que, não raras vezes, os manuais de História da Filosofia – ao tratarem do
período medieval – passam de Agostinho (séc. IV d. C.) a Tomás de Aquino (séc. XIII
d.C.) sem dar a devida atenção ao que ocorreu nesse ínterim, o que indiretamente acaba
reforçando que, nesse período, o conhecimento científico e filosófico teriam ficado
estagnados. Tal julgamento não pode se aplicar ao lado oriental medieval, pois neste, o
que se viu, permite considerá-lo como um dos períodos mais luminosos da História:
grandes avanços foram realizados em praticamente todas as áreas do conhecimento e,
de modo particular, na filosofia.
1.2
A origem e o significado do termo “falsafa”.
A transcrição do termo grego φιλοσοφια (filosofia) para a língua
árabe resultou no termo »€€¬Ÿ ( falsafa ). Vale esclarecer que se, por um lado, na
língua grega, os morfemas φιλια / σοφια (filia/sofia) se unem para dar, entre outras, a
idéia de “amor à sabedoria”, por outro lado, em árabe – assim como nas transcrições
que encontramos em outras línguas como, por exemplo, “philosophia” em latim;
“philosophie” em francês e alemão; “philosophy” em inglês etc. – a idéia que liga os
conceitos de amor e de sabedoria se dá somente por uma analogia e um retorno ao
termo grego. Os vocábulos usados para significar “amor” e “sabedoria”, na língua
árabe, não possuem qualquer semelhança com os radicais gregos decorrendo, portanto,
9
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
que no vocábulo »€€¬Ÿ ( falsafa ) não há qualquer idéia que provenha dos radicais
próprios da língua árabe. É uma pura transcrição da língua grega.
Mesmo não sendo o caso de nos aprofundarmos na discussão de
significados dos termos gregos e nem de fazer corresponder com rigidez os termos
gregos aos termos árabes, podemos aludir ao fato de que alguns conceitos que podem
se incluir no conceito de φιλια (filia) são, por exemplo, o conceito de amor, de paixão,
de amizade, de desejo e de inclinação da alma. No caso do conceito de σοφια (sofia),
podemos incluir nele os conceitos de sabedoria, ciência e conhecimento.
Quanto a φιλια (filia) há três termos na língua árabe que podem se
aproximar de sua definição:
`o
(¬ub), »£[vˆ (½ad÷q) e ¢„— (þi¹q). Os dois
primeiros, apesar de serem usados com frequência na língua árabe, não tiveram um uso
muito corrente no vocabulário da falsafa. No caso de `o (¬ub), sua aplicação se dá
mais propriamente ao amor no sentido da ternura, do carinho e do afeto podendo ser
traduzido como o amor num sentido mais amplo. O segundo termo – »£[vˆ (½ad÷q) –
se traduz por amizade, porém sua raiz original remete à noção de autenticidade,
sinceridade, veracidade e outros termos afins. E, talvez, justamente pelo fato de uma
amizade não poder prescindir de todos esses atributos é que, na língua árabe, o termo
“amizade” provém daqueles primeiros conceitos. Por fim, a idéia de amor no sentido
da paixão e da inclinação do desejo, encontra sua melhor tradução no termo ¢„—
(þi¹q). Ibn S÷nā, por exemplo, ao fazer uso desse termo não o restringe meramente ao
sentido material da atração carnal mas, procura espiritualizá-lo no sentido metafísico
do movimento da hierarquia dos seres em direção à causa final. Nesse sentido, o termo
¢„— (þi¹q) guarda também uma certa proximidade com o conceito de ερωσ (eros) e,
no vocabulário filosófico é, pois, o que mais se aproxima também da idéia de
φιλια (filia).
Em relação ao termo σοφια (sofia), há três termos na língua árabe que
estão relacionados ao sentido de sabedoria, de ciência e de conhecimento. São eles:
±¬— (‘ilm ), »Ÿz˜° ( ma‘rifa ) e »°¨n (¬ikma). Esses três termos possuem um uso
frequente na linguagem filosófica entre os árabes. No primeiro caso – ±¬— (‘ilm ) –,
10
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
sua melhor correspondência é o termo ciência. Com mais frequência foi esse o termo
utilizado para traduzir a noção grega de επιστηµη (episteme). No vocabulário da
falsafa é com ±¬— (‘ilm ) que se expressa, por exemplo, a noção de “ciência divina”,
“ciência da natureza” “ciência da alma”, “ciência da lógica” etc. Nos dias de hoje,
grande parte da denominação das ciências modernas e suas variantes como, por
exemplo, Biologia, Sociologia, Economia e Ecologia é antecedido pelo termo ±¬— (‘ilm
). Quando se predica à alguém o adjetivo ±«\— (‘÷lm), o sentido mais apropriado é o de
que esse alguém é douto, erudito, diplomado. O mesmo termo também é usado para
designar o cientista.
No segundo caso, isto é, »Ÿz˜° (ma‘rifa), este deriva da raiz do verbo
āz— (‘arafa) que significa conhecer. Assim, o termo »Ÿz˜° (ma‘rifa) pode ser
traduzido por “conhecimento”. É com esse termo, por exemplo, que Ibn S÷nā afirma
que “o fim da filosofia especulativa é o conhecimento da verdade, e o fim da filosofia
prática é o conhecimento do bem” 2. Mas, num outro sentido, há certa nuance nesse
termo: ao analisá-lo, Goichon aproxima-o do termo grego γνωσισ (gnosis). Assim, por
exemplo, ao se predicar alguém com o adjetivo ¡¿z— (‘ar÷f ), pode se indicar o
caráter do conhecimento do iniciado, do que tem acesso ao saber esotérico, oculto.
Por fim, é mais propriamente com o termo »°¨n (¬ikma) que
encontramos a melhor aproximação da noção de sabedoria. Esse foi o termo usado na
tradução do grego σοφια (sofia). Em alguns casos, esse termo também é usado com o
sentido de ciência – ±¬— (‘ilm) – e conhecimento – »Ÿz˜° (ma‘rifa) – Porém,
enquanto os dois primeiros denotam um tipo de saber mais indicativo, o espectro mais
amplo do conceito »°¨n (¬ikma) é o que mais se aplica no caso do vocabulário
filosófico para designar a extensão do conceito “sabedoria”. Por essa razão, às vezes,
»°¨n (¬ikma) também, foi usado como sinônimo do próprio conceito de filosofia. Se
os antigos gregos chamavam um homem sábio de σοφοσ (sofos), em árabe ele seria
denominado ±À¨n (¬ak÷m). Vocábulos como “governador”, “juiz”, “árbitro” e outros,
2
Cf. GOICHON, Vocabulaire, p. 19 e Lexique, p.221.
11
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
também derivam da mesma raiz, remetendo a um sentido mais abrangente do conceito
de sabedoria.
Na medida em que, tanto nas línguas ocidentais modernas como na
língua árabe, o termo “filosofia” foi uma importação de origem grega, é natural que em
todas elas tenha havido uma apropriação do vocábulo. Nesse sentido é comum, por
exemplo, – tanto em árabe como em português –, se dizer que um tal homem pensativo
é um “filósofo” ou que determinada pessoa possui uma “filosofia de vida”. No entanto,
pode haver sutis diferenças nessas mesmas afirmações pois a intensidade com que o
Ocidente e o Oriente assimilaram algumas tradições da filosofia da antiga Grécia não
foi a mesma. Talvez, por isso, a falsafa fôra, em muitos casos, mais estrangeira para os
árabes do que a filosofia o foi para os ocidentais.
1.3
as principais características da falsafa.
Preenchendo páginas e mais páginas em língua árabe, os falāsifa
desenvolveram suas teses entre os séculos VIII e XII d. C. / II e VI H. Portanto, a
principal característica da falsafa é ser medieval. Tal condição traz consigo uma grande
bagagem de pré-conceitos a respeito da Idade Média e, conseqüentemente, da filosofia
praticada nesse período. Se a binômia tabuleta em que se lê “razão e fé” pôde guardar
um olhar estreito em relação ao todo da filosofia medieval, mais ainda poderia sê-lo em
relação à falsafa. A isso se acrescenta, não raramente, uma visão distorcida dos povos
semitas, de modo geral, e dos árabes, em particular.
Outra característica da falsafa é ter sido uma novidade no cenário da
filosofia que, até então, já havia se construído e se alicerçado ao longo de, pelo menos,
1200 anos. Afinal, até o séc. VIII d.C., a filosofia havia se desenvolvido
principalmente entre os povos gregos, no interior do império romano e entre a
cristandade do Oriente e do Ocidente. A novidade repousa no fato de que, nesse
panorama de povos e culturas, também passou a figurar o povo árabe. E, do mesmo
modo, que o helenismo, quando absorvido por outras culturas, teve que se adaptar às
características locais, o mesmo aconteceu no caso da falsafa. Os ingredientes da
filosofia e das ciências gregas também se adaptaram à cultura e à religião dos árabes.
Esse encontro resultou numa filosofia original e renovada que não se confunde com
particularidades filosóficas anteriores. Além disso, a filosofia que havia sido, até então,
um patrimônio praticamente exclusivo da língua grega, latina e siríaca, chegou, pela
12
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
primeira vez, a ser escrita em língua árabe. Nesse caso, não é difícil imaginar que os
termos e os conceitos filosóficos tiveram de seguir um novo itinerário para serem
adaptados ao novo idioma.
Outro ponto relevante é o fato de a filosofia se confrontar com uma
nova religião. O islamismo recebeu a filosofia pouco mais de 150 anos após o seu
nascimento. A filosofia, nascida entre os mitos gregos, transportada juntamente com os
deuses para o panteão de Roma, absorvida pelos padres da igreja para cimentar os
dogmas da cristandade, havia se confrontado, até então, com outras formas de religião
mas não ainda com o islamismo. Foi a falsafa que se encarregou de fazer com que os
princípios filosóficos se deparassem, pela primeira vez, com os dogmas da religião
islâmica, o que foi, sem dúvida, um novo desafio para ambas.
A falsafa foi a responsável não só pela imersão do pensamento da
filosofia grega entre os árabes mas também pela transmissão da filosofia grega ao
Ocidente. Na medida em que o paradigma grego foi um dos responsáveis pela
construção filosófica do Ocidente, não é difícil imaginar que a falsafa ocupa um lugar
histórico muito peculiar. Sobre o meridiano da filosofia oriental e ocidental, a meio
caminho da contemplação de dois – ou mais – caminhos, a falsafa contribuiu
sobremaneira para inúmeras transformações da filosofia do Oriente e do Ocidente. É
assim que, por exemplo, muitas teses desenvolvidas no interior da falsafa possuem –
aos moldes das duas faces da alma propostas por Ibn S÷nā – duas frontes distintas: uma
voltada para o Oriente e a outra para o Ocidente. Como bem assinalou Carra de Vaux,
“esta escola se divide em dois ramos: o oriental e o ocidental. Al-Kind÷, Al-Fārāb÷,
Avicena são nomes célebres do primeiro ramo; Ibn Bāja, Ibn Æufayl, Averróis, os do
segundo ramo.” 3
Talvez se Voltaire tivesse conhecido, além dos infindáveis volumes
escritos pelos pensadores do Ocidente medieval, também os dos falāsifa, certamente
teria continuado a exclamar de que tudo deveria ser colocado em dicionários. E isso
não seria à toa, pois uma das características comum aos falāsifa, que chama muito a
atenção, é o número de suas obras. Os títulos de Al-Kind÷, citados por Badawi em sua
Histoire de la Philosophie Islamique, chega ao número de 241; no caso de Al-Fārāb÷,
mais de 120; para Ibn S÷nā, Anawati cataloga 276 obras; para Ibn Ru¹d, Badawi
apresenta uma lista de 92 títulos. Algumas dessas obras não chegaram até nós, muitas
3
Cf. VAUX, C. Les penseurs de l’Islam, pp. 1s.
13
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
encontram-se ainda em manuscritos arquivados em bibliotecas, algumas foram
editadas em árabe, as mais importantes tiveram traduções para o latim durante a Idade
Média e pouquíssimas foram traduzidas para as línguas modernas.
Os temas abordados pelos falāsifa cobriram grande parte dos
conhecimentos da época: lógica, física, matemática, metafísica, medicina, astronomia,
música, psicologia, ética e política. Pelo fato de haver, dentre essas obras, comentários
sobre Aristóteles e, em menor número, sobre outros autores, muitas vezes se quis
reduzir o papel da falsafa a esses comentários. Há muito, porém, as pesquisas a
respeito da falsafa, já se incumbiram de mostrar o quanto a denominação de
“comentadores” era restrita e imprecisa para designar o trabalho realizado por esses
pensadores. Se o comentário foi uma realidade entre os falāsifa, tanto o foi, também, o
desenvolvimento de uma filosofia original, de grande envergadura, por parte de cada
um deles.
1.4
Árabes, islâmicos e muçulmanos
Apesar de muitas vezes serem tomados um pelo outro, esses três termos
não são sinônimos. Certamente, podem ter mais de um sentido dependendo do modo
como são empregados mas, geralmente, os encontramos utilizados a partir de uma
distinção bàsica: o termo “árabe” geralmente é utilizado no sentido da língua, da
cultura, da política ou da etnia e não no sentido religioso; o termo “islâmico” guarda o
caráter da religião, mas também do Estado ou da cultura e não da etnia; o termo
“muçulmano”, aplica-se às pessoas adeptas à religião islâmica, mas que não são,
necessariamente, árabes. De todo modo, passemos a verificar com mais detalhes tais
significados.
Dentre os inúmeros sentidos em que é usado, o termo “árabe”, pode ser
entendido a partir de duas vertentes principais: o conceito “árabe” utilizado em sua
origem e o sentido atual que guarda em nossos dias. Talvez a melhor maneira de
abordar esse espinhoso assunto seja compreender um pouco da história dos povos
chamados árabes e as transformações que esse termo sofreu ao longo desse percurso.
Os árabes fazem parte dos povos semitas. A primeira notícia que se tem a respeito
desses povos, de modo geral e, dos árabes e da região da Arábia, em particular,
remonta ao Antigo Testamento. No capítulo 10 do Livro do Gênesis, o povoamento da
terra é apresentado pela descendência de Noé a partir de seus três filhos: Sem, Cam e
14
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Jafé. Os árabes fazem parte do conjunto de povos que se formaram a partir da
descendência de Sem e, por essa razão, foram chamados “semitas”. O capítulo em
questão termina do seguinte modo:
“Esses foram os filhos de Sem, segundo seus clãs e suas línguas,
segundo suas terras e suas nações. Esses foram os clãs dos
descendentes de Noé, segundo suas linhagens e segundo suas nações.
Foi a partir deles que os povos se dispersaram sobre a terra depois do
dilúvio.”4
O conjunto dos povos semitas localizou-se preferencialmente na região da
Mesopotâmia e originou as civilizações antigas que ocuparam essas terras. Os
babilônios, caldeus, fenícios, hebreus, sírios, assírios e os árabes são, portanto, todos
primos. Por volta de 850 a.C. já era possível encontrar em inscrições assírias e
babilônicas termos equivalentes ao vocábulo “árabe”. A literatura grega clássica,
através de Heródoto, também menciona não só os árabes como também a região da
Arábia. Em princípio, o termo “árabe” se aplicou mais precisamente aos beduínos e à
população nômade do deserto da Arábia em oposição à população sedentária das
cidades. Restrito a esse sentido, “a forma mais pura de árabe é a dos beduínos, os quais
preservaram com maior fidelidade do que quaisquer outros o modo de vida e a língua
árabe originais.”5
Em português, o termo “árabe” é derivado diretamente do original ]z—
(‘arab) que é um coletivo: os árabes. No caso do adjetivo, que para nós possui a
mesma forma, no original sofre uma alteração para Á^z— (‘arabiy ). As derivações a
partir dessa raiz englobam todos os termos afins como, por exemplo, “arabismo”,
“arábico” e “arabizar”. O termo “hebreu” ¾z_— ( ‘ibriy ) deriva de uma raiz
semelhante que se diferencia pela inversão da segunda com a terceira letra formando o
verbo z_— (‘abara ) que significa atravessar, passar.
A partir do séc. VII d.C / I H. com o surgimento do Islām, a aplicação
do termo “árabe” começou a ganhar novas variantes. As conquistas que se sucederam
logo após a morte do profeta Mu¬ammad, estenderam o império do norte da India ao
sul da Espanha. Nesse primeiro período o califado esteve em poder dos árabes e,
4
5
Gênesis, X, 31-32.
Cf. LEWIS, B. Os árabes na história, p.17.
15
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
mesmo com a rápida expansão que se verificou, o termo “árabe” ainda se aplicava
somente aos que falavam a língua árabe e descendiam de algumas tribos árabes. No
entanto, à medida que outros povos foram adotando a língua e a religião dos árabes
como, por exemplo, os sírios e os egípcios, o termo “árabe”começou a migrar em
direção a uma conotação mais próxima tanto do conceito religioso como do línguístico,
pois, tanto a língua como a nova religião haviam sido geradas no seio do povo árabe.
Como bem assinalou Lewis, “a partir do século VIII d.C / II H. o
califado foi se transformando gradualmente de um império árabe num império
islâmico”. O Califado Omíada que durou por pouco mais de 100 anos, desde o
estabelecimento do Islām, esteve em poder dos árabes. Em meados do século VIII d.C.
/ II H. a hegemonia árabe sobre o império começou a se perder. Os Abássidas, de
origem persa, assumiram o califado e transferiam a capital de Damasco para Bagdá.
Nessa época os interesses do império já não eram mais exclusivamente árabes. Esse foi
um marco importante no distanciamento entre os conceitos “’arabe” e “islâmico”. Não
é difícil perceber que à medida que esse processo de transformação dos povos
convertidos encontrava mais acolhida no termo “islâmico” do que no termo “árabe”, as
discussões entre os dois conceitos se mantiveram acesas e chegaram até os dias atuais.
Questões como “medicina árabe” ou “medicina islâmica” e, no nosso caso, “filosofia
árabe” ou “filosofia islâmica” têm suas raízes nesse processo histórico de
desenvolvimento do islamismo desde a península arábica até os limites de hoje.
Atualmente, o termo “árabe” é aplicado num sentido mais genérico
designando não somente os árabes que habitam a Arábia mas também os que habitam
outros países tais como o Egito, Marrocos, Síria, Líbano e Iraque. Por outro lado os
países árabes não designam a totalidade dos países islâmicos. Isso quer dizer que
“árabe” e “islâmico” não são sinônimos, assim como “árabe”e “muçulmano” também
não o são: há muçulmanos que não são árabes e árabes que não são muçulmanos.
Nesse sentido, os árabes vêem a si mesmos como uma grande nação. Do mesmo modo
que os países da Europa vêem a si mesmo como uma unidade, os árabes entendem ser
uma nação nos limites daqueles que “falam a língua árabe e são sensíveis à memória da
glória árabe passada”6 possuindo uma divisão apenas geográfica e política, que teve,
entre outras causas, o próprio colonialismo europeu.
6
Cf. LEWIS, B. Os árabes na história, p.21.
16
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Na língua árabe, os termos “Islām”e “muçulmano” derivam de uma
mesma raiz:
conceitos
±¬€
como
(salima). A ideía geral aplicada a esta raiz engloba uma série de
“paz”,
“saúde”,
“benevolência”,
“integridade”,
“proteção”,
“resignação”, “hospitalidade” e outros tantos ligados a um ótimo sentimento. O termo
®Ø€[
(Islām), derivando dessa raiz, se traduz no sentido de confiança em Deus,
resignação a Deus, conformação a Deus ou submissão a Deus. A adjetivação desse
termo resultou em ¾¯Ø€[ (islāmiy) que se traduziu por “islâmico”. Logo, aquele que
aceita o princípio contido no termo ®Ø€[ ( Islām ) é um ±¬~¯ ( muslim ), termo que
se traduz por “muçulmano”. Apesar de não haver uma regra rigorosa, o termo
“islâmico” geralmente é usado no sentido das idéias e dos ideais contidos no Islām, ao
passo que o termo “muçulmano” aplica-se com mais frequência à pessoa, ao sujeito
concreto que pratica os ideais do Islām. Assim como do verbo ±¬— (‘alima ) – saber –
se retira aquele que pratica o saber, isto é, o ±¬˜¯ (mu‘allim ) – professor –, do mesmo
modo a prefixação “mu” indica, em
±¬~¯ (muslim) a noção do sujeito concreto. Por
isso é mais comum encontrarmos “filosofia islâmica” e “filósofo muçulmano” e não o
contrário, apesar de que, em casos como “mundo islâmico”, pode se encontrar também
“mundo muçulmano”. No entanto o primeiro se mantém no sentido dos ideais do Islām
e o segundo denota o conjunto dos sujeitos concretos.
1.5
Flosofia árabe ou filosofia islâmica?
Definir o termo mais apropriado para designar o conjunto de
manifestações da filosofia no período da falsafa esbarrou na variedade e na
complexidade que lhe foram inerentes. Como seria possível reunir sob um mesmo
nome as obras medievais escritas não só em língua árabe, mas também em persa e em
hebraico; não só por muçulmanos, mas também por cristãos e por judeus ? Na década
de 50, por ocasião do Congresso de Filosofia Medieval em Louvain, Georges Anawati,
um nome respeitável no estudo da falsafa, patrocinou uma enquete para tentar fixar a
denominação desse período da História da Filosofia. Se a quase sinonímia entre o
17
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
conceito “árabe” e o conceito “muçulmano” esteve quase sem restrições entre os
medievais do Ocidente, a realidade do século XX se incomodou com essa situação. O
próprio Anawati, iniciou a enquete sabendo que sua primeira opção não era definitiva:
“Empregamos a expressão “filosofia árabe”, mas observamos
imediatamente o perigo do exclusivismo que ela pode apresentar.
Pensamos, em particular, nos nossos amigos iranianos, preocupados,
com justiça, em salvaguardar os direitos de seu inestimável patrimônio
filosófico.”7
A resposta do ministro iraniano ‘Ali Asghar Hekmat confirmou a negativa por parte
dos iranianos, nos seguintes termos:
“No que concerne a denominação “filosofia árabe”, este termo me
parece inexato e estimo ser preferível (ý) “ filosofia muçulmana” que é,
sem dúvida, mais apropriada e menos contestada.”8
M. Achena, tradutor de uma obra escrita em persa por Ibn S÷nā9, fez uma dupla crítica
a esse impasse, dizendo:
“Mesmo que nos resignássemos, por razões práticas ou outras, a uma
tal escolha, o título de “filosofia árabe” e de “filosofia muçulmana”
seriam assaz impróprios. Eles tem o incoveniente de dizer o que não
devem dizer e de não dizer aquilo que devem dizer.”10
As principais justificativas em defesa de uma ou de outra posição foram publicadas
por Anawati, ilustrando bem as dificuldades impostas numa decisão de consenso. Na
mesma época Henry Corbin preparou a sua História da Filosofia Islâmica. A
substituição do termo “muçulmano” pelo termo “islâmico” ganhou terreno nos anos
seguintes. O projeto de Corbin pretendeu focalizar os autores islâmicos com ênfase na
espiritualidade persa. Mesmo que, em princípio, parecesse mais consistente, o trabalho
de Corbin deixou de fora autores cristãos e judeus que escreveram em árabe e que
estavam em estreita ligação com o pensamento dos autores muçulmanos. Em defesa
da denominação “filosofia islâmica” Corbin entendeu que o uso do termo “filosofia
árabe” desde a Idade Média já não mais cabia nos dias atuais. Mesmo reconhecendo
que o profeta Mu¬ammad era árabe, que a língua da revelação foi o árabe e que, ao
7
ANAWATI, G. Études de philosophie musulmane, p. 23.
ANAWATI, G. Études de philosophie musulmane, p. 23.
9
AVICENNE, Le Livre de Science. Traduction du texte perse Danesh #ama par Mohammad Achena e
Henri Massé . Paris: Les Belles Letres, 1986./
10
ANAWATI, G. Études de philosophie musulmane, p. 24.
8
18
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
menos na base do islamismo, o elemento árabe foi preponderante, Corbin aludiu ao
fato de que o termo “árabe”, teria se alterado profundamente, significando um conceito
étnico, nacional e político preciso com o qual não coincidiriam totalmente o conceito
religioso “Islām” nem mais os limites do seu universo.
No outro extremo, numa posição preferencial pelo termo “filosofia
árabe” destacou-se o argumento de T. Hussein que lembrava que a maior parte dos
textos foi escrita em árabe. Além disso, segundo ele, a ortodoxia religiosa dos falāsifa
foi fortemente contestada e seria um paradoxo qualificar de “muçulmana” ou
“islâmica” uma filosofia que se chocou frontalmente a certos dogmas da religião. No
mesmo sentido também encontrou-se o argumento de Schacht favorável ao termo
“filosofia árabe” acompanhado pelo termo “ciência árabe”, o qual era aceito sem
muitas restrições. Nesse caso levou-se em conta que a língua árabe foi o meio de
expressão essencial no desenvolvimento verificado tanto na filosofia como na ciência.
O próprio Anawati lembrava que a língua, não só do Alcorão, como do comércio e da
cultura, foi o árabe, adotada por muitos povos dominados pelo Islām. No entanto,
apesar dos esforços, a conclusão de Anawati foi desalentadora:
“Os que tiveram a oportunidade de ler as respostas publicada para
nossa enquete puderam se dar conta que, teoricamente, o problema
colocado é insolúvel: não há conceito adequado que abrace ao mesmo
tempo o ponto de vista linguístico e o ponto de vista religioso. (ý) Nós
mesmos, com M. Gardet, tentando encontrar uma expressão sintética,
“aberta” a todos os aspectos do problema, terminamos por chegar à
fórmula: “filosofia medieval em terras do Islām” 11
Apesar de inovadora, a proposta não foi adotada com amplitude pela comunidade
intelectual. Na década de 70, Badawi optou por lançar sua obra com a denominação de
História da Filosofia no Islām, aproximando-se da sugestão de Anawati, mas não a
reproduzindo totalmente. Nesse título, Badawi, sublinhava bem a diferença entre o
sentido que se deveria entender por “filosofia islâmica” – compreendida como uma
série de manifestações do pensamento, mesmo que não rigorosamente filosóficos – e o
sentido de “filosofia no Islām” – entendida como a filosofia no sentido mais restrito
das bases da filosofia grega –
Na década de 80, Majid Fakhry – assim como Corbin, mas por razões
diferentes – denominou sua obra de História da Filosofia Islâmica. Porém, o assunto
11
ANAWATI, G. Études de philosophie musulmane, p. 85.
19
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
não dava qualquer sinal de definição. No caso de Fakhry, as dificuldades se inverteram
obrigando-o, no início de sua obra, a fazer um alerta ao leitor:
“A filosofia islâmica é o produto de um processo intelectual complexo
no qual sírios, árabes, persas, turcos, berberes e outros tomaram uma
parte ativa. Porém, o elemento árabe é de tal modo preponderante que
ela poderia, com todo o direito, ser nomeada filosofia árabe”.12
Apoiado no fato de que a língua que os autores escolheram para se expressar foi o
árabe e de que a força de coesão que permitiu o desenvolvimento da filosofia e da
ciência foi o árabe, Fahkry encerrou dizendo que “sem o claro interesse dos árabes
pelo saber antigo, quase nenhum progresso intelectual teria sido feito ou mantido”13.
Certamente, mesmo que a enquete de Anawati tenha sido bem
intencionada para definir os termos, o seu resultado contemplou, antes de tudo, a
aporia. Em todo o debate, observa-se que os critérios para nomear um determinado
pensador, um determinado movimento ou o conjunto das manifestações do período
medieval oriental foram quatro: o critério religioso, linguístico, geográfico ou étnico.
Todos, por sua natureza, se mostraram excludentes ou insuficientes.
O próprio Corbin ao não aceitar, por exemplo, a redução dos nascidos
na Pérsia como inclusos no termo “árabe”, também deve ter imaginado não ser
possível se reduzir todos os árabes ao termo “islâmico”. Apenas para que fique um
exemplo, podemos citar o caso concreto de Ibn S÷nā que ilustra bem essa problemática.
Nascido na região da antiga Pérsia, de fé muçulmana, a maior parte de sua obra foi
escrita em árabe. Com referência a Ibn S÷nā, as três denominações podem, portanto, ser
encontradas: filósofo persa, filósofo árabe e filósofo muçulmano. Certamente sempre
se encontrará algum argumento para justificá-la: “filósofo persa” de nascimento,
“filósofo árabe” pela língua e “filósofo muçulmano” pela religião. A opção por ouma
ou outra denominação varia de acordo com a ênfase que os diversos autores entendem
ser a mais adequada em cada caso particular. Desde que, fornecidas explicações que
contrabalancem os outros critérios, isso não parece ofender o leitor. Dada a
complexidade da questão, a única coisa que se desvia do bom senso é a tentativa de
reduzir a denominação a um critério que prevaleça de modo absoluto sobre os outros.
Outra opção que tem sido veiculada é o termo “filosofia em árabe”,
privilegiando a língua em que foi escrita a maior parte da falsafa. Porém, essa opção
12
13
FAKHRY, M. Histoire de la philosophie islamique, p. 15.
FAKHRY, M. Histoire de la philosophie islamique, p. 15.
20
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
também não consegue abarcar as obras escritas em persa, em siríaco e em hebraico
que, em alguns, casos, foram fundamentais na história da falsafa.
A opção pelo termo “a filosofia entre os árabes” não pode pretender ser
definitiva. Mas, fazendo-se com que a falsafa figure “entre”os árabes indica-se, pois,
com essa prestadia preposição, ser possível manter a presença do elemento de coesão
que historicamente acompanhou praticamente todas as manifestações do Oriente
medieval, sem excluir, ao mesmo tempo, nenhum outro elemento que ao longo do
desenvolvimento histórico e filosófico ganhou mais destaque, quer tenha sido ele a
própria religião islâmica, quer tenha sido a região da antiga Pérsia – atual Irã – , quer
tenha sido uma outra língua que não o árabe, ou ainda um outro fator. E dadas, tais
preeliminares, entendo-as como uma autorização para poder variar as denominações
sem prejuízo de nenhuma e nem do leitor.
1.6
História do pensamento e história da filosofia
Entre os séculos VIII e XII d.C. / II e VI H a filosofia começou a falar
em árabe. Nas terras dominadas pelo Islām, a falsafa foi a continuadora da filosofia
antiga. Por essa razão, em sentido estrito, é somente com o termo “falsafa” que é
possível se referir à ocorrência da filosofia entre os árabes. Houve muitas outras
manifestações do pensamento no mundo islâmico nesse mesmo período mas, pelo fato
de seus princípios não estarem sob a mesma égide das demonstrações – propósito da
filosofia –, torna-se incorreto designar todas elas pelo nome de “filosofia”.
Na classificação das diversas manifestações do pensamento ocorridos no
Islām, a falsafa pode muito bem ser caracterizada como sendo o período dos “filósofos
helenizados”. Essa denominação, aliás, encontra-se na classificação de Corbin.. No
caso de Fakhry e de Hernandez, o adjetivo “helenizado”não é usado para designar
esses pensadores mantendo-se somente o termo “filósofo”. Badawi, por sua vez,
denomina os falāsifa de “filósofos puros”. Em todos os casos parece certo que os
autores julgam que o leitor tenha em mente a diferença entre a falsafa e as outras
manifestações do pensamento no mundo islâmico. Em linhas gerais, a diferença entre
pensamento e filosofia no mundo islâmico não encontra premissas diferentes das que
aplicam-se ao caso mais geral. A primeira delas é a de que não se deve confundir
pensamento com filosofia: em sentido estrito, toda filosofia é uma manifestação do
21
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
pensamento mas nem todo pensamento é filosofia. Vejamos alguns casos que ilustram
essa questão.
No primeiro deles, o termo “pensamento” pode ser usado num sentido
mais abrangente, referindo-se a várias manifestações, como é observado, por exemplo,
no título a História do Pensamento no Mundo Islâmico de Miguel Cruz Hernandez; ou
ainda na opção de Carra de Vaux com o título Os Pensadores do Islām. A opção pelo
termo mais genérico – “pensamento” – não cria maiores dificuldades para agrupar e
classificar os autores segundo suas tendências e características: “pensamento
teológico”, “pensamento espiritualista”, “pensamento místico” ou “pensamento
filosófico”.
Outro modo de encarar as diversas manifestações do pensamento no
mundo islâmico é entender que esse conjunto seria a própria “filosofia islâmica”. Esse
título é encontrado, por exemplo, nas obras de Fakhry e de Corbin. Nesse caso os
autores entendem o termo “filosofia” num sentido amplo, assim como podemos dizer
“filosofia hindu” ou “filosofia cristã”. Essa opção, contudo, naturalmente cria uma
dificuldade para distinguir o sentido estrito do termo “filosofia” segundo a tradição da
filosofia grega.. É por essa razão que Corbin optou em chamar os falāsifa – como AlKind÷, Al-Fārāb÷ e Ibn S÷nā – de “filósofos helenizados” para diferenciá-los de outros
pensadores que, apesar de não poderem ser classificados, num sentido estrito, como
“filósofos” poderiam, ainda assim, obter essa classificação segundo o significado mais
amplo de “filosofia” adotado por Corbin.
Outra opção é entender o termo “filosofia” no sentido mais estrito de
acordo com a tradição grega. Nesse caso, “filosofia” possui um significado mais focal
e não pode ser considerada ou dita de toda forma de manifestação do pensamento mas,
ao contrário, é um caso específico e particular. É dessa maneira que Badawi entende
“filosofia” quando escreve sua História da Filosofia no Islām. Nessa obra não são
analisadas todas as manifestações de pensamento dentro do islamismo mas apenas as
que seguem os princípios da filosofia em sentido estrito. Mesmo assim, Badawi divide
sua obra em duas partes: à primeira concede o título de “filósofos teólogos” e à
segunda, o de“filósofos puros” . Estes últimos são os falāsifa, e é nesse sentido que o
termo “filósofo” é melhor aplicado.
22
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Se por uma lado, na classificação mais geral do termo “pensamento”
podemos englobar todos os que se manifestaram de algum modo sobre as questões
mais variadas a respeito do homem, do universo, da sociedade, da religião e das
ciências naturais; por outro lado, na classificação mais restrita, o termo “filosofia”
cabe somente à falsafa e aos falāsifa na medida em que seus representantes procuraram
trilhar os caminhos do pensamento segundo a tradição da filosofia herdada da
antiguidade, notadamente pelas vias estabelecidas por Platão e por Aristóteles.
1.7
Filosofia e teologia
Sendo que a falsafa foi, em sentido estrito, a manifestação do
pensamento filosófico no Islām, parece sensato procurar esboçar alguns limites que a
diferencia de outras linhas de pensamento, também surgidas após o estabelecimento do
Alcorão. Pode se especular que dentre as inúmeras posturas adotadas pelos homens
diante de um texto sagrado, três parecem emergir com grande força: a teológica, a
mística e a filosófica. No caso do Alcorão, não foi diferente. Se verificarmos com
atenção as inúmeras manifestações do pensamento no Islām –adotando qualquer uma
das divisões propostas pelos diversos autores da história do pensamento no mundo
islâmico –, podemos agrupá-las segundo uma postura teológica, mística e filosófica.
Por sinal, uma divisão semelhante (escolástica, teologia e mística) foi adotada por
Carra de Vaux em sua obra14. Nesse caso, a teologia deve ser entendida no sentido
moderno do termo que pauta seu desenvolvimento a partir da fé na revelação; a
mística, no sentido da experiência interior com Deus, abandonando a razão para fundirse no divino; e a filosofia como ciência independente que busca, a partir da razão, o
entendimento dos fenômenos.
No Islām a teologia denominou-se ®Ø¨ (kalām); a mística é o »ÀŸ½‡
(¼ýfiya), isto é, o sufismo; e o entendimento pela demonstração lógica, é a »€€¬Ÿ
(falsafa ). Entre as três há muitas diferenças. Como neste trabalho se pretende um olhar
mais detido sobre a falsafa, não cabe, aqui, uma análise mais detida da teologia ou da
mística pelo aprofundamento dos princípios do sufismo ou do kalām. Mas algumas
indicações sumárias marcam alguns pontos fronteiriços entre essas posturas. Pelo fato
14
Cf. CARRA DE VAUX, Les penseurs de l’Islam. Paris: Paul Geuthner, 1921, vol. IV “A escolástica,
a teologia e a mística. A música.”
23
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
de estarmos destacando aspectos dessemelhantes, talvez seja razoável observar que
também existem pontos de contato mas que não serão tratados aqui.
Se abrirmos um dicionário da língua portuguesa, veremos que, hoje em dia, o
termo “teologia” é entendido como a “ciência da religião, do estudo sobre Deus e das
coisas divinas à luz da revelação”.15 Assim, o termo “teologia”, em seu significado
puramente religioso, é associado aos dogmas da fé e da reflexão feita a partir dos
dados revelados por Deus nas escrituras sagradas. Os primeiros pensadores do início
do cristianismo, por exemplo, usaram esse termo num sentido amplo, significando o
estudo e a contemplação de Deus, sem fazer uma distinção mais rigorosa entre filosofia
e teologia. Foi somente após Tomás de Aquino que se deu uma distinção mais precisa
entre esses dois conceitos que, paulatinamente, se desenvolveram até chegar ao
moderno sentido diviso como o conhecemos hoje em dia. No séc. XVII d.C. já se
distinguia a “teologia natural” ou teodicéia da “teologia revelada”. Na primeira, a
busca do conhecimento de Deus seria feita pelas vias da razão, somente com os limites
da ordem da natureza, valendo-se apenas da argumentação silogística e sem recorrer à
autoridade das escrituras. A “teologia revelada”, de outro modo, faria uso do princípio
da fé na palavra revelada para conhecer a Deus. Tomás de Aquino faz referência a isso
dizendo que “a sagrada doutrina é ciência porque parte dos princípios conhecidos
através da luz de uma ciência superior, que é a ciência de Deus e dos bem
aventurados.”16 A famosa díade razão e fé que se equilibrou durante o período
medieval permitiu maior proximidade entre filosofia e teologia. No cristianismo, a
filosofia, salva nos mosteiros, vinculou-se solidamente aos padres da igreja. Assim,
talvez tenha parecido mais natural, nesse caso, que filosofia e teologia estivessem
amalgamadas. A modernidade realizou a separação desses domínios e fez com que
parecesse óbvio a qualquer estudante de hoje que filosofia não é teologia. No Islām não
houve um paralelismo a esse respeito. Desde o início, o Islām viveu um quadro que
distinguia a filosofia da teologia, isto é a falsafa do kalām.
O termo ®Ø¨ ( kalām ) significa discurso, linguagem ou palavra. e o partidário
do kalām foi denominado ±¬¨c¯ (mutakallim), isto é, “aquele que discursa” ou “aquele
que fala”. Geralmente são citados pelo plural: ²½°¬§c° ( mutakallimun ). Logo após o
estabelecimento do Alcorão, e mesmo antes das traduções das obras filosóficas gregas,
15
16
Cf. Grande dicionário Laroussse cultural da língua portuguesa. São Paulo: Abril, 1999, p.865.
AQUINO, T. Suma de teologia. I.q.1,a 2
24
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
o kalām já era uma realidade no mundo islâmico. Uma de suas características foi ter
aplicado o raciocínio e a argumentação filosófica aos dogmas do islamismo. Nesse
sentido, a abordagem do kalām se aproximou bastante do sentido que damos ao termo
“teologia” tomando por base a experiência do cristianismo. Ao se falar em teologia no
Islām, é aos mutakallimun – e não aos falāsifa – que se encontram as referências.
Desse modo, os representantes do kalām, enquanto se basearam na revelação, como
ponto de partida para a reflexão filosófica, podem ser considerados os mais próximos
dos pensadores cristãos dos primeiros séculos do cristianismo. Por isso, não é razoável
estabelecer uma identidade entre a falsafa e o caráter da filosofia medieval cristã. A
falsafa não tem precedente e não se confunde com nenhum outro movimento, seja no
Oriente e, menos ainda, no Ocidente. Sua posição histórica é assaz peculiar e única.
Apesar de se desenvolver num ambiente religioso manteve-se continuadora da filosofia
antiga. A teologia ficou a cargo dos mutakallimun.
Mesmo assim, os mutakallimun buscaram argumentar lógicamente a
partir dos dados da revelação. Guardadas as devidas particularidades, assim como
nossos manuais de “história da filosofia” figuram os padres da igreja cristã, os
mutakallimun podem ser incluídos na “história da filosofia no Islam”. Isso está bem
colocado por Badawi ao dividir sua obra em “filósofos puros” e “filósofos teólogos”.
Os primeiros são os falāsifa pois prescindem dos dados da fé para argumentar e os
segundos são os mutakallimun que se utilizam dos argumentos lógicos para justificar o
que é sabido pela revelação. Diz Badawi: “quem diz filosofia diz pensamento
essencialmente racional. Assim, nos limitamos ao estudo dos sistemas racionalistas,
tanto em teologia especulativa como em filosofia pura” 17ou seja, tanto no kalām como
na falsafa. Um dos exemplos dessa distinção é que as vias da razão levaram, muitas
vezes, Al-Fārāb÷, Ibn S÷nā e o próprio Ibn Ru¹d a construírem sistemas que se
confrontaram com os dogmas da religião. Por essas razões é que a falsafa não é
teologia islâmica e se mantém fiel à tradição da filosofia herdada dos antigos.
Vale lembrar, porém, que os próprios falāsifa também usaram o termo
“teologia” mas não no sentido da religião e sim no mesmo sentido filosófico usado por
Aristóteles séculos antes. Sabe-se que o próprio Aristóteles em sua Metafísica não usou
o termo “metafísica” para designar os estudos sobre a causa primeira mas a denominou
de θεολογια (teologia) “teologia” ou πρωτη φιλοσοφια (prote filosofia) “filosofia
17
BADAWI, A. Histoire de la Philosophie Islamique, p.5.
25
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
primeira”. Essa ciência deveria se ocupar do estudo do ser enquanto ser e da substância
eterna e separada, isto é, Deus pois “a mais divina das ciências é também a mais nobre;
e esta, ela só, é de duas maneiras a mais divina. Com efeito, a ciência que mais
conviria a Deus possuir é uma ciência divina, e também o é aquela que trata de coisas
divinas.”18 O termo “metafísica” teria sido, na verdade, o nome dado por Andrônico de
Rodes no século I a.C quando organizava os livros de Aristóteles. Como esses livros
haviam
sido
colocados
após
os
oito
livros
da
Física,
chamou-se-lhes
τα µετα τα φυσιχα (tá metá tá phisicá) que significa “os que estão depois da física”.
Geralmente considera-se que o nome, a princípio de caráter classificatório, acabou
servindo adequadamente ao estudo que se debruçava sobre as coisas que transcendem
o mundo da natureza. Teria sido a partir dessa classificação de Rodes que os termos
“teologia”, “filosofia primeira” e “metafísica” foram tomados praticamente como
sinônimos, o que ocorreu também entre os falāsifa.
Na língua árabe, podemos encontrar tanto o termo “teologia” como o
termo “metafísica”, ora simplesmente transliterado, (como no caso de “filosofia” para
“falsafa” ) ou como uma construção linguística que corresponde à idèia original grega.
O primeiro é o caso, por exemplo da tradução para o árabe do apócrifo chamado
Teologia de Aristóteles. Essa obra, que nos ocuparemos mais adiante, foi traduzida por
À«\Ž\Ž€y[ \Àk½«½f[ (Atýlýjiya ArisÐāÐāl÷s ) “Teologia de Aristóteles”. No segundo
caso, encontramos, por exemplo, em Ibn S÷nā o termo árabe ¾¸«[ ±¬— ( ‘ilm ilahiy )
“ciência
divina”
em
conformidade
com
a
formação
do
termo
grego
θεολογια (teologia) “teologia”, ou seja, θεοσ (teos) “deus” e λογοσ (logos)
“estudo”. Do mesmo modo ele a denomina Å«¼[ »€€¬Ÿ ( falsafat-al’ýla ) “filosofia
primeira”. Esses dois termos – “teologia” e “ciência divina” – são usados, assim como
para Aristóteles, como sinônimo de “metafísica” que no árabe guarda exatamente o
sentido original do grego τα µετα τα φυσιχα (tá metá tá phisicá) “o que está depois
da física” e se encontra do seguinte modo: »˜À_Ž«[ v˜^ \° (mā ba‘d aÐÐabiy‘at) “o que
está depois da física”. No segundo livro da Metafísica, Ibn S÷nā assim se refere a essa
ciência:
“Ela é chamada filosofia primeira porque é a ciência das primeiras das coisas na
existência (ý) é igualmente a sabedoria que é a ciência mais nobre concernente ao
18
ARISTÓTELES, Metafísica. Porto Alegre: Ed. Globo, p. 40. 983a-5.
26
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
objeto de conhecimento mais excelente. Pois ela é a melhor ciência, isto é, a certeza,
em vista do objeto cognoscível mais nobre que é Deus, que Ele seja exaltado, e das
causas que vem depois dele. É também o conhecimento supremo das causas do todo. É
também o conhecimento de Deus e é por isso que ela é definida como a ciência
divina”19
1.8
Filosofia e mística
Assim como os filósofos, também os místicos já existiam antes do
Islām. E, assim como o Islām nascente, por um lado, absorveu os métodos e os
objetivos da filosofia, por outro lado, também absorveu as práticas e o subjetivismo da
mística. Seguindo o mesmo adágio de recepção, adaptação e desenvolvimento, as
inúmeras manifestações do pensamento no interior do Islām tiveram a contribuição de
inúmeras doutrinas que haviam se desenvolvido em outras culturas e em outras
religiões que lhe eram anteriores. No sufismo, algumas correntes místicas do
cristianismo, elementos do hinduísmo e do budismo contribuíram para a sua formação.
Como bem assinala Chevalier, o sufismo “se desenvolveu em regiões cristianizadas e
helenizadas, possuindo também a inclinação para o conhecimento, como certos
filósofos, místicos e ascetas desses lugares. No entanto, não de qualquer conhecimento,
mas acima de tudo, do conhecimento de Deus.”20
Os movimentos de ascese propostos pelo sufismo tem proximidade com
a doutrina do Uno plotiniano que já havia se desenvolvido séculos antes através dos
gnósticos da Escola de Alexandria. Vale lembrar que o termo “mística” já se encontra
nas obras do chamado pseudo-Dionísio do séc. V d.C no sentido de mostrar a
impossibilidade da alma humana em poder conhecer a Deus através do intelecto. Tal
impossibilidade manifestar-se-ia na denominação de Deus a partir da negação de
atributos (teologia negativa) como, por exemplo, Deus in-finito, in-efável, etc.
Paralelamente a essa impossibilidade, insistiu-se numa relação originária, íntima e
pessoal entre o homem e Deus, em virtude da qual o homem pode retornar a Deus e
unir-se finalmente a Ele num ato supremo. Esse seria o êxtase supremo, que o pseudoDionísio considerou a deificação do homem. De modo geral, esse pareceu ser o
19
20
AVICENNE La métaphysique du Shifa’, p. 95.
CHEVALIER, J. El sufismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1998, p.11.
27
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esquema geral de muitas doutrinas místicas que, em certa medida, foi extraída pelo
pseudo-Dionísio dos textos neoplatônicos.
Além disso, o sufismo, ao penetrar na Pérsia, parece ter absorvido,
também, influências do zoroastrismo. Por essas razões, não é demais dizer que as
origens do sufismo se perdem e, ao mesmo tempo, se encontram em tradições místicas
anteriores ao Islam. De todo modo, no séc. VIII d.C / II H. a mística islâmica já havia
absorvido esses elementos a ponto de criar a sua própria face esotérica e os místicos
muçulmanos, nesse período, já eram designados pelo termo “sýfi ”. A partir do séc. XI
d.C./VI H. os preceitos do sufismo foram se intitucionalizando e os níveis de
conhecimento ascético foram organizados segundo uma hierarquia de graus e ritos –
aos moldes dos círculos esotéricos – perdurando até os dias de hoje. É por essa razão
que Robert Graves afirma que, atualmente, o sufismo seria atualmente como “uma
antiga maçonaria espiritual (ý) [em que] os sufis sentem-se à vontade em todas as
religiões e, exatamente como os ‘pedreiros livres e aceitos’, abrem diante de si, em sua
loja, qualquer livro sagrado – seja a Bíblia, seja o Alcorão, seja a Torá – aceito pelo
Estado temporal.”21
Uma das interpretações para o significado do termo “sufi” é a de que
ele designaria o manto de lã grossa, bem simples, usado pelos primeiros ascetas. Essa
interpretação se origina na palavra árabe ā½ˆ (¼ýf) que significa “lã” e na formação
de seu respectivo adjetivo “de lã”, ou seja, ÁŸ½ˆ (¼ýfiy ). Porém, não há acordo a esse
respeito. Outras interpretações buscam, por exemplo, uma analogia do termo
“sufi”com o termo grego “sofos” fazendo-o se aproximar de “sabedoria” ou ainda,
como uma derivação da palavra árabe Æ\Ÿ‡ ( ¼afā’ ) que significa “pureza”. Mesmo
que não haja um consenso quanto à origem precisa do termo “sufi”, parece ser
concórdia que essas qualidades são intrínsecas ao sufismo: o desapego, a sabedoria e a
pureza. Seguir adiante na definição do que é o sufismo parece ser uma tarefa para
desavisados que desconhecem a própria doutrina sufi. Em seu prefácio, Idries Shah
alerta:
“Não é por acaso que a “doutrina secreta”, cuja existência tem sido
suspeitada e procurada há tanto tempo, se revela tão esquiva ao
pesquisador.(ý) Não se chega ao sufismo, à “tradição secreta”, tomando
21
SHAH, I. Os sufis. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 7.
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por base suposições pertencentes a outro mundo, o mundo do intelecto.
Se sentirmos que só podemos procurar a verdade do fato extrafísico por
meio de certo modo de pensar, o meio racional e “científico”, não pode
haver contato entre o sufi e o pesquisador supostamente objetivo.”22
Após tal alerta, para não se cair em contradição, deve se calar e entender que o
sufismo é uma prática que necessita, a partir de um certo ponto, da presença de um
mestre e, por essa razão, não seria razoável avançar na linguagem para querer definí-la.
No entanto, a recíproca parece não valer, pois é curioso que o próprio Shah possua uma
obra vastíssima para divulgar o sufismo se valendo da razão, da objetividade e da
lógica da linguagem para isso. Mas, que não haja engano, pois essa aparente
contradição também parece agradar alguns sufis. De todo modo, estes são pontos que
indicam o grande afastamento no trato da lógica e da linguagem entre a mística do
sufismo e a filosofia da falsafa. Mesmo quando encontramos algumas referências sufis
a alguns dos falāsifa mais orientais como, por exemplo, Al-Fārāb÷ e Ibn S÷nā, estas,
certamente, se referem a algum aspecto de sua conduta e não propriamente às suas
obras filosóficas, pois nestas todo movimento da alma humana é feito pelas vias do
intelecto e passíveis de entendimento.
Não admitindo sua definição fora da própria vivência do místico, fica
bem certo que o sufismo não pretende ser uma especulação filosófica ou teológica a
respeito da divindade aos moldes da falsafa ou do kalām. O seu foco não é a
demonstração, mas, sim, a experiência. É nesse sentido, isto é, por se encontrar melhor
como uma experiência interna com a divindade que se reflete no modo de viver e de se
comportar do homem sufi, que Ibn ‘Abdallah Tustari disse que:“o sufi é aquele que é
puro de tudo o que o perturba, que é cheio de meditação, que se retirou dos homens
para se consagrar a Deus, e para quem o ouro e a argila são equivalentes.”23
Juntamente com essa bela frase, poderíamos preencher muitas páginas de infindos
adornos poéticos do mesmo quilate e, quase sempre, encontraríamos a beleza e a
poesia nas palavras sufis. Afinal, essa é uma de suas mais marcantes características. E
talvez, até pelo fato de ser mais poesia do que demonstração lógica, é que o sufismo é
mística e a falsafa é filosofia. É importante notar que o objetivo do sufismo, não sendo
a especulação racional e a demonstração pela lógica, é mais um convite à experiência
do êxtase na união com Deus.
22
23
SHAH, I. Os sufis, p. 23.
KIELCE, A. O sufismo. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 15.
29
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Inúmeras passagens do texto sagrado dos muçulmanos lidas pelo
sufismo, no sentido da experiência mística colocam, por um lado, o sentido exotérico
do texto revelado no Alcorão, expresso pela lei exterior que organiza e determina os
direitos e deveres do muçulmano e, por outro lado, o sentido esotérico que mostra o
caminho para o místico se unir à realidade divina, cumprindo a realização última,
“aniquilar-se nela”.24 Em busca do êxtase místico, da união com Deus, o homem
necessita se desvencilhar dos obstáculos que
seus próprios limites humanos lhe
impõem. Ali Shah traduz isto do seguinte modo:
“Nessa união, tão grande é a influência do Espírito Eterno que o
julgamento humano – aquilo que podemos descrever como a faculdade
lógica do homem, seu entendimento – é inteiramente apagado e
destruído por Ele.” 25
Comparada com a passagem de Platão na Carta VII, o método e objetivo da filosofia,
adotada pela falsafa, a distância fica mais evidente:
“Só quando esfregarmos uns nos outros, nomes, definições, percepções
de vista e impressões dos sentidos, quando se discutir em discussões
atentas, onde a inveja não dite nem as perguntas nem as respostas, é
que, sobre o objeto estudado, vem incidir a luz da sabedoria e da
inteligência com toda a intensidade que podem suportar as forças
humanas.”26
Nessa medida, pode se entender que os limites fronteiriços entre a falsafa e o sufismo
são praticamente os limites entre a filosofia e a mística. Levadas ao extremo, as vias de
acesso ao conhecimento propostas por essas duas manifestações do pensamento têm
mais diferenças do que semelhanças. No entanto, isso não impede que, em
determinados autores, haja uma interpenetração das duas posturas. Afinal, parecem ser,
os homens, mais complexos do que os conceitos.
24
KIELCE, A. O sufismo, p. 9.
ALI SHAH, S.I. Princípios gerais do sufismo. São Paulo: Attar, 1987, p. 25.
26
PLATÃO, Cartas Lisboa: Estampa, 1989, p.77.
25
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2 – UM TAQUINHO DE UMA HISTÓRIA DA FILOSOFIA
2.1
...e, afinal, onde estamos?
Contextualizar a falsafa no interior da história da filosofia tem menos
um viés didático do que uma necessidade natural da própria contextualização como
exigência do entendimento. É muito grande o auxílio que nos prestam as coordenadas
espacial, temporal, histórica e especulativa: onde, quando, o que e por que acontece?
Mais ricos ficamos quando seguimos o adágio de que não é possível abordar a filosofia
desvinculada da história e, esta, desvinculada do homem e, este, desvinculado do
universo. Mesmo que profetizasse, ninguém pensou fora do seu tempo histórico, do seu
espaço geográfico e do cenário das idéias que o cercava . Por essas razões, também,
vale perguntar: afinal, de que mundo, de que época e de que espaço falou a falsafa ? E
de onde falam, hoje, os historiadores da filosofia ?
O antigo provérbio que diz: “quem não sabe o que é o mundo não sabe
onde está” aponta para uma necessidade inerente ao ser humano: localizar-se. Mesmo
que tal localização seja precária, equivocada, e que se altere ao longo do tempo;
mesmo que seus paradigmas sejam fluidos; ainda assim, o homem parece querer
sempre, e antes de tudo, localizar-se. Durante uma boa conversa com um antigo
mestre, o tema da localização se transformou numa pequena viagem e se mostrou não
só uma exigência analítica mas, também, um grande prazer existencial, sem o qual
parece não haver filosofia. Naquela época, já quase cego dos olhos do rosto e quase
surdo dos ouvidos da cabeça, me disse:
“– Sabe, ‘seo’ Miguel, antigamente bastava ao homem saber que estava
sobre um pedaço de terra. Bastava-lhe saber que o sol se levantava... e depois se
deitava... que a chuva caía, que o rio transbordava e que o alimento crescia na terra...
naquele pequenino pedaço de terra... isso, apenas isso, era a sua localização... e lhe
bastava...como o nosso, o seu mundo girava, mas o fazia apenas ao redor de poucos
alqueires, de poucos dias, de poucas luas... isso lhe bastava... quando nasciam as
crianças, assim nasciam... e quando morriam os homens, assim morriam... não muito
mais do que isso... não muito mais...”
“Hoje, isso não mais nos basta... nossa necessidade de localização,
ancestral, talvez se pareça com a dos nossos antepassados, mas aquelas respostas já não
31
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nos satisfazem... precisamos demais e de mais localização... onde estamos.. ? ou,
melhor, até onde podemos responder, mesmo que não seja verdade, o nosso “onde
estamos”..? Hoje meus pés já não mais pisam a terra... debaixo deles está um tapete...
e, em princípio, me bastaria – e assim basta para tantos – saber que se está em cima de
um tapete. Se eu não fosse filósofo, a certeza de estar sobre ele também me bastaria...
pois a certeza me tranqüiliza... mas como é a dúvida que me movimenta, e me
atormenta, eu me pergunto: ora, mas o que sustenta o tapete que me sustenta ..? assim,
avanço minha localização além dele... sobre uma laje... sobre uma viga... sobre uma
fundação... tudo enfiado numa terra... ah ! a terra... que bom ... ainda há uma
terra...parece que avançamos, porém nem tanto...”
“Mas, insisto em ampliar minha localização espacial e sou capaz de
saber que a bola que habitamos no espaço possui um diâmetro de aproximadamente
12.000 Km e circunferência equatorial por volta de 40.000 Km: uma dentre outras
nove esferas girando ao redor da nossa estrela-mãe, o Sol. É daqui que falamos... para
onde será que vão minhas palavras..? bem, a Terra não é o maior dos planetas do nosso
sistema. Júpiter é o maior e tem aproximadamente 10 vezes o diâmetro da Terra. O do
Sol chega a 1.391.704 Km. Foi-se o tempo em que nosso ego se inflava por pensarmos
ser o umbigo do mundo... no céu há muitas estrelas
e as estrelas do céu são
companheiras do nosso sol, algumas maiores, outras menores: todas girando ao redor
do centro da nossa galáxia, a Via Láctea. A estrela Antares, alfa da constelação de
Escorpião, é aproximadamente 300 vezes maior do que o sol, 30.000 vezes maior do
que a Terra... puxa! fico pensando...qual será o tamanho do meu pensamento..? ”
“Me disseram que há mais de cento e cinqüenta bilhões de estrelas na
nossa galáxia... e, sabe de uma coisa?... sequer nos foi dado o privilégio de estar no
centro da nossa, estamos na periferia, num dos braços, quase caindo... é daqui que
falamos, isso é bom lembrar...A Via-Láctea, com seus cento e cinqüenta bilhões de
estrelas é uma dentre dezenas, centenas, milhares, infindáveis outras galáxias...
algumas maiores, outras menores do que a nossa... o universo é vasto... qual será o
tamanho do meu espírito ..? ”
“Não sabemos quantas galáxias existem , apenas sabemos que se
afastam... se afastam... e se afastam... às vezes me sinto só...
dependendo da massa
contida no universo, dizem os cientistas, este universo talvez se expanda até esfriar e
morrer ou, talvez, se volte para o centro e se contraia e inicie novamente uma
32
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
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expansão... não sabemos ainda... é daqui que falamos, sempre foi... disso é bom
lembrar ...”
“Alguns estudiosos defendem a idéia de que essa expansão teve um
início com data e hora marcadas, em que toda a matéria de todas as galáxias estaria
reunida num espaço ínfimo, menor que a cabeça de um alfinete... Depois, uma grande
explosão: booom ! big-bang. Será que ainda somos capazes de ouvir esse barulho?...
será que alguém me ouve?... estou quase surdo... que bom... ainda ouço o momento da
criação... e você ..? ”
“Mas a natureza da Natureza é curiosa. Veja só isto: a luz das estrelas
para chegar até nós precisa percorrer um certo espaço, Para isso, leva um determinado
tempo. A luz do sol, por exemplo, leva aproximadamente oito minutos para chegar até
nós. Portanto, se o sol sumisse do céu, só saberíamos disso oito minutos depois... e, eu,
que mal sabia que tomava sol atrasado?...a natureza brinca.... um outro caso mais
longínquo é o da galáxia Andrômeda, nossa vizinha mais próxima, que está a uma
distância aproximada de 2.3 milhões de anos-luz. Lembro de minha admiração quando
vi a imagem de Andrômeda e soube que aquilo era, na verdade, sua imagem de 2.3
milhões de anos atrás, tempo em que homens e macacos talvez conversassem sobre
bananas... fiquei admirado... a natureza é quase mágica... curioso... e eu querendo ir ao
limite da minha localização no espaço, encontrei-me, surpreendentemente com o
relógio do tempo !”
“Quanto mais nos distanciamos no espaço mais para trás nós vamos no
tempo e, no limite, há uma distância de mais de 12 bilhões de anos-luz, nos
defrontamos com os ruídos da criação desse nosso universo... quasares... os mais
distantes que nossos olhos e ouvidos científicos podem enxergar... talvez
remanescentes do big-bang. Especula-se que este universo seja apenas um dentre
outros. A que lugar nos levam os buracos negros..? talvez a outros universos... mas
‘seo’ Miguel isso é só uma estória que estou contando... pode não ser assim... mas é
assim que nos localizamos... é daqui que falamos, disso é bom lembrar...”
“Agora, imagine que pudéssemos recolher tudo que eu acabei de dizer:
galáxias, andrômedas, quasares, sóis, nuvens de gás, planetas, terras, vigas, lajes,
tapetes, nós, tudo, tudo. Coloquemos isso tudo num espaço minúsculo, menor que a
pinta das costas de uma joaninha. A partir daí, há mais de 12 bilhões de anos atrás,
estaria acionado o relógio do tempo: tic-tac... tic-tac... A matéria, então compactada,
33
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
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teria iniciado sua expansão. Composta quase exclusivamente de hidrogênio, essa
matéria primordial teria formado nuvens de gás que, por sua vez teriam gerado as
estrelas. A matéria excedente das estrelas teria formado os planetas e seus satélites. Foi
nessa dança universal que o nosso sistema solar teria se formado, há aproximadamente
4.6 bilhões de anos e a nossa Terra, teria ganho sua crosta terrestre por volta de 3
bilhões de anos passados.”
“Depois, as águas se precipitaram sobre a superfície e, por volta de 1
bilhão de anos atrás, surgiram as algas azuis, uma das primeiras formas de vida.
Aceitando-se os princípios da evolução e da seleção natural, a partir delas ter-se-iam
originado todas as outras formas de vida que habitaram a Terra. Inclusive nós...
estamos indo muito rápido, não é mesmo?... ora, mas qual será a velocidade real de
todas essas mudanças... será que há uma velocidade real ?... ora, ora, perguntas não
faltam... mas voltemos ao itinerário marcado pelos cientistas: plantas, primeiros
peixes e os anfíbios... a natureza expandiu a vida ..! “
“Não perca a conta: há aproximadamente 350 milhões de anos surgiram
os primeiros répteis que, depois de terem habitado por milhões de anos a Terra,
acabaram desaparecendo...
Por volta de 70 milhões de anos, expandiram-se os
mamíferos e, depois, surgiram os primeiros primatas. Puxa... passaram-se mais de 11
bilhões de anos para que surgisse algum parente... é daqui que falamos, disso é bom
lembrar... um dos nossos ancestrais mais longínquo é o Ramapithecus, há treze milhões
de anos. Muitas de suas ramificações não conseguiram vencer na luta pela
sobrevivência. O nosso parente mais próximo – homo sapiens – é um “jovenzinho” de
500 mil anos. Engraçado... nossa localização temporal é formada de um imenso tempo
sem nós... não saberia ir além disso...o calendário cósmico de Sagan mostrou bem
nossa posição... é desse tempo que falamos... somos recém chegados... quando tempo
será que dura o meu pensamento ..? ”
“Mas, por que o homem pensou ?.... pouco se sabe... o que se especula é
que o homem, assim como os outros animais, deveria estar até o pescoço na luta pela
sobrevivência reunido em bandos para caça e pesca. Mas num dado momento, as
circunstâncias e a compleição desse animal-homem teriam se combinado de tal modo
que ele se diferenciou dos demais. Como ? Talvez nunca saibamos... acho mesmo que
não saberemos... podemos, por enquanto, só imaginar... talvez sempre imaginar... o que
é certo é que esse homem pensou e, pensando, saiu da imediatidade da natureza.”
34
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
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“No novo momento de sua existência, temendo os trovões, os raios e a
morte, esse mesmo homem levou sacrifícios às forças da natureza, desconhecidas...
ajoelhou, rezou... e, nesse momento, esse homem se tornou um ser religioso... mas foi
num outro instante, só quando esse mesmo homem, depois de pensar, depois de
mitologizar a natureza, depois de se curvar diante dos deuses que ele mesmo criara,
perguntou-se: “...mas por que?... por que os deuses?.. por que a natureza?... por que o
mundo?.. o que é, afinal, isso tudo? O que é, afinal, esse céu que circunda e essa
água?.. o que são as estrelas, a terra, essa gente toda ?... o que sou eu, afinal? ...” Nesse
instante o homem filosofou...e filosofou porque pensou sobre aquilo que já havia
pensado. Pensou em segundo grau se é que isso é possível. E talvez tenha sido esta, a
pergunta, a maior das revoluções na história do homem... a pergunta... sistemática...
incansável e duradoura pergunta...”
“A prova disso é que hoje, depois de milhares e milhares de anos, ainda
existem homens que, ora sozinhos, ora em grupo, ainda se perguntam: mas, afinal, o
que são estas estrelas?.. o que são as galáxias?.. o que são os planetas?.. o que é a
terra?.. o que é o pensamento?..afinal, o que sou eu?.. o que somos nós?.. e o que
fazemos aqui, em cima desse tapete?...”
2.2 Divisões na História.
Filosofia e história andam juntas. Ibn åaldýn, no século XIV d.C./VIII
H., após considerar que a história em seu aspecto exterior poderia parecer meramente
uma série de registros que marcaram o curso de épocas e civilizações da antiguidade,
adiantou que, pelo fato de a história possuir caracteres intrínsecos como, por exemplo,
o exame e a verificação dos fatos e a investigação atenta das causas e da natureza dos
acontecimentos históricos, ela – a história –, “forma um ramo importante da filosofia e
merece ser contada no número de suas ciências.”27 E por ser mais completo falar de
uma com o auxílio da outra, importa indicar, por mais suscinto que seja, a sobreposição
da História da Filosofia na própria História com o intuito de contextualizar a falsafa
em ambas. Ainda que haja nisso o inconveniente da repetição de temas conhecidos
para o estudante mais acostumado ao cenário histórico, que prevaleça a condição do
iniciante. Comecemos pela História.
27
JALDUN, IBN. Introducción a la historia universal. México: Fondo de Cultura Economica, 1997,
p.92.
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Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
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Enquanto este livro está sendo escrito, o Brasil comemora 500 anos de descobrimento.
Nunca a nossa história fora tão contada, de muitos modos. Aquela velha história que se
aprendia no ginásio parece, hoje, quase um engodo e nos faz sentirmos vitimados pelo
olhar positivista e eurocêntrico, notadamente do século XIX. Esse mesmo olhar que,
até há pouco, foi seguido como paradigma por grande parte dos historiadores. Mesmo
assim, as mudanças no contar a história, também, já eram uma idéia existente no século
passado. Vejamos um comentário a respeito do verbete “história”em um dicionário do
ano de 1873 28.
“A história muda de aspecto a cada geração. O século XIX não teve da
história a idéia que dela teve o século XVIII e, este, não teve a idéia
que dela tiveram os séculos precedentes. Cada época a estuda sob o
ponto de vista que lhe preocupa. O objeto material da história, isto é, o
conhecimento dos fatos, muda também segundo os tempos, por causa
da incerteza inerente aos dados do testemunho humano.”
Dos relatos de viagens de Heródoto (484/420 a.C.) até os dias de hoje, muitas foram
as abordagens a respeito da história. De cíclica e circular, decadente ou apologística,
as visões sobre a história, por se modificarem, modificam sua própria compreensão.
Na experiência de contar sua própria história, o homem tem revisto o modo como a
contou e a conta. Grande parte das alterações de enfoque deve-se, muitas vezes,
menos à novas descobertas do que a uma mudança no olhar sobre os mesmos fatos.
No horizonte das mudanças do enfoque do historiador do século XXI, as mudanças
enfatizam, entre outras coisas, a inclusão de elementos esquecidos ou negligenciados.
Surgem novas abordagens sobre temas que pareciam petrificados. Essa nova direção
pode ser sentida numa passagem contemporânea de Dominique Vallaud :
“Há não mais de meio século é que a História saiu do quadro estreito
no qual a escola positivista a havia trancado, e se abriu aos fenômenos
sociais e aos fatos de civilização. Além disso, os progressos
fulminantes da comunicação, conjugados à descolonização, a fizeram
sair de seu eurocentrismo. A História não é mais somente a do baixo
mediterrâneo e da Europa ocidental, mas igualmente a da África, da
América pré-colombiana, do Extremo Oriente. Ela tem a vocação para
abraçar o conjunto do passado da humanidade e, aliás, os programas
28
LARROUSSE, M. Grand dicctionaire universal universel du XIX siècle. Paris, 1873, p. 301.
36
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
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das escolas tem progressivamente
dado o justo lugar a essa nova
visão.”29
Não causa surpresa, pois, que a partir desse espírito renovador da ciência da História,
enquanto, hoje, após 500 anos, se procura uma nova história na História do Brasil, ao
mesmo tempo, no âmbito da História Universal, também se procure uma outra história
no interior da idade mais hostilizada da História: a Idade Média.
Não é demais lembrar que foi a partir da proposta entabulada por um
pedagogo alemão do séc. XVII d.C. Cristoph Keller – em latim Cellarius (1638/ 1707
d.C.) – que se consagrou a divisão da História em antiga, medieval e moderna. Essa
divisão, com pequenas modificações e o acréscimo da datação da revolução francesa,
permaneceu como sendo a mais usada. A Idade Antiga iniciando-se com o surgimento
da escrita há, pelo menos 4.000 a.C., e terminando com a tomada de Roma em 476 d.C.
pelo chefe germânico Odoacro; a Idade Média compreendida entre o período de 476
d.C. até a queda de Constantinopla em 1453 d.C., pelas mãos dos turcos; e a Idade
Moderna, de 1453 d.C. até a Revolução Francesa em 1789 d.C, a partir de quando se
inicia, então, a Idade Contemporânea.
É notório que o estabelecimento dessa divisão privilegiou dois pontos,
um em cada extremidade, considerados pelos homens dos séculos das luzes como os
mais significativos: a antiguidade e a modernidade. Ao se denominar os mil anos que
separavam esses dois extremos de idade “média”, a impressão que se tem é, que por si
só, essa idade, sendo “média”, não se definiria de modo positivo mas apenas figurava
como coadjuvante das outras duas. Em outras palavras, ela existiria, ou em função de
uma antiguidade que esperava ansiosa para ser revivida pelo renascimento da Europa,
ou então em função de uma modernidade que dela – Idade Média –, fez seu alvo crítico
preferido. De todo modo, não seria necessário especular muito para concluir que essa
impressão é preconceituosa. Parece que o próprio Cellarius, voz de sua época, se
encarregou disso: ao fixar essa divisão
“fixou também a idéia de que este período
intermediário entre a antiguidade e a época moderna nada produziu de importante. Foi
um período não só estéril, mas de retrocesso: a idade das trevas.”30 Não valeria a pena,
aqui, desfilar as inúmeras desqualificações que partiram da modernidade em direção
aos medievais. De todo modo, é preciso ressaltar que os efeitos dessas críticas ecoaram
por muito tempo: “afirmações historicamente falsas, mas suficientes para impor um
29
30
VALLAUD, D. Dictionnaire historique. Paris: ed. Librarie Arthème Fayard, 1995, p.7.
NASCIMENTO, C.A. filosofia medieval, São Paulo: ed. Brasiliense, 1992, p.9.
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Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
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cenário de catástrofe do qual as eras posteriores se abastecerão até o início do século
XX. ”31 Um comentário do Prof. Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento sintetiza bem a
estupefação natural a qualquer mente de bom senso a respeito das dificuldades que tal
divisão arbitrária e a desconsideração do período medieval como um momento
igualmente rico da história proporcionou:
“Tanto a periodização da história ocidental em antiga, medieval e
moderna como a interpretação negativa do período medieval foram e
são objeto de profundas críticas. Não há nenhuma razão evidente para
privilegiar como marcos de início e fim as datas de 476 e 1453. Não é
também nada claro que os mil anos compreendidos entre estas datas
constituam um único período. Além disso, nada mais estranho do que
supor que a humanidade tenha sido vítima durante tão longo tempo de
uma irreparável estupidez e, repentinamente, se tenha curado da
doença com o renascimento do séc. XV d.C. (!)”32
Pensar a história a partir dessa divisão, isolando a Idade Média das luzes da
humanidade certamente encontra muitas dificuldades quando se pensa, sobretudo, na
ciência e na filosofia desenvolvidas no mundo árabe medieval. Esse hiato criou
inúmeros obstáculos para o estabelecimento de uma cadência contínua dos
acontecimentos e das transmissões e recepções entre a ciência antiga, medieval e
moderna. Ao se entender a história como algo que se caracteriza, entre outras coisas,
por sua ininterrupta continuidade, torna-se difícil reestabelecer essa mesma
continuidade depois que se passa tantos anos aprendendo a história por divisões de
épocas, eras, idades e períodos. Se é certo que um continente não conhece os traços
que o divide em vários países, assim também a história, em sua contínua caminhada,
não poderia conhecer as divisões que a ela atribuímos.A falsa impressão de uma
interrupção medieval compromete os fios que tecem a história. Não é sem propósito
que, para compreender melhor a trajetória humana , seria melhor entoarmos em coro
com De Libera que, numa tentativa extrema de mudar a nossa lente a esse respeito,
diz: “a primeira coisa que um estudante deve aprender ao abordar a Idade Média é que
a Idade Média não existe.(!) ”33
Segundo De Libera, o fato de a Idade Média estar circunscrita entre o
nascimento e morte da romanidade deveria ser fator suficiente para que ao menos
31
DE LIBERA, A. A filosofia medieval. São Paulo: Ed. Loyola: 1998, p. 12.
NASCIMENTO, C.A. filosofia medieval, p.9.
33
DE LIBERA,A. A filosofia medieval, p.7.
32
38
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Constantinopla –a Roma do oriente – figurasse como um dos pilares sobre os quais se
apoiaria uma visão não de trevas, mas de luzes no período medieval. Isso sem falar na
contribuição dos árabes, a partir do séc. VIII d.C. Porém, isso não acontece de modo
razoável e as razões dessa discrepância, para ele, se devem ao fato de que
“no fundo, a visão de Idade Média confunde-se com o que é chamado
ocidente cristão, ela está nele centrada, e o que não é simultaneamente
ocidental e cristão é posto à margem, considerando-se apêndice
exótico sem legitimidade própria. Assim rejeitam-se: o que é cristão
mas não ocidental, quer dizer, os cristão do oriente; o que é ocidental
mas não cristão, ou seja, os árabes e os judeus.(ý) Dessa forma, a
Idade Média é confiscada em proveito de um só grupo: os ocidentais
cristãos ou cristãos ocidentais.” 34
As críticas contra os preconceitos a tudo o que se refere à Idade Média têm se
acumulado na recuperação de uma visão mais justa a respeito desse período. Contudo é
necessário, ainda, muito trabalho para desvincular a série de conceitos negativos que se
associaram aos medievais. Na medida em que a falsafa foi uma das manifestações
filosóficas desse período, naturalmente, alinha-se com essa recuperação, reforçando a
visão da ininterruptibilidade da tradição filosófica desde o seu estabelecimento até a
atualidade. Assim, faz mais sentido a máxima: “aquilo que a história uniu, que o
homem não separeý”
2.3
Os períodos da filosofia
Se a divisão da História em antiga, medieval, moderna e contemporânea
trouxe inúmeros inconvenientes, a justaposição da história da filosofia sobre tal divisão
histórica se fez igualmente problemática. A Idade Antiga, berço da filosofia grega,
salientou a questão inicial da classificação da manifestação de sistemas de pensamento
desenvolvidos em civilizações anteriores a Grécia, antes do nascimento da filosofia.
Não obstante a filosofia ocidental ter como marco inicial o pensamento grego, este não
se formou de modo isolado mas esteve em contato com outros povos e culturas que lhe
forneceram inúmeros elementos tais como o alfabeto e a moeda por parte dos fenícios.
A própria filosofia grega, nascida nas colônias estabelecidas nas costas da Ásia menor,
34
DE LIBERA, A. A filosofia medieval, p.12.
39
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
justificaram, em parte, o fato de alguns manuais de história da filosofia reservarem um
espaço inicial também às filosofias orientais – entendidas em sentido amplo – tais
como o sistema de pensamento originário dos Vedas, na India, e suas vertentes como o
budismo e o jainismo; assim como o taoísmo e o confucionismo na China ou, ainda, o
dualismo de Zaratustra e as tradições persas. Afinal, India, China, Egito e os povos da
Mesopotâmia já eram civilizações milenares ao tempo da Grécia e tiveram
manifestações
anteriores ao surgimento da filosofia grega. Mesmo não sendo
tributárias da razão do mundo grego, apresentaram elementos enriquecedores para se
compreender as transformações do pensamento e a formação da filosofia na Grécia.
É comum a periodização tradicional da filosofia antiga se iniciar com
Tales de Mileto (aprox. 624/546 a.C.) e terminar com Plotino (aprox. 204/270 d.C.),
enquanto a história antiga se inicia milênios antes do nascimento de Tales e se estende
até 476 d.C. com a queda de Roma, o que mostra que a História e a História da
Filosofia não andam, e nem poderiam, andar par e passo mas, ao contrário, o fazem
num certo descompasso. Nesse intervalo acomoda-se, com alguns anos de diferença o
período da filosofia cristã nascente – a patrística – chegando até a morte de Santo
Agostinho (430 d.C.) que, praticamente, coincide com o fim da Idade Antiga.
Tomando-se Tales como ponto de partida, segue-se o período dos présocráticos – (aprox. 624/470 a.C.) marcado por uma reflexão inicial a respeito dos
pincípios da natureza – Em seguida, o período clássico (aprox. 470/324 a.C.) com o
trio Sócrates, Platão e Aristóteles numa relação direta de mestre e discípulo em Atenas.
Foi, portanto, nesse período clássico da filosofia antiga que a filosofia encontrou não
apenas uma sólida sistematização mas também suas principais direções, estendendo-se,
inclusive, através de todo o período medieval entre os árabes. A esse período clássico,
o intercâmbio que se estabeleceu entre o Oriente e o Ocidente, a partir das conquistas
de Alexandre, denominou-se de filosofia helenística. Esta teve na escola epicurista e na
estóica suas principais manifestações. O neoplatonismo, praticamente, encerrou o
período da filosofia antiga. Com Plotino, o maior e mais vigoroso representante dos
pensadores platônicos desse período, a filosofia antiga teve um novo apogeu e
praticamente seu término.
Na classificação da História da Filosofia, o encontro do paganismo com
o cristianismo – que se iniciara ainda na antiguidade tardia e que se desenvolveu
durante o século II d.C. – preenche o hiato entre o final da filosofia antiga e o início da
Idade Média com a presença dos primeiros pensadores convertidos ao cristianismo.
40
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Esse período, denominado patrística – com duas vertentes: uma de língua grega e outra
de língua latina – encerrou-se com a síntese de Santo Agostinho (354/ 430 d.C.) .
Boécio (aprox. 480/524) chamado “o último romano e o primeiro escolástico”35, foi
um transmissor importante da filosofia antiga para o período medieval do Ocidente
latino e um dos símbolos da ligação entre os dois períodos.
A partir do século V d.C., os pensadores, já ambientados na divisão
histórica da Idade Média encontraram a tradição filosófica dividida em dois mundos: o
mundo do Ocidente de língua latina e o mundo do Oriente de língua grega. Do lado
ocidental, a filosofia medieval foi, praticamente, uma filosofia cristã tanto do ponto de
vista de suas intenções como pelos seus próprios representantes. A partir do séc. VII
d.C./I H., a escolástica dominou todo o espaço filosófico do Ocidente até o séc.
XIVd.C./VIII H. Nesse ínterim, do lado oriental, a patrística grega preparou o caminho
para a recepção da filosofia antiga para o mundo árabe. A partir do séc. VIII d.C./ II
H., o volume de traduções para o árabe se configurou num desenvolvimento dos
caminhos da filosofia totalmente diverso do ocidente latino. A recepção da filosofia
antiga por Al-Kind÷, as consistentes teses de Al-Fārāb÷, a envergadura e a
sistematização da obra de Ibn S÷nā e as críticas de Ibn Ru¹d foram realizadas num
período em que o Ocidente latino, à meia luz, sequer sabia o que não sabia.
A partir do séc. XII d.C./V H. iniciou-se um período fecundo de
traduções de obras filosóficas e científicas do árabe para o latim. Inicialmente, o
Ocidente latino foi revigorado pelas traduções de obras em árabe e, quase
simultaneamente, pelas obras gregas. Ao mesmo tempo em que a falsafa já não tinha
mais tanta força no mundo muçulmano, a. escolástica cristã conhecia seu apogeu .
Tomás de Aquino tendo realizado uma nova síntese do cristianismo sobre as bases
aristotélicas foi o exemplo mais acabado desse período, equilibrando o binômio fé e
razão. Ao final da escolástica, Guilherme de Ockham (1280/ 1348 d.C.) apontou
inúmeras questões que anunciaram o final desse período. Sobre muitas de suas teses, os
modernos se ampararam para separar os dois caminhos em questão: razão e fé.
Nesse ponto, pois, já é possível localizar e contextualizar a falsafa no
interior da História da Filosofia: situa-se entre os séculos VIII d.C/II H. e XIII d.C./VI
H. Mais precisamente, a partir da recepção, por Al-Kind÷, das obras traduzidas para a
língua árabe até a morte de Ibn Ru¹d. Vale notar que a influência da falsafa não se deu
35
KUNZMANN,P. Atlas de la philosophie. Paris: La Pochothèque, 1993, p.63.
41
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
do mesmo modo nas duas frentes que absorveram suas teses, isto é, o Oriente e o
Ocidente, mas isso será detalhado mais adiante.
Continuando com nosso vôo panorâmico sobre a História da Filosofia,
pode se dizer que a partir do século XII d.C./ VI H., o contato crescente entre o
Ocidente latino e o mundo islâmico foi o responsável pela introdução da ciência e da
filosofia
na Europa. Nessa época, um grande volume de tratados e novos
conhecimentos encontrou solo fértil nos pensadores ocidentais e alicerçou as condições
para o renascimento europeu. O que não se imaginava, talvez, é que muitos pensadores
do renascimento, ao redescobrir a antiguidade, paradoxalmente, preparassem tanta
ingratidão para com os medievais, esquecendo-se que, durante séculos, estes haviam
sido os responsáveis por guardar e desenvolver a filosofia e as ciências dos antigos.
Nessa época, a filosofia medieval, mesmo não tendo o seu fim lembrado de modo tão
marcante e aparente quanto o final da própria Idade Média em 1453 d.C. com a tomada
de Constantinopla pelos turcos, também já se findava.
Com o incremento das ciências em direção ao domínio da natureza, os
nomes de Francis Bacon (1521/ 1626 d.C.) e Renée Descartes (1596/ 1650 d.C.) foram
grafados como alguns dos símbolos mais ilustres que impulsionaram os europeus na
direção do que se chamou de filosofia moderna. No novo cenário da filosofia, três
principais tradições se destacaram: a francesa, a inglesa e a alemã associando-se a elas,
comumente, o o racionalismo, o empirismo e o idealismo, respectivamente. Em alguns
casos, muitos dos partidários dessas escolas foram tributários, ainda que indiretamente,
de teses desenvolvidas pelos medievais, inclusive pelos falasifa. O sistema de grande
envergadura proposto por Hegel (1770/ 1831 d.C.) pôde ser considerado como o
apogeu e o fim da modernidade, coincidindo, praticamente, com a data histórica do fim
da Idade Moderna, isto é, com a Revolução Francesa em 1789 d.C. Temporal e
espacialmente, os críticos mais próximos de Hegel tais como Schopenhauer (1788/
1860 d.C.) e Nietzsche (1844/ 1900 d.C.) anunciaram alguns caminhos da filosofia
que, na virada do século XX d.C. se expandiu numa miríade infindável de escolas,
tendências e caminhos. Aqui, a filosofia já não tinha mais um só rosto. Mas teve,
algum dia? O que será que pensaria Ibn S÷nā a esse respeito ?
2.4
alguns ditos sobre a filosofia dos medievais
As críticas negativas a respeito da filosofia medieval de modo
indiscriminado acompanharam, em linhas gerais, o que se disse de desqualificante da
42
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
própria Idade Média. A falsafa, sendo medieval, não esteve, pois, isenta de tais
preconceitos. No século XVIII d.C., as palavras do marquês Saint- Aubin em seu
Tratado da opinião podem dão uma idéia da visão negativa que a filosofia medieval
despertou entre os modernos, tanto de modo genérico, como de modo particular em
vistas da intersecção da falsafa com o pensamento do Ocidente latino. Assim o lemos:
“Após a tomada de Constantinopla, os franceses trouxeram os livros
de Aristóteles comentados pelos árabes. Introduziu-se, então, uma
filosofia tirada de Avicena e de outros comentadores africanos; e o
mau gosto arabesco estragou as escolas, como a arquitetura e as
demais artes haviam sido corrompidas pelo gosto gótico.”36
Gradualmente, interpretações como essa foram sendo sobrepostas pelo bom senso.
Assim como os tempos mudaram para a História, também mudaram para a História da
Filosofia. Na mesma direção e intenção de recuperar aspectos positivos da Idade
Média, o estudo a respeito da filosofia medieval também procurou lançar um olhar
mais generoso sobre a produção filosófica desse período. Essa nova abordagem da
filosofia medieval inevitavelmente levou a falsafa
a ser incluída de modo mais
consistente no trajeto da História da Filosofia, também ocidental; pois se, em boa parte,
a história da filosofia medieval foi a história da filosofia escrita e pensada em árabe,
isso significa que todo reclamo em vistas da recuperação do valor filosófico da Idade
Média – para que não manque – deve incluir, necessariamente e de modo positivo, a
falsafa.
Não valeria a pena, aqui, analisar o espaço dedicado à falsafa nos
inúmeros manuais da história da filosofia do Ocidente escritos no século XX d.C. pelos
europeus pois, basta ao leitor verificar que a maioria deles é geralmente lacunar ao
tratar da falsafa. Apenas para citar um exemplo de peso, um dos manuais mais
completos a respeito da filosofia medieval foi escrito por Étienne Gilson, um dentre os
três nomes de maior destaque no medievalismo francês que surgiu no século XX d.C.
O título dessa obra exemplar, que tem aproximadamente 1.000 páginas, é A Filosofia
na Idade Média37. Ressalte-se que esse livro tornou-se
referência praticamente
obrigatória aos medievalistas. O enfoque do autor já é bastante claro em sua
introdução, percorrendo os temas e as questões principais concernentes à filosofia
ocidental do ponto de vista do cristianismo. Mesmo assim, Gilson dedica dois capítulos
36
DE LIBERA, A.A filosofia medieval, p.13.
43
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
referentes à filosofia em árabe: o capítulo VI, denominado de “As Filosofia Orientais”
e o capítulo VII, intitulado “A influência greco-árabe no século XIII e a fundação das
universidades”. Esses dois capítulos ocupam aproximadamente dez por cento da obra.
Apesar da valorosa contribuição de Gilson aos estudos medievais, a geração que o
sucedeu na França, buscou novos caminhos e propostas. Dos nomes atuais, destacou-se
o de Alain de Libera.
Em sua A Filosofia Medieval, De Libera, apresenta sua visão a respeito
da filosofia nesse período em dez capítulos que ocupam aproximadamente 500
páginas. Os quatro primeiros capítulos são dedicados a outras fontes que não as do
Ocidente latino e têm os seguintes títulos: “A filosofia em Bizâncio”; “O Islām
oriental”; “O Islām ocidental” e “A filosofia judaica”. Esses quatro capítulos ocupam
quase a metade do referido livro. O fato não é meramente de caráter quantitativo mas
indica o interesse crescente a respeito da falsafa. Uma das teses centrais de De Libera
diz respeito a uma visão descentradada filosofia medieval cristã procurando incluir de
modo positivo outras filosofias que se desenvolveram durante o mesmo período. Isso
permitiu que o estudo da falsafa se emancipasse da visão meramente utilitária de ter
sido a transmissora da filosofia de Aristóteles ao Ocidente; opinião provinda, muitas
vezes, dos próprios medievalistas; opinião essa tão funesta quanto a dos modernos em
relação à Idade Média como um todo. Um breve recolhimento de algumas palavras de
De Libera nos fornece essa distinção:
“A história da filosofia medieval é escrita, em geral, do ponto de vista
do cristianismo ocidental (ý) [mas] filosoficamente o mundo medieval
não tem centro. Não só porque o mundo medieval ocidental tem uma
pluralidade de centros mas, sobretudo, porque há muitos mundos
medievais.”38
Em outra obra – Pensar na Idade Média –, De Libera intitula um dos oito capítulos do
livro de “A herança esquecida”39, no qual apresenta a importância da falsafa na
dimensão dos estudos da filosofia medieval. Ao discutir, por exemplo, o tema do
nascimento do conceito de intelectual na Europa, vincula algumas posturas dos falāsifa
ao que seria o espírito dos intelectuais, aludindo ao fato de que esse espírito e o
nascimento do próprio conceito seriam a marca mais profunda da influência dos
38
39
DE LIBERA,A. A filosofia medieval,1998, p.7.
Título que inspirou o subtítulo deste trabalho.
44
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
falāsifa sobre a Idade Média do Ocidente. Visando recuperar as ligações que explicam
as transformações no ocidente medieval, ele explica:
“É dessa herança esquecida que queremos aqui partir – o papel
positivo dos “arabes”, tendo se apagado da nossa memória juntamente
com a época, a cultura e o meio em que ele se manifestou plenamente.
Essa herança é a trama, o pano de fundo de tudo o que segue. É
através dela que iremos a Siger, mas sobretudo a Dante e a Eckhart.”40
A adoção de uma visão que interliga a história da filosofia numa continuidade
ininterrupta se apóia na afirmação da existência de múltiplos centros de
desenvolvimento da filosofia, ora
sem comunicações uns com os outros, ora
interpenetrando-se e criando novos rumos ao pensamento. Outra fator que permitiu
uma visão renovada respeito da filosofia medieval e, particularmente da falsafa, foi a
ênfase no conceito da translatio studiorum , salientando a importância da transmissão
do saber através dos seus centros. Muitas foram as transmissões do saber que se
iniciaram na antiguidade tardia e se estenderam além da Idade Média:
“ Uma é feita de Atenas para a Pérsia e da Pérsia para Harran; outras
se fazem de Alexandria para os mosteiros sírios dos séculos VII e
VIII; um terceiro movimento vai da cultura siríaca para a cultura
árabe, de Alexandria a Bagdá.(ý) nessa mesma época o ocidente
cristão é filosoficamente estéril. Só desperta do seu longo sono com
uma nova translatio que vem de Bagdá para Córdoba e, daí, para
Toledo, isto é: do oriente muçulmano para o ocidente muçulmano e,
de lá, para o ocidente cristão.”41
A idéia de que o saber caminhou através dos grandes centros sendo incorporado pelas
sequentes civilizações e culturas encontra menos dificuldades, para se compreender os
caminhos da filosofia, do que a visão de uma suposta estagnação milenar do saber. O
próprio Al-Fārāb÷ entendia que esse movimento o antecedia em Bagdá. Explicou que o
saber filosófico dos antigos teria se transladado dos caldeus, na Mesopotâmia, para os
egípcios, destes aos gregos, aos sírios cristãos e, até aquela época, aos árabes. Vivo,
hoje, talvez acrescentasse as posteriores translações.
Ora... ora... “onde estão, portanto, as trevas?”42
40
DE LIBERA,A. Pensar na Idade Média. São Paulo: editora 34,1999,pp.133-134.
DE LIBERA,A. A filosofia medieval, p.17.
42
DE LIBERA,A. Pensar na Idade Média, p.86.
41
45
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
2.5
um panorama religioso da época
Aos olhos dos conterrâneos de Mu¬ammad, a mensagem de um Deus
único, rivalizou com as crenças politeístas e idólatras das tribos da península arábica.
Nessa época, Meca, centro de peregrinação religiosa, abrigava inúmeros deuses e
ídolos. Aos que detinham o poder em Meca não interessava que essa fonte de lucro e
de vantagens comerciais e políticas fosse molestada. Foi nesse cenário de conflito de
interesses, por um lado, e de sincretismo de religiosidades primitivas, por outro, que as
transformações propostas pela mensagem de Mu¬ammad ao povo iniciaram uma
verdadeira ebulição religiosa e social.
Ao mesmo tempo em que a palavra do profeta desmontava as estruturas
da religiosidade primitiva da península, propunha-se como um elemento unificador das
tribos e das crenças dos árabes em torno de um só Deus, de uma só direção, de uma só
fonte de regra e de conduta. Ao momento da unificação em torno da nova mensagem,
as influências dos elementos do judaísmo, do cristianismo, das religiosidades locais e
outras que constituíam o sincretismo da região iam sendo ultrapassadas. Mesmo tendo
suas raízes no tempo do patriarca Abraão, o Islām surgia no cenário histórico como
uma nova religião. Quando o profeta Mu¬ammad deixou a cidade de Meca em direção
à cidade de Yatrib – que passou a se chamar Medina (Mad÷na al-Nabi – a Cidade do
Profeta) em 622 d.C. / 1H. – marcou-se o início do calendário muçulmano: a Hégira.
Ao retornar a Meca, Mu¬ammad destronou os deuses e ídolos da Kaaba. Para se
estabelecer, o Islām não lutara, ainda, com povos estrangeiros mas, ao contrário,
Mu¬ammad fôra obrigado a enfrentar os seus próprios conterrâneos para que
prevalecesse a nova mensagem. As lutas não foram só no campo das idéias e nesse
cenário, a filosofia era uma realidade ainda muito distante dos árabes, e esperaria mais
de um século para ser incorporada.
À essa época, o panorama religioso da Pérsia era dominado pela religião
fundada por Zaratustra. Apesar de a doutrina desse reformador da religiosidade
iraniana não ser precisamente documentada, deduz-se que viveu por volta do ano 1.000
a.C. Por atribuir o bem ao deus Ahura Mazda, sua religião também ficou conhecida
como mazdeísmo. De caráter profético, pregava uma doutrina revelada opondo-se às
práticas animistas e de sacrifícios da ortodoxia antiga da região. O fundamento da
religião de Zaratustra foi essencialmente pautado sobre o dualismo, opondo o bem ao
mal; a luz às trevas. O Avesta, conjunto de textos a ele atribuídos, e a principal fonte de
46
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
sua doutrina, impulsionava o homem a escolher o bem e a se afastar do mal. Após a
morte havia a promessa do paraíso e da vida eterna ou, então, do sofrimento eterno.
Os judeus, por sua vez, estavam espalhados principalmente pelos
grandes centros da Mesopotâmia e por toda a costa do Mediterrâneo – Espanha, Itália,
Grécia, costas da Ásia Menor e no norte da África, particularmente em Alexandria – A
diáspora, ou a dispersão dos judeus da Palestina, desde a invasão dos assírios em 721
a.C. e dos babilônios em 568 a.C.
conquistando os reinos de Israel e de Judá,
respectivamente, –época da destruição do primeiro Templo de Salomão –, havia levado
os judeus a procurar uma unidade que não se estruturasse mais em bases políticas ou
territoriais mas na própria sobrevivência de suas tradições. O conjunto das regras
litúrgicas e das práticas sacerdotais se destinaram a manter a unidade religiosa das
comunidades dispersas diante da impossibilidade política da manutenção de um
território próprio. Inicialmente exilados na Mesopotâmia, antes da destruição do
segundo Templo pelos romanos em 70 d.C., alguns judeus que estavam fora da
Palestina se destacaram no campo da filosofia. Vivendo em comunidades
independentes, com seus costumes e tradições, os judeus foram constantemente
afetados pelas instabilidades dos povos que dominavam os territórios onde estiveram
instalados. Sob o domínio do Islām, tanto cristãos como judeus tiveram a tolerância
característica da chamada Idade de Ouro do islamismo (sécs. VII à XIII d.C. / I a VII
H.), período que pôde ser considerado um dos mais pacíficos e prósperos.
O Cristianismo, por sua vez, nascido nas terras da Palestina, isto é, no
Oriente, que naquela época estava sob o domínio de Roma, isto é, do Ocidente, teve
em seu desenvolvimento o caráter duplo que marcou seu nascimento. Em mil anos de
história, até o cisma de 1054 d.C. quando o bispo de Roma, Leão IX ( 1049/1054 d.C.),
e o patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulário (1043/1058 d.C.), se excomungaram
mutuamente, as relações da Igreja do Ocidente e do Oriente – assim como a dos povos
que se sucederam no domínio territorial do Mediterrâneo – se interpenetraram e
modificaram os rumos de sua história. Algumas datas e fatos refletem transformações
que interessam em vista da transmissão da filosofia ao mundo árabe.
Em 313 d.C., Constantino promulgou o Edito de Milão declarando o
cristianismo como religião oficial do Império Romano. Muitos especialistas separaram,
a partir dessa data, a igreja vivida como testemunho da igreja estruturada como poder
ou, em outras palavras, a igreja que vivia dentro do Império Romano da igreja que se
47
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
preparava para ser a herdeira das antigas estruturas, se tornando ela mesma um novo
império que se estendeu por todo o período medieval. Em 330 d.C. o mesmo
Constantino fundou Constantinopla nas margens do Bósforo, onde já existia desde 658
a.C., Bizâncio, antiga colônia grega. Em 395 d.C. o Império Romano foi dividido em
duas capitais por Teodósio: Roma, no Ocidente, e Constantinopla, no Oriente. Mesmo
quando em 476 d.C., Rômulo Augústulo foi deposto, marcando o fim do Império
Romano do Ocidente, o Império Romano do Oriente ou Império Bizantino, seguiu
unificado julgando-se o sucessor legítimo do Império como um todo e só cairia em
1453 d.C. com a tomada da cidade de Constantinopla pelos turcos. Do lado ocidental, a
partir da queda de Roma em 476 d.C., a Europa teve de esperar mais de trezentos anos
para ter algum vislumbre de reunificação que aconteceu somente no ano 800 d.C.
quando papa Leão III coroou Carlos Magno imperador, na tentativa de reerguer o
antigo império. No âmbito ocidental, portanto, à época do nascimento do Islām, a
igreja cristã havia seguido sua trajetória vitoriosa desde seu nascimento como religião
no Oriente em terras dominadas por Roma, passando a religião oficial do Império (313
d.C.) , sobrevivido à queda de Roma (476 d.C.), convertido os bárbaros – lembre-se o
batismo de Clóvis, rei dos francos em 496 d.C. – e coroado um deles, Carlos Magno
(800 d.C.) na tentativa de reerguer o antigo império.
Mas o Cristianismo não estava confinado ao poder de Roma e do
Ocidente. O Concílio de Constantinopla, em 381 d.C., havia determinado cinco
patriarcados, a partir das cidades preeminentes e de maior influência, constituindo-os
como os principais centros de difusão e controle do cristianismo ao mesmo tempo em
que paralisou a formação de outras zonas autônomas que requeriam o mesmo estatuto.
No século V d.C. o título de patriarca era utilizado para nomear os bispos de
Alexandria, Antioquia, Roma, Constantinopla e Jerusalém que dividiam o poder e o
controle religioso. Com o passar do tempo, o Ocidente reconheceu apenas a sede de
Roma como centro único, entendendo a supremacia do bispo de Roma sobre os outros
patriarcados.
Ao longo dessas transformações, duas tradições se desenvolveram de
maneira diversa: uma no Oriente, outra no Ocidente. Há pelo menos quatrocentos anos
antes do surgimento do Islām, a formação das bases filosóficas das doutrinas do
cristianismo já havia colocado os primeiros pensadores cristãos em contato com a
filosofia pagã. O Cristianismo, na busca de esclarecer e articular suas próprias teses,
teve no período da patrística o seu primeiro apogeu filosófico. Nesse período, as duas
48
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
línguas, isto é, o latim e o grego se mostravam como dois pilares, um no Ocidente e o
outro no Oriente, a sustentar uma única fé. Alguns nomes de destaque no Ocidente
latino foram Hilário, bispo de Poitiers; Ambrósio (334/397 d.C.), bispo de Milão;
Agostinho (354/430 d.C.), bispo de Hipona e o Papa Gregório Magno (590/604 d.C.)
dentre outros. Entre os padres da igreja de língua grega, estiveram Atanásio, bispo de
Alexandria; Basílio Magno (329/379 d.C.), bispo de Cesaréia; Gregório (330/395
d.C.), bispo de Nissa e João Crisóstomo, bispo de Constantinopla dentre outros. No
caso da formação da falsafa, importa sobremaneira a absorção e o desenvolvimento da
filosofia pelos pensadores cristãos do Oriente de língua grega. Estes tiveram um
importante papel na transmissão dos conhecimentos para os emergentes pensadores do
Islām, ao passo que os pensadores cristãos de língua latina não tiveram papel de
destaque na formação da falsafa.
A queda de Roma em 476 d.C. só veio acentuar o contraste entre os
caminhos da filosofia no Oriente e no Ocidente. Nesse período, o que se chamou de “a
noite da alta Idade Média” aplicar-se-ia, com mais propriedade, ao Ocidente. A crise
da cultura latina, revigorada somente no renascimento carolíngeo, com o insterstício de
um novo eclipse cultural até o século XI d.C., fez com que a atividade teológica,
filosófica e literária tenham sido mais intensas em Bizâncio. Assim como o
Cristianismo não era um monopólio de Roma, a filosofia também não era um
monopólio latino. “O esplendor cultural de Bizâncio atingiu um nível comparável e
frequentemente superior ao dos latinos. (ý) a ‘roma caçula’ não deixou de produzir um
saber filosófico teológico original e vivo”
43
A maior parte desses pensadores se
envolveu em debates doutrinais a respeito de questões cruciais das doutrinas cristãs tais
como a natureza de Cristo: homem e Deus, Deus, ou homem-Deus ? “Os derrotados,
quanto às posições que defendiam, passariam à história como heréticos.”44
Apesar do fechamento da escola de Atenas, em 529 d.C. por Justiniano,
a organização da cultura bizantina manteve a filosofia como ensino superior imperial
em Constantinopla. A dita Antiguidade tardia que se prolongou na Idade Média através
de Bizâncio foi elo importante na transmissão da filosofia ao mundo árabe. Como bem
observa Charles Diehl
“O que dá à literatura bizantina caráter particular, o que a torna muito
diferente das outras literaturas da Idade Média é o contato íntimo que
43
44
DE LIBERA, A, A filosofia medieval ,p.20
DEL ROIO, J.L. Igreja medieval. São Paulo: Ed.Ática, 1997, p.20.
49
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
manteve com a antiguidade grega. O grego, como sabemos, era a
língua nacional do império bizantino; as obras dos grandes escritores
da Grécia eram, portanto, acessíveis a todos, compreendidas por
todos, admiradas por todos.(ý) Nas escolas bizantinas, ao lado das
obras dos padres, os autores gregos constituíam a base da educação;
Homero era o livro de cabeceira.”45
Do mesmo modo, Platão, Aristóteles e outros filósofos eram leitura corrente entre os
sábios de Bizâncio. No entanto, a filosofia produzida em Bizâncio, marcada fortemente
pelo neoplatonismo, adquiriu contornos bastante peculiares enquanto se mesclava com
elementos locais – “os presságios, os sonhos, os transes mediúnicos foram durante
muito tempo moeda corrente”46 – resultando numa configuração própria de seu mundo
e não propriamente do mundo grego. Mas os traços característicos da filosofia que se
desenvolveu nas terras dominada pelo Império Bizantino estiveram longe de lhe
conferir homogeneidade. Marcada principalmente pelos embates doutrinais do
Cristianismo, as heresias que se situaram principalmente no Egito e na Síria
rivalizaram com o poder central de Constantinopla. Os temas teológicos podem ser
encontrados, por exemplo, nos escritos de São João Crisóstomo, Gregório de
Nazianzeno e Gregório de Nicéia. Verifica-se que “a teologia constituiu sozinha pelo
menos a metade do que produziu a literatura bizantina, e que em Bizâncio encontremse poucos escritores, mesmo profanos, que não tivessem de algum modo tocado em
assuntos teológicos.”47
O desenvolvimento da filosofia grega foi um instrumento valoroso para
auxíliar os pensadores cristãos de Bizâncio a estabelecer o que consideravam as
verdadeiras doutrinas do cristianismo. A polarização se deu pela ortodoxia de um lado
e pelas heresias de outro ou, pela primazia do patriarcado de Constantinopla de um
lado e pelas outras sés orientais de outro: Alexandria, Antióquia e Jerusalém. O fato de
o imperador Teodósio I ter convocado o Concílio de Constantinopla em 381 d.C., ter
reafirmado a consubstancialidade do Pai e do Filho (doutrina de Nicéia) e ter definido
a primazia do patriarcado de Constantinopla sobre os outros patriarcados gerou forte
reação dos cristãos orientais refletida nas lutas doutrinais. A questão da Natureza de
Cristo e da Trindade foram temas centrais que ocuparam grande parte da tensão vivida
no interior do cristianismo de Bizâncio num cenário que pareceu entrelaçar a teologia,
45
DIEHL, C. Grandes Problemas da História Bizantina.São Paulo: Ed. Das Américas, 1961, p.180s.
DE LIBERA, A, A filosofia medieval , p.20.
47
DIEHL, C. Grandes Problemas da História Bizantina.São Paulo: Ed. Das Américas, 1961, p.183.
46
50
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
a política e a filosofia: pelo aspecto político, havia uma clara disputa de poder entre os
patriarcados; pelo aspecto teológico, as disputas refletiam esses interesses; e a filosofia
foi um instrumento valoroso na estruturação da argumentação lógica para se chegar à
vitória.
Um dos centros de difusão das heresias em Bizâncio surgiu em
Antioquia, na Síria, onde um padre, Nestório (381- 451d.C.) enfrentou o tema da
Natureza de Cristo separando de modo absoluto a natureza divina eterna e a natureza
humana gerada. Essas duas naturezas não estariam unidas consubstancialmente em
Cristo mas apenas de modo acidental. Uma das consequências de afirmar a existência
de duas naturezas e duas hipóstases na única Pessoa do Cristo Filho de Deus, ou duas
naturezas e duas pessoas, poderia levar à conclusão de que a Virgem Maria não seria
portadora da natureza divina: teria sido mãe de Cristo sem ter sido mãe de Deus.
Nestório enfrentou a irredutível oposição do patriarcado de Alexandria e Cirilo de
Alexandria levou o Imperador Teodósio II a convocar um novo Concílio (Éfeso em
431 d.C.) no qual Nestório foi deposto e a doutrina das duas naturezas, condenada.
Sua obras foram destruídas, o que infelizmente não permitiu que se fizesse uma idéia
mais precisa de sua doutrina. Mesmo assim, ela se propagou e se impôs como doutrina
oficial da igreja da Pérsia entre os cristãos do império sassânida.
A oposição enfrentada pelo nestorianismo acabou gerando uma outra
heresia no sentido radicalmente oposto: o Monofisismo. Este se opôs, ao mesmo
tempo, aos nestorianos e ao poder central de Constantinopla afirmando que o Verbo
encarnado possuía apenas uma natureza, a divina. Essa posição de independência na
interpretação da doutrina da Natureza de Cristo também foi condenada em 448 d.C.
Seu principal articulador, Êutico, foi condenado pelo Concílio de Calcedônia em 451
d.C. que impôs uma nova formulação para a questão: “o Verbo divino, Filho Único de
Deus, nascido da Virgem Maria quanto à sua humanidade, está em duas naturezas que
permanecem sem confusão, sem mudança, sem divisão ou separação”. 48 Mas, longe de
desaparecer, o monofisismo, como que escolhido para integrar uma unidade cultural
étnica e política
independente do domínio centralizador de Constantinopla,
desenvolveu-se na Síria e no Egito e espalhou-se por outras províncias do Oriente.
Nesse cenário, prenunciou-se um clima de insatisfação pela dura
autoridade exercida pela capital do império bizantino em face de suas províncias,
48
Cf. DE LIBERA, A. A filosofia medieval, p.27
51
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
entrelaçando os campos teológico, político e filosófico. Tanto a dissidência na Síria e
no Egito como a difusão do nestorianismo entre os cristãos do império sassânida
tiveram sérias consequências e predispuseram à uma recepção dos árabes com pouca
resistência para se livrarem do domínio de Bizâncio.
2.6
O saber e alguns de seus centros
A tensão desse cenário espalhada por inúmeros focos de resistência
manteve, à essa época, o saber disseminado por vários centros que absorveram e
desenvolveram a filosofia grega. Se, por um lado, a filosofia bizantina era uma das
formas cristãs do pensamento grego, da razão e da alma grega, por outro lado, as terras
de Bizâncio abrigavam, também, pensadores que não eram cristãos. Nesse rico cenário,
a contribuição é plural: tanto os padres da igreja, como judeus e pagãos tiveram papel
relevante. Traçar algumas linhas a esse respeito nos auxilia a compreender algumas
reações favoráveis das populações locais, inclusive dos eruditos, na recepção dos
árabes, na conversão para o islamismo e na transmissão da filosofia ao mundo árabe.
Esse conjunto de várias vertentes, proporcionados pelas bases da filosofia grega foi
absorvido pelos árabes como um conjunto de conhecimentos da antiguidade dos quais
eles mesmos se julgaram os legítimos continuadores. A filosofia, assim transladada,
justificou a translatio studiorum sem interrupção da Grécia para Bizâncio – com todas
as suas divergências – , desta para o mundo árabe e, depois, destes para o Ocidente
latino.
Alguns desses centros encontravam-se em Antióquia e Nísibe, onde a
filosofia e a teologia não se faziam somente em grego mas também no idioma siríaco
que era a língua da liturgia local. Na época da invasão dos árabes na Síria, muitos
textos filosóficos traduzidos para o árabe se valeram das traduções siríacas para serem
concluídos, isso quando não foram traduzidos diretamente do siríaco. Vale notar, pois,
a importância desse período da filosofia
escrita em siríaco como um relevante
elemento transmissor da filosofia grega aos árabes e que só desapareceria
filosoficamente como língua de tradução no final do séc. X.d.C. quando de sua
substituição pela língua árabe. De Libera sublinhou com propriedade esse fato ao
comentar que “é no séc. VII d.C., e depois na época de ouro do califado abássida, a
produção filosófica siríaca conheceu apogeu. Foi o mundo islâmico que dela se
beneficiou, já que o conquistador árabe foi frequentemente recebido como libertador.
52
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Por razões religiosas, o Império bizantino, que não soube ceder lugar aos ‘dissidentes’,
encontrou-se alijado de uma parte essencial de seus recursos intelectuais.”49
Ao norte da Mesopotâmia, duas cidades abrigaram outros dois centros
importantes de desenvolvimento dos estudos filosóficos nesses tempos de transição:
Harran e Edessa. Harran, célebre pelo seu culto à deusa Lua, já era uma cidade tão
antiga quanto a promessa de Deus ao patriarca Abrãao:
“O senhor disse a Abraão: parte da tua terra, da tua pátria, e da tua casa
paterna e vai para a região que eu te mostrarei (ý) Abraão partiu, como o
senhor lhe tinha ordenado, e levou consigo Ló. Ao partir de Harran,
Abraão tinha setenta e cinco anos de idade.”50.
Em 312 a.C. essa região fez parte do império de Alexandre. Com o fechamento da
Escola de Atenas em 529 d.C. por Justiniano, alguns filósofos tais como Damáscio,
Simplício, Hérmias, Diógenes e Isidoro de Gaza deixaram o Império Bizantino e
refugiaram-se no Império Sassânida. No entanto, três anos depois, em 532 d.C.
retornaram e mantiveram a tradição dos estudos em Harran onde Simplício redigiu
seus comentários aristotélicos. Assim, Harran, uma cidade dedicada à filosofia,
afirmou sua importância na translação do saber: “Numa época em que o ensino da
filosofia sofria restrições intensas no coração do Império, a persistência da tradição de
Harran faz dela um dos elos mais importantes do que se poderia chamar “orientação”
dos centros de estudos da Antiguidade tardia até a Idade Média.”51 Também foi notório
o desenvolvimento da Escola de Edessa que, depois da tomada de Nísibe pelos persas
em 363 d.C. tornou-se o principal foco da difusão do cristianismo no império persa. A
partir de 430 d.C. foi marcada pelo nestorianismo mas rivalizou com outros centros de
viés mais próximos à ortodoxia . A Escola foi fechada pelo imperador Zenão em 489
d.C. e muitos se transferiram para Nísibe.
Mas foi em Alexandria, dominada no primeiro século de existência do
Islamismo, que os árabes tomaram contato com um dos mais antigos e ricos centros de
saber da antiguidade. Localizada no Egito a aproximadamente 200 Km da atual capital
do Cairo, Alexandria fôra formada no local onde desde 1.500 a.C. existia uma antiga
cidade faraônica chamada Rhakotis. Quando Alexandre o Grande, rei da Macedônia e
difusor da cultura helênica, dominou essa região, unindo algumas regiões próximas a
49
Cf. DE LIBERA, A. A filosofia medieval, p.30
Genesis. 12, 1-5
51
DE LIBERA, A. A Filosofia Medieval, p.26
50
53
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
essa, fundou a cidade que levou seu nome. O objetivo de Alexandre foi torná-la um
centro de difusão da cultura grega no Egito. Também planejou que Alexandria fosse
uma base naval e uma ligação de acesso para o vale do Nilo pelos macedônios.
Alexandre, morto em 323 a.C. na Babilônia, teria sido enterrado num caixão de ouro
na cidade por ele fundada. Depois de Alexandre, a cidade foi administrada pelos
Ptolomeus, época em que se ergueu o Farol de Alexandria e, pela sua riquíssima
biblioteca que reunia mais de 500.000 papiros tornou-se o centro da cultura mundial
acolhendo sábios de inúmeras partes do mundo. Alexandria, sob o domínio do império
romano, teve a biblioteca incendiada em 48 a.C. pela invasão de Júlio César mas foi
reconstruída em outro local. Essa não foi, porém, a única destruição que a biblioteca
sofreu. Subsequentes ataques à região fizeram a cidade sofrer numerosas perdas de
seus monumentos. O termo “Escola de Alexandria”, em seu sentido mais amplo,
referiu-se tanto aos gregos, como aos judeus ou cristãos que lá desenvolveram suas
doutrinas filosóficas. A gama de assuntos tratada foi ampla e envolveu trabalhos de
gramática, astronomia, medicina, teologia, geografia e de todas as ciências conhecidas
na época. Os nomes que estiveram ligados a Escola de Alexandria mostram a acolhida
de pensadores das mais distintas origens: Aristarco, Eratóstenes, Amônio Sacas, Fílon
e Clemente dentre outros. Além de Alexandria ter sido um dos mais ativos centros do
pensamento cristão, abrigou também cultos egípcios e romanos. Com a crescente
ascenção do cristianismo, o termo “Escola de Alexandria” adquiriu algumas vezes o
sentido mais específico da aproximação que lá se fez entre a filosofia e a religião e as
interpretações alegóricas do texto sagrado. Clemente de Alexandria foi um dos
expoentes desse período mas também Sinesio de Cirene que mesclou o neoplatonismo
com o cristianismo; Herméia de Alexandria comentou o Fedro, usando ideias
dialéticas de Jamblico e Asclépio comentou a Metafisica.
Em Alexandria, o helenismo presente no judaísmo teve em Fílon um de
seus notáveis representantes. Seu trabalho teve papel fundamental para o
desenvolvimento dos cristãos helenizados. Uma de suas importantes contribuições se
deu pela passagem que operou da filosofia com a religião monoteísta num período em
que o cristianismo estava apenas surgindo no cenário religioso e o Islamismo estava há
pelo menos cinco séculos de seu nascimento. De origem judaica, Filon de Alexandria
(25 a.C. -50 d.C) adotou a interpretacao alegórica do Antigo Testamento que se
efetuava entre os judeus cultos da comunidade de Alexandria. As influencias da
filosofia grega, principalmente de Platão e dos estóicos, foram a marca das grandes
54
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
características de suas especulações. Em Fílon encontramos obras de comentários às
escrituras – algumas alegóricas e outra exegéticas – e obras de caráter especulativo
teológico-filosófico. A título de ilustração podemos verificar, na passagem seguinte, a
aproximação com o platonismo:
“Entre Deus, que é o ser puro, do qual nada pode predicar-se, e o
mundo sensível, que vai se aproximando do nada à medida que desce
até a matéria, existe uma hierarquia de seres , de anjos e demônios e
de mensageiros que são ao mesmo tempo modelos e essências
subordinadas ao modelo perfeito, ao espírito puro, ao logos em que
toda idéia se assenta. O Homem se aproxima de Deus à medida em
que vai se desfazendo da matéria que o vincula ao mundo sensível, e
se faz mais semelhante à idéia segundo a qual foi formado. Sua
verdadeira missão é a ascenção até o mundo das idéias, único modo de
chegar até a contemplação estática de Deus.”52
A penetração recíproca do helenismo e do pensamento oriental, depois de manifesta
nos judeus de Alexandria, foi absorvido pelo cristianismo na tentantiva de estabelecer
suas doutrinas e isolar os movimentos heréticos. Os cristãos mais eruditos dos
primeiros séculos adotaram posturas diversas em relação à filosofia pagã. Alguns
deles, antes de se converterem, haviam recebido a formação na filosofia inclinando-os
a adotá-la na construção das teses da religião. Como assinalou Gilson, “o
que
proporciona todo interesse a essas primeiras tentativas filosóficas é que seus autores
parecem em busca não de verdades a descobrir mas, antes, de fórmulas para
exprimirem as que já descobriram. Ora a única técnica filosófica que possuem é a dos
mesmos gregos de quem precisam, ao mesmo tempo, reformar a filosofia e refutar a
religião.”53 Os anos subsequentes ao nascimento do cristianismo tiveram em
Alexandria um exemplo da concivência mútua de inúmeras vertentes do pensamento
que interpôs a filosofia pagã, o judaísmo, o cristianismo e os diversos cultos que se
formaram de modo independente. Essa movimentação fez com que Brehier afirmasse
que não houve “nada mais confuso que a história do pensamento intelectual nos dois
primeiros séculos de nossa era.” No conjunto desse sincretismo, os cristãos travaram
lutas para determinar seus verdadeiros dogmas e afastar o que consideraram distorções
como, por exemplo, o gnosticismo que espelhava a insuficicência da pura filosofia para
52
53
MORA, J.F. Diccionario de Filosofia. Buenos Aires:Sudamericana, 171 pp.345.
GILSON, A Filosofia na Idade Média, p. 23
55
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
o encontro com Deus propondo uma experiência unificadora e divinzadora através de
um contato íntimo pessoal com Deus.
Nesse cenário, a filosofia exerceu um papel fundamental não mais para
criar novos sistemas mas principalmente para comentar e argumentar a respeito da
verdade revelada. Os anos que antecederam a chegada dos árabes à esses centros já
contava, pois, com um desenvolvimento da filosofia que será por eles absorvida. O
fechamento da Escola de Edessa por Zenão e da Escola de Atenas por Justiniano
transladou a atividade intelectual para outras regiões do Império Bizantino mas
Alexandria permaneceu como um importante centro que antecedeu a chegada dos
árabes. Os tesouros culturais acumulados em Alexandria e a persistência de uma
tradição intelectual viva nessa cidade justificaram que ela tenha sido o principal foco
da aculturação científica dos árabes desde os primeiros anos da dominação Omíada.
A tomada de Alexandria em 642 d.C. pelos árabes desempenhou um
papel decisivo na falsafa: o neoplatonismo alexandrino foi sua principal fonte. Os
grandes pensadores árabes leram Aristóteles com os olhos dos comentadores
alexandrinos da Antiguidade tardia.”54A filosofia grega, presente entre os cristãos do
oriente, encontrou nos escritos do chamado Pseudo-Dionísio (séc.VI d.C.) e em João
Damasceno (séc. VIII d.C.) dois exemplos – um neoplatônico e o outro aristotélico –
do diálogo da filosofia com o mundo oriental cristão à época da chegada dos árabes nas
terras dominadas por Bizâncio.
Deve se levar em conta que, no século VI d.C., a filosofia em Bizâncio
foi marcada não só pelo aristotelismo mas também pelo neoplatonismo. Este último
principalmente pelos textos do pseudo-Dionísio. De identidade desconhecida, talvez
um monge sírio que se fez passar por Dionísio, o Aeropagita, contemporâneo de São
Paulo e que se convertera aos olhos do apóstolo, “o autor do corpus atribuído a
“Dinonísio” operou, nos anos 480-510 d.C., uma extraordinária cristianização da
filosofia neoplatônica.”
55
A força, pois, desses escritos tinham a intensidade de um
testemunho dos primeiros anos do Cristianismo e, não obstante o engodo, contribuíram
para inaugurar uma teologia negativa exaurindo a possibilidade do intelecto referir-se a
Deus de modo positivo, o que indicava os limites da razão humana para chegar ao
divino. Pela via mística na qual descreve a união com Deus em termos de agnôsia
(desconhecimento) e de henosis (união além de toda apreensão intelectual), o pseudo54
55
DE LIBERA, A. A filosofia medieval ,p.30
DE LIBERA, A. A filosofia medieval, p.32
56
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Dionísio opôs-se á metafísica aristotélica ou, “como se a sabedoria metafísica de
Aristóteles estivesse subordinada à hipersabedoria da henosis.”56 Depois de Dionisio,
pensador pré-islâmico, o centro da atividade filosófica deslocou-se do Império
Bizantino para o oriente dissidente, depois islamizado.
Desse modo, foi num mundo oriental dominado principalmente pelo
Império Bizantino e pela Pérsia, que agrupou povos em constante tensão, num cenário
de convivência entre judeus, cristãos e pagãos; de influências recíprocas, de tensões e
lutas doutrinais entre os religiosos, de desenvolvimento e ininterrupta sequência do
conhecimento da língua e da filosofia gregas que reuniam as teses platônicas,
aristotélicas e neoplatônicas, que os árabes, irrompendo no cenário histórico
empunhando a bandeira de uma nova fé, defrontaram-se com a filosofia, com suas
soluções e seus problemas que passaram, também, a sê-los na língua árabe.
2.7
A chegada dos árabes.
À época da expansão do islamismo, do lado Ocidental, pouca atividade
restava aos mais instruídos. A anarquia que se sucedeu à tomada do Império Romano
do Ocidente em 476 d.C. teve como consequência, entre outras, o refúgio da filosofia
aos mosteiros. Bento de Núrsia ( 480/543 d.C.), que fundou a ordem monástica dos
beneditinos e o mosteiro de Monte Cassino (529 d.C.), criara “centros relativamente
protegidos cuja finalidade, em última instância – como percebe muito bem o perspicaz
monge Cassiodoro (m. 575 d.C.) –, será cultivar elites intelectuais capazes de
florescerem assim que as condições externas fossem mais favoráveis. A primeira
oportunidade só surgirá com a criação do Império Carolíngeo (800 d.C.)”57
No mesmo período em que o Ocidente se fechou nos mosteiros, do lado
oriental, os árabes surgiram no cenário histórico e tomaram para si a herança filosófica
dos principais centros de cultura da época, sob o domínio, até então, de Bizâncio ou da
Pérsia: Alexandria, Antioquia, Harran, Edessa e Gundishapur dentre os principais. A
rápida expansão do Islām seguiu-se à união dos povos árabes na península com várias
vitórias importantes: Damasco em 635 d.C., Jerusalém e Antioquia em 638 d.C. a
Mesopotâmia em 640 d.C e o Egito de 639 a 643 d.C. No outro extremo, os árabes
conquistaram a Pérsia de 637 a 650 d.C.e , na Europa, em 711 d.C., já haviam chegado
ao sul da Espanha sendo freados em 732 d.C. quando Carlos Martel conseguiu dete-los
56
57
DE LIBERA, A. A filosofia medieval , p.32
ELIADE, M. Dicionário das Religiões. São Paulo: ed. Martins Fontes: 1999, pp.108-109.
57
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
na França, mas mesmo assim tomaram, ainda, Creta em 823 d.C. e a Sicília em 827
d.C.
As conquistas árabes frente às regiões dominadas por Bizâncio,
contaram, surpreendentemente, com a ajuda das próprias populações locais, devido,
principalmente, à insatisfação dos grupos heréticos que se opunham à opressão
exercida por Constantinopla sobre essas regiões. “Na batalha de Yarmýk, na qual
foram destroçados os exércitos do Império, 12.000 cristãos árabes passaram para o
lado do inimigo.”58 Aos heréticos do cristianismo instalados nos domínios do Império
Bizantino, era preferível aderirem ao islamismo a suportarem as pressões locais e,
assim, não regiram e facilitaram a invasão árabe. O Império Bizantino ficou bastante
reduzido mas talvez mais homogêneo pois se livrara dos monofisitas e de outros
grupos dissidentes que haviam sido causas de constantes ameaças de desintegração do
Império. Por outro lado, os diversos centros de estudos, de cultura, filosofia e religião
que estiveram sob o domínio de Bizâncio e da língua grega, como língua oficial, foram
sendo paulatinamente, substituídos pela língua árabe.
58
DUÉ,A. Atlas histórico do Cristianismo São Paulo, ed.Vozes, 1999,p.102.
58
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
3- NO ISLAM NASCENTE
3.1 a Arábia pré-islâmica
A palavra de Deus proferida, transmitida a Mu¬ammad pelo arcanjo
Gabriel, repetida pelos primeiros fiéis e gravada logo após a morte do Profeta,
constituiu o Alcorão. Esse fato distingue a Arábia pré-islâmica da Arábia islâmica. Em
sua raiz, o Alcorão foi, não somente um acontecimento religioso, mas também cultural
e linguísitco que tendeu a unificar os povos da península arábica em torno de um só
Deus, de uma só língua e de um só povo. Antes da mensagem do Profeta, a diversidade
de deuses, de dialetos e de regionalismos tribais caracterizou a Arábia desse período e
foi designado pelo termo
»À¬·\j
(jāhiliyya) significando desconhecimento,
ignorância e paganismo. Os dois modos de existência interpenetraram-se ao longo da
história apesar do fato do período pré-islâmico ter sido bem menos conhecido e pouco
documentado.
A Península Arábica é quase uma ilha de areia cercada naturalmente
pelo mar por três lados, tendo o próprio deserto como ligação com o continente. Essa
imensa região desértica, aparentemente vazia, é pontilhada por inúmeros oásis com
águas subterrâneas captadas por poços, tamareiras e árvores frutíferas que foram
pontos de descanso de caravanas. Originariamente, a região teria sido um território
fértil e pátria de muitos povos semitas mas, ao longo do tempo, sofreu um processo
natural de seca crescente. Entre os povos que habitaram a região estiveram Arameus,
Sírios, Cananeus, Hebreus, Fenícios e Nabateus . As populações locais se distribuíram
em tribos ao longo da península. O termo “árabe” se referiu quase sempre ao beduíno
do deserto de caráter nômade que vivia de seu rebanho, muitas vezes dos saques, do
comércio de caravanas que se serviam dos oásis e das cidades como postos de
interligação. Uma das notícias mais remotas
que se tem do sul da Arábia foi a
existência, por volta de 1.000 a.C., do reino de Sabá, cuja rainha teria estabelecido
estreitas relações com o rei Salomão: “A rainha de Sabá ouviu falar da fama de
Salomão e veio pô-lo à prova por meio de enigmas. Chegou a Jerusalém com numerosa
comitiva, com camelos carregados de aromas, grande quantidade de ouro e de pedras
preciosas.”59
5959
1REIS 10, 1.
59
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Do norte até o sul da península, a religiosidade primitiva das tribos
árabes variou na adoração de deuses e deusas que simbolizaram planetas, pedras,
árvores e fenômenos naturais. Apesar da variedade de cultos e da pluralidade de
deuses, parece ter havido uma tendência à unidade na adoção de algumas divindades
por grande parte das tribos, especialmente quanto às deusas Manat, Uzza e Al-Lat que
eram encimadas por uma divindade superior, Alá, o deus, a divindade.
Se por um lado, a cosmovisão dos judeus e dos cristãos os havia
aproximado do próprio Deus e, por outro lado, a cosmovisão dos gregos os levara à
idéia de um cosmos eterno mesmo que mutável, a visão pré-islâmica do cosmos se
alimentou de sua realidade desértica e mutante. No deserto o homem está à mercê da
instabilidade e da mudança. Uma tempestade de areia apaga as pegadas, dunas mudam
de lugar, real e imaginário se interpõem. Nesse cenário, as referências são, pois,
caprichosas e entregar tudo ao destino que vem do alto é, muitas vezes, o que restava
ao beduíno. Como disse Hernandez, nesse caso, “ o homem não está acima da natureza
como pensavam os gregos e nem foi criado pelo senhor da criação como acreditavam
os hebreus. As coisas não são substâncias permanentes em suas essências, mas
fantasmas velozes, estrelas fugazes que se desvanecem na noite.”60 Essa visão de
mundo, mesmo que atenuada pela mensagem de um Deus único, ainda assim, se fez
presente na religiosidade islâmica.
A esse cenário somou-se a força estética da palavra que sempre esteve
presente entre os árabes, e se intensificou após o estabelecimento do Alcorão. A força e
a beleza da poesia lapidada num deserto encimado pelo mais estrelado céu levou os
árabes a terem na manifestação lingüística uma de suas mais puras e legítimas obras de
arte. Como assinala Lewis, “a língua árabe, se bem que a mais recente das línguas
semíticas no seu surgimento como instrumento literário e cultural é, não obstante, de
diversas formas, a mais antiga de todas na sua estrutura gramatical e, por
conseqüência, a que se encontra mais próxima da língua original proto-semítica.”61
Entretanto, mesmo nesse mundo original, protegido e quase mágico, a
Arábia não era um mundo fechado. A esse tempo, já era rota de caravanas que
atravessavam a península carregadas não só de sedas e especiarias mas também de
influências persas, indianas, judaicas, cristãs e helenísticas trazidas pelos mercadores.
60
61
HERNANDEZ, M.C. História del pensamiento en el mundo islâmico. , p.31.
LEWIS, B. Os árabes na história. p. 29.
60
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Ser uma rota de tráfego entre os países do Mediterrâneo e o Extremo Oriente parece ter
sido, desde sempre, uma de suas mais singulares missões e assim como,
geograficamente, os árabes foram rotas de comércio, na filosofia foram pontes de
saber. Em algumas cidades havia comunidades cristãs e judaicas que, pelo perfil
monoteísta, viriam a contribuir para a formação da nova religião islâmica.
Durante o séc. VI d.C. tanto o império sassânida que dominava Pérsia e
parte da Mesopotâmia, como o império Bizantino que dominava o Oriente Próximo,
tentaram estabelecer o seu domínio nas regiões desérticas da Arábia através de
incursões com o auxílio de algumas tribos, mas nunca chegaram a ter sucesso efetivo.
Dentre as cidades da Arábia, Meca destacou-se pela sua posição geográfica como uma
encruzilhada das regiões por onde passavam as caravanas. O poder econômico e
político da tribo …¿z£ / Qurai¹, por volta do século V d.C. consolidou a cidade como
um importante centro de peregrinação. Meca reunia em um só santuário – a »_˜¨ /
Ka‘aba. – imagens principais deusas e deuses das diversas tribos além de pedras,
divindades astrais e ícones cristãos. Segundo a tradição, a Caaba teria sido construída
pelo próprio Adão mas, levada pelo dilúvio, fora sido reconstruída por Abraão e seu
filho Ismael, os quais teriam colocado em seu interior a Pedra Negra – provavelmente
um meteorito – que teria sido trazida pelo anjo Gabriel para selar a amizade de Deus
com os homens.
Como bem assinala Mantran, “em fins do séc. VI d.C. a Arábia era um
mundo menos isolado do que se supôs durante muito tempo, um mundo em vias de
transformação, de evolução: uma certa tendência para a unidade se fazia sentir, tanto
no domínio religioso, como no da organização social e política. Essa tendência, o
Profeta Mu¬ammad iria transformar numa realidade dinâmica.”62
2.2
O profeta Mu¬ammad
As referências a respeito de Mu¬ammad têm ao menos duas abordagens.
A primeira delas se detem mais em seu aspecto histórico e costuma sublinhar a sua
trajetória como um chefe de Estado que, sob a égide da religião,
reuniu seus
conterrâneos e iniciou as conquistas do que mais tarde seria o império islâmico em
62
MANTRAM, R. Expansão muçullmana., p.56.
61
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
toda sua extensão. No entanto, a importância e a força interior que Mu¬ammad
representou – e representa –
para os muçulmanos é contemplada pela segunda
abordagem, a qual se baseia naquilo que a tradição compilou a partir de relatos dos
contemporâneos de Mu¬ammad, de seus atos e seus feitos. O conjunto desses relatos é
chamado de Hadit. Uma organização preeliminar desse conjunto de textos foi realizada
por Ibn Is¬āq em meados do séc. VIII d.C. / II H. e revista por Ibn Hi¹am no século IX
d.C./ III H.
Situar Mu¬ammad somente a partir de uma ou outra abordagem pode
nos afastar tanto do rigor histórico quanto do valor intrínseco que possui junto ao seu
povo. No Ocidente, muitas vezes, a deturpação da imagem do profeta dos árabes
deveu-se menos ao desconhecimento de sua vida e muito mais ao preconceito que
guiou alguns espíritos, por razões menores e pouco religiosas. O historiador Lewis
destaca esse fato comentando que, geralmente, “o Ocidente criou um “Maomé”
lendário, desde as inexatidões absurdas e grotescas e os insultos mesquinhos da
polêmica e dos libelos difamatórios medievais até o personagem-títere do “Maomé” de
Voltaire.”63 Mais do que analisar com os olhos ocidentais o fenômeno religioso
iniciado por Mu¬ammad, é mister buscar o entendimento no interior de sua própria
cultura e época. Para o muçulmano, Mu¬ammad é o mensageiro de Deus, o “Sêlo dos
Profetas” na linhagem direta da tradição judaico-cristã a partir do patriarca Abrãao, de
Moisés e de Jesus.
Mu¬ammad nasceu por volta de 570 d.C. numa família pertencente ao
clã de Ha¹im da tribo de Qurai¹. O pai ‘Abdallāh morreu antes de seu nascimento; aos
sete anos perdeu a mãe e passou a ser educado pelo avô que morreu dois anos mais
tarde. Antes de morrer, o avô confiou a educação do jovem a um de seus filhos – Abu
Æālib – cujo filho, ‘Ali, foi o companheiro do Profeta, seu primo e depois seu genro. O
período de sua juventude não é muito claro, mas parece que Mu¬ammad dedicou-se ao
comércio e talvez tivesse realizado algumas viagens. Por volta dos vinte e cinco anos
casou-se com åad÷ja, uma viúva de muitas posses que teve papel decisivo em sua vida,
apoiando-o nos momentos mais difíceis que se seguiram a partir das revelações. A
tradição colocou åad÷ja ao lado de Maria, mãe de Jesus, como uma das mulheres
perfeitas da humanidade. Esposa dedicada, foi a primeira adepta às revelações do
Profeta, mãe de sete filhos dos quais só sobreviveu, em idade adulta, Fátima.
63
LEWIS, op. cit. p.57.
62
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Aproximadamente aos quarenta anos de idade, Mu¬ammad começou a
ter visões e revelações durante meditações que costumava realizar em grutas próximas
a Meca. Conta a tradição que o anjo se lhe apareceu e disse:
±Ànz«[ µ°oz«[ ¹ã[ ±€^ “Em nome de Deus, o Clemente, o
¢¬r ¾x«[ ©^y ±€\^ [z£[
Misericordioso.
Recita (Lê) ! Em nome do teu Senhor que
¢¬— µ¯ ²\€³×[ ¢¬r criou.
®z¨×[ ©^y¼ [z£[
Criou o Homem de uma célula.
Recita (Lê) pois teu Senhor é generosíssimo
±¬£«\^ ±¬— ¾x«[ E ensinou através do cálamo.
±¬˜¿ ®[ \¯ ²\€³×[ ±¬—
Ensinou ao Homem tudo o que este não
sabia!”64
Mu¬ammad, desculpando-se por não saber, mesmo assim foi capaz de ler tudo sem
nenhuma dificuldade. As primeiras revelações em Meca trataram dos aspectos
religiosos propriamente ditos, tais como, a absoluta unidade de Deus, a reprovação dos
espíritos idólatras e a certeza do juízo final.
No início, os primeiros convertidos foram os seus próprios familiares,
entre eles ‘Ali que, anos depois, seria o quarto Califa. Depois de aproximadamente três
anos, Mu¬ammad passou a pregar entre seus concidadãos e começou a enfrentar forte
oposição na medida em que desafiava a religiosidade politeísta existente em Meca.
Inicialmente, apoiada na conversão dos mais pobres e humildes, a nova religião foi
também uma luta pelas desigualdades econômicas crescentes que se verificavam entre
a burguesia dominante em Meca e a população mais pobre. Os que detinham o poder
em Meca se valiam da exploração comercial local e se opunham fortemente à
Mu¬ammad e a seus seguidores. Isso levou esses últimos a uma ação política
crescente. Nesse período, a perseguição aos muçulmanos fez com que Mu¬ammad e
seus partidários se transferissem para Medina, a aproximadamente 400 Km de Meca
em 622 d.C. marcando o início do calendário muçulmano – Hégira (Hijra) – Nas
palavras de Lewis, indica-se a importância dessa virada na vida do Islām: “Em Meca,
Mu¬ammad era um simples cidadão, em Medina, o magistrado supremo de uma
comunidade. Em Meca era forçado a submeter-se de forma mais ou menos passiva à
64
¢¬˜«[ / Surata 96 / a célula ou o coágulo (de sangue).
63
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
ordem existente, em Medina era ele que governava. Em Meca pregava o Islām, em
Medina podia pô-lo em prática.”65
Mu¬ammad permaneceu nessa cidade por dez anos, continuando a receber revelações e
a fortificar a nova religião. À crescente conversão verificada nesses anos seguiram-se
algumas peregrinações pacíficas dos muçulmanos a Meca mas que não escondiam a
tensão insurgente que levaria Mu¬ammad a tomar a cidade anos depois, tornando-a o
centro de peregrinação e de orientação do islamismo. A missão de Mu¬ammad parecia
praticamente concluída. Depois disso, ele viveu apenas mais um ano vindo a falecer
em 8 de junho de 632 d.C. / 11 H. O caminho indicado pelo Profeta havia dado aos
árabes uma unidade que, talvez, latente no seio do povo, só foi possível após a crença
de que o testamento escrito pelo próprio Deus, em árabe, era o selo da unidade e o guia
da verdade, assim como o fôra anteriormente aos judeus e aos cristãos.
3.3
O Alcorão
O termo “Alcorão”
²[z¤«[
/ Al-qurān deriva do verbo
[z£ /
qara’ que significa ler ou recitar, significando, portanto, algo para ser lido ou recitado.
Para os muçulmanos, o Alcorão é a palavra de Deus transmitida por Gabriel ao profeta
Mu¬ammad, o último da sucessão iniciada pelos profetas bíblicos. O Profeta acreditava
que sua missão e as revelações eram da mesma inspiração das anteriores, enviadas aos
judeus e aos cristãos e, por isso, coincidiam em parte. Tratar-se-ia, assim, de uma
renovação da mensagem de Deus que fôra anunciada no Antigo e no Novo
Testamento. A primeira surata denomina-se “A Abertura” ( Al-Fāt÷¬a / »ob\Ÿ«[ ):
“Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso.
Louvado seja Deus, Senhor do Universo,
O Clemente, o Misericordioso,
Soberano do Dia do Juízo,
Só a Ti adoramos e só a Ti pedimos auxílio.
Mostra-nos o reto caminho,
O caminho dos que agraciaste,
Não o caminho dos que abominastes
Nem o dos que se extraviaram.”66
65
66
LEWIS, op. cit. p.49.
Alcorão, 1a Surata.
64
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
O Alcorão fornece istruções acerca da conduta de vida do crente e é uma fonte ética de
orientação para a comunidade. A maior parte das revelações se deu por
aproximadamente vinte anos e foi registrada por vários discípulos e secretários. Logo
após sua morte, havia grande número de textos somados à tradição oral que estava
fortemente viva pelos testemunhos daqueles que conviveram com ele, lembravam de
suas palavras e as repetiam. Os primeiros califas trataram de organizar o texto em
ordem decrescente por extensão de capítulos e estabeleceram-no como o encontramos
até os dias de hoje dividido em 114 capítulos – ou suratas – que contém, cada uma, um
número variável de versos .
Uma das diferenças entre a composição do Alcorão em vistas da Torá e
da Bíblia Sagrada foi o fato do primeiro ter sido revelado a um só homem e ter sido
registrado poucos anos depois de sua morte. A mensagem do Alcorão não procurou
uma nova fé, mas sim reestabelecer a pureza original da religião revelada por Deus a
Abraão e a Ismael. Esta teria sido alterada por judeus e por cristãos, apesar de lhes ter
sido lembrada por inúmeros profetas de Moisés até Jesus ao longo do tempo. No
Alcorão, depois do nome de Deus, o mais citado é o de Abraão –Ibrah÷m – Também há
referências a Ismael, Isaac, Moisés, Salomão e uma série de nomes provenientes da
revelação contida no Antigo Testamento. Quanto ao Novo Testamento, são citados os
nomes de vários Apóstolos e o de São João Batista. Jesus é considerado filho do
Espírito com a Virgem Maria, e o profeta que antecedeu o próprio Mu¬ammad. Ao
invés da trindade, afirma-se a unidade absoluta de Deus.67
Perde-se muito na tradução do Alcorão para as línguas modernas
porque o texto é escrito numa prosa ritmada e com grande força imagética própria da
língua árabe. Muito da força religiosa repousa na sonoridade e no ritmo que lhe são
próprios. Vale lembrar que “antes de ser um texto graficamente fixado, o Alcorão foi
uma recitação; e resta uma recitação litúrgica até os nossos dias.”68Seguindo
basicamente três níveis, isto é, metafórico, narrativo e estilístico, o Alcorão centra-se
em temas como a unidade absoluta e transcendente de Deus, seu poder e a condição
humana frente a Ele e à sua Criação. A imagem do Juízo Final é afirmada como um
paradigma pelo qual o crente deve guiar-se. Vários relatos da Bíblia são reinterpretados
(Adão e Eva, Abraão e Ismael, dentre outros). Na medida em que exorta a uma vida
digna e verdadeira, o Alcorão recomenda a conduta que o fiel deve seguir tanto no
67
68
HERNANDEZ op.cit. p.45.
ARKOUN, op. cit. p. 9.
65
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
âmbito religioso como no moral e político. As bases da legislação e do direito
muçulmanos são tributárias dessa legislação inerente à revelação corânica mas, as
diversas interpretações desses princípios, levaram os muçulmanos a teses e posições
conflitantes que, afinal, são próprias da exegese.
3.4
A expansão muçulmana
Nos tempos de Mu¬ammad não havia ainda um verdadeiro estado
muçulmano. No período inícial do islamismo a comunidade muçulmana – Umma –
conservava ainda elementos da organiação tribal pré-islamica. Essa organização foi se
transformando, principalmente por sublinhar mais o traço religioso como elemento de
união do que os laços de sangue e parentesco. Abriu-se, assim, a possibilidade de
universalizar-se. Por suas características, o islamismo procurou ultrapassar os
regionalismos e suas antigas tradições. Nos dez anos que se passaram entre a Hégira e
sua morte (622 d.C. à 632 d.C.), Mu¬ammad lançou a semente de um estado árabe de
cunho teocrático. Este foi aceito cada vez mais por um número maior de árabes,
transpondo as barreiras tribais em direção ao surgimento de uma unidade social,
política e religiosa. “ O entusiasmo das conquistas e da fé iam conferir dimensões
consideráveis a esse Estado: durante vários séculos, o mundo muçulmano ocupou o
lugar do mundo antigo e cristão.”69
Com a morte de Mu¬ammad a comunidade não se dissolveu e acelerou
o processo de expansão do Islām. Apesar de Mu¬ammad não ter deixado herdeiros e
nem instruções a respeito de sua sucessão, a direção da comunidade se amparou na
figura do Califa. O termo árabe
»ŸÀ¬r
/ åal÷fa significa “sucessor”. A
responsabilidade do califa deveria ser conduzir a comunidade segundo a Palavra de
Deus e do exemplo do Profeta. Desde o início, a sucessão e a legitimidade do Califa
foram motivo de dissensões e responsáveis pelas divisões que se verificaram ao longo
da história do Islām. O primeiro período do califado, conhecido como o período dos
“califas ortodoxos”, durou por volta de 30 anos. Os primeiros quatro califas foram
‘Abu Bakr (632-634 d.C.); ‘Omar ( 634-644 d.C.); Utmān ( 644-656 d.C.) e ‘Ali (656661 d.C.) que dirigiram a comunidade muçulmana numa época em que as palavras do
Profeta ainda ecoavam pela Arábia. Nesse período, a sede do califado era Medina,
transferindo-se para Kufa, no Iraque, no califado de ‘Ali.
69
MANTRAN, op.cit.p.75.
66
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
O primeiro Califa, Abu Bekr, em menos de um ano após a morte do
Profeta, unificou a Península Arábica em torno do islamismo. Formou-se um exército
de fiéis que não tardou a ultrapassar as fronteiras do norte da Arábia e mostrar sua
força frente aos territórios dominados pela Pérsia sassânida e pelo Império bizantino.
Os motivos que levaram à sucessivas vitórias dos árabes sobre os persas e os
bizantinos são tema controverso pelo fato da superioridade dos exércitos destes
últimos. Além do impulso da fé, a promessa de ricos espólios levou os beduínos a se
alistarem sob as bandeiras dos Califas num período em que nem Bizâncio e nem a
Pérsia – que há muito combatiam entre si pela supremacia na Asia Menor e do Oriente
Próximo – pareciam crer numa real possibilidade do domínio árabe. “Quando, após
uma série de derrotas, compreenderam a gravidade da ameaça, já era tarde demais.” 70
Vale lembrar que, nesse período, a Pérsia vivia um certo vácuo de
poder. De 629 a 632 d.C. sucederam-se oito soberanos. A entrada dos muçulmanos em
territórios dominados por Bizâncio como, por exemplo, na Síria, foi facilitada tanto
pelas querelas religiosas dos monofisitas como pelos árabes que lá viviam e, há
tempos, já mantinham relações comerciais com a Arábia. Também no Egito, devido a
profundas dissensões, a chegada dos árabes teve uma acolhida favorável. Com a
conquista do Egito, encerrou-se a primeira fase da expansão muçulmana. Em seguida,
iniciaram-se as conquistas marítimas que puseram fim à supremacia bizantina no
Mediterrâneo. O último califa desse primeiro período, ‘Ali, genro do Profeta, sofreu
muita pressão política e transferiu a capital para Kufa, no Iraque. Nesse período, a
unidade do mundo muçulmano e a supremacia árabe passaram por grandes
transformações e divisões internas.
3.5
Os Omíadas
Após o curto califado de ‘Ali, o poder passou às mãos dos Omíadas.
Essa dinastia dirigiu o mundo muçulmano por 90 anos (661 a 750 d.C.) tendo
Mu‘āwiya como seu fundador. Objetivando restaurar o poder do Califa e reestabelecer
a unidade do Islām, comprometida por movimentos separatistas, Mu‘āwiya centralizou
o poder e transferiu a capital política para Damasco na Síria. Esta escolha resultou em
forte oposição dos muçulmanos mais conservadores que só aceitavam Meca e Medina
como cidades destinadas a cumprir esse papel. Além disso, a dinastia Omíada instituiu
70
MANTRAN, op.cit. p.80.
67
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
a sucessão dos califas por linha direta tentando evitar os perigos da eleição e da guerra
civil. Também criou conselhos consultivos junto ao califado procurando amenizar as
tensões do separatismo. Após o califado de Mu‘āwiya (661 a 681 d.C.), a dinastia
Omíada governou por mais 70 anos através de nove sucessores em meio a extremas
agitações.
A segunda fase da expansão muçulmana se deu nos períodos de certa
calma interna do califado Omíada. As expedições tiveram três direções: Constantinopla
e Ásia Menor; norte da África e Espanha; e Ásia Central. Nesse período, vários foram
os cercos à capital do Império bizantino – Constantinopla –, mas esta resistiu e iria cair
somente sete séculos mais tarde com a invasão dos turcos. Os árabes também fizeram
incursões nas ilhas gregas de Rodes, Creta e, possivelmente, na Sicília. À conquista em
direção ao norte da África seguiram-se as incursões na Espanha. Em 711 d.C., Æāriq
ocupou Córdoba e Toledo cidades onde a conquista foi facilitada pelos judeus que lá
habitavam e que apoiaram os muçulmanos, reagindo, assim, contra as perseguições dos
visigodos. Os muçulmanos prosseguiram mais ao norte, penetraram no sul da Gália, e
só foram detidos em 732 d.C. em Poitiers. Esse foi o ponto extremo a que chegaram na
Europa. Na direção da Asia Central, avançaram ao nordeste do Irã, atingiram o rio
Indo, em 713 d.C. chegando ao centro budista de Multan que por algum tempo foi o
ponto mais avançado do Islām na India. No último reinado de ‘Abd al-Malik houve um
período de esplendor que antecedeu os anos finais de anarquia entre 744 e 750 d.C., e
terminou com a queda da dinastia Omíada.
3.6
Os Abássidas
Dentre as oposições que a dinastia Omíada enfrentou, principalmente
nos últimos anos, a dos Abássidas foi determinante e tomou a frente do Islām.
Descendentes de ‘Abbās, um tio do Profeta, os Abássidas organizaram-se nas regiões
do Irã e, em 750 d.C., enquanto os Omíadas perdiam o controle central, Abu Abbas foi
proclamado califa. Sob a dinastia Abássida, o Islām ganhou um novo impulso e uma
nova força.
Os historiadores tem procurado afastar a idéia de se tomar a vitória dos
Abássidas sobre os Omíadas como uma vitória dos persas sobre os árabes. Justificam
isso pelo fato de que esse movimento contou, inclusive, com a participacao de muitos
árabes, iraquianos, sírios e egípcios. “É na insatisfação socioeconômica da população
68
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
urbana menos favorecida, designadamente dos mercadores e artesãos (...) que a força
impulsionadora da revolução deve ser procurada.”71 Mais do que a simples mudança de
dinastia, a substituição dos Omíadas pelos Abássidas na direção da comunidade
islâmica se configurou numa grande revolução na história do Islām, “uma viragem tão
importante quanto as revoluções francesas e russa na história do Ocidente.”
72
Considerado como um período de amplo desenvolvimento da arte, da cultura, da
filosofia e das ciências da época, o califado dos Abássidas manteve seu vigor até
meados do sec. XI d.C. quando as invasões dos mongóis, turcos seldjúcidas e, depois,
dos turcos otomanos alteraram definitivamente a fisionomia do império arabo-islâmico
dos primeiros séculos.
Uma das primeiras medidas tomada pela nova dinastia – e um de seus
marcos –, foi a transferência da capital política de Damasco, na Síria, para Bagdá, no
Iraque durante o reinado do primeiro califa, ’Abu ‘Abbā as-Saffāh (750 a 754 d.C) e de
seu irmão ’Abu Ja‘far Al-Mansýr que reinou durante por pouco mais duas décadas (
754 - 775 d.C.). Foi sob o reinado deste último que se efetivou a mudança da capital
com a fundação da cidade de Mad÷nat as-Salām (a Cidade da Paz) que acabou ficando
conhecida pela região que a abrigava, isto é, Bagdá. O geógrafo Ya‘qýbi, conta como
Al-Mansur se referiu ao local escolhido para a fundação da cidade:
“ Essa ilha entre o Tigre, a oriente e o Eufrates, a ocidente, é um
mercado para o mundo.(...) Louvado seja Deus que guardou esse lugar
para mim e fez com que todos aqueles que me precederam, o tivessem
desprezado. Juro por Deus que farei a sua reconstrução e, então,
habitarei aqui enquanto viver e os meus descendentes habitarão depois
de mim. Será a cidade mais próspera do mundo.” 73
Inicialmente, de formato circular, Bagdá continha o palácio do califa ao centro e, ao
redor, mesquitas, edifícios públicos e residências para funcionários. A mudança da
capital não significou apenas uma mudança territorial mas também o conceito de
califado. Enquanto os primeiros califas árabes eram homens que se igualavam aos
outros e podiam ser abordados e misturavam-se ao povo, a dinastia Abássida cercou-se
de pompas e cerimônias –possivelmente de influência persa-, reivindicando um direito
quase divino. Se o califa Omíada ainda guardava traços do chefe das tribos árabes, ou
71
LEWIS, op. cit. p. 94
LEWIS, op. cit .p. 93.
73
LEWIS, op. cit.p.96
72
69
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
um rei árabe limitado por ser o representante do profeta de Deus, o califa Abássida
teve o perfil do chefe espiritual e temporal, um soberano absoluto que atribuiu a si
mesmo ser o representante de Deus sobre a terra. Foi nesse período que se criou,
também, a figura do vizir (waz÷r), inovação, possivelmente também de origem persa
para este que tinha toda a responsabilidade da burocracia administrativa e, por isso,
tinha muito poder.
Al-Mahd÷ (775-785 d.C.) sucedeu Al-Man½ýr, seguiu na organização do
estado e se ocupou em reprimir inúmeros movimentos separatistas de seitas
heterodoxas. Ao mesmo tempo as transações comerciais se intensificaram. Vale
lembrar que o comércio tinha, para os árabes, o paradigma do mercador íntegro
seguindo o exemplo de Mu¬ammad, símbolo ético nas transações. Segundo a tradição,
disse o Profeta: “os mercadores são os mensageiros do universo e os servos a quem
Deus depositou confiança na Terra.”74 Depois do reinado de Al-Mahd÷, Harýn arRa¹id, talvez o mais conhecido califa desse período, governou de 786 a 809 d.C. No
Ocidente ficou conhecido pelo seu relacionamento com Carlos Magno. Morto numa
expedição, sua sucessão gerou uma guerra da qual Al-Ma’mýn saiu vencedor e
permaneceu no poder durante vinte anos (813 a 833 d.C.).
O reinado de Al-Ma’mýn foi o apogeu da dinastia Abássida. Nessa
época, em que Bagdá já havia se desenvolvido a ponto de ser renomada pelos seus
intelectuais, o próprio califa interessou-se pelas obra gregas que eram traduzidas por
cristãos e judeus para a língua árabe e incentivou esse movimento. Após o governo de
Al-Ma’mýn sucedeu-o Al-Mu‘ta½im (833-847 d.C.) e Al-Mutawakkil (847- 861 d.C.)
Com a morte deste último a dinastia se enfraqueceu e não dominou mais de modo
absoluto.
Do grande desenvolvimento que se observou na administração do
império, no comércio e nas cidades, o impulso nas letras foi o mais relevante no
estabelecimento das bases para o pensamento filosófico no Islām. Nesse período a
língua árabe foi amplamente adotada por todo o império. Se nos tempos dos Omíadas,
a cultura e literatura dos beduínos eram tratadas com preeminência, no califado
Abássida, os núcleos de ciência e cultura se fixaram definitivamente nas cidades e,
entre elas, Bagdá. Com a fundação da Bait al-Hikma ( a Casa da Sabedoria) por AlMa’mýn, Bagdá se tornou a capital intelectual do império numa época em que os
74
LEWIS, op.cit.p.105.
70
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
mecenas sustentavam escritores e poetas e onde se reuniam muitos sábios árabes,
iranianos, indianos, gregos, cristãos e judeus.
Não era de se surpreender, pois, que, nesse cenário, houvesse uma
efervescência em todas as áreas do saber: Matemática, Astronomia, Filosofia e todas as
ciências da época foram sendo traduzidas e discutidas por essa nova elite que se
formou em Bagdá. “Graças aos trabalhos, estudos e pesquisas dos pensadores e sábios
árabes, o espírito humano fez enorme progresso, que o Ocidente cristão só veio a
conhecer mais tarde, por intermédio da Itália e, sobretudo, da Espanha.”
75
Os nomes
ligados a esse período são, por exemplo, Al-åawārizmi, Ibn Qurra e Al-Batani, nomes
aos quais se referem os avanços da Matemática como a introdução do zero, a
inclinação do plano da eclíptica e o amplo desenvolvimento da álgebra. Na Física e na
Química, assim como na Medicina, o avanço e a sistematização dos conhecimentos
encontrou em Al-Rāz÷, Ibn S÷nā e Ibn Zuhr (Avenzoar) nomes de destaque. Do mesmo
modo – como verificaremos com detalhes mais adiante –, a filosofia grega penetrou
nesse universo que, em paralelo, mantinha como áreas reservadas à sua própria cultura
o estudo do Alcorão, a poesia, a gramática e a filologia. As traduções das obras
estrangeiras e a presença de intelectuais de várias partes do mundo proporcionaram
uma via de duas mãos de influências. A maioria dos árabes que desconhecia esses
gêneros, mostrou vocação para continuar o desenvolvimento em praticamente todas as
áreas enquanto os não-árabes traziam grande parte de sua história intelectual. “Seja
como for, cumpre notar que houve um fenômeno de aculturação recíproca.” 76
A partir da segunda metade do sec. IX. d.C./III H. o império foi
perdendo paulatinamente a sua unidade com a formação de emirados autônomos,
oposições religiosas crescentes que anunciaram um desmembramento político de um
mundo muçulmano que, em suas origens, pregou sua unidade. Ao mesmo tempo em
que o califado Abássida centralizou seu poder em Bagdá, no norte da Africa, mais
propriamente no Egito, uma facção supostamente de descendentes de ‘Ali e Fátima
fundou o califado dos Fatímidas. Na Espanha muçulmana, logo após a conquista
desses territórios, as lutas internas haviam obrigado o califado Omíada, ainda em
Damasco, a enviar muitos sírios para a região e estabelecer o entendimento das
facções. Quando o califado Omíada de Damasco foi extinto, a Espanha muçulmana
ofereceu refúgio aos Omíadas e, com o apoio dos sírios, em 756 d.C. ‘Abd al-Ra¬mān
75
76
MANTRAN op.cit.,p.136.
MANTRAN, op. cit., 137.
71
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
foi proclamado emir em Córdoba. Essa situação permaneceu até o governo Fatímida
no Egito ter se proclamado como um novo califado. Na mesma época, o emir ‘Abd alRa¬mān
III também se proclamou califa em Córdoba, afirmando a tradição do
califado Omíada e sustentando-se como chefe da comunidade muçulmana no período
de apogeu de Córdoba.
As divisões internas do mundo islâmico, a partir do séc. X d.C./ V H.,
lhe conferiram uma face bem distinta da época das conquistas. “ O sec. X. d.C. foi o
último grande século do mundo muçulmano, resultado da expansão que começou logo
após a morte do Profeta (...) daí resultaram tendências que fizeram do Islām não mais
uma realidade árabe, mas uma realidade berbere, turca ou iraniana.”77. Já no século XI
d.C. / VI H. o mundo islâmico sofreu, simultaneamente, ataques e invasões dos turcos
pelo Oriente, dos berberes no norte da África e na Espanha, dos cristãos na Síria, na
Sicília e na Espanha, modificando a face política, cultural e territorial do Islām.
O período de apogeu do império arabo-islâmico criou momentos
florescentes, pela intersecção de várias culturas sob a égide da religião trazida pelos
árabes. Dessa construção cultural participaram muitos povos além dos árabes tais como
persas, egípcios e sírios, dentre outros. Ao mesmo tempo, a tolerância religiosa nas
regiões conquistadas abrigou uma comunidade que não era exclusivamente muçulmana
mas que contava com cristãos, judeus, zoroastrianos e hindus, entre outros. Para nosso
desiderato, cumpre deter-se sobre a chamada “idade do ouro”, notadamente sob o
reinado de Al-Ma’mýn no qual se deu a recepção das obras filosóficas gregas e do
conjunto de grande parte das ciências conhecidas da época, somando-se a isso a
reunião de vários sábios na cidade de Bagdá do séc. IX d.C. / III H., particularmente
nas traduções realizadas na Casa da Sabedoria, o berço da falsafa.
3.7
Os primeiros intérpretes
Pode se considerar que a história intelectual dos árabes começou
propriamente com o nascimento do Islām e teve, no estabelecimento do Alcorão, o
principal foco da reflexão que ocupou os primeiros sábios árabes. Antes da palavra
revelada e grafada, os principais monumentos da cultura árabe haviam sido as tradições
da poesia e da literatura. Essas, transmitidas oralmente, continham as regras sociais,
77
MANTRAN, op. cit., p. 162
72
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
políticas, religiosas e morais, e estavam circunscritas, ainda, nos limites de cada
grupo.
Os regionalismos e as regras estanques de cada tribo, de cada clã e de
cada família foram sendo ultrapassados pelo chamamento do Profeta para a união dos
árabes. A mensagem do Alcorão permitia uma visão universal que deveria ultrapassar
os regionalismos tribais. Porém, mais do que mensagens religiosas de oração e
devoção, o Alcorão trazia, também, uma série de princípios, regras de conduta e a
própria lei pela qual a comunidade deveria se guiar e o crente, em particular, deveria
seguir. A fonte corânica,
somada à tradição das ações e decisões
atribuídas a
Mu¬ammad precisariam, assim, ser bem compreendidas para que fosse atingido o
termo da fé. Isso, obviamente não era tarefa fácil e, como bem assinalou Hernandez,
“os primeiros doutos na religião islâmica – os ulemás medinenses – encontraram
seriíssimas dificuldades na hora de aplicar o Alcorão a toda a ordem social do Islām.”78
Vale lembrar que o
texto corânico só fora estabelecido durante o
reinado do terceiro califa, Otman (644-656d.C.) e que as tradições circularam
oralmente durante quase dois séculos, com a reunião de muitos apócrifos. Somente no
séc. IX d.C./II H. foi estabelecida a compilação das “Tradições Irrefutáveis” ou
canônicas, das quais a mais conhecida foi de Al-Bu¬ār÷ (m.870 d.C.) Esse quadro
evidencia que a ocupação dos sábios desse primeiro período se deu muito em vistas da
materialidade dos textos, de sua organização para uma mínima compreensão das
questões mais obscuras. Os mais ilustrados desse primeiro período eram
essencialmente lingüistas ou exegetas do texto sagrado. Dedicaram-se, por um lado, ao
estudo e à analise dos textos do Alcorão e das Tradições e, por outro lado, à
interpretação dos aspectos jurídicos da Escritura e de sua aplicação aos casos
concretos.
Do conjunto do texto corânico e das narrativas da tradição, a primeira
geração de sábios muçulmanos procurou extrair princípios jurídicos gerais e morais
que fornecessem uma trilha segura aos crentes. Desse modo nasceram, inicialmente,
três tipos de ciência: da leitura ( ºÆ[z£«[
tafs÷r); e da jurisprudência (
±¬— / ‘ilm al-qirā’at); da exegese ( zÀ€Ÿb /
¹£Ÿ / fiqh ) formando uma base mínima de exegese no
início do islamismo. No campo jurídico, por exemplo, uma classe de sábios deu início
78
HERNANDEZ, op.cit.,p.99
73
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
ao uso da analogia e do julgamento independente para as matérias indecisas dando
surgimento a quatro escolas jurídicas nas quais a jurisprudência muçulmana se baseou:
a de Abu Hanifa (m. 767) e a de Al-Safi (m. 820) foram as mais liberais e rivalizaram
com as de Malik Ibn Anas (m.795) e a de Ahmad Ibn Hanbal (m. 855).
Não é difícil perceber, pois, que os primeiros pensadores do islamismo
defrontaram-se com o desafio dos desafios diante de um texto sagrado: a exegese. De
acordo com a interpretação que se dê a uma determinada passagem, a conclusão pode
ser tão diversa de outra interpretação que não parecem as duas, às vezes, provir do
mesmo texto. Mas isso, aliás, não foi privilégio da exegese do Alcorão mas ocorreu em
todas as comunidades que possuíam um livro revelado por Deus. Se a palavra sagrada
é vista como perfeita e única, o entendimento dos homens é múltiplo e imperfeito, o
que gerou controvérsias desde sempre. Ao mesmo tempo em que as questões jurídicas
colocavam desafios de interpretação para o julgamento dos casos concretos, a
abordagem do texto corânico também ganhava corpo em direção aos princípios
propriamente teológicos que lhes serviam de base e justificativa. Desse modo, a
teologia – kalām – cumpriu um papel decisivo para fundamentar posições e tornou-se
cada vez mais urgente a necessidade de se ordenar esse conjunto de coisas numa
explicação sistemática dos dados da revelação e da tradição. Além disso, foi preciso
definir o entendimento das próprias doutrinas para traçar seus limites em vistas do
paganismo, do judaísmo e do cristianismo.
3.8
O Kalām
O termo “kalām”, como vimos anteriormente79, significa discurso,
palavra, linguagem no sentido da argumentação discursiva. O método usado pelo
kalām anunciou, em certa medida, o raciocínio filosófico que penetraria de modo mais
sistemático o mundo islâmico a partir dos grandes movimentos de traduções das obras
de filosofia grega. Como bem sintetizou Carra de Vaux, “a ciência do kalām penetrou
nessa religião pela via tradicional e oral; ela é anterior à tradução dos livros gregos
antigos, da qual recebeu somente um novo impulso, ela não é propriamente escolástica.
Ela tem semelhança com as meticulosas disputas de teologia que apaixonaram os
79
Cf. Cap. 1./1.7.
74
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
bizantinos e é, sem dúvida, do lado da cultura cristã que é preciso buscar sua
origem.”80
As disputas iniciais acerca das diferentes teses suscitadas pela
interpretação do texto sagrado dividiram, logo de início, as opiniões e originaram uma
série de escolas. O termo “mutakallimýn”, a princípio usado para nomear os teólogos
de modo indistinto, se aplicou, depois, mais para designar os ortodoxos em vista das
escolas que se afastaram da ortodoxia. Por sinal, “a primeira escola de teólogos
especulativos é herética: a dos mu’tazilitas.”81
Além das disputas internas, os primeiros mu’tazilitas se ocuparam
também em refutar os argumentos dirigidos contra o Islām pelos judeus, pelos cristãos
e pelos pagãos. Dentre esses últimos, os materialistas e os maniqueus. Para tal, desde o
início, os mu’tazilitas apoiaram-se no que denominaram de “a racionalidade das vias
de Deus”, buscando fundamentar intelectualmente suas posições sem descartar a
autoridade da Escritura. Suas teses ficaram conhecidas através de comentadores
posteriores que as citaram em suas obras. Caracteristicamente marcada pela
heterogeneidade de suas opiniões, a escola mu’tazilita integrou teólogos que, apesar
das divergências, tinham pontos básicos de concórdia, dentre os quais a unidade de
Deus e o modo pela qual a expressavam:
“Deus não é, dizem eles, como as coisas; ele não é nem corpo, nem
acidente, nem elemento, nem átomo, nem substância, Ele não é
perceptível aos sentidos nem neste mundo e nem no outro; ele não está
contido num lugar e nem limitado por dimensões, mas ele é aquele que
não cessa. Ele não conhece nem tempo e nem lugar; nem fim nem
limite; ele é o Criador de todas as coisas e ele as faz sair do nada. Ele é
eterno, e tudo, fora dele, é engendrado.”82
Aos primeiros sinais da possibilidade de um racionalização da concepção da unidade
de Deus, os mu’tazilita manifestaram uma certa proximidade com os conceitos
aristotélicos a esse respeito e com fontes anteriores que se mesclaram nesta síntese.
Um outro exemplo dos problemas enfrentados pelos primeiros teólogos encontrou-se
na questão do livre-arbítrio e da predestinação (yv£/ qadar ), geralmente reconhecida
como uma das primeiras questões maiores tratadas no séc. VII d.C. Também os
80
CARRA DE VAUX, op. cit.,p. 134.
CARRA DE VAUX, op. cit.,p. 134
82
CARRA DE VAUX, op. cit.,p. 137
81
75
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
mu’tazilita foram pioneiros em fornecer interpretações de caráter alegórico a
determinadas passagens do Alcorão tais como aquelas em que Deus aparecia de modo
antropomórfico. Nesses casos, somente a interpretação alegórica podia salvaguardar a
imaterialidade e transcendência de Deus. Outra questão tratada nesse período foi,
também, a da justiça divina e da responsabilidade do homem frente a ela.
Não é difícil imaginar que num cenário de crescente interesse e de
discussões a respeito da interpretação do Alcorão e da tradição, a introdução posterior
da filosofia e da lógica gregas foi um elemento de sofisticação no pensamento e uma
força que, ao menos no início e para alguns, mostrou-se uma aliada. Outros, ao
contrário, condenaram a razão grega desde o início. De todo modo, o fato é que a
filosofia, a partir das traduções para o árabe, cumpriu um papel decisivo no
pensamento islâmico. Aliás, esse interesse parece ter sido semelhante ao dos cristãos
do Egito, da Síria e da Pérsia séculos antes, como um estímulo para a sofisticação do
valoroso instrumento da argumentação para, em suma, explicar o dogma. Assim como
os árabes, também “os sírios cristãos que prepararam o terreno à introdução da herança
grega ao oriente próximo pouco tempo antes da conquista árabe do séc. VII d.C., foram
essencialmente interessados pela lógica aristotélica e a filosofia grega como prelúdio
aos textos teológicos.”83
O instrumental para exegese teológica, assim como todo o conjunto da
intelectualidade entre os árabes, foi incrementado a partir dos impulsos para o saber
que se verificou nos tempos da dinastia Abássida. Se no período Omíada o crescimento
da filosofia e das ciências dependeu exclusivamente de esforços individuais, com os
Abássidas – notadamente no período de Al-Ma’mýn – o Estado passou a ser um
importante mecenas para um trabalho em larga escala na ordem das traduções. É bom
destacar, no entanto, que o crescente aprofundamento nessas questões, gerou divisões
teológicas que serviram de instrumento político para os califas reforçarem o poder e o
domínio em vista das regiões que se lhe opunham. Nesse período, os califas,
sustentando posições teológicas contra outras por questões políticas, colocaram a
teologia – e também a filosofia – a serviço direto da política. Em conseqüência disso
“a liberdade de pensamento e de consciência foi seriamente comprometida.” 84
Deve se levar em conta, também, que antes das traduções realizadas no
período Abássida, os muçulmanos estavam envolvidos com questões militares e
83
84
FAKHRY, op.cit., p.21
FAKHRY, op.cit., p.19
76
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
políticas de primeira ordem. A estreita relação entre a política e a religião, entre estado
temporal e espiritual nutriram desde o início as controvérsias político-religiosas. Como
bem destaca Fakhry, “Os conceitos religiosos foram frequentemente formulados para
servir de sustentação a posições políticas opostas tendo, depois, uma importância
decisiva no desenvolvimento ulterior da teologia islâmica.”85 Ao mesmo tempo que a
filosofia e a lógica gregas forneciam elementos para a teologia islâmica, o volume de
traduções foi suficiente para despertar o interesse dos árabes fazendo com que a
filosofia se constituísse num ramo próprio que não se confundiria com a teologia.
Tendo continuado em árabe, a falsafa foi, assim, herdeira do pensamento filosófico da
antiguidade de inspiração grega no mundo islâmico.
85
FAHKRY, op.cit., p.61.
77
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
4 – “IDE BUSCAR O SABER ATÉ NA CHINA” (...) A RECEPÇÃO.
4.1
Uma herança do saber
O nascimento do Islām no séc. VII d.C./ I.H., fez com que os árabes
saíssem da península arábica e, sob o comando de Mu¬ammad e dos primeiros califas,
estabelecessem um império que iria se consolidar, posteriormente, desde o sul da
Espanha até a India, passando por todo o norte da África, pelo Oriente Médio e
chegando às portas de Bizâncio. “O fato tem conseqüências incalculáveis: pela
primeira vez estes dois conjuntos, do delta do Indo à Hispânia, são reunidos sob uma
mesma autoridade, fundidos num mesmo domínio econômico, prometidos a uma
mesma cultura.”86 O avanço dos árabes, em busca não só do domínio das terras e da
administração mas também do saber, impulsionados por sua nova religião, pelas
próprias palavras do Profeta e do Alcorão,
fez com que tivessem um contato
proveitoso com culturas que possuíam uma tradição filosófica e científica mais antiga
e bem diversa daquela que eles haviam produzido nos desertos da arábia.
No novo cenário histórico que se desenhou, os árabes se colocaram em
contato mais íntimo com a Pérsia, o Egito, a Síria, a Índia, dentre outras. Culturas que
forneceram diversos elementos para que grande parte dos conhecimentos da época se
constituísse num conjunto reelaborado que foi, então, unificado pela língua árabe.
Assim, os árabes se beneficiaram pelo desenvolvimento anterior que havia se
verificado, por exemplo, nos centros de estudos de Gundishapur, de Edessa e de
Alexandria, dentre os principais. Além disso, nunca é demais lembrar que por toda
extensão das terras conquistadas pelos árabes já havia núcleos da cultura helênica
desde os tempos do império de Alexandre. Nestes, há muito tempo já se tinha contato
com as obras e com o idioma dos antigos gregos. Assim como a tomada de Alexandria
pelos árabes em 641 d.C. – que já era o centro mais importante para a filosofia grega e
para a teologia desde o início do primeiro milênio da era cristã – os colocaria em
contato com esses estudos, assim também o seria com o domínio de alguns outros
núcleos da cultura helênica espalhados pela Síria e pela Pérsia como os de Antióquia,
Harran, Edessa e Nísibe. Estes cultivavam a língua grega objetivando, dentre outras
coisas, ter acesso aos principais textos teológicos vindos da própria Alexandria.
86
MIQUEL, O Islame in GIORDANI, p. 71.
78
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Se por um lado, a presença dos árabes proporcionou um novo impulso
tanto às ciências práticas como à própria filosofia, por outro lado, a importância dos
comentadores sírios de Aristóteles – e as traduções do grego para o siríaco que
antecederam a passagem da sabedoria dos gregos aos árabes – foi fundamental, pois
forneceu elementos filosóficos e teológicos que, em seguida, foram desenvolvidos
pelos árabes em sua realidade religiosa nascente.
Apesar disso, deve se levar em conta que muitas das traduções siríacas
foram realizadas em vista de uma tradução para a língua arabe. Se, por um lado, isso
indica que talvez não tenha havido propriamente uma forte tradição siríaca da filosofia
nesse período, por outro lado mostra que a filosofia grega era estudada na língua
original. Na tradição dos comentadores sírios, “a tradução de textos teológicos se
acompanhava frequentemente da tradução de obras de lógica. Isso era necessário para
examinar mais profundamente a significação dos conceitos teológicos e os
procedimentos dialéticos implicados nos debates cristológicos da época.”87 Um dos
exemplos disso foi a presença de Severe Sebokt (m.667) que viveu no monastério
monofisita de Qinasr÷n e escreveu comentários sobre o Tratado da Interpretação e
sobre A Retórica de Aristóteles e escreveu um tratado sobre os Silogismos dos
Primeiros Analíticos. Seu discípulo, Jaques de Edessa deixou como legado uma versão
siríaca das Categorias.
É importante salientar, pois, que nessa rápida expansão que
abarcou os núcleos de saber da Antiguidade, a passagem da ciência e do saber dos
antigos aos árabes teria sido mais difícil sem a colaboração que obtiveram
de
tradutores, teólogos e lingüistas que não eram nem muçulmanos e nem árabes. A ajuda
recebida dos cristãos nestorianos, monofisistas e melquitas – principalmente na Síria e
no Egito que os recebeu praticamente como libertadores da opressão do poder central
de Bizâncio – se estendeu até a época das traduções dos textos gregos e siríacos para a
língua árabe. Em quase sua totalidade, essas traduções foram realizadas pelos sábios
cristãos do oriente como, por exemplo, o trabalho dos sábios de Harran na Síria – que
era centro dos adoradores dos astros mescladas a influências helenísticas, gnósticas e
herméticas, e que forneceria os astrólogos para a corte Abássida – , mas notadamente
por Hunayn Ibn Is¬āq.
87
FAHKRY, op. cit., p. 26
79
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Também foi importante o papel dos mestres cristãos nestorianos da
tradição do saber grego-siríaco juntamente com outros que deixaram a escola de
Atenas quando esta foi fechada por Justiniano em 529 d.C. e que se encontravam em
Gundishapur. Esta, fundada em 555 d.C., já possuía uma academia renomada,
observatórios e escolas de medicina muito antes de que Bagdá fosse fundada em 762
d.C. ou que a Casa da Sabedoria – fundada em 830d.C. – tivesse na figura de Hunayn o
seu diretor e o maior tradutor desse período. Além disso, Gundishapur também
forneceu aos califas, médicos para a corte e contribuiu para a fundação do primeiro
hospital em Bagdá.
Num segundo momento, não foram somente as conquistas que
colocaram os árabes em contato com a herança de conhecimentos da antiguidade mas
também a algumas missões enviadas pelos califas ou por famílias de posses. A época
de maior interesse por esse tipo de expedições do saber se deu no período Abássida.
Algumas missões eram oficiais e tinham como objetivo principal procurar manuscritos
gregos. Uma das mais importantes foi enviada pelo próprio califa Al-Ma’mýn com o
objetivo de ir a Bizâncio para trazer manuscritos a serem traduzidos na Casa da
Sabedoria.
Outra missão que ficou muito conhecida foi organizada pelos irmãos
Šakir que levou, entre outros, ©unayn Ibn Is¬āq. Igualmente importante foi a aquisição
de obras científicas e filosóficas pelos membros de uma rica família chamada Baný
Mýsā. Muitos representantes dessa família foram grandes mecenas para as traduções
chegando mesmo a rivalizar com os califas ao enviar missões a Bizâncio e reunindo,
por própria conta, renomados tradutores do império para o trabalho final. Os temas
eram diversos e incluíam tratados de matemática, astronomia e física, dentre outros. Os
próprios membros da família chegaram a compor certos tratados que são atribuídos a
um de seus membros chamado Mu¬ammad tais como o Tratado sobre o Átomo e um
Tratado sobre a Eternidade do Mundo.
Além dessas expedições, os próprios sábios como, por exemplo, Qusta
ben Luqa, conseguiram muitos dos manuscritos que se conseguiu traduzir. De todo
modo, foi nesse cenário rico de influências que, em pouco tempo, os árabes se viram
detentores de grande parte da herança filosófica e científica da antiguidade a qual,
paulatinamente, foi sendo traduzida para a língua árabe.
80
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
4.2
as primeiras traduções
As primeiras fontes que forneceram o material para ser traduzido
provinham em grande parte da língua grega e do siríaco. Os primeiros temas que foram
traduzidos, não foram propriamente filosóficos, mas sim temas que tinham uma
aplicação prática. Havia sido, em boa medida, considerações de ordem prática que
levaram, paulatinamente, à substituição do persa e do grego como língua oficial no
âmbito administrativo pela língua árabe.
Pode-se aceitar como crível que os textos científicos e médicos foram as
primeiras obras traduzidas em árabe. Os textos de alquimia e astrologia também aí se
incluíram. A justificativa para isso, talvez, se encontre no perfil prático dos árabes, o
que despertou um interesse mais imediato de aplicação deixando os aspectos mais
abstratos do pensamento grego para um momento posterior. No campo da medicina,
uma das primeiras traduções foi atribuída a um médico judeu (Māsaræawayh). Essa
obra, um breviário médico síriaco denominado Kunnā¹ de autoria do médico
monofisita alexandrino Aaron, foi realizada por volta de 683 d.C. e tinha grande
reputação entre os sírios.
O processo de tradução de obras científicas e filosóficas
começou a se intensificar durante o período Abássida sob os reinados de Harýn arRa¹÷d e de Al-Man½ýr o qual era versado na jurisprudência e amador da filosofia e
astronomia
e tinha a seu serviço sábios, médicos e astrólogos. Nesse período
possivelmente foram traduzidos
O Almagesto
de Ptolomeu e Os Elementos de
Euclides. Na mesma época foi traduzido, também, um célebre tratado de astronomia
indiano (Siddhānta) por Al- Fazār÷ (m.806) que juntamente com seu pai Ibrāh÷m
construiu o primeiro astrolábio no Islām e são computados entre os primeiros
astrônomos islâmicos.Uma das razões para a importância da tradução de obras de
astronomia e de astrologia podem estar ligadas diretamente aos conselhos políticos dos
sábios da corte a partir dos movimentos dos astros. As convulsões políticas que
culminaram com a quedas dos Omíadas e a sucessão dos Abássidas haviam inclinado
os califas a uma valorização dos movimentos dos astros como determinantes na vida
das nações. Fahkry anota esse fato do seguinte modo:
“Mesmo os califas mais esclarecidos desse período, como Al- Ma’mýn,
não escaparam dessa dependência frente às estrelas. Havia, não
somente um astrólogo real contratado ao seus serviços, mas ele não
81
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
tomava nenhuma decisão militar ou política importante sem, primeiro,
o consultar.”88
Num primeiro momento parece que foram traduzidos muitos textos apócrifos como,
por exemplo, aforismos morais atribuídos a Sócrates, Sólon, Hermes e Pitágoras. Um
dos tradutores mais importantes que viveu durante o califado Abassida foi Ya¬ya Ibn
al-Bitr÷q que traduziu para o árabe, dentre outras, o Timeu de Platão – talvez não
propriamente a obra original mas uma paráfrase de Galeno. Igualmente traduziu uma
paráfrase do Tratado sobre a Alma de Aristóteles – talvez numa versão de Temisthius.
Das obras aristotélicas atribui-se-lhe também dezenove livros de zoologia, os
Primeiros Analíticos
e o apócrifo Segredo dos segredos o qual ele dizia ter
“descoberto durante suas pesquisas da Política de Aristóteles sob a ordem do califa.”89
Até o reinado de Al-Man½ýr, porém, ainda não havia à disposição dos califas um
grupo tão competente como o que veio em seguida sob o reinado de Al-Ma’mýn que
fez um esforço sistemático e determinado para adquirir e traduzir os principais
monumentos da ciência e da filosofia grega.
À época das traduções, podia se verificar – pelo relato de Salāh ad-d÷n
as-½afad÷ – que havia dois métodos de tradução existentes. O primeiro
método –inicialmente talvez usado por Ibn al-Bitr÷q e Ibn Naima –
consistia em identificar termo a termo o texto grego e depois procurar
os termos correspondentes na língua árabe. Esse, porém, não foi
considerado um bom método devido à inexistência de equivalência de
termos correspondentes – notadamente porque a língua árabe não fôra
esculpida, até então para isso – e mesmo porque a peculiar sintaxe da
língua árabe dificultava esse processo.
O segundo método de tradução, amplamente adotado por ser o mais
confiável, foi o de ©unayn Ibn Is¬āq e de sua escola. Neste, a sentença em grego era
lida até ser compreendida perfeitamente para, depois, o tradutor procurar o mesmo
sentido na língua árabe independente de seguir a sentença termo a termo. Deve-se
destacar que isso só era realizado depois de se estabelecer previamente um bom texto
grego fixado por diferentes manuscritos disponíveis, fornecendo, inclusive, as
variantes mais importantes.
88
89
Ibid, p. 32
Ibid, p. 33
82
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Al-Jāhiz, opinando sobre a tradução, já refletia àquela época também a
preocupação com o rigor ao mostrar, por exemplo, que o tradutor deveria ter o mesmo
nível intelectual do autor e ser versado nas duas línguas de modo excelente e
equivalente. No caso das traduções do próprio ©unayn, estas necessitavam pouca
revisão pois ele era versado em medicina, lógica, física e metafísica. Apontando
questões que são problemas de tradução até hoje, Al-Jāhiz também se mostrava
cônscio de que os textos poéticos, teológicos e filosóficos impunham uma dificuldade
maior que os textos de matemática, astronomia e medicina.
4.3
©unayn e a Casa da Sabedoria
O marco decisivo do período de traduções ocorreu em 830d.C./220H.
quando o califa Abássida Al-Ma'mýn fundou em Bagdá a “Casa da Sabedoria” que
continha um instituto de pesquisas,
uma biblioteca, um museu e um centro de
traduções. Para reunir obras na biblioteca, o califa enviava emissários a Bizâncio para
pesquisar e adquirir obras de “ciência antiga” ordenando, em seguida, que fossem
traduzidas por um grupo de especialistas. Nas palavras de Fhahkry é possível
identificar a importância de Al-Ma'mýn e seu amor pela filosofia:
“Nenhum dos mecenas da ciência grega mencionados até o presente
pôde se igualar em zêlo, em generosidade ou em distinção intelectual
ao célebre califa Abássida Al-Ma'mýn, cujo reinado marcou um ponto
decisivo no desenvolvimento do pensamento filosófico e teológico no
Islām. Ao esplendor do ofício de califa, Al-Ma'mýn reunia a distinção
rara de uma profunda paixão intelectual.”90
Conta-se que Al-Ma'mýn tivera um sonho com o próprio Aristóteles e que isso o teria
inclinado a orientar os seus esforços na aquisição e na tradução das obras gregas. Nesse
sonho o mestre grego teria travado um diálogo com o califa a respeito da natureza do
bem, terminando com o conselho do filósofo ao califa de se ligar à confissão da
unicidade.
Como o maior mecenas para a filosofia e a ciência dessa movimentada
história do Islām, Al-Ma'mýn presidia reuniões de sábios com debates filosóficos e
teológicos.Este califa, apaixonado pelo saber chegou
a compor alguns tratados
referentes a questões teológicas sob um perfil que o aproximava dos mu’tazilitas como
por exemplo, As Luzes da Profecia. Também escreveu uma série de aforismos e
90
Ibid, p. 34
83
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
adágios. Por seu espírito liberal, acabou popularizando os debates teológicos e
influenciou os teólogos a se valerem das categorias da lógica da filosofia grega
aplicada aos dogmas muçulmanos, aos moldes dos mu’tazilitas. Tudo isto aumentou o
interesse pela ciência e pela filosofia grega.
O nome mais importante durante o reinado de Al-Ma'mýn foi o do
cristão nestoriano ©unayn Ibn Is¬āq (809/873 d.C- 193/260 H.). Sob sua condução foi
traduzida para a língua árabe grande parte da filosofia e da ciência dos antigos gregos.
Assim lhe faz referência Fahkry: “o personagem de primeira ordem na história da
tradução da filosofia e da ciência gregas é de longe ©unayn Ibn Is¬aq, discípulo e
colega de Ibn Masawayh, que fundou a arte da tradução árabe sobre bases
cientificas.”91 Parece certo que o próprio ©unayn tenha dirigido a Casa da Sabedoria
por um breve período e esteve a serviço do califa. No entanto, a família Baný Mýsā
parece ter subvencionado grande parte de seu trabalho.
O método rigoroso desenvolvido por ©unayn resultou em traduções em
que os exemplares gregos eram revistos incansavelmente até que se chegasse às
melhores formas de se adaptar termos que a língua árabe muitas vezes não tinha para
se expressar. Além disso, os textos traduzidos para o árabe também eram comparados
com as traduções em siríaco para que se obtivesse mais precisão. A atividade de
©unayn marcou uma etapa decisiva na história da tradução, na medida em que a
exatidão foi um critério buscado com persistência. Textos que haviam sido traduzidos
anteriormente voltaram a ser traduzidos através de exames minuciosos a partir de
vários manuscritos da mesma obra. O próprio Hunayn relata que em sua juventude
fizera uma tradução em siríaco de uma obra de Galeno e que, 20 anos mais tarde, a
corrigiu.
“Tendo adquirido um certo número de cópias gregas dessa obra, eu as
confrontei cuidadosamente umas com as outras até que eu tivesse uma
boa cópia em meu poder, que eu confrontei, em seguida, com a versão
siríaca e a corrigi. Depois eu a traduzi pela segunda vez.” 92
©unayn acrescenta ainda que esse era seu hábito para tudo o que traduzia para seu
mecenas Mu¬ammad Ibn Mýsā, para quem ©unayn fez, também, uma tradução para o
árabe da referida obra de Galeno. Os interesses principais de ©unayn parecem ter sido
mesmo quanto à tradução das obras médicas e estas entende-se que traduziu
91
92
Ibid, p.36
Ibid, p. 37
84
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
pessoalmente. Deve-se-lhe a tradução de quase todos os escritos de Galeno e de
Hipócrates que continham grande parte de toda a tradição médica da Antiguidade, e
que, em sua maioria, está conservada em árabe até os dias de hoje. Quanto às obras
filosóficas de Galeno, ©unayn traduziu, por exemplo, O Tratado sobre a
demonstração, Silogismos hipotéticos, e algumas paráfrases das obras de Platão como
As Leis, a República, Timeu e Parmênides dentre outras.
Além do trabalho de tradução, ©unayn também compôs alguns
tratados próprios tais como A gramática grega, A verdade das crenças religiosas e
uma História Universal . Diferentemente do que aconteceu no período inicial das
traduções, o trabalho de Hunayn não era um trabalho isolado mas ele foi auxiliado por
uma equipe de tradutores igualmente competentes que, sob sua orientação, também
entrariam para a História. Os três mais importantes foram seu filho Is¬āq Ibn ©unayn
(m.911), seu sobrinho ©ubai¹ e seu discípulo ‘Isa Ibn Yahia.
Muitas obras de Aristóteles foram traduzidas por esse grupo sob a
orientação de ©unayn que encarregou-os de traduzir praticamente todo o corpus
aristotélico. A seu fiho Is¬āq Ibn ©unayn atribui-se a tradução para o árabe das
Categorias, Da Geração e da Corrupção, Física, partes da Metafísica, além de alguns
tratados de Platão como o Sofista, das quais muitas existem até hoje. ©ubai¹, o
sobrinho de ©unayn parece ter se dedicado mais às traduções das obras médicas.
Ao lado de ©unayn e de seu grupo de tradutores também houve outros
nomes importantes dos quais destacam-se Ibn Na‘ima, Abu Matta, QusÐa Ibn Lýqā,
Abu ‘Utmān al-Dima¹q÷ e Tābit Ibn Qurra. Note-se que todos eles eram cristãos da
seita nestoriana ou jacobita exceto o grande astrólogo e filósofo pagão Tābit Ibn Qurra
que viveu em Harran ao norte da Síria mas tarabalhou aos serviços da família Baný
Mýsā em Bagdá. Vale notar que ao lado do trabalho de tradução, os próprios tradutores
também arriscavam escrever suas próprias obras. Apesar de, na maioria das vezes, não
possuirem muita originalidade e conterem geralmente idéias recolhidas e sobrepostas
de modo pouco sistemático esse fato é bem característico desse período.
Qustā Ibn Lýqā, talvez de origem grega convertido ao cristianismo,
nasceu na cidade de Ba‘albek (cidade do atual Líbano). Viveu em Bagdá e depois na
Armênia onde morreu por volta do ano 900 d.C. Traduziu do grego para árabe obra de
filosofia, geometria, mecânica e ciências naturais, dentre outras. Atribui-se a ele a
tradução dos quatro primeiros livros da Física de Aristóteles e o tratado Da Geração e
da Corrupção assim como o pseudo-Plutarco Opiniões dos Físicos. Além das
85
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
traduções, escreveu obras de filosofia, astronomia, medicina, física e aritmética tais
como Propósitos dos filósofos , Sobre a diferença entre alma e espírito, Tratado sobre
o átomo e Exposição das doutrinas gregas. Também escreveu um Tratado histórico
que ainda é conservado até os dias de hoje.
Abu ‘Utmān al-Dima¹q÷ (m.900) também se destacou pela transmissão
das obras de Aristóteles para os árabes. Traduziu os Tópicos, a Ética a Nicômaco e
uma parte da Física, além de algumas obras médicas, uma versão da Isagoge de
Porfírio e três tratados de Alexandre de Afrodísias: As cores, As substância imateriais
e O Crescimento.
No século X d.C. Abý Mattā (m.940), um dos mais renomados lógicos
de seu tempo, e seu discípulo Ya¬yā Ibn ‘Ad÷ (m.974) foram importantes na tradução
e comentários principalmente às obras de lógica de Aristóteles. A Abý Mattā atribui-se
comentários às Categorias, Tratados da Interpretação, Primeiros Analíticos e
Segundos Analíticos. Escreveu também um Comentário sobre a Isagoge de Porfírio e
um Tratado sobre os silogismos condicionais. Seguindo os passos de seu mestre,
Ya¬yā ben ‘Ad÷, cristão jacobita, foi chamado de “O Lógico” e a ele se atribui as
traduções da Poética, Refutações sofísticas, partes da Física e talvez a Metafísica de
Aristóteles. Também escreveu suas próprias obras como
A impossibilidade da
existência do infinito, A Natureza do possível e O Todo e as Partes.
Tābit Ibn Qurra (m.901), viveu em Harran, norte da Síria e depois se
estabeleceu em Bagdá e esteve ligado aos serviços da célebre família Baný Mýsā.
Diferentemente da maioria dos destaques desse período Tābit bin Qurra era pagão e foi
conhecido como um renomado filósofo e astrólogo. Além de inúmeras traduções do
grego e do siríaco principalmente em matemática e filosofia, também escreveu um
comentário sobre a Física de Aristóteles e tratados sobre A natureza das Estrelas e
suas Influências, Princípios da Música, e Princípios da Ética dentre outros títulos.
Traduziu para o árabe uma versão do Almagesto
de Ptolomeu e também dos
Elementos de Euclides com melhoramentos fundamentais em vista das versões
anteriores.
Igualmente valoroso foi o trabalho de Ibn al–åammār (m.1017),
também conhecido como Al–©assan Ibn Suwār. Suas traduções foram feitas, em sua
maioria, do siríaco para o árabe e compreendem alguns tratados de lógica de
Aristóteles e Os Meteorológicos. Escreveu obras médicas, e alguns tratados filosóficos.
Um dos trabalhos mais interessantes denomina-se O Acordo das opiniões dos filósofos
86
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
e dos cristãos no qual procura, obviamente, harmonizar a razão filosófica com a fé
religiosa. Nesse rol de tradutores, destaca-se, também, Ibn Nā‘ima al-©imÆ÷ (m.835)
que traduziu partes da Física de Aristóteles mas teve fundamental importância na
formação do pensamento filosófico árabo-islâmico por ter traduzido a obra apócrifa
Teologia de Aristóteles que era, na verdade uma paráfrase das Eneadas de Plotino e
que foi fundamental para todo o desenvolvimento da falsafa.
4.4
De Aristóteles a ArisÐýÐālis
O eixo principal sobre o qual orbitaram os principais temas da falsafa
iniciou-se com a introdução dos temas trazidos por Aristóteles. A sua imagem no
mundo muçulmano medieval é a do “Filósofo” por excelência em relação ao qual todo
pensamento se define: tanto o filosófico puro como o científico e mesmo o religioso.
Não obstante o rigor com que foram feitas as traduções dos textos do mestre grego, a
questão dos apócrifos, isto é, os textos atribuídos equivocadamente a Aristóteles,
fizeram com que, na verdade, ArisÐýÐālis não fosse o mesmo Aristóteles que
conhecemos hoje. Essa diferença deveu-se, em grande parte, à Teologia de Aristóteles.
Os extratos parafraseados de autor desconhecido baseado nas Enéadas de Plotino
trouxeram uma doutrina que o próprio Aristóteles não enunciou em nenhuma de suas
obras. O Aristóteles árabe – ArisÐýÐālis – é, na verdade, um Aristóteles neoplatonizado.
Esssa característica fez com que houvesse uma singular e preciosa conversão das
doutrinas de Aristóteles e de Plotino – conseqüentemente algumas de Platão – que
pareceriam, à primeira vista, incompatíveis entre si. Curiosamente, o que poderia
parecer um equívoco histórico da entrada dos elementos neoplatônicos sob o nome de
Aristóteles, acabou se conformando num dos pilares centrais da construção do sistema
de Al-Fārāb÷ e de Ibn S÷nā.
Pareceria ingênuo pensar que as idéias contidas na Teologia de
Aristóteles só foram aceitas pelos árabes porque estavam sob a denominação do
Estagirita. Isso pode levar a um erro de perspectiva. O mais sensato é entender que os
elementos neoplatônicos só penetraram no sistema de Al-Fārāb÷ e de Ibn S÷nā pelo
próprio conteúdo das teses ali apresentadas, as quais, em
muitos casos, foram
ferramentas utilíssimas para harmonizar e justificar posições. Além do que, para dizer
o mínimo, a filosofia de Plotino, pela sua própria força seria suficiente para explicar a
adoção de tais teses. Em reforço a essa perspectiva vale lembrar que o próprio Ibn
87
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
S÷nā, ao comentar a Teologia de Aristóteles, colocou em dúvida que a autoria fosse
mesmo de Aristóteles mas nem por isso deixou de adotar as idéias ali estavam
contidas. De todo modo, vale lembrar que parece não haver dúvida que os árabes
conheceram as grandes idéias e os grandes sistemas dos filósofos gregos em suas teses
fundamentais, mas a atribuição nominal a cada um ficou comprometida, não por causa
das traduções dos textos que foram rigorosas, mas por causa dos apócrifos que
transformaram a fisionomia original de Aristóteles, de Platão e de Plotino.
A esse respeito é pertinente se entender que a recepção da filosofia dos
antigos foi, para os primeiros pensadores muçulmanos, um conjunto de sabedoria
antiga sob diversos nomes. Pode-se pensar que, a certa altura, o valor intrínseco de
cada documento e de cada texto fosse critério suficiente para ser ou não incorporado.
Para Ibn S÷nā, por exemplo, nenhum autor foi tido como uma autoridade absoluta. Ele
próprio discordou e criticou Aristóteles. De todo modo, apesar dos elementos
neoplatônicos, Aristóteles foi o nome sob o qual figurou grande parte das obras e dos
comentários feitos pelos falāsifa. Ressalte-se ainda que o pensamento de Aristóteles
influenciou, também, poetas, filólogos, gramáticos e juristas árabes.
As obras de Aristóteles foram traduzidas integralmente: ou diretamente
do grego ou por intermédio do siríaco. Todas essas traduções árabes chegaram ate nós.
Por sua fidelidade, em alguns casos, chegaram mesmo a ser mais exatas do que as
traduções modernas. Isso se explicou tanto pelo fato de que muitos manuscritos gregos
eram mais antigos e melhores do que muitos manuscritos que chegaram até nós, como
pelo fato de os tradutores se valerem de comentários de Alexandre de Afrodísias,
Simplício e Themistus – dentre outros –, textos que, por vezes, se perderam em grego e
só foram conservados em traduções árabes. O interesse pelas traduções das obras de
Aristóteles sucedeu as traduções de ordem prática como, por exemplo, os textos
médicos e astronômicos realizados no primeiro período. Isso se deveu ao início do
interesse pela especulação filosófica, que se verificou durante o período Abássida, e
que, ao menos em parte, pode ser computada
por causa de uma pura curiosidade
científica, pelo amor da ciência desinteressado, elevando o valor da empreitada do
califa Al-Ma‘mýn, em vistas de seus predecessores que tiveram maior interesse pelas
ciências práticas: medicina, astronomia e matemáticas.
Pode se entender que o movimento do corpus aristotélico, a partir das
traduções de seus textos para o árabe teve três momentos distintos. No primeiro
momento, sua filosofia foi recepcionada; no segundo, iniciaram-se algumas reações
88
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
contra suas teses, principalmente por parte dos teólogos islâmicos e, no terceiro
momento, houve uma contra-reação em defesa da filosofia aristotélica, na tentativa de
reforma da falsafa. Na curva ascendente das traduções, da recepção e da internalização,
a filosofia de Al-Kind÷, os sistemas de Al-Fārāb÷ e de Ibn S÷nā foram os maiores
representantes. A reação dos teólogos coincidiu com uma certa paralisação da
influência do pensamento grego e teve na controversa figura de Al-¦azāl÷ um bom
exemplo disso. O momento crítico foi realizado por Ibn Ru¹d na tentativa de
restabelecer as bases propriamente aristotélicas confrontando-as com os elementos
neoplatônicos.
O primeiro período, considerado como a recepção propriamente dita de
Aristóteles, foi realizado pelos próprios tradutores que acabaram escrevendo uma série
de comentários às obras do mestre grego. O termo dessa primeira etapa da recepção de
Aristóteles teve como símbolo a presença de Al-Kind÷. O primeiro filósofo árabe e
muçulmano que entrou em contato com as idéias de Aristóteles. Apesar de Al-Kind÷
não ter se aprofundado nas temáticas aristotélicas e, muitas vezes, transparecer uma
certa superficialidade em suas abordagens em vista da maior profundidade encontrada
no Estagirita, seu mérito foi, entre outros, ter preparado o terreno para Aristóteles.
Mantendo-se próximo aos tradutores, Al-Kind÷ além de influenciar o califa AlMu‘ta½im para que houvesse prosseguimento nas traduções, encorajou-os e contribuiu
na revisão e na correção do texto árabe, criando e adaptando termos que eram
inexistentes para a nova língua da filosofia.
O segundo momento foi marcado pelo pensamento de Al-Fārāb÷ e de
Ibn S÷nā em que houve um aprofundamento significativo no entendimento das próprias
teorias aristotélicas e uma fusão mais elaborada com os elementos do neoplatonismo.
Al-Fārāb÷ escreveu uma série de comentários às obras de Aristóteles seguindo a
tradição dos comentaristas gregos que o precederam. Infelizmente a maioria desses
comentários se perdeu. No entanto, nesse período, Aristóteles já estava inteiramente
integrado no cenário da filosofia entre os árabes. “Com a obra de Al-Fārāb÷ e o
trabalho desses tradutores-comentadores, a obra inteira de Aristóteles se encontra
integralmente traduzida e parcialmente comentada ou anotada, ao final do IV séc. da
Hégira (X d.C. ). A autoridade de Aristóteles está, pois, solidamente estabelecida.”93
No entanto, o pensamento de Al-Fārāb÷ ficou mais conhecido por seu lado
93
BADAWI, La transmission, op. cit. p. 81.
89
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
neoplatonizante do que propriamente aristotélico. Suas idéias o fizeram tentar uma
aproximação, ou antes, uma harmonização de Platão com Aristóteles. A Teologia de
Aristóteles foi uma das pontes que tornou isso possível.
Encerrando o segundo período há a figura marcante de Ibn S÷nā, foco de
irradiação de toda filosofia muçulmana posterior. Em seu caso destacou-se o traço
pessoal de uma extrema versatilidade em várias áreas do conhecimento, uma gama
variada de temas e as múltiplas formas como os tratou. Essa característica ímpar fez
com que os pensadores que o sucederam e os analistas atuais valorizassem, ora um ora
outro, aspecto de sua obra, sob leituras, muitas vezes, redutoras do conjunto da obra.
Isso também se ve no aristotelismo em Ibn S÷nā. Pelo fato de ele, nessa miríade de
temas e estilos, ter escrito alguns textos em linguagem simbólica que ficaram
conhecidos como os “tratados místicos”, alguns autores entenderam que a base de sua
filosofia teria um sentido mais místico ou esotérico, embora representem o mínimo de
sua obra. Na maioria de seus escritos Ibn S÷nā permaneceu inteiramente aristotélico,
exceto, nos vôos místicos dos últimos capítulos do kitāb al- í¹ārāt wal-tanb÷hāt I¹arat
e em algumas páginas isoladas de seus pequenos tratados nos quais ele se deixa levar
por inspirações esotéricas. Esse aspecto foi, exageradamente, acentuado pelos místicos
persas posteriores, como Mulla Sadra e Ibn Baqir. Contudo, o criterioso exame lógico
que acompanha sua obra pode ser entendido, em última análise, como a base de seu
pensamento que, apesar da presença do neoplatonismo, possui uma matriz aristotélica
na condução e desenvolvimento das teses ali contidas.
O terceiro período seguiu-se à sistematização de Ibn S÷nā, refere-se ao
Ocidente muçulmano e se deu na Espanha primeiramente por Ibn Bājja que analisou e
parafraseou algumas obras de Aristóteles e, por isso, teve o mérito de ser o precursor
dos estudos filosóficos na Espanha muçulmana. No entanto, o ponto alto do
aristotelismo árabe se encontra na figura de Ibn Ru¹d que foi o comentador por
excelência da obra de Aristóteles tendo recebido, por justiça, o título na Idade Media
latina de “O Comentador”.O trabalho de Ibn Ru¹d objetivou resgatar o pensamento do
que ele considerava ser o mais puramente aristotélico procurando afastar as influências
de outra ordem que existiram em seus antecessores. Para isso comentou, parafraseou
ou resumiu quase a totalidade das obras de Aristóteles servindo-se de várias traduções
em árabe – corrigindo-as – e dos comentários consagrados de Alexandre de Afrodísia,
Temisthus, Filoponos dentre outros. Ibn Ru¹d ao mesmo tempo que era admirador
fervoroso do Primeiro Mestre, foi um crítico bastante sensato e lúcido. O ápice,
90
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
portanto, do aristotelismo entre os árabes foi marcado pela atenção e cuidado que a
obra de Aristóteles recebeu de Ibn Ru¹d. “A partir de então esses dois nomes:
Aristóteles e Ibn Ru¹d estarão, inseparavelmente ligados. Nenhum outro filósofo teve
esta grande chance de ter tido um comentador de suas obras tão fervoroso, inteligente e
perseverante. Mesmo sua monumental obra original: Tahāfut at-Tahāfut, a refutação
do livro de Al-¦azāl÷ contra os filósofos é uma defesa vitoriosa da filosofia de
Aristóteles.” 94
Alguns títulos das obras que foram traduzidas de autoria do próprio
Aristóteles ou obras apócrifas a ele atribuídas – seguidas pelos nome dos principais
tradutores – são os seguintes:
As Categorias / ©unayn bin Is¬aq ; Primeiros analiticos / Tutār÷ ; Segundos analiticos
/ Ibn Yýnis ; Tópicos/ Abu ‘Utmān al-Dima¹qu÷ ; Refutações Sofisticas / Ya¬ya bin
‘Adiy ; Retórica ; Poética/ Ibn Yýnis ; Física/ ©unayn bin Is¬aq ; De Caelo ; Geração
e Corrupção / ©unayn bin Is¬aq ; Meteorológicos/ Yahia bin al-Bitr÷q ; De Anima /
©unayn bin Is¬aq ; De sensu et sensato ; Sobre os Animais: Yahia bin al-Bitr÷q ;
Metafísica ; Ética a Nicômaco/ Is¬aq bin ©unayn.
Alguns títulos dos textos apócrifos são: Tratado sobre a economia, As
questões, O Bem Puro, Das causas das propriedades dos Elementos, De Plantis,
Teologia de Aristóteles, Secretum Secretorum, Sobre a Justiça, O Livro das Pedras, O
Livro do Espelho, Istimachus (magia e talismãs), O Tesouro, Epístola sobre a magia,
O livro de Hermes, Definição das Naturezas, Epístola de Aristóteles a Alexandre sobre
a Política, Tratado de Aristóteles sobre a Economia, Sentencas e Máximas atribuidas
a Aristóteles, As Virtudes da Alma.
4.5
De Platão a AflaÐýn
O nome de Platão é praticamente sinônimo de filosofia e seria estranho
se a falsafa nada devesse às idéias do mestre de Aristóteles. Essa presença,
praticamente obrigatória quando se diz filosofia, é, certamente, verificada ao entrarmos
em contato com muitas teses dos falāsifa. No entanto, curiosamente, isto se deve muito
mais à influência dos textos platônicos e neoplatônicos do que propriamente a uma
exegese direta dos textos de Platão pelos filósofos árabes, do mesmo modo como foi
feito em relação a Aristóteles. Por alguma razão, os escritos de Platão não chamaram
94
Ibid, p. 87.
91
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
tanta a atenção dos filósofos, o que acarretou uma grande diferença entre o interesse
direto pelas suas obras em vistas das obras do Estagirita. Badawi se refere a esse fato,
dizendo que “contrariamente ao destino das obras de Aristóteles, o das obras de Platão
no mundo árabe foi medíocre (!). Com certeza, conhecia-se bem sua vida, seu papel na
história da filosofia grega, até mesmo estendendo-se longamente sobre detalhes de sua
vida (...) mas o que é realmente estranho é que nenhuma de suas obras autênticas nos
tenha chegado em uma tradução árabe.”
95
Afinal, à primeira vista, o pensamento de
Platão poderia parecer ter maior afinidade com os orientais do que os tratados de
Aristóteles.
As razões que levaram a isso permanecem no campo da especulação.
Uma das hipóteses é a de que o estilo de diálogo adotado por Platão não teria
encontrado eco entre os árabes, apesar – e talvez por isso mesmo – da cultura árabe
possuir um perfil semelhante através de um sem número de histórias, contos e lendas.
Outra hipótese é a de que teria havido poucas traduções das obras de Platão em
comparação às de Aristóteles, o que parece não se confirmar na medida em que
inicialmente os diálogos de Platão começaram a ser traduzidos –inclusive alguns deles
pelo próprio ©unayn – mas depois pararam bruscamente. As razões apontadas para
isso seriam as de que os diálogos não teriam tido tanta aceitação junto aos leitores e
estudiosos e, por isso, a necessidade de continuar a tradução das outras obras de Platão
não se fazia sentir. A terceira hipótese centra-se no que poderia parecer um tom pouco
científico existente em algumas obras de Platão através de seus mitos, seu método
dialético e algumas explicações físicas pueris. Esse espírito encontrado em algumas
obras de Platão teria contrastado com o espírito mais rigoroso encontrado nas obras dos
grandes astrônomos, médicos e matemáticos como Ptolomeu, Galeno e Euclides. O
mesmo espírito – que poder-se-ia designar à época como mais “científico” –, dominou
também, mais propriamente, o pensamento de Aristóteles com seu método rigoroso,
seu conhecimento seguro e apoiado sobre os fatos reais e as observações devidamente
controladas. Em algumas dessas hipóteses, talvez esteja o real motivo que levou as
obras originais de Platão a ter tido menos aceitação entre os árabes. Ao mesmo tempo,
foram inúmeros os textos apócrifos traduzidos sob o seu nome.
Os títulos das obras do próprio Platão encontram-se principalmente
documentadas nas listas fornecidas pelos biógrafos Ibn an-Nad÷m e al-QifÐ÷ das quais
95
Ibid, p. 35.
92
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
destacamos A República, As Leis, Carmide,
Alcebíades I e II (sobre o Belo),
Eutidemo, Gorgias, Hipias, Ion, Protágoras, Euthyphron, Criton, Phedon, Teeteto,
Cratilo, Sofista, Timeu, Parmenides, Fedro e Menon.
As obras de Platão também são citadas por outros autores que delas
tinham conhecimento. No caso da República, por exemplo, sabe-se através de Ibn Ru¹d
que existiu uma tradução em árabe que ele mesmo parafraseou. A paráfrase elaborada
por Ibn Ru¹d chegou até nós conservada por uma tradução em hebraico. “De todo
modo, nenhuma tradução desses diálogos nos chegou ainda. O número de passagens
autênticas citadas pelos diferentes autores é bastante incipiente; elas não cobririam
sequer uma dezena de páginas.”96 Por outro lado, o número de obras apócrifas
atribuídas a Platão é imenso, ultrapassando em muito o número das obras atribuídas a
seu discípulo Aristóteles, e podem ser divididas em obras políticas, morais, de magia e
de química. Algumas delas são as seguintes: Os Testamentos Gregos – inspirado na
República e talvez composto por A¬mad Ibn Yýsuf ; Platônica – compilação de
sentenças políticas e morais;
Epístola de Platão, o Divino – para refutar aqueles que
dizem que o homem desaparece depois de sua morte; Epístola de Platão, o Divino, a
Timeu, o Sábio; Reprovação da alma; atribuído apenas em um manuscrito à Platão e
nos outros a Hermes; Sentenças Morais; Sentenças morais dos filósofos conhecidos
por sua sabedoria e por sua ciência; Testamento de Platão para a educação dos
jovens; Palavras de Platão; Testamento de Platão a Aristóteles; Liber Quartus – Um
curioso livro de Alquimia,
talvez escrito por um judeu, que menciona nomes e
personagens puramente imaginários em forma de aforismos “se as coisas são de uma
mesma espécie, elas podem ser reconduzidas a uma só coisa.”97 ;
Tratado dos
princípios e dos meios de controle em alquimia; Receitas para compor ungüentos
mágicos; O Livro das sete idéias e seus mistérios; Tabela sobre os elementos ;
Diálogos de Platão; coleção de sentenças morais que começa com o seguinte
pensamento:
“Platão, o filósofo diz: aquele que busca a sabedoria pelo caminho
adequado a atinge. A maior parte dos que a buscam cometem um erro
buscando-a por um outro caminho, de modo que eles não podem
atingi-la e, assim, a negam, o que os leva à ignorância. Pois aquele
96
97
Ibid, p. 37.
Ibid, p. 43
93
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
que ignora a imagem da sabedoria, ignora a si mesmo, e aquele que
ignora a si mesmo será ainda mais ignorante de outrem.”
O “Platão Árabe” foi editado em 1974 por Badawi com uma seleção dos apócrifos a
ele atribuídos intitulado Aflatun fi al-Islam (Platon en pays d'Islam) publicado numa
segunda edição em Beirute em 1980.98
4.6
De Plotino a AfluÐ÷n – o “mestre grego”
Pode se dizer que a falsafa esteve apoiada em duas colunas de
sustentação, uma aristotélica e a outra, plotiniana. Entretanto, a influência de Plotino
não se fez de forma direta como se deu com Aristóteles mas, curiosamente, suas idéias
foram veiculadas sob a autoria de outros filósofos, o que fez com que estranho fosse o
destino de Plotino no mundo árabe. Como vimos, a chamada Teologia de Aristóteles
foi o maior exemplo disto. Algumas partes da obra de Plotino, quando traduzidas,
apareceram, na maioria das vezes, sob o nome de Alexandre de Afrodísias, Aristóteles
ou sob o qualificativo de
Á³\³½À«[ q„«[
/ Al-¹ai¬ Al-yýnān÷, isto é, “o mestre
grego”.
Além de sua vida e de sua personalidade terem ficado sem referências
claras, também não se conheceu dele nenhum livro. Resumiu-se de suas Enéadas –
com paráfrases e alterações na ordem – as três últimas: IV-V-VI resultando no apócrifo
Teologia de Aristóteles. A importância das teses plotinianas da emanação contidas na
Teologia, – que foram a pedra angular da cosmologia de Al-Fārāb÷ e de Ibn S÷nā –
contrastou enormemente com o fato de sequer Plotino ter sido conhecido pelo seu
verdadeiro nome. Raramente aparece em algumas listas de filósofos gregos, de modo
fortuito como, por exemplo, na lista fornecida pelo biógrafo Ibn an-Nad÷m em que o
máximo que se encontra é o nome de
´Ž½¬Ÿ
/ flut÷nus mas sem nenhuma
indicação auxiliar que o ligasse verdadeiramente às suas teses.
Em meio a essa mais obscura situação, ainda assim, sua influência no
mundo muçulmano foi, em alguns casos, mais abrangente do que a de Aristóteles pois,
se estendeu às tendências esotéricas e gnósticas que se espalharam pelo mundo
islâmico. Badawi refere-se a isso destacando que a filosofia de Plotino “se infiltrou nas
98
Ibid, p. 45
94
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
consciências dos pensadores muçulmanos de uma maneira mais profunda que a
doutrina aristotélica.”
99
No ano de 1955, todos os textos de Plotino traduzidos para o
árabe foram editados por Badawi sob o título de Plotinus apud árabes, Cairo,
contendo: a chamada Teologia de Aristóteles editada segundo 9 manuscritos; uma
Epístola sobre a Ciência Divina (atribuído a Al-Fārāb÷) ; alguns fragmentos ; resumoparáfrase da Teologia de Aristóteles feita por Yýsuf al-Baædād÷.
A questão da autenticidade da Teologia, mesmo tendo sido posta em
dúvida pelos pensadores árabes como Al-Rāz÷ e Ibn S÷nā, ainda assim, foi tão decisiva
quanto a Metafísica
de Aristóteles e foi de grande serventia enquanto procurou
harmonizar a filosofia com o dogma e a filosofia nela mesma. A Teologia, nesse caso,
pareceu um verdadeiro dom. Al-Š÷rāz÷, de maneira explícita, atribuiu a Teologia a
Platão e não a Aristóteles, notando que o espírito dessa obra se alinhava mais com os
platônicos. De todo modo, na Teologia, a doutrina da emanação que serviu de base
para quase todo o pensamento filosófico árabe, é inteiramente exposta e discutida.
Acredita-se que, originalmente, a Teologia tenha sido escrita na língua
grega e chegou até nós conservada em árabe segundo duas redações distintas. Em
relação às Enéadas de Plotino, a Teologia aparece como uma seleção de passagens
extraídas da primeira, parafraseadas e organizadas em outra ordem. Quanto à sua
autoria, não se chegou até agora a uma resposta conclusiva. A abertura do texto indica
ter sido uma paráfrase feita por Porfírio, discípulo de Plotino. Em sua introdução,
Rubio refere-se ao fato do seguinte modo: “Vimos antes que as passagens da Teologia
tomadas das três últimas Enéadas não são traduções literais mas ‘paráfrases’, o que nos
inclina a crer que o autor imediato da Teologia é Porfírio, o discípulo de Plotino e
editor das Enéadas.”100
Quanto ao fato de ter sido erroneamente atribuída a Aristóteles, pode se
especular que, talvez, essa obra estivesse catalogada juntamente com outros
manuscritos de obras de Aristóteles e foi tomada como uma delas. Uma outra hipótese
é a de que pelo fato de Plotino ter sido conhecido entre os árabes como “o mestre
grego”, e dado o grande prestígio de Aristóteles junto aos árabes, é possível que
alguém, diante de uma obra atribuída ao “mestre grego” – Plotino – tenha pensado
tratar-se de Aristóteles e tenha substituído definitivamente um nome pelo outro. Não se
descarta o fato, também, de que essa atribuição tenha sido feita no momento mesmo da
99
Ibid, p. 47
PSEUDO-ARISTÓTELES, Teología, op.cit., p. 22
100
95
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
tradução, resutando que desde o princípio, Aristóteles tenha aparecido entre os
filósofos árabes com rosto platônico. Chegou-se mesmo a supor que a Teologia seria
uma das últimas obras escritas pelo Estagirita e que o perfil platônico que lá se
encontrava retrataria uma volta de Aristóteles ao platonismo no final de sua vida.
A abertura da Teologia se apresenta do seguinte modo:
“Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso ! Glória a Deus, Senhor dos
Mundos e Bençãos a Mý¬ammad e à sua Família !
Tratado Primeiro
Do livro de Aristóteles, o Filósofo, chamado em grego Teologia, que é a doutrina
sobre a Divindade; paráfrase de Porfírio de Tiro, traduzido para o árabe por ‘Abd Allā
Ibn Nā‘ima de Emesa e corrigido por Abý Yýsuf Ya‘qýb Ibn Ishāq Al-Kind÷! Deus
tenha misericórdia dele!, para A¬mad Ibn al-Mu‘ta½im biL-Lāh.”101
No Prólogo, o autor da Teologia explicita qual é o seu objetivo com as seguintes
palavras:
“Assim, nosso objetivo neste livro é a doutrina primeira a respeito da
Divindade, a explicação a seu respeito, que Ela é a causa primeira, que
a eternidade e o tempo estão submetidos a Ela, que Ela é a causa das
causas, instauradora delas segundo um modo particular de instauração,
que a potência iluminativa deriva Dela sobre a Inteligência e Dela por
meio da Inteligência sobre a Alma universal das esferas, da
Inteligência por meio da Alma sobre a Natureza e da Alma por meio
da Natureza sobre as coisas geráveis e corruptíveis, que esta ação vem
da Inteligência sem movimento e que o movimento de todas as coisas
vem dela e por seu canal – ou causa – e que as coisas que se movem
até ela mediante um modo de desejo ou nostalgia. Em seguida a isso
mencionaremos o mundo inteligível, descreveremos seu esplendor,
nobreza e beleza, recordaremos as formas divinas, belas, excelentes,
esplendorosas que existem nele, e que dele vem o ornamento de todas
as coisas e sua beleza e que todas as coisas sensíveis se assemelham
àquelas formas, mas as coisas sensíveis (ý) não pemitem narrar sua
verdadeira maneira de ser.”102
No Tratado Primeiro, o autor da Teologia se refere diretamente à imortalidade da alma:
“Dado que já ficou claro que é verdade que a alma não é corpo, que
não morre nem se corrompe nem fenece, mas que é persistente,
101
102
Ibid, p.47. A®mad era um dos filhos do califa Al-Mu‘tassim que reinou entre 833 e 842 d.C.
Ibid, p.51s. Cf. também FAHKRY p.44.
96
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
perpétua, queremos investigar também a seu respeito como se separou
do mundo inteligível, desceu a este mundo sensível, corporal, e
chegou a estar nesse corpo grosseiro, que está submetido à geração e à
corrupção.”103
Essas poucas palavras já prenunciam todo o desenvolvimento da teoria platônica das
idéias e da teoria do Uno e da processão das hipóstases de Plotino que perpassam toda
a Teologia. No desenvolvimento de suas doutrinas, o autor invoca a autoridade de
Heráclito, Empédocles, Pitágoras e Platão, atribuindo a este último a descrição do
corpo como sendo uma cela na qual, a alma, temporariamente, estaria aprisionada. O
autor afirma, ainda, que Platão teve o mérito de introduzir a distinção entre as
entidades sensíveis e inteligíveis e de imputar às últimas o caráter de permanência e de
imutabilidade, e às primeiras o de fluxo perpétuo. No Tratado I, são estudadas
detidamente as relações da alma com o inteligível.
Nos Tratados II e III examina-se a alma em três questões principais: que
no mundo inteligível a alma possui o conhecimento de todas as coisas de modo
permanente, imutável e perfeito e não tem nenhuma necessidade do tipo de
conhecimento adquirido no mundo sensível. Afirma-se a alma como una e indivisível
sendo que sua divisibilidade lhe é atribuída por acidente. Devido à união com o corpo,
ela se divide em potência animal, apetitiva, irascível e cognitiva, segundo a parte do
corpo na qual reside. O autor critica, ainda, a teoria da alma como harmonia do corpo,
os materialistas e corporalistas. Para o autor da Teologia, a alma é a causa dessa
harmonia, uma substância distinta do corpo e independente deste, cumprindo nele o
papel de guardiã e de governante. Estuda-se, também, a concepção da alma como
enteléquia do corpo fazendo-se uma distinção entre a enteléquia passiva em que a
forma natural está ligada indissoluvelmente ao composto e a enteléquia ativa, ou seja, o
princípio ou a causa da atualidade própria do corpo. Esse último seria , pois, o caso da
alma.
Ao longo dos dez Tratados, o autor desenvolve uma série de temas dos
quais destacamos os seguintes: as recordações da alma, suas relações com o corpo e
como ela opera através de suas diversas faculdades; explicação da substancialidade da
alma com a conseguinte refutação dos corporalistas; a contemplação do mundo
inteligível; a descida da alma ao mundo sensível; as perfeições da obra do Criador;
doutrina a respeito das estrelas e suas influências no mundo inferior; sobre a nobreza
103
Ibid, p.65.
97
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
da alma e seu retorno ao mundo superior; a emanação dos seres a partir do Uno e como
a Alma entra na matéria e na Natureza, o lugar da alma entre o mundo sensível e
inteligível; a respeito do ato e da potência; sobre a imortalidade da alma racional; como
do Uno procede a multiplicidade; o retorno da alma à sua origem.
Juntamente com a Teologia, boa parte das teses neoplatônicas
circularam também através de uma obra atribuída ao neoplatônico Proclus sob o nome
de Liber de Causis. Este se compunha de 32 proposições que expunham de modo mais
sucinto do que a Teologia a teoria da processão das hipóstases. Não se sabe bem em
que data essa obra foi traduzida para a língua árabe mas é certo que no séc. X d.C. / V
H. já circulava entre os filósofos. Estas duas obras – A Teologia e o Liber de Causis –
foram as duas vias mais intensas pelas quais o neoplatonismo penetrou no mundo árabe
para formar a falsafa. Nessas duas obras de perfil neoplatônico encontram-se a
transcendência absoluta do Princípio Primeiro ou Deus, a processão ou emanação das
coisas a partir d’Ele; o papel do Intelecto como instrumento de Deus na criação e fonte
de iluminação e conhecimento para o espírito humano, e a posição da alma enquanto
ligação entre o mundo inteligível e o mundo sensível.
4.7
Outras presenças
Outros autores traduzidos para a língua árabe foram Alexandre de
Afrodísia, Temistius, João Filoponos, Porfírio, Amonios filho de Hermias, Nicolaus,
Olimpiodoro de Alexandria, Jamblico, Galeno, Simplicius, Sirianus e Plutarco dentre
outros. Destaque-se, também, os tratados estóicos que tiveram papel importante para os
falāsifa. Ao lado da influência grega, é inegável a influência indiana e persa,
particularmente em relação à medicina, astronomia e à política por meio de contatos
que já se davam desde o séc. VIII d.C. / II H. Uma das primeiras obras traduzidas para
a língua árabe, foi o Siddhanta – um tratado astronômico indiano que cumpriu um
papel importante no desenvolvimento da astronomia islâmica. A literatura indiana
também parece ter tido boa recepção entre os árabes. No séc. VIII d.C. já circulava
uma obra denominada Crenças Religiosas dos Indianos, além de outras obras de
natureza moral e religiosas. Quanto à influência da filosofia indiana, propriamente dita,
parece que não houve um aporte tão significativo. “Se nos voltarmos aos elementos
mais filosóficos do pensamento indiano que teriam influenciado os Árabes, somos
98
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
imediatamente surpreendidos pela sua relativa raridade, ou sua insignificância, quando
os comparamos à rica corrente de idéias que vieram da Grécia.” 104
Do mesmo modo a influência de algumas correntes de pensamento
persas antes do Islām sobre o pensamento filosófico entre os árabes foi igualmente
restrita e consistiu principalmente em um certo número de obras de tradições morais ou
aforísticas. No domínio especulativo, a influência persa se deu quase exclusivamente a
partir do dualismo dos maniqueus aplicados a questões religiosas e filosóficas. Apesar
de o maniqueísmo ter encontrado algum eco entre alguns autores árabes, muitas
polêmicas contribuíram para a terminar com essa tendência.
Uma última palavra sobre o conjunto do saber antigo que constituiu o
material básico sobre o qual operaram os falāsifa deve considerar que, se por um lado,
os apócrifos pareceriam comprometer o desenvolvimento dessa nova etapa da filosofia,
por outro lado, é bom lembrar que mesmo os textos atribuídos corretamente aos seus
autores foram lidos, quase sempre, em vistas da construção de um novo sistema
filosófico. Desse modo, a atribuição dos apócrifos permitiu que os falāsifa estivessem
diante de um conjunto de doutrinas vistas sob um ponto de vista bastante original,
resultando em sistemas e abordagens que mesclaram de modo harmônico teses que a
nós poderiam parecer excludentes.
Al-Fārāb÷, ao considerar que o saber havia se iniciado nas terras da
Mesopotâmia, se transladado aos egípcios, depois aos gregos e, por fim aos árabes,
colocava-os como herdeiros legítimos e continuadores dessa tradição. Isso também é
verificado pelas palavras de Al-Kind÷ que, entendendo que o papel do sábio é, mais do
que tudo a busca pela verdade, agradeceu os seus antecessores e, como que tomandolhes o bastão, conclamou os sábios a fazerem a filosofia “falar em árabe”. A isso somese o fato de que o momento efervescente de uma cultura nascente, lhe conferiu força
para entender a si mesmo como a “continuadora da verdade”, inclinando os sábios a
considerarem o acolhimento das obras antigas como um conjunto herdado. Assim, a
leitura dos textos se fez em vistas de dar continuidade ao que fora anteriormente
conquistado. Nesse quadro, o foco esteve mais sobre a “verdade” do que sobre os
autores que a pronunciaram. Tais peculiaridades distinguiram a falsafa de todas as
tradições anteriores, assim também como de tudo o que viria a ser realizado
posteriormente.
104
FAKHRY, op. cit, p.55
99
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
5. A FALSAFA E OS FAL¶SIFA
5.1
Al –Kind÷ , o anfitrião
O primeiro filósofo árabe foi Al-Kind÷ (796/873d.C. - 185/260H.),
nascido na cidade de Koufa – próxima a Bagdá –, onde seu pai foi governador. De
família aristocrática árabe da tribo de Kindah, Al-Kind÷ esteve sob a protecão dos
califas Al-Ma’mýn e Al-Mu‘ta½im tendo sido preceptor de A¬mad, filho deste último.
Completou sua formação em Bagdá após ter tido sua primeira educação numa cidade
próxima, Basra. Contemporâneo do célebre Hunayn, foi o primeiro filósofo
verdadeiramente de origem árabe e que se expressou nessa língua e, por isso, foi
chamado de o “filósofo dos árabes”.
Al-Kind÷ diferiu dos tradutores cristãos por dois aspectos principais: sua
religião e o seu desconhecimento da língua siríaca e da língua grega. Mesmo não tendo
conhecido outra língua além do árabe, Al-Kind÷ esteve envolvido com as traduções
procurando retocá-las, na medida em que seguiu corrigindo e adaptando o vocabulário
árabe às obras traduzidas como foi o caso, por exemplo, da Teologia de Aristóteles.
Destacou-se na matemática e na lógica, disciplinas que o guiaram em sua busca da
verdade pela filosofia. Os princípios metodológicos de clareza e esquematicidade aos
quais se propôs revelam uma clara consciência de que sem as matemáticas e sem a
lógica não seria possível atingir a ciência. “Ainda que fosse somente por essa
consciência metodológica haveria que se situar Al-Kind÷ junto aos grande filósofos
muçulmanos.”105 Os títulos de suas obras,106 chegam a 241 em que se destacam temas
sobre filosofia geral, lógica, música, astrologia, geometria, astronomia, medicina e
psicologia. Al-Kind÷ teve numerosos alunos e um círculo que deu continuidade aos
seus estudos.
Não obstante ter sido acusado, algumas vezes, de pouca contribuição
original, há uma concordância geral de que Al-Kind÷ teve o mérito de introduzir
Aristóteles no ambiente intelectual do Islām pregando uma exegese filosófica do
Alcorão. Essa posição, semelhante a dos partidários da aplicação do procedimento
racional ao texto revelado, aproximou Al-Kind÷ dos mu’tazilitas. É possível situá-lo na
passagem da teologia para a filosofia, em posição de cobrir o espaço que se verificava
105105
106
GUERRERO, R. Obras Filosóficas de Al-Kindi. op.cit., p.41.
BADAWI, op. cit., pp. 387-393.
100
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
entre a razão e o dogma, guiado pelo sentimento de um acordo fundamental entre a
busca da filosofia e a revelação profética. No amplo horizonte da busca do saber, AlKind÷ incitou a busca da verdade onde ela estivesse, mesmo nos sábios de outras
nações e de outras línguas, adaptando-a a seu tempo e a expressando em árabe.
Entendia que a verdade deveria ser acolhida qual fosse sua fonte pois nada deveria ser
mais caro ao pesquisador da verdade do que a verdade em si mesma.. Apresentou,
também, uma visão de crescimento histórico do saber, reconhecendo o papel
cumulativo do trabalho das subseqüentes gerações.
Em sua Epístola sobre a filosofia primeira, Al-Kind÷ procurou aliar a
filosofia aos princípios do Islām não vendo na noção filosófica de Deus, Uno,
Verdadeiro e Criador nenhuma contradição com os princípios do Alcorão. Desse
modo, defendeu a tese da criação do mundo ex nihilo, isto é, a partir do nada. Em sua
doutrina não se encontra um sistema cosmológico das processões plotinianas tão
sistematizado como em Al-Fārāb÷ e Ibn S÷nā do Uno ao mundo sublunar. Para AlKind÷, tais processões encontram-se inevitavelmente sob a dependência do ato divino,
livre. Além disso, afirmou a ressurreição dos corpos, a possibilidade de milagres, a
validade da revelação profética, a criação e a destruição do mundo por Deus. Para
justificar suas teses, defendeu a finitude do tempo e do movimento como uma prova do
começo do mundo no tempo. Tal começo, seria uma constatação da existência de um
Deus criador. Deus e mundo configurados em dual realidade permitiram, pois, a
distinção entre entidades materiais e imateriais correspondentes à dupla divisão da
filosofia: a física sendo a ciência do móvel ou dos objetos criados por Deus, e a
metafísica sendo a ciência do imóvel ou das coisas divinas. Nessa configuração, em
muitas de suas obras, transpareceu o sistema platônico entendido segundo a divisão
mais radical entre o mundo sensível e o mundo inteligível.
A Idade Média ocidental pouco conheceu de sua obra. Uma delas foi o
De Intellectu, curta epístola em que Al-Kind÷, ao discorrer sobre o tema segundo Platão
e Aristóteles, distinguiu quatro níveis do intelecto. Essa distinção foi importante para a
sequência da falsafa, pois Al-Kind÷ já assinalava o intelecto sempre em ato como uma
inteligência distinta da alma. Desde o início o pensamento árabe apontou, sob a
influência de Alexandre de Afrodísia, que havia apenas uma inteligência agente
separada para todos os homens e que cada indivíduo teria apenas como seu um
intelecto em potencial.
101
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
No alvorecer da filosofia entre os árabes, Al-Kind÷ procurou, também,
estabelecer a significação dos termos filosóficos como é o caso da obra intitulada
Epístola da Definições: um curto glossário de conceitos filosóficos no qual
encontramos 104 termos explicados por Al-Kind÷ de modo bastante breve. Apesar de
não ser um glossário completo, indicou a preocupação inicial de se familiarizar com os
termos que ingressavam no universo filosófico dos árabes. Deve se levar em conta que,
no período inicial da falsafa, muitos termos filosóficos que provinham da filosofia
grega eram estranhos ao mundo árabe e estavam sendo adaptados para o novo idioma e
ainda precisavam ser fixados em seu significado mais técnico. Se, por um lado, AlKind÷ foi um entusiasta da filosofia, por outro lado foi também um homem religioso.
Mais do que isso, foi o anfitrião de uma religião nascente que se defrontava com um
modo de pensar estrangeiro. Sua tendência, pois, foi a de harmonizar as duas
manifestações: a filosofia e a religião. A intenção de concordar essas duas realidades,
muitas vezes, comprometeu o significado que ele imprimiu aos termos filosóficos, em
vista do sentido original da língua grega. Não se pode atestar com certeza em que
medida a Epístola das Definições foi realmente escrita pelo próprio Al-Kind÷. Talvez
possa ter sido uma compilação ou uma tradução do grego que circulava na época.
Pode tratar-se, ainda, de uma adoção de definições por parte de Al-Kind÷ para formular
um novo glossário. De todo modo, ela nos dá uma idéia sobre os primeiros
movimentos da recepção do pensamento grego no mundo árabe.
O primeiro termo que se encontra na Epístola das Definições é a “causa primeira”,
definida como a criadora e a agente, aquela que aperfeiçoa o todo sendo imóvel. O
termo “eterno” complementa a idéia de “causa primeira” e é definido como aquilo
que não foi não-ser e não tem necessidade de outro para subsistir. Implícito está, pois,
que aquilo que não necessita de outro para subsistir, não tem causa e é, portanto,
eterno. Outro termo correlato é “criar”: esse, que tem mais familiaridade com a
religião revelada do que propriamente com a filosofia grega, é definido por Al-Kind÷
como sendo o ato de fazer com que algo apareça a partir do nada. Esse modo de
entender as relações entre Deus e o mundo é completada com o item “Questão sobre
o Criador”. Neste, Al-Kind÷ inicia perguntando-se a respeito do modo como Deus
está neste mundo. Sua resposta é de que o Criador está no mundo assim como a alma
está no corpo. Do mesmo modo como nenhuma parte do corpo pode subsistir sem a
intervenção da alma, assim também a ordem do mundo visível se realiza
necessariamente pela mediação e direção do mundo invisível. E, do mesmo modo
102
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
como a alma pode ser conhecida pelos efeitos que ela produz no corpo, assim
também o mundo invisível pode ser conhecido por meio da organização e dos efeitos
que dele procedem em relação ao mundo visível. Em suas linhas mestras, o sistema
de Al-Kind÷ se ampara nessas primeiras definições para estabelecer, por um lado, o
mundo não-eterno e, por outro, Deus-eterno como o seu Criador. Deus é, pois, aquele
que não tem causa e, por isso, é eterno. O mundo, por sua vez, é causado e é uma
criação Sua. Deus, transcendendo a Sua criação, é entendido, pois, segundo o dogma
da trilogia da revelação das escrituras sagradas judaico-cristã-islâmica.
Aparecem, também, alguns termos filosóficos mais próprios às
doutrinas aristotélicas como, por exemplo, os conceitos de “matéria”, “forma”, “ato”,
“potência” e “substância”. Quanto a este último – “substância” – define-se como
aquilo que subsiste por si mesmo ou, dito de outro modo, aquilo que sustenta os
acidentes sem alterar a sua própria essência; enfim, aquilo que recebe atributos e não
se atribui a nada assim como pode ser entendido, também e num outro sentido, como
aquilo que não é suscetível nem da geração e nem da corrupção.
Alguns outros conceitos das categorias estabelecidas por Aristóteles
também estão presentes tais como a “quantidade”, a “qualidade” e a “relação”. O
“lugar” é entendido como o limite de um corpo ou, então, o encontro de dois
horizontes sendo um, o que envolve e, o outro, o que é envolvido. Outros termos
pertencem ao estudo da Física são o “calor”, o “frio”, o “seco” e o “úmido”, definidos
de modo bastante sucinto. Com mais extensão encontramos a teoria das quatro causas
indicada no verbete “as causas naturais”. Al-Kind÷ segue as quatro causas conhecidas
no sistema aristotélico: a “causa material” que é aquilo do que algo é; a “causa formal”
que é aquilo pelo que uma coisa é o que é; a “causa eficiente” como sendo o princípio
do movimento de algo e, por fim, a “causa final” como sendo a razão pela qual o
agente faz o que faz. Uma tríade importante de termos –“necessário”, “possível” e
“impossível” –, que será bem desenvolvida por Al-Fārāb÷ e por Ibn S÷nā em suas
respectivas metafísicas encontram-se definidas de modo suscinto na Epístola:
“necessário” é o que está sempre em ato; “possível” é aquilo que uma vez está em
potência e outra vez está em ato; e o “impossível” é aquilo que nunca está nem em ato
e nem em potência.
Encontram-se, também, outros termos referentes ao estudo da alma. O
próprio termo “alma” apresenta-se segundo três explicações: a perfeição de um corpo
103
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
natural, dotado de órgãos que é suscetível à vida; a perfeição primeira de um corpo
natural que tem a vida em potência; ou uma substância intelectual que se move por si
mesma sendo um número harmônico. Como se pode verificar, as duas primeiras
definições praticamente reproduzem a idéia de alma segundo a doutrina aristotélica
enquanto a terceira definição se aproxima da inspiração pitagórica. Outros termos
referentes à alma humana também são apresentados: o “intelecto”, entendido como
uma substância simples capaz de apreender as coisas em sua realidade e a “sensação”,
definida como uma faculdade da alma que apreende as coisas sensíveis, ou melhor, a
forma das coisas dotadas de matéria em sua própria materialidade. Nesse caso a
faculdade da sensibilidade só pode operar em contato direto com um determinado
objeto: o olho só é capaz de ver se estiver diante de algo, assim como o ouvido só é
capaz de ouvir mediante um ruído de algo. Num grau mais abstrato, Al-Kind÷ seguindo
Aristóteles, define a “imaginação” como sendo a “fantasia”, faculdade própria da alma
que apreende e mantém presente as formas sensíveis na ausência da matéria, ou seja,
depois que as coisas sensíveis já não estiverem mais presentes aos sentidos externos.
Ainda no âmbito da alma humana encontramos a definição da “vontade”
como sendo uma faculdade pela qual tendemos a uma coisa e não a outra. A “ira” é
definida como a efervescência do sangue do coração e o “ressentimento” é entendido
como a permanência da ira por um tempo indeterminado. O “riso”, por outro lado, é
visto como um ato natural da alma, sendo entendido como o equilíbrio do sangue do
coração pela felicidade e expansão da alma até o surgimento do gozo. Um outro item
que se refere à alma é a exposição sobre as “virtudes humanas’ cuja elaboração
contem elementos platônicos, aristotélicos e estóicos. Essas virtudes são descritas
como disposições humanas naturais dignas de elogio. Al-Kind÷ as divide em três:
sabedoria, fortaleza e temperança. A sabedoria é uma virtude própria da faculdade
racional sendo o conhecimento das coisas universais em sua realidade mas não apenas
isso: é, também, saber usar essas realidades. A fortaleza é descrita como a virtude da
faculdade de vencer desprezando mesmo a morte quando é preciso fazer o que deve ser
feito ou afastar o que deve ser afastado. A temperança consiste no cuidado com o
corpo e sua conservação com constante observância. Cada uma das três virtudes possui
dois extremos sendo que a perda do equilíbrio é um vício, um por excesso e outro por
falta. Por exemplo, no caso da fortaleza, o seu excesso seria a violência e sua falta,
seria a covardia. O conjunto equilibrado das virtudes resulta na equidade da alma. O
104
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
equilíbrio natural das virtudes da alma pode ser obtido pela filosofia e pelo hábito, pois
a verdadeira virtude humana está naquilo em que acostumamos a nossa alma.
O verbete “amor” é definido como a causa da reunião das coisas. Essa
“reunião” é definida como aquilo que é causado de modo natural pelo amor. O
“amado”, por sua vez, é aquilo que é buscado pela alma. No que diz respeito a
“paixão”, Al-Kind÷ define o termo como sendo “excesso de amor”. Tais definições
lembram conceitos desenvolvidos por Empédocles – filósofo pré-socrático – que ao
explicar o movimento do cosmos entendeu haver duas forças responsáveis por isso:
uma força de reunião e uma força de separação. As duas, atuando sobre os quatro
elemento do cosmos – ar, terra, fogo e água – ora compondo-os e ora descompondo-os,
criaria o movimento do cosmos.
Outro conjunto de termos que se encontra na Epístola referem-se aos
elementos da linguagem e do discurso filosófico tais como “verdade”, “mentira” e
“incerteza” . A “verdade” é entendida como o discurso que afirma o que é e nega o
que não é; a “mentira”, contrariamente, é definida como um discurso que afirma o que
não é e nega o que é; e a “incerteza” seria o estado em que algo se mantém na alma
entre sua afirmação e sua negação, sem que haja uma inclinação conclusiva a nenhum
dos dois lados. Já a “certeza” é a permanência da compreensão com a estabilidade do
juízo pela demonstração. Acresce-se, ainda, o termo “absurdo”, entendido como sendo
a reunião de duas coisas contraditórias em uma certa coisa ao mesmo tempo e o termo
“dúvida”, que é definido pela ação de deter-se no limite dos dois extremos da opinião,
em atitude de suspeição diante dela. Com relação ao “parecer”, este é colocado por AlKind÷ como sendo um tipo de juízo que se emite a partir da aparência e de explicações
sem provas nem demonstração de uma coisa e não propriamente de sua realidade. Por
fim, há o termo “opinião”, – que se manifesta ao se escrever ou ao se falar – e é
entendido como uma certa estabilidade do parecer na alma mas que pode desaparecer.
Contrariamente, o “conhecimento” é uma opinião que não desaparece. Todos esses
exemplos podem até mesmo parecer pueris diante do desenvolvimento dado por alguns
filósofos gregos – notadamente por Platão e Aristóteles. Entretanto, esse início tateante
num labirinto de novos termos, novas propostas e de suas intrínsecas relações foi se
complexificando na medida que a falsafa foi se desenvolvendo e introjetando os
conceitos da filosofia grega, incorporando-os à realidade do mundo islâmico.
105
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Encontra-se nos falāsifa posteriores –notadamente Al-Fārāb÷, Ibn S÷nā e Ibn Ru¹d –
maior completude e profundidade. Mas, voltemos a mais algumas definições.
“Filosofia”é um dos termos mais explicados na Epístola. Al-Kind÷
enumera cinco proposições distintas a esse respeito. Primeiramente, o termo
“filosofia”é explicado segundo a etimologia original da palavra grega, entendida, pois,
como o “amor à sabedoria”. No entanto, Al-Kind÷, também, evoca aqueles que a
chamaram de a “arte das artes” ou “a sabedoria das sabedorias”. Segundo ele, em sua
essência, a filosofia também pode ser entendida como uma ação que se assemelha à
ação do Deus Altíssimo visto que isso é possível ao homem que busca se aperfeiçoar
em suas virtudes. Ora, mas como deve o homem aperfeiçoar as virtudes de sua alma ?
A terceira explicação indica que isso pode ser conseguido se a filosofia for entendida
como uma preocupação pela morte, segundo o que dizem alguns. Nesse caso, não
refere-se à morte natural –na qual a alma deixa o corpo –, mas a morte das paixões.
Essa mortificação é um dos caminhos para se chegar à virtude, na medida em que se
busca alcançar o prazer que se encontra no mundo das essências intelectuais em
oposição ao mundo dos prazeres sensíveis. Essa direção da alma pode ser conseguida
pelo hábito que o homem desenvolve em sua conduta, visto que a alma tem a
predisposição para atuar em dois níveis distintos: um nível sensível e um nível
intelectual. Quando a alma está ocupada com os prazeres sensíveis, ela abandona, por
conseqüência, o uso do intelecto e não alcança sua verdadeira perfeição.
Uma outra definição do termo “filosofia” tendendo a uma inspiração
socrática entende-a como o conhecimento que o homem tem de si mesmo. Al-Kind÷
sublinha que essa expressão é de grande profundidade e possui uma nobre finalidade,
exemplificando esse caso do seguinte modo: “visto que as coisas são corpos e nãocorpos; que os corpos são substâncias ou acidentes; que o homem é corpo, alma e
acidentes; e que a alma é substância e não corpo, então, se o homem conhece a si
mesmo, conhece o corpo com seus acidentes, o acidente primeiro e a substância que
não é corpo. Ora, se ele conhece tudo isso, então conhece tudo. Por essa razão os
filósofos chamaram o homem de microcosmos.”107 Al-Kind÷ parece preferir entender a
filosofia como o conhecimento das coisas eternas e universais, de seu ser, de sua
essência e de suas causas na medida do possível ao homem. Quanto à posição que o
homem ocupa em sua condição de possibilidade, os últimos três itens da Epístola
107
–
GUERRERO, op.cit., p.21.
106
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
definidos de modo sintético – fornecem uma boa imagem da posição intermediária do
homem no cosmos. Vejamos as definições:
-“a humanidade: a vida, a razão e a morte;
- o angélico: a vida e a razão;
- a animalidade: a vida e a morte.”108
E, para encerrar essa seleção de termos da Epístola das Definições, fiquemos com esta
interessante definição da palavra “amigo”: “um homem que é tu mesmo e, no entanto,
é distinto de ti.” 109
Em inúmeras passagens de sua obra, Al-Kind÷ mostrou-se um entusiasta
da busca pelo saber através de palavras que soam como um constante convite a nos
colocar em contato com a filosofia como uma das vias pelas quais o nosso espírito
pode atingir a perfeição. Num tom otimista em relação ao verdadeiro conhecimento,
Al-Kind÷ deixa transparecer certo desdém em relação às vicissitudes da vida ao mesmo
tempo em que evoca o saber que vem do alto como um consolo em vista da nossa
miséria existencial finita. Poderíamos nos perguntar como seria possível nos
entusiasmarmos com uma vida que nos mostra a morte como fim? Como poderia haver
alegria, se tudo perdemos ? Como seria possível nos conduzirmos pelo caminho reto se
nossa conduta aparentemente não altera em nada o nosso destino? Algumas dessas
reflexões são feitas por Al-Kind÷ em sua Epístola sobre a Ética ou A Arte da
Consolação.
Entremeada de temas estóicos e neoplatônicos, A Arte da Consolação
foi escrita num estilo garboso. É digno de nota o fato de Al-Kind÷ ter escrito uma
epístola a respeito da questão ética, visto que dificilmente esse tema é assim
encontrado em autores islâmicos. A razão se deve, em parte, ao fato de que o Alcorão é
ao mesmo tempo um livro religioso e ético, pois designa o modo de conduta do crente
sendo reforçado pelas narrativas da tradição atribuídas a Mu¬ammad. Frise-se que esse
conjunto formou o paradigma ético acabado desde o início do Islām. Nessa epístola,
Al-Kind÷ recolhe uma série de idéias provenientes dos gregos e as mescla com temas
religiosos. No entanto, não procura, como lhe é costumeiro, harmonizar essas idéias.
Os assuntos tratados são sobrepostos de tal modo que podem indicar que essa epístola
talvez tenha sido uma coletânea de fontes gregas que Al-Kind÷ elaborou à sua maneira.
108
109
Ibid, p.24.
Ibid, p.19, v.56.
107
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
“Que Deus te proteja, caro irmão, de todo tropeço, te guarde de todo
o mal e te dê exito através dos caminhos que levam à sua satisfação e
à sua abundante recompensa!”110
Assim é iniciada a Arte da Consolação, cujo objetivo é fornecer algumas indicações
para combater a tristeza e manter a altivez da alma em toda a sua virtude. Segundo AlKind÷, devemos entender que a tristeza é uma dor da alma que tem causas que podem
ser conhecidas e entendidas. Tanto o seu conhecimento como o seu entendimento
podem ser reduzidos às causas provenientes ou pela perda de coisas que se ama ou pela
impossibilidade de se conseguir as coisas que se anseia. Ora, desde que estamos à
mercê de um mundo onde reina a geração e a corrupção das coisas, não é possível que
alguem obtenha tudo o que deseja e muito menos que esteja a salvo de perder as coisas
que ama. Por essa razão, admitamos, pois, que a estabilidade e a permanência faltam
neste mundo e só são encontradas no mundo do intelecto que, inclusive, podemos
contemplar.
Desse modo, se não queremos perder nada do que amamos e nem deixar
de obter o que desejamos, devemos nos voltar ao mundo do intelecto e fazer com que
as coisas que amamos ou desejamos sejam dele provenientes. Se isso fizermos,
estaremos certos de que nada nos escapará de conseguir e nada do que consigamos nos
será levado visto que as coisas que alcançamos no intelecto permanecem firmes e sem
alterações, ao passo de que aquilo que nos toca no mundo sensível é passageiro para
todos os homens e ninguém pode deter sua corrupção e nem preservar tais coisas para
sempre. No mundo, coisas que foram suaves transformam-se em coisas ásperas,
perturbadoras depois de terem sido tranqüilas, e se mostram em retrocesso depois de
terem parecido um avanço. Mas isso tudo nada mais é do que a Natureza em sua
própria natureza.
Ora, se quisermos, então, que coisas que se corrompem não se
corrompam, que coisas que avançam e retrocedem apenas avancem e que aquilo que
não cessa de se transformar torne-se estável, então estaríamos querendo da natureza o
que não é próprio da natureza e “quem quer o que não está na natureza quer o que não
existe. Quem quer o que não existe, está necessitado das coisas que anseia e aquele que
necessita das coisas pelas quais anseia é um indigente.”111 Aquele que deseja as coisas
que são passageiras pode ser considerado um homem infeliz, ao passo que aquele cuja
110
111
Ibid, p.156.
Ibid,p.157.
108
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
vontade se cumpre é um homem feliz. Aspirar a felicidade e nos guardarmos de
sermos desgraçados é possível na medida em que fazemos com que nossa vontade e
aquilo que desejamos estejam além daquilo que nos chega pelo mundo sensível,
mutante e instável e, também, que não nos entristeçamos com aquilo que nos escapa do
mundo sensível. Conduzir-se assim é ter as qualidades dos reis excelsos e não da gente
baixa e ávida pelo que não permanece. Os reis não vão com avidez ao encontro daquilo
que lhes chega e tampouco saem para acompanhar aquilo que se vai mas, ao contrário,
gozam daquilo que lhes chega de maneira desapegada assim como se desapegam
daquilo que se vai.
Em todas as circunstâncias é mais sensato pensarmos que “se não existe
o que queremos, devemos querer o que existe e não preferir a persistência da tristeza
no lugar da persistência da alegria. A quem se entristece com a perda das coisas que se
perdem assim como com a necessidade das coisas que se necessita, a este jamais
desaparecerá a tristeza, porque, em todas as situações da vida, perderá objetos amados
e se lhe escapará aquilo que busca.”
112
Visto que a alegria e a tristeza não podem
coexistir no mesmo instante na alma, devemos fazer com que nossas alma estejam
satisfeitas em todas as circunstâncias, mediante uma condução correta que
proporcionamos a ela. O que é detestável e o que é amável sensivelmente não o é por
natureza mas é algo que provem do costume e do uso. Al-Kind÷ exemplifica isso
lembrando que vemos homens viciados em jogos de azar, beberrões e ladrões que, pelo
hábito, se alegram com suas atitudes reprováveis. Em nossa senda devemos conduzir
nossa alma aos costumes excelentes e acostumá-la a isso até que forjemos um caráter
que torne a vida agradável durante o tempo de nossa existência.
Além disso, devemos levar em consideração que aquilo que nos origina
a tristeza ou é uma ação nossa ou é uma ação de outro. Ora, no caso de sermos nós
próprios o agente daquela ação que nos entristece, então desde que paremos de fazer tal
ação, não mais nos entristeceremos. Se, por outro lado, a ação provem de um outro,
pode estar em nossas mãos afastá-la, e é o que devemos fazer quando é esse o caso.
Mas se, de outro modo, não depende de nós afastar tal ação, não devemos nos
entristecer antecipadamente pois talvez antes que aconteça aquilo que nos entristeça,
tal ação seja afastada por um motivo que não depende de nós e essa hipotética tristeza
jamais nos atingirá. De todo modo, não devemos nos entristecer pois “quem entristece
112
Ibid, p.157.
109
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
sua alma, a maltrata e quem a maltrata é um ignorante, injusto até não mais poder,
porque causou um dano à sua alma. Se houvesse feito isso com outro, seria ignorante e
injusto, mas ao fazê-lo consigo mesmo o é ainda mais, e não deveríamos estar
contentes em sermos os mais ignorantes, os mais grosseiros e os mais injustos.”113
Porém, como não podemos nos manter totalmente isentos de estarmos
tristes e como está na natureza tropeçarmos na tristeza, devemos ao menos ter cuidado
em reduzir o tempo em que ela dura em nós. Um dos meios para isso é lembrarmos de
nossas tristezas passadas e como elas se foram, ou então lembrarmos das tristezas e
consolações que vimos nos outros e isso, para nós, será um consolo. Lembremo-nos
que muito daquilo que desejamos também outros o desejaram sem conseguir obter,
assim como muito do que perdemos outros, também, perderam e quantos deles
podemos ver hoje que não se entristecem mais com seus infortúnios mas, ao contrário,
podem viver com alegria. Não nos entristeçamos, pois. Aqueles que perderam um filho
ou que não o tem, encontram muitas outras pessoas em situação semelhante. Em todos
os casos há os que estão tristes ou que não estão mais tristes. O mesmo se dá com a
riqueza e tudo o mais que toca o mundo sensível. “Conseqüentemente, a tristeza é algo
que depende apenas da vontade humana, não é necessária por natureza, já que
encontramos, por exemplo, um homem de quem foi-lhe tirada uma posse e está triste,
enquanto muitos que não tem essa posse não estão tristes. Portanto, essa tristeza sobre
si mesmo só se deve a um ato voluntário com relação àquilo que foi tirado ou que não
se pôde conseguir.”114
Al-Kind÷ alerta para o fato de que se não queremos que nos aflijam as
desgraças, o que queremos é, em última análise, não existir pois essa é a condição dos
seres gerados e corruptíveis. Se queremos algo distinto do que é a natureza, estamos
querendo o impossível. Ao Criador pertence o que possuímos e, por isso, Ele pode
retirar o que nos dera a qualquer momento, às vezes, até mesmo, pelas mãos de nossos
inimigos. Quando alguem recebe um empréstimo e pensa que aquilo é seu, não está
sendo agradecido, pois o mínimo que deve fazer é devolver o que foi emprestado
quando isso for pedido de volta. Por isso, aquele que está triste por ter de devolver o
que lhe foi emprestado está sendo pouco agradecido. Se formos sabedores disso, então,
deveríamos considerar motivo de vergonha quando nos apoiamos em desculpas
113
114
Ibid,p.160
Ibid, p.162.
110
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
infantis dizendo: “estamos tristes porque aquele que nos emprestou algo recuperou seu
empréstimo pelas mãos de nossos inimigos.”115 Voltando-nos a nós mesmos, ainda que
desejemos que nada nos seja retirado ou que não alcancemos o que queremos,
podemos dizer: “ainda que nos arrebate o menor e o menos valioso, nos fica o mais
excelente e abundante enquanto permaneçam nossas almas.”116
Para reforçar a idéia do desapego em relação às coisas que não
permanecem, Al-Kind÷ refere-se a uma passagem – atribuída a Sócrates, o “cínico” –
117
em que alguém teria perguntado a ele: “Por que não estás triste?” ao que teria
respondido o filósofo: “Porque não possuo nada cuja perda possa me entristecer.”118
Al-Kind÷, também, observa que o homem, à exceção das outras criaturas, apesar de
possuir discernimento, quer possuir muitas coisas das quais não tem necessidade nem
para a sua subsistência e nem para o bem estar de sua vida. Por essa razão, diz-se que
aquele que se ocupa em aumentar as coisas que lhe são externas mancha seu viver com
a vida passageira, são muitas suas enfermidades e não desaparecem suas dores.
Em seguida, Al-Kind÷ expõe uma metáfora da vida como sendo uma
travessia de barco que todos fazemos. Essa metáfora, de inspiração estóica119, aparece
nas palavras de Al-Kind÷ a partir da afirmação de que a vida se assemelha àquele
barco que reuniu muitas pessoas para atravessarem o mar, a fim de se instalarem numa
terra distante. Durante a viagem, o capitão do barco levou todos a um porto seguro para
solucionarem alguns problemas para, em seguida, continuarem a viagem. Nessa parada
ocorreu que alguns passageiros desceram do barco, resolveram aqueles assuntos
necessários e voltaram ao barco sem que tivessem desviado sua atenção com nada além
da resolução daqueles assuntos. Esses passageiros ao voltarem ao barco que estava
vazio, escolheram os melhores lugares para seguir viagem. Entretanto, ocorreu que
outros passageiros, ao descerem à terra, detiveram-se a contemplar os prados, as flores,
as árvores, os pássaros e as pedras. Ao voltarem estavam um pouco atrasados e
ocuparam lugares mais apertados no barco, visto que os outros haviam se lhes
antecipado. Houve, ainda, o caso de outros passageiros que foram além da
contemplação das coisas que havia naquele lugar e passaram a recolher pedras,
115
Ibid, p.163.
Ibid,p.164.
117
Muitos doxógrafos árabes atribuiram muitas passagens de Diógenes, o “cinico” erroneamente a
Sócrates.
118
GUERRERO, op.cit, p.164.
119
Ibid, p.154, explicando que esse tema aparece em autores da antiguidade mas que Al-Kindi deve ter
se inspirado em Epiteto.
116
111
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
conchas, flores e outras coisas que julgaram dever levar consigo na viagem de volta a
sua pátria. Estes, além de ocupar lugares mais apertados e desconfortáveis, tiveram de
se apinhar com as coisas desnecessárias que traziam consigo. Pior do que isso, tinham,
ainda, que cuidar dessas coisas a maior parte do tempo, ficando tristes quando algumas
delas se perdiam.
O caso mais extremo foi, porém, o dos passageiros que se embrenharam
nas matas que havia naquele lugar esquecendo-se completamente do barco e da pátria a
que se dirigiam. Na mata cerrada, correram grandes perigos, fosse pelos ataques de
animais, de armadilhas da floresta ou das doenças que podiam contrair. Quando
chegou a hora de continuarem a viagem, o capitão chamou a todos para a partida do
barco: alguns ainda foram capazes de escutá-lo e entraram no barco, mas traziam
muitas moléstias e ferimentos, terminando por ficarem nos lugares mais incômodos do
barco amontoados uns sobre os outros em péssimas condições; para aqueles outros, que
se embrenharam profundamente nos bosques, a voz do capitão sequer foi ouvida e o
barco partiu sem eles. Alguns foram mortos pelas feras, outros pelas doenças tendo
permanecido separados de sua pátria e, por isso, causaram muita tristeza para aqueles
que seguiram viagem. Aos que estavam no barco carregados com o peso das coisas que
recolheram ocorreu que não tardou para as conchas começassem a exalar um odor
fétido, as flores murchassem e as pedras perdessem seu colorido, e eles foram
obrigados a jogar tudo ao mar para livrarem-se do estorvo daquilo que lhes tirava a
liberdade. No fim, ficaram de mãos vazias. Muitos desses adquiriram doenças devido
aos odores daquelas coisas, mas, mesmo assim, debilitados, seguiram viagem. Outros
acabaram morrendo assim como muitos daqueles que haviam se embrenhado nos
bosques. Dentre aqueles os que somente se demoraram a contemplar as coisas daquela
terra ocorreu somente que não conseguiram os lugares mais amplos e cômodos do
barco mas seguiram sua viagem com tranqüilidade. Quanto aos que voltaram ao barco
sem entreterem-se com nada das coisas que chegavam aos seus sentidos, exceto a visão
que contemplaram seus olhos, ao sair do barco, ocuparam os lugares mais amplos e
mais confortáveis e chegaram comodamente à sua pátria.
Essa narrativa, mostrando várias maneiras pelas quais o homem poderia
transpor sua viagem, constituiu-se num “exemplo de nossa passagem por este mundo
em direção ao mundo verdadeiro.”120 Se realmente houvesse um motivo para nos
120
Ibid, p.168.
112
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
entristecermos este deveria ser o da separação de nosso verdadeiro lugar, e de nossa
verdadeira pátria onde não há carências e nem desgraças, nem perdas e nem coisas
inalcançáveis. Por isso só devemos nos entristecer por estarmos privados de motivos
que nos entristeçam, pois isto é próprio da razão, enquanto que nos entristecermos por
ter motivos que nos entristeçam, isto é próprio da ignorância.
Na senda da vida, mesmo que pensássemos que a morte seria um mal
tão grande capaz de nos entristecer, ainda assim, Al-Kind÷ procura mostrar que isto não
é uma verdade. A primeira premissa é de que não devemos detestar o que não é um
mal, mas apenas o que é um mal. E enganam-se os que pensam que a morte é, em si,
um mal pois o que é um mal, na morte, é apenas o medo da morte.121 A morte, em si
mesma, nada mais é do que a perfeição e o acabamento da nossa natureza. Na medida
em que a definição de homem é: ser vivo, racional e mortal, logo, se não houvesse a
morte não haveria homem, porque se não é mortal, não é homem. Assim, seria um
absurdo que aquilo que somos fosse um mal mas, ao contrário, o mal é somente
querermos ser o que não somos. Por isso não é um mal, a morte. E se o que muitos
pensam ser o maior dos males não o é , menos ainda será um mal aquilo que está
abaixo da morte. O homem não deve entender a morte como um fim mas como uma
transformação própria da natureza.
Um exemplo usado por Al-Kind÷ consiste no seguinte: imaginemos que
o alimento fosse dotado de razão e, estando no fígado, fosse obrigado a sair dali. Ora,
isso, certamente, lhe custaria muito, mesmo que fosse para o aperfeiçoamento de seu
ser. Suponhamos, então, que esse mesmo alimento fosse transportado para os testículos
e, convertido em sêmen, fosse levado ao útero. Isso talvez o pusesse triste. Muito mais
triste, porém, seria para ele se tivesse que voltar aos lugares anteriores e aos estados
anteriores. O mesmo aconteceria quando esse sêmen, já desenvolvido, chegasse a este
nosso mundo: inicialmente se entristeceria, mas depois não quereria trocar isso que
vive pelo seu retorno ao útero. Do mesmo modo, estando neste mundo, vive a angústia
de ter de abandoná-lo. Se apenas nos voltarmos as coisas deste mundo e nos apegarmos
em demasia às coisas dos sentidos, entenderemos que a morte seria um mal. Participar
das possessões sensíveis deste mundo não é um mal . Um mal é nos enraizarmos nelas
e nos entristecermos, na medida em que elas se tornam aflições que introduzimos em
nossa alma. Devemos ter em conta que, muitas vezes, ao não possuirmos os bens
121
Ibn Sina escreveu uma espístola que trata do tema da cura do medo da morte.
113
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
exteriores que possuem os reis, também não possuímos aquilo que acompanha tais
posses tais como a cólera e a concupiscência que são fontes de males e dores da alma.
Afinal, pior do que a enfermidade do corpo é a enfermidade da alma.
Desse modo, Al-Kind÷ encerra a Arte da Consolação desejando que
esses conselhos sejam um exemplo firme a seguir para que nos salvemos dos males da
tristeza e possamos chegar à pátria mais excelente, à morada da permanência e ao
lugar dos piedosos:
“Que Deus te conceda a felicidade perfeita em tuas duas moradas, te
favoreça sobremaneira em ambas, te coloque entre os bem guiados, os
que gozam dos frutos da razão e te afaste da infâmia e da baixeza da
ignorância! Que Deus te de com suficiência um grande lote deste e do
outro mundo com que possas chegar a um descanso perfeito e a uma
vida excelente.”122
Se nessa exposição, não vemos aparecer com evidência os conceitos religiosos como
substrato da reflexão sobre a ética e o modo de conduta do homem ao longo de sua
vida, já em sua metafísica, os elementos religiosos são contemplados pela
argumentação filosófica. O resultado disso é que Al-Kind÷ procura atingir o seu
objetivo maior de concordar sua crença religiosa com a filosofia. Em sua epístola
Sobre a Filosofia Primeira, inicialmente Al-Kind÷ faz um longo louvor à filosofia de
um modo geral, e à Filosofia Primeira em particular, pois esta se ocupa do estudo da
causa primeira que é Deus. Assim, entende Al-Kind÷ que o filósofo mais nobre e
perfeito deve ser o homem que é versado nesse tema que é, em suma, o mais nobre
conhecimento. Na abertura dessa obra, Al-Kind÷ mostra a gratidão aos que o
precederam em outras línguas colocando-se como um elemento de ininterrupta
continuação da busca pela verdade.
“Grande deve ser, pois, nosso agradecimento àqueles que trouxeram
um pouco da verdade, tanto mais àqueles que nos trouxeram muito da
verdade, visto que nos fizeram participantes dos frutos de seus
pensamentos e nos facilitaram o caminho para as verdadeiras questões
obscuras, ao mesmo tempo em que nos beneficiaram com as
premissas que nivelaram, para nós, o caminho da verdade. Se não
houvessem já existido tais princípios verdadeiros com os quais nos
educamos para as conclusões de nossos problemas desconhecidos,
eles não se reuniriam para nós, nem mesmo com uma intensa
122
GUERRERO, op.cit., p.171.
114
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
investigação durante toda a nossa vida. Isso só foi reunido nas épocas
passadas –era após era- até esta nossa época, com uma investigação
intensa, com assídua e infatigável tenacidade (...) Não devemos nos
avergonhar, pois, de achar bela a verdade e de adquiri-la de onde quer
que venha, ainda que seja de povos e de raças distintas e distantes de
nós pois não existe nada mais caro do que a verdade para quem busca
a verdade. Nao há que se menosprezar a verdade, nem há que se
humilhar aquele que dela fala e nem quem a traz consigo. Nada se
tornou desprezível pela verdade; ao contrário, pela verdade tudo se
enobrece.” 123
Com esse espírito de continuidade da busca pelo saber, aliado à tentativa de
harmonizar dogma e argumentação, o conhecimento metafísico ganha importância nas
teses de Al-Kind÷. Avançando no tema, nosso autor entende que, enquanto a metafísica
é o estudo do conhecimento das causas, deve, portanto estudar as quatro causas
enumeradas por Aristóteles: material, formal, eficiente e final. Mas, ainda que
inspirado na teoria das quatro causas do Estagirita, Al-Kind÷ não as segue à risca,
adaptando-as para atingir seus próprios objetivos. O mundo não é eterno mas criado e a
eternidade é um conceito predicado apenas a Deus, Uno, Verdadeiro, Eterno, Princípio
Primeiro de todas as coisas. Deus é entendido como aquele de quem não se pode
conceber como tendo uma causa de seu ser distinta de si mesmo. O Ser Eterno é
imutável e indestrutível visto que não possui em si mesmo nenhuma contrariedade
própria do mundo da geração e da corrupção. Na medida em que é por si, não cessa
jamais, não se transforma em um ser mais perfeito e nem em um ser menos perfeito;
estabilizado na mais permanente excelência, jamais se altera.
Esse Ser Eterno não é um corpo, pois se o fosse sua pluralidade deveria
se constituir num infinito em ato. Procedendo pela redução ao absurdo, Al-Kind÷
procura demonstrar, que a proposição de que um corpo poderia ser eternamente infinito
é insustentável. Do mesmo modo, procura mostrar que o tempo não pode ser infinito.
Sua insistência quanto a finitude do universo, do tempo e do movimento leva a
considerar que essas realidades foram, portanto, criadas por Deus a partir do nada. Pelo
mesmo motivo admite-se a possibilidade da destruição do mundo pela ordem de Deus.
Por essa razão, Al-Kind÷
entende ser necessário proceder a demonstrações da
impossibilidade de séries infinitas em ato e, a partir da demonstração da
123
Ibid, p.47s.
115
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
impossibilidade, nem o tempo e nem o movimento poderem ser infinitos, Al-Kind÷
entende que isso consiste numa prova efetiva do começo do mundo em algum
determinado instante. Ora, se isso é certo, certo também é que, demonstrada a obra,
forçosamente esteja demonstrada a existência de um autor.
Tendo um começo, entende-se que, necessariamente, o mundo deve ter
sido engendrado e, como o que é engendrado só pode sê-lo por um gerador, logo, este
mundo foi criado, do nada, por Deus. Enquanto autor e criador do mundo, o principal
atributo de Deus é sua unicidade, a qual é referendada insistentemente pelas palavras
do Alcorão em toda sua extensão. Nele não existe a pluralidade da composição: é
simples e não possui nem matéria e nem forma. Ele é o não causado, é causa de si
mesmo e causa de todas as causas. Ora, “enquanto é causa de todas as coisas, o
existente primeiro deve ser superior a todo o resto e não ter analogia com nada do que
é criado”.
124
Assim, a cosmovisão de Al-Kind÷ estabelece, por um lado, o mundo,
com seus atributos: criado, finito, múltiplo e não eterno e, de outro lado, Deus:
Criador, Infinito, Uno e Eterno. Al-Kind÷ reconhece uma gradação de causas que
procede desde Deus em ordem decrescente até chegar ao mundo sublunar, isto é,
abaixo da esfera da Lua.
A esfera das estrelas fixas, assim como o Sol e a Lua são
fatores causais para que haja vida no mundo sublunar pois, apesar de Deus ser a causa
eficiente remota, sem a causalidade eficiente próxima , a potência não passaria ao ato
neste mundo sublunar.
Quanto ao estudo sobre a alma, os escritos de Al-Kind÷ permitem dizer
que sua matriz é um platonismo acrescido de algumas teses aristotélicas. Entendendo
que ambas as teorias devem coincidir, ele procura harmonizá-las. Em sua Epístola
sobre o Sonho e a Visão, Al-Kind÷, apesar de usar algumas categorias aristotélicas,
deixa transparecer sua visão platônica estabelecendo hierarquicamente a apreensão das
formas pelos sentidos e o papel da imaginação e da concentração.
No Discurso sobre a Alma, Al-Kind÷ acolhe uma visão estritamente
platônica, ao afirmar a existência de dois mundos, o inteligível e o sensível. Não
obstante algumas passagens do texto serem enigmáticas, Al-Kind÷ afirma a alma
humana como proveniente do mundo divino superior e incorpóreo. Assemelhando-se a
ele, a alma deve procurar o seu retorno na medida em que se desata dos grilhões do
corpo sensível em direção ao mundo inteligível, sua verdadeira morada. O Discurso
124
FAHKRY, op. cit,p. 101.
116
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
sobre a Alma inicia-se com a afirmação de que a obra é um resumo sobre o tema a
partir “do livro de Aristóteles, de Platão e do restante dos filósofos”125. Porém, pelo
desenvolvimento do texto, é possível verificar que Al-Kind÷ não se baseou no De
Anima de Aristóteles mas talvez nas primeiras obras do Estagirita de traços platônicos
mais marcantes como, por exemplo, o Eudemo, obra mais característica do período
platônico de Aristóteles.
A Abertura do Discurso sobre a Alma se dá com as seguintes palavras:
“Que Deus te guie retamente para alcançar a verdade e te ajude a obter suas coisas
inacessíveis! Que Deus Altíssimo te faça feliz por obedecer-lo.”126 Em seguida, AlKind÷ resume as principais idéias sobre a alma. Para ele, a alma é uma substância
simples detentora de nobreza e perfeição, da mais alta dignidade. “Sua substância
procede do Criador do mesmo modo que a luz do sol procede do sol.”127 Sua
substância, sendo divina e espiritual, indica a sua nobreza em oposição às paixões e à
ira que sobrevém ao corpo segundo os impulsos da faculdade irascível. Quando a alma,
que procede do Criador, se separa do corpo, conhece tudo o que há no universo, nada
se lhe oculta. Isso, segundo ele, teria sido o que Platão quis dizer ao mencionar os
antigos e virtuosos filósofos que, depois de se liberarem no mundo terreno e das coisas
sensíveis, pela especulação e investigação revelou-se o conhecimento do que estava
oculto aos homens, descobrindo, assim, os mistérios da criação.
Seguindo por essa via platônica, Al-Kind÷ entende que a alma atinge seu
objetivo de assemelhar-se ao Criador enquanto não se entrega aos prazeres sensíveis de
modo integral, pois o virtuoso é aquele em quem prevalece a faculdade intelectual da
alma, pois esta se aproxima das qualidades do Criador tais como a sabedoria, o poder,
a justiça, o bem, o belo e a verdade. Ao homem é possível assim conduzir-se, dentro de
sua capacidade pois, ainda que limitado, pode participar dessas virtudes pois a
faculdade intelectual de sua alma possui, “um poder semelhante ao Seu poder.”128
Categoricamente, diz Al-Kind÷: “segundo a opinião de Platão e da maioria dos
filósofos, a alma é eterna depois da morte sendo que sua substância igual a do
Criador.”129 Separada do corpo, pode conhecer as coisas tal qual as conhece o Criador,
mas num grau menor já que recebe a luz Dele. Quando nossas almas estiverem
125
GUERRERO, op.cit., p.134.
Ibid, p.134
127
Ibid, p.134
128
Ibid, p.135
129
Ibid, p.135
126
117
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
separadas e adaptadas ao mundo da eternidade, verão, então, pela luz do Criador tudo
manifesto. Citando Pitágoras130, Al-Kind÷ entende que à medida em que a alma, ainda
que estando unida ao corpo, abandona as paixões e se purifica das impurezas e se volta
ao estudo detido para o conhecimento das coisas, ela realiza um polimento em si
mesma , o que permite que a luz do Criador faça que se manifestem nela as formas de
todas as coisas, assim como um espelho polido manifesta as imagens das coisas
sensíveis. O limite da pureza que uma determinada alma pode atingir fará com que ela
espelhe e reflita de maneira mais perfeita as formas do mundo superior pois, nesse
caso, o Criador derrama sobre ela Sua luz e Sua piedade. Nesse estado, a alma goza de
um prazer eterno, incomparavelmente superior a todos os prazeres sensíveis pois estes
não são tão nobres quanto os prazeres espirituais. “O desgraçado, o cego e o ignorante
são os que se contentam com os prazeres dos sentidos, fazendo deles seu objetivo e seu
fim último.”131
Segundo Al-Kind÷, é preciso saber que estamos nesta vida como se
estivéssemos passando por uma ponte, numa passagem em que a morada estável que
esperamos é o mundo superior e nobre. Nesse lugar nossas almas estariam, depois da
morte, próximas ao Criador, a quem veríamos com uma visão intelectual e não
sensível. Esse lugar, a morada das almas intelectivas, é o mundo da divindade, onde
está a luz do Criador, atrás das esferas por onde se movem os astros. As almas
separadas não possuem todas o mesmo destino pois a ascensão das almas a esse lugar
depende de sua pureza. Em etapas sucessivas de ascensão purificadora, algumas almas
chegam até a esfera da Lua, depois se elevam até a esfera de Mercúrio e assim seguem
sucessivamente elevando-se às esferas dos astros superiores, permanecendo em cada
uma dessas esferas por algum tempo. Quando as almas estão totalmente desprendidas
de suas ligações com o mundo da matéria e do sensível, quando não possuem mais as
imagens e a as coisas próprias aos sentidos, então essas almas se elevam finalmente ao
mundo do intelecto, atravessam todas as esferas e permanecem no lugar mais nobre
onde nada se oculta e onde a luz do Criador manifesta as coisas que são verdadeiras.
“Todas as coisas lhes são claras e evidentes, e o Criador lhes confia assuntos do
governo do mundo, cuja ação e tarefa lhes proporcionará prazer. Pela minha vida!
Platão descreveu, resumiu e reuniu nessas poucas palavras, muitas idéias.!” 132
130
O nome “Pitágoras” aparece de modo confuso no manuscrito Cf. GUERRERO, op.cit., p. 136,n. 6.
GUERRERO, op.cit., p.137
132
Ibid, p.137
131
118
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
A ascensão da alma só é conseguida pelo seu aperfeiçoamento a partir
do isolamento de suas impurezas. Al-Kind÷ nota ser estranho que o homem descuide de
sua alma e a afaste de seu Criador pois a nobreza é o estado que lhe pertence e o que a
faz assemelhar-se ao poder de Deus Altíssimo e a Seu estado, quando separado do
corpo. Diga aos que choram –diz ele- que devem chorar e aumentar seu pranto por
quem descuida de sua alma e se excede em entregar-se aos prazeres vis, baixos,
depreciáveis e falsos, que os fazem adquirir o mal e os inclinam a assemelharem-se às
bestas; por quem deixa de meditar sobre a nobreza da alma e a quem deixa de dedicarse a “purificar sua alma na medida do possível. A purificação verdadeira é a da alma e
não a do corpo. (ý) Oh! homem ignorante! Não sabes que tua permanência neste
mundo é como um relâmpago e que logo chegarás ao mundo verdadeiro e
permanecerás nele eternamente?”133 Após essa exortação, Al-Kind÷
finaliza o
Discurso sobre a Alma sinalizando de modo abrupto que resumira o que os filósofos
haviam dito: “a alma é uma substância simples. Compreenda o que te escrevi sobre
isso. Sê feliz por isso. Que Deus Altíssimo te faça feliz no teu mundo terreno e em tua
vida futura.!”134
No conjunto de escritos sobre temas referentes à alma humana, destacase, também, o estudo Sobre o Intelecto que inaugurou uma série de outros tratados e
estudos a esse respeito pelos sucessores de Al-Kind÷. A base dessa obra é a tradição
iniciada por Aristóteles em seu De Anima. Não é demais adiantar que a questão do
intelecto, na falsafa, foi uma das vigas mais importantes na construção da cosmologia e
da epistemologia. Em linhas modestas, esse pequeno tratado de Al-Kind÷ foi traduzido
no Ocidente medieval no séc. XII d.C. e esteve presente na recepção de Aristóteles
pelo Ocidente. O estudo Sobre o Intelecto propõe uma divisão do intelecto que,
embora, não se apresente de maneira muito detalhada, já indica o modo pelo qual esse
tema foi compreendido pelos falāsifa.
Deve-se ter em conta que em todo o
desenvolvimento das teses de Al-Kind÷, que a concordância que ele pretendeu entre as
teses platônicas e as aristotélicas são orquestradas pela presença do neoplatonismo que
operou uma aproximação entre ambas.
Do mesmo modo como a Epístola sobre a Alma, o estudo Sobre o
Intelecto foi escrito com o objetivo de informar, resumidamente, o que disseram os
antigos gregos a respeito do intelecto. Al-Kind÷ considera que “os mais dignos de
133
134
Ibid, p.138
Ibid, p.139
119
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
elogios dentre eles são Aristóteles e seu mestre, o sábio Platão.” 135O início do tratado
já mostra que o resumo proposto por Al-Kind÷ não é fiel a nenhuma das teses
propriamente dos filósofos gregos em sua totalidade. Trata-se de uma sobreposição de
alguns elementos aristotélicos. Assim o lemos : “E posto que o essencial do que disse
Platão a esse respeito é o mesmo que manifestou seu discípulo Aristóteles, então, a
modo de informação, diremos sobre isso o que se segue.”
Seguindo, pois, o que ele acredita ser a tese de Aristóteles em
concordância com Platão, Al-Kind÷ classifica o intelecto segundo quatro classes: o
intelecto sempre em ato, o intelecto em potência, o intelecto que passa da potência ao
ato e o intelecto que se chama demonstrativo136. Em outras palavras, trata-se de: o
intelecto agente, o intelecto passivo, o intelecto em hábito e o intelecto manifesto. A
apreensão das formas pode se dar segundo os sentidos ou segundo o intelecto. Quando
a alma apreende as formas inteligíveis, ela se se identifica com essas formas
inteligíveis que estavam potencialmente nela e o intelecto passa da potência ao ato.
“Quando está na alma, ela e a alma são uma só coisa (ý) da mesma maneira que a
faculdade que sente tampouco é algo distinto da alma como os membros no corpo, mas
que ela é a alma e a alma é a que sente.”137As formas inteligíveis cumprem o papel de
causa eficiente nesse processo mas, tais inteligíveis, em si mesmos são idênticos ao
intelecto ativo. “Assim, tudo o que está em potência só passa ao ato por outro, que é
algo em ato. Assim, pois, a alma é inteligente em potência e é a que se converte em
inteligente em ato pelo intelecto primeiro , ao entrar em contato com ele.”138
As formas em ato no intelecto agente não são uma mesma coisa com a
alma mas a forma inteligível quando apreendida pela alma faz com que esta forma
inteligível e a alma se tornem uma só coisa. Al-Kind÷ parece, pois, entender desde o
início que o intelecto agente está separado do homem e assim, separado, será um dos
pilares que inspirou os sistemas posteriores na questão da transcendência do intelecto
agente. Na medida em que a alma é atualizada por essas formas que lhe chegam do
intelecto agente, a aquisição é nomeada intelecto adquirido. Adquiridas, as formas
podem ser evocadas quando a alma quiser delas dispor e esse é o intelecto em hábito.
135
Ibid, p.150
A tradução deste último termo é discutível e pode ser encontrada também como “manifesto”,
“emergente”, ou “segundo”. Cf. FAHKRY,op. cit. p. 110 e GUERRERO, op.cit. p. 150.
137
Ibid, p.150
138
Ibid, p.151
136
120
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Pode se entender que o intelecto demonstrativo pudesse ser propriamente o exercício
do intelecto em hábito.
Muitas outras contribuições trouxe Al-Kind÷ ao universo filosófico dos
árabes. Mesmo que, em muitos casos, tenha realizado um trabalho mais de compilação
de reunião de idéias consagradas, deve-se lembrar que esse papel foi o que o momento
histórico do Islām permitia que fosse realizado por não terem tido, os árabes, uma
tradição filosófica, até então. Se, recepcionar foi a missão de Al-Kind÷ ele a realizou
em toda sua plenitude, incitando os homens de seu tempo a buscar a sabedoria, ou
seja, a filosofar.
5.2
Al-Fārāb÷ , o inventor.
Por volta de um ano antes da morte de Al-Kind÷, nasceu Abý Na½r
Mu¬ammad Ibn Mu¬ammad Ibn Tarjān Ibn Ūzalag Al-Fārāb÷ (872/950d.C.259/339H) próximo à cidade de Fārāb na Transoxiana, região da Ásia Central, atual
Uzbequistão. Os detalhes de sua vida são poucos conhecidos. Parece que seu pai era
um oficial do exército de origem turca ou, talvez, persa. Tudo indica que sua língua
materna tenha sido o turco e não o persa, o que leva a crer que ele, provavelmente,
descendia dos primeiros. Sabe-se, também, que, ainda jovem, transferiu-se para Bagdá
onde passou a maior parte de sua vida. Nessa cidade Al-Fārāb÷ teria aprendido a língua
árabe tendo como primeiro preceptor o cristão nestoriano Ibn Haylān. Depois, AlFārāb÷ estudou lógica, gramática, filosofia, música, matemática e todas as ciências da
época. Quanto às línguas, além do árabe, do persa e do turco parece que conhecia
outras [talvez não as 70 (!) que a lenda lhe atribuiu]. De todo modo, Al-Fārāb÷
encarnou a figura do grande sábio. “Esse grande filósofo era um espírito
profundamente religioso e místico. Vivia na maior simplicidade e portava a vestimenta
dos sufis.”139 Apesar de ter escrito sobre temas políticos, tudo indica que não ocupou
cargos administrativos. Músico admirável, esteve no Cairo e, também, em Alepo sob a
proteção do príncipe Saif al-Dawlah um incentivador das artes e das letras daquele
tempo. Nos últimos anos de sua vida, encontramos Al-Fārāb÷ em Damasco, na Síria,
tendo por ofício ser guardião de um jardim. “Ao mesmo tempo ele prosseguia os seus
estudos de filosofia. Ele foi bastante pobre, lendo à noite sob a luz de sua lamparina de
139
CORBIN, Histoire de la Philosophie islamique, op. cit., p. 226.
121
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
guardião.”140 Em Damasco esteve em convívio com outros homens de letras e lá
permaneceu até sua morte quando tinha por volta de 80 anos.
Uma anedota muito conhecida, assim contou a fama de Al-Fārāb÷ como
poliglota e como excelente músico: quando nosso filósofo foi apresentado ao príncipe
Saif al-Dawlah, este se admirou pelo fato de um homem vestido com roupas tão pobres
e com modos tão curiosos ser capaz de compreender as ordens que ele –o príncipedava aos seus escravos numa língua que ninguém era capaz de compreender.
- Conheces bem essa língua ? perguntou-lhe o príncipe.
- Sim, conheço bem não só esta mas outras setenta línguas!
Admirado, o príncipe permitiu que Al-Fārāb÷ se sentasse entre os sábios que lá estavam
presentes e, então, o nosso filósofo passou a conversar com eles sobre todas as
ciências.
- Quer beber algo ? perguntou o príncipe.
-
Não. Respondeu Al-Fārāb÷
- Quer, então, comer algo ? novamente perguntou o príncipe.
- Não. Respondeu Al-Fārāb÷
- Quer ouvir uma boa música ?
- Sim. Concordou o filósofo.
O príncipe mandou, então, chamar os músicos da corte, todos muito hábeis na
execução de seus instrumentos. A cada apresentação, como era esperado, todos se
admiravam de suas habilidades mas ao final de cada uma delas, Al-Fārāb÷ constrangia
todos ao fazer um sinal de reprovação com a cabeça e dizendo:
- Você tocou muito mal!
Curioso e indignado, Saif al-Dawlah perguntou a Al-Fārāb÷ se ele, por
acaso, conhecia alguma coisa da arte da música. O nosso filósofo, então, tirou de um
saco que trazia consigo um instrumento de cordas e começou a tocar. Todos se
admiraram e se alegraram muito com a música que ele tocava. Mas Al-Fārāb÷
subitamente parou de tocar, esperou que todos se recompusessem e começou uma nova
música: todos se puseram a chorar compulsivamente. Novamente, Al-Fārāb÷
interrompeu a música e, assim que os ouvintes se recompuseram, ele iniciou outra:
dessa vez, todos caíram num sono profundo, até mesmo os guardas e o porteiro do
140
BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, op. cit.,p. 480.
122
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
palácio. Al-Fārāb÷, então, nos seus trajes humildes, silenciosamente levantou-se e foi
embora ...
Al-Fārāb÷ promoveu um salto na falsafa. Foi o principal responsável
pelas teorias mais originais e criativas entre os árabes. Além disso foi um lógico
eminente conhecido por uma série de comentários à obra de Aristóteles. Em seu
Tratado sobre o Intelecto propôs uma epistemologia segundo uma divisão do intelecto
que influenciou não só a falsafa mas também foi uma das obras mais conhecidas no
Ocidente medieval latino. Ao lado de seu perfil lógico, não deixou de permear uma
grande espiritualidade em suas teses. Com Al-Fārāb÷, a falsafa amadureceu numa
“visão de mundo em que o real e o divino se conjugam, na qual o peripatetismo e o
neoplatonismo se encontram e na qual o sistema edificado pela razão encontra seu
coroamento numa visão mística.” 141
Além da profundidade em suas teses, vale observar que ele conheceu em
detalhes o nascimento da filosofia na Grécia, sua evolução e a transmissão desses
conhecimentos através de outros centros de estudos. Al-Fārāb÷ esteve imbuído do
espírito da história da filosofia . Num pequeno tratado, ainda conservado, ele traçou
um itinerário da história da filosofia desde seu nascimento na Grécia, passando pelos
mestres que sucederam Platão e Aristóteles, apontando a transmissão dos
conhecimento através de Roma e de Alexandria, comentando a posição do cristianismo
frente a filosofia; sublinhando a transmissão dos saberes para Antióquia na Síria;
reconhecendo o papel dos cristãos na transmissão da filosofia aos árabes e, finalmente,
citando os principais pensadores que o antecederam num passado próximo. Essa
postura de visão universal e impregnada de história da filosofia explicou, em parte,
porque Al-Fārāb÷ entendia ser ele, também, um continuador da herança dos saberes de
sua época. Se com Al-Kind÷ a falsafa se iniciou, com Al-Fārāb÷ ela ganhou contornos
mais definidos, e a ele se devem os principais pilares que a sustentaram dali em diante.
O chamado Magister Secundus – sendo Aristóteles, o Magister Primus –, num período
em que a assimilação da filosofia já era uma realidade no mundo árabe medieval,
encontrou um momento mais favorável para desenvolver suas teses com maior
profundidade, criatividade e originalidade.
Sua obra é bastante vasta e passa em revista toda a gama das ciências
então conhecidas. Badawi142 apresenta mais de 120 títulos: 25 tratados de lógica, 18
141
142
Ibid., p. 575.
Ibid., pp. 485-496.
123
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
comentários à obra de Aristóteles, 12 títulos a respeito da filosofia de Platão e de
Aristóteles, 15 títulos de metafísica, 6 de ética e política, 7 sobre música, e outros sobre
assuntos diversos. A ele se deve a primeira teorização da música árabe, especialmente
no Kitāb al-mus÷qā al-kab÷r no qual desenvolve suas teses a partir das fontes dos
Pitagóricos, de Platão e de Aristóteles.
Uma nota bastante característica em suas teses foi a tentativa constante
de harmonizar as principais correntes de pensamento que chegaram até ele. Uma de
suas obras denomina-se O Livro da Concordância entre as Idéias dos dois Sábios:
Platão – o Divino – e Aristóteles. Em seu comentário a respeito dessa obra, Gilson
sublinha que “apenas esse título mostra bastante bem quão inexato é sustentar que a
filosofia árabe não fez mais que prolongar a de Aristóteles.”143 Nessa obra – única do
gênero naquele tempo – Al-Fārāb÷ transcreveu passagens dos dois autores que seriam,
aparentemente, contraditórias e procurou explicá-las mostrando sua concordância. Os
trechos principais são extraídos de textos como o Fédon, Político, República, Timeu e
a Carta VII de Platão; da Metafísica, Primeiros e Segundos Analíticos, De Anima,
Ética a Nicômaco e a Teologia de Aristóteles. Na variedade dos temas apresentados,
destacam-se os que são concernentes à lógica, teoria do conhecimento, metafísica e
filosofia prática. Sem dúvida, um dos pontos altos do tratado foi a tentativa de
harmonização entre a teoria das idéias de Platão com as teses de Aristóteles. A obra
que serviu de guia para essa harmonização foi a própria Teologia de Aristóteles pois
Al-Fārāb÷, ao mesmo tempo que interpretou Platão segundo a doutrina neoplatônica,
tomou por aristotélicas o mesmo neoplatonismo presente na Teologia, fato que
possibilitou uma leitura de aproximação entre os dois filósofos gregos.
Além da concordância no âmbito da própria filosofia, Al-Fārāb÷ buscou
harmonizar a filosofia com a religião profética do Islām. Não obstante, sua doutrina
chocou-se em muitos aspectos com os dogmas religiosos. Na doutrina de Al-Fārāb÷, a
presença do neoplatonismo na metafísica aristotélica assumiu um caráter de uma
verdadeira teoria cosmológica da emanação resultando num sistema metafísico de
grande complexidade que se opôs à doutrina criacionista de Al-Kind÷. O harmônico
sistema proposto por Al-Fārāb÷ buscou interligar as diversas áreas do conhecimento e
se desenvolveu em vistas de uma unidade que pudesse responder em uníssono às
questões do homem e do mundo. Disso resultou, por exemplo, que os temas éticos e
143
GILSON, A Filosofia na Idade Média, op.cit.,p. 427.
124
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
políticos se desenvolvessem como um prolongamento explícito da metafísica. É por
essa razão que em uma de suas obras, denominada Livro das Opiniões dos Habitantes
da Cidade Ideal
144
, Al-Fārāb÷ não iniciou pelas questões ético-políticas ou pelas
relações do homem com o estado mas pela exposição do existente primeiro – que
guarda semelhanças com o Uno de Plotino –, explicando seus atributos e o modo pelo
qual a partir d’Ele derivou a aparente multiplicidade das coisas existentes no mundo.
Numa formulação bastante original, de um ponto de vista islâmico heterodoxo, a
metafísica da criação fez com que a unidade absoluta do existente primeiro emanasse
de si a multiplicidade dos seres mantendo-se, ainda assim, dentro dos limites da própria
unidade e respeitando o axioma segundo o qual “do uno só procede o uno” (Ex uno
non fit nisi unum ), aliando as esferas planetárias para compor uma cosmologia que foi
utilizada, também, posteriormente por Ibn S÷nā.
Dessa estrutura hierárquica da qual procedem todos os entes, nosso
filósofo extraiu suas teses éticas e políticas em perfeita harmonia com todo o sistema.
Al-Fārāb÷ foi o primeiro a tratar com detimento sobre o tema político no Islām145,
marcado pela leitura da República de Platão e pela ausência da tradução da Política de
Aristóteles. Em linhas gerais, sua filosofia política acompanhou a solução platônica do
rei-filósofo apresentada na República, mas adaptou-a para ser uma solução ao
problema, particularmente islâmico, das qualidades que deveria possuir o califa como o
guia político e espiritual do Islām. Ao se procurar uma aproximação com o momento
histórico-político em que Al-Fārāb÷ vivia, é possível notar amplamente que a cidade
ideal, apesar da notável inspiração platônica, se adequa às aspirações filosóficas de um
pensador imerso na religião islâmica. O sábio-profeta, guia da cidade perfeita, deve ter
atingido o grau supremo da felicidade humana que consiste em se unir à inteligência
agente sendo, assim, tocado pela revelação profética e por toda a inspiração. Tal
identificação só foi possível porque, nesse caso, o arcanjo Gabriel foi identificado com
a inteligência agente: o anjo do conhecimento e o anjo da revelação se harmonizam,
pois, perfeitamente, numa filosofia profética. Corbin comentando esse aspecto da
“política” de Al-Fārāb÷ diz: “inversamente ao sábio de Platão que deve descer da
contemplação dos inteligíveis para se ocupar das questões públicas, o sábio de Al144
»¬Œ\€«[ »´¿v°«[ −·[ Æ[y[ ]\c§
( Kit¡b ‘ar¡’ ’ahl ’al-mad≈na al-f¡∞ila ). Acompanhamos
Badawi que opta por traduzir o termo “ fa∞≈la ” por “ideal” e não por “virtuosa” entendendo-se que “
al-mad≈na al- fa∞≈la ” exprime a excelência, o mais alto grau, ou seja, o que é ideal não estando, pois,
limitado ao conceito de virtude. Cf. BADAWI, op. cit., p. 558 n.3
145
Ao menos mais 6 obras segundo Hernandez.
125
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Fārāb÷ deve se unir aos seres espirituais; sua função principal é de levar o cidadão em
direção a esse objetivo, porque dessa união depende a felicidade absoluta. (ý) o
‘príncipe’, ao qual Al-Fārāb÷ confere todas as virtudes humanas e filosóficas, é um
Platão revestido do manto do profeta Mu¬ammad”. 146
A presença das teses de Al-Fārāb÷ foi abrangente e em várias direções,
tendo marcado profundamente muitos pensadores que o sucederam não somente no
Oriente mas também no Ocidente medieval. No campo da metafísica, inspirado na
observação lógica de Aristóteles de que a noção de que uma coisa é, não inclui o fato
de que a coisa, seja, Al-Fārāb÷ estabeleceu um importante marco da história da filosofia
ressaltando a distinção entre a noção de essência e de existência. Na medida em que os
seres naturais são contingentes, não sendo essencialmente ligados à existência, logo,
podem possuí-la ou perdê-la. Os seres existentes devem, pois, ter passado a existir
segundo alguma causa que tenha, por essência, sua própria existência e, por isso
mesmo, não há como deixar de existir, em outras palavras: Deus. Segundo essa
abordagem, a existência não é algo se incluiria necessariamente nela; a essência não
incluiria a existência atual; e seria, pois, um acidente da essência. No ser necessário por
si, a existência acompanharia sua essência enquanto no ser possível a existência se
agregaria a sua essência pelo ato criador, tratando-se de algo possível por si e
necessário por outro. Enquanto os seres são de duas classes – possíveis e necessários –
ainda que sejam possíveis, se os supusermos como não existentes, não segue-se daí
nenhum absurdo e chegam a ser necessários por outro. Desse modo, a existência de
algo não seria um caráter constitutivo, mas apenas um acidente. Para se incluir a
essência sob a existência foi preciso aguardar as críticas de Ibn Ru¹d. Há inúmeras
outras teses que fizeram de Al-Fārāb÷ um dos elos na cadeia de transmissão do saber
que ele, assim como Al-Kind÷, também pregou. Atesta Gilson: “Impressionante pelo
vigor de seu pensamento e pela força de expressão, a obra de Al-Fārāb÷ merece ser
estudada por si mesma.” 147
No Livro das Opiniões dos Habitantes da Cidade Ideal,148 Al-Fārāb÷
seguiu um trajeto que estabelece as causas do existente primeiro, o surgimento e a
multiplicidade dos seres, as características dos corpos celestes, as categorias
146
CORBIN, Histoire de la Philosophie islamique, op.cit.,p.231.
GILSON, A Filosofia na Idade Média,op.cit., p.430.
148
Em linhas gerais, para um acompanhamento do desenvolvimento do texto, damos a referência da
tradução francesa cotejado com passagens de Badawi e citamos em árabe somente algumas passagens
que envolvem termos que implicam alguns esclarecimentos.
147
126
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
aristotélicas de matéria e a forma, a alma humana e suas potências, as qualidades do
chefe da cidade e, por fim, as características da cidade ideal e de seus habitantes.
“O existente primeiro é a causa primeira da existência de todos os
149
seres.”
Com esta frase de abertura, Al-Fārāb÷ inicia sua trajetória. O existente
primeiro é puro, sem qualquer tipo de imperfeição. Sua existência é a melhor e a mais
antiga de todas. Estando no mais alto grau de perfeição e no mais alto grau de
acabamento, nada pode alterar sua substância pois a mudança proveniente da oposição
e da contrariedade só se encontram abaixo da esfera da lua.150 O existente primeiro é
eterno, sua existência é permanente por sua substância e por sua essência e, em sua
eternidade, não necessita de nada mais do que sua própria substância para prolongar
sua existência. O existente primeiro está isento de toda matéria, de todo substrato e, do
mesmo modo, isento de forma pois se o existente primeiro tivesse uma forma, teria
matéria e seria, portanto, constituído de duas partes e a sua existência teria uma causa
pois cada uma das suas partes seria a causa da existência do seu composto mas, como o
existente primeiro é a causa primeira, nesse caso, a composição de forma e matéria não
pode ocorrer. O primeiro também não possui nem propósito e nem objetivo
determinado para ser pois, se assim fosse, sua existência seria determinada por algum
fim e este fim seria uma causa anterior à sua existência e, nesse caso, o primeiro não
seria a causa primeira.
Ao existente primeiro nada pode ser associado e seu modo de ser é
único e difere de todos os outros seres engendrados. Ele é o único que é uno em si
mesmo e possui o seu próprio ser. Da mesma maneira que ao existente primeiro nada
se associa, assim também nada pode a ele se opor pois se a ele houvesse uma oposição,
tal existência oposta seria tão existente quanto a sua e uma das duas deveria ser
destruída, pois assim operam os opostos. Para que houvesse a anulação de um dos dois
opostos seria necessário haver um substrato comum que os recebesse, “um lugar
comum que os recebesse quando se encontrassem, afim de permitir o encontro onde
149
“ \¸¬¨
a[u½j½¯«[ zÎ\€ u½j½« ª¼×[ `_€«[ ½· ª¼×[ u½j½°«[ ”
ALFARABI, »¬Œ\€«[ »´¿v°«[ −·[ Æ[y[ ]\c§ (Kit¡b ‘ar¡’ ’ahl ’al-mad≈na
Cf.
al-f¡∞ila),
Beirute, 1996, p.37. Cf. Al-FARABI, Traité des Opinions des Habitants de la Cité Idéale. Paris: J.Vrin,
1990, p.43 e BADAWI, op.cit., p.535. Não nos cabe, aqui, adentrar às dificuldades que o termo ‫( ﻭﺠﻭﺩ‬
wuj…d ) adquire ao longo do texto árabe assim também como os seus termos derivados, para
expressarem, na língua árabe, a noção de ser, existência, ente, existente e demais termos relacionados,
indicando para tal ISKANDAR, Avicena, op. cit. pp.227-245.
150
O mundo sublunar, o mundo em que vivemos.
127
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
eles se destruiriam um ao outro.”
151
Ora, esse lugar deveria ser um substrato, um
sujeito de inerência ou um gênero, isto é, algo que não fosse os dois mas que lhes
permitisse relação e esse algo seria, então, anteriormente existente a cada um deles. Por
isso não é possível considerar que haja um ser no mesmo grau que o existente
primeiro, pois os opostos estariam no mesmo grau de existência. O primeiro é, pois,
único por sua existência. “Ele é único sob esse aspecto.”152 Além disso, o existente
primeiro é indivisível em sua substância e não é suscetível de definição. A existência
do primeiro é distinta da existência dos outros seres pela sua unicidade, pois sua
essência é ele próprio. “Sua unidade é sua própria essência”153 .
Na medida em que o existente primeiro não tem matéria e, de modo
algum pode estar associado à matéria, ele é essencialmente inteligência em ato “pois o
que impede a forma de ser inteligência e de inteligir em ato é a matéria na qual a coisa
existe. Ora, desde que a coisa exista sem o subsídio da matéria, ela é, em sua
substância, inteligência em ato. Este é o caso do primeiro. Ele é, pois, inteligência em
ato.”154 Ele é também inteligível por sua substância pois, sendo inteligência, para
conhecer ele não tem necessidade de uma essência diferente da sua e, nesse caso, sua
própria substância lhe basta para conhecer e para ser conhecido. Sendo inteligência,
necessariamente ele intelige sa essência, sendo que a essência pela qual ele intelige é a
mesma que é inteligida. Desse modo, a um só e mesmo tempo “ele é inteligência, ele é
inteligível e ele é inteligente e tudo isso é uma única essência e uma única substância
indivisível.”155
Assim sendo, o existente primeiro tem ciência perfeita de si mesmo e
como “a ciência, por excelência é a ciência permanente que não desaparece – e essa é a
151
Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.47s.
¶x· µ¯ vn[¼ \Œ¿[ ½¸Ÿ ”
Cf. ALFARABI, »¬Œ\€«[ »´¿v°«[ −·[ Æ[y[ ]\c§
152
“ »¸k«[
(Kit¡b ‘ar¡’ ’ahl ’al-mad≈na al-f¡∞ila)
op.cit. p. 43 Cf. também Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.48
153
BADAWI, op.cit., p.537.
154
AL-FARABI, em BADAWI, op. cit., p. 537.
“ −˜€«\^
Cf .
−¤— ²w[ ½¸Ÿ ”
ALFARABI, »¬Œ\€«[ »´¿v°«[ −·[ Æ[y[ ]\c§
(Kit¡b ‘ar¡’ ’ahl ’al-mad≈na al-f¡∞ila),
op.cit., p. 46. O termo árabe para intelecto e inteligência é o mesmo: ‫‘ ( عق[ل‬aql ) .Traduzimos por
“inteligência” quando este termo se refere às dez inteligências separadas da matéria e por “intelecto”
somente quando se refere ao homem.
155
“ ±€¤´° z› vo[¼ z·½k¼ ºvo[¼ a[w \¸¬¨ Á· !−¤\— ¹³[¼ ª¼£˜¯ ¹³[¼ −£— ¹³\Ÿ ”
AL-FARABI, »¬Œ\€«[ »´¿v°«[ −·[
p. 47. Cf. também Traité, op.cit.,p.50.
Æ[y[ ]\c§
(Kit¡b ‘ar¡’ ’ahl ’al-mad≈na al-f¡∞ila) op.cit.,
128
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
ciência que o primeiro tem de sua essência –”156 logo, ao existente primeiro também
chamamos “sábio” pois a sabedoria consiste em que a inteligência conheça as coisas
mais excelentes do modo mais excelente. Ora, na medida em que o existente primeiro
intelige sua essência e a conhece, ele conhece a melhor das coisas e, por isso, possui a
ciência mais excelente da mais excelente das coisas. Por isso é, a um só tempo, sábio e
sabedoria.
O existente primeiro também é verdadeiro. “O verdadeiro acompanha o
ser e a verdade acompanha o ser, pois a verdade de uma coisa é ser aquilo que ela
propriamente é.”157 Assim, o existente primeiro é, também, verdadeiro e verdade. O
existente primeiro também é vivo e vida em sua essência indivisível. Afinal, se
dizemos de nós mesmos que somos vivos enquanto apreendemos as coisas pelas
sensações e pelo nosso intelecto, quanto mais pode-se dizer do existente primeiro pois
ele apreende o mais eminente inteligível do modo mais eminente pela mais eminente
inteligência que é ele próprio e, por isso, é uma inteligência viva e é a própria “vida”.
Além disso, o existente primeiro é grande, majestoso e glorioso em sua essência
indivisível do modo mais excelente, pois, isso é a sua própria substância assim como
sua beleza, seu ornato e seu esplendor são, também, os maiores.
Quanto a nós, pelo fato de estarmos ligados à matéria, temos dificuldades de
imaginar o seu ser e de inteligi-lo. Isso é análogo ao que ocorre com a luz que, quanto
mais intensa, mais torna visíveis as cores mas, por outro lado, quanto mais forte estiver
na direção dos nossos olhos mais dificulta nossa visão. Isso não acontece pelo fato de
que a luz se esconda ou diminua mas, por sua própria natureza. A luz, em sua perfeição
enquanto luz, ofusca e embaça a nossa vista. Por isso, a nossa dificuldade em inteligir e
em apreender o existente primeiro deve-se à insuficiência de nossas faculdades
intelectuais e imaginativas. Devemos levar em conta que estamos distanciados do
existente primeiro pois, enquanto ele é uma substância imaterial que é puramente
inteligência, forçosamente nós, que estamos envolvidos pela matéria, temos as nossas
substâncias distantes da sua substância. Mas, à medida em que nossas substâncias se
voltam para a inteligibilidade do existente primeiro, mais a nossa imaginação d'ele se
torna precisa, perfeita e verdadeira. Assim, quanto mais nos despojamos das ligações
com a matéria, mais perfeita se torna a inteligibilidade d’ele e a imagem d'ele em nós.
156
157
Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.51.
AL-FARABI, al-mad≈na al-f¡∞ila em BADAWI, op. cit., p. 537.
129
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Em todo o seu esplendor, majestade e beleza que conhece de si mesmo,
o existente primeiro também experimenta, por essa razão, o maior e o mais profundo
prazer. Conhecemos todas essas qualidades somente por analogia e por uma apreensão
ínfima quando experimentamos, por exemplo, a apreensão da beleza e do prazer. Mas
nossa experiência é muito pequena perto do esplendor do existente primeiro. Aliás,
como poderia haver uma relação de igualdade entre o que é uma parte ínfima e o que é
sem limite no tempo ou fora do tempo?, entre o que e tão imperfeito e o que é a
extrema perfeição? Ora, aquele que tem prazer por si mesmo, se alegra, se ama e se
torna apaixonado de si mesmo. Assim, o primeiro se ama, se quer e se maravilha de si
de uma maneira correspondente à sua grandeza, do modo mais excelente. No existente
primeiro, o ato e o objeto de Seu amor são o mesmo, o ato de seu maravilhamento é o
próprio objeto de sua admiração e o ato e o objeto de seu prazer convergem. Nele
coincidem o amor, o amante e o amado. “Ele é o primeiro amado, o primeiro
amoroso.”158
Por tudo isso que ele é, e por tudo isso que ele envolve em seu esplendor
o existente primeiro transborda, jorra, emana e faz
159
, proceder de si, todos os seres.
“O primeiro é aquele de quem tudo vem a ser”160. Desde que o primeiro tem a
existência que lhe é própria, segue-se necessariamente que, a partir dele, procedem
todos os seres cada um segundo o seu ser, cuja existência não depende da vontade do
homem ou de sua escolha. Alguns nos são conhecidos pelos sentidos e outros pela
demonstração.
A existência dos seres a partir do primeiro se faz por emanação de Sua
existência à medida que ele dá a existência às outras coisas de modo que toda
existência emana necessariamente de sua existência. Mas, observa Al-Fārāb÷, essa
existência que vem do primeiro não é a causa ou o fim de Sua existência no sentido de
que ele tivesse por fim dar existência a um outro porque, se assim fosse, a Sua
existência estaria determinada por uma razão que o precederia e, nesse caso, ele não
seria mais o primeiro. Do mesmo modo, a existência que procede d’ele não lhe
158
Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.56
159
Os termos mais frequentes usados por Al-Farabi para designar esse movimento são: ÀŸ / fay∞
y¼vˆ / Ÿu∞…r k_³[ / inbajasa. Cf. BADAWI, op.cit., pp. 540-543.
160
“ vj¼ ¹´— Âw«[ ½· ª¼×[¼ ”
Cf AL-FARABI, »¬Œ\€«[ »´¿v°«[ −·[ Æ[y[ ]\c§ (Kit¡b ‘ar¡’ ’ahl ’al-mad≈na al-f¡∞ila)
op.cit., p.55. Badawi entende como “ O Primeiro é aquele de quem procede o ser.” Cf. p.538.
130
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
acrescenta nenhuma perfeição porque ele é o ser mais perfeito e, se assim não fosse,
ele também não seria o primeiro. Nada há, portanto, que opreceda em sua emanação:
nem um ser, nem uma razão para ser, nem uma essência anterior, nenhuma causa, nada
enfim pois “todas essas considerações são impossíveis no primeiro, pois isso seria uma
afronta à sua primazia e à sua eternidade.”161 Tudo emana do existente primeiro pela
mesma e única substância que é a sua pois ele não opera como nós que temos as coisas
separadas para produzirmos algo como, por exemplo, nossa razão, de um lado e a arte
da escrita, por outro. No existente primeiro, o conhecimento de si mesmo e a emanação
dos seres é um só e mesmo ato e tudo procede de “uma só essência e uma só substância
ao mesmo tempo que constitui seu ser e de onde deriva todo outro ser.”162
A emanação segue uma hierarquia que se inicia pelo ser mais próximo e
mais perfeito em relação ao existente primeiro e segue em escala descendente até o ser
menos perfeito. Tudo isso provém do existente primeiro e sua substância permanece a
mesma sem sofrer qualquer alteração. Seguem-se assim, pois, os seres cada um
segundo sua perfeição começando pelo mais perfeito, depois, aquele que é um pouco
menos perfeito, depois, os seres que são menos perfeitos se sucedem até o ser que,
abaixo dele não pode haver nenhuma existência. “Então os seres se detém na
existência.”163 Vale notar que a emanação proposta por Al-Fārāb÷ se dá no interior do
existente primeiro e não como algo que se produz fora dele. “A substância do primeiro
permanece sempre a mesma quando os seres emanam de um modo hierarquizado cada
um segundo o seu grau. Uns com os outros os seres se unem, se aliam e se ordenam de
modo que a multiplicidade se torna, assim, uma só coisa”164. Vejamos como Al-Fārāb÷
descreve esse processo.
“Do primeiro procede o ser do segundo que também é uma substância
absolutamente incopórea e que não está em uma matéria. Ele intelige sua essência e
intelige o primeiro e, isso que ele intelige de sua essência não é outra coisa que sua
essência. Enquanto ele intelige algo do primeiro resulta necessariamente dele o ser de
um terceiro. Enquanto ele é constituído substancialmente em sua essência própria
161
Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.57.
AL-FARABI, al-mad≈na al-f¡∞ila em BADAWI, op. cit., p. 539. Em seu comentário Hernandez
observa que “deste modo tudo quanto existe se produz necessariamente a partir do único ser necessário,
dotado da liberdade absoluta, não condicionada por nada, que atua como vontade pura; mas como é ao
mesmo tempo a mais alta inteligência sua vontade é, também a bondade pura. Portanto, sendo Deus o
bem absoluto, tudo quanto procede de Deus é bom; e enquanto Deus é beleza pura, é belo.” Cf.
HERNANDEZ , op. cit., p. 194.
163
Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.59.
164
Ibid., p.59.
162
131
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
resulta necessariamente dele o ser do primeiro céu. Do mesmo modo o ser do terceiro
não está em uma matéria (...)”165 e, assim por diante, Al-Fārāb÷ continua sua descrição
cosmológica que alia o princípio de emanação plotiniano ao sistema geocêntrico de
Ptolomeu. O processo repete seguidamente o esquema precedente: cada nova
inteligência conhece sua própria essência166 e conhece algo do Primeiro resultando, em
cada etapa, uma nova inteligência, uma esfera correspondente a cada um dos planetas e
uma alma que move essa esfera. Tal processo, seguindo em fases sucessivas, emana ou
“cria” dez inteligências sucessivas que correspondem as seguintes esferas dos planetas
com suas respectivas almas que as movem:
segunda inteligência: primeiro céu;
terceira inteligência: esfera das estrelas fixas;
quarta inteligência:
esfera de Saturno;
quinta inteligência:
esfera de Júpiter;
sexta inteligência:
esfera de Marte;
sétima inteligência:
esfera do Sol;
oitava inteligência:
esfera de Vênus;
nona inteligência:
esfera de Mercúrio;
décima inteligência: esfera da Lua.
décima primeira:
mundo sublunar.
A emanação segue ritmada até a décima inteligência e é descrita
como uma
superposição incorpórea de cada uma delas em sequência necessária compondo um
sistema de esferas desde o Existente primeiro até a esfera da Lua tendo a Terra como
centro. “As coisas separadas [as inteligências] que seguem-se ao Primeiro são em
número de dez. Os corpos celestes em seu conjunto são em número de nove sendo que
o total resulta em dezenove.”167 A mudança e a interrupção desse processo se dá com o
surgimento da matéria e a explosão de almas humanas que se segue à esfera da Lua
gerando uma descontinuidade no modo pelo qual se dá o processo de emanação da
décima inteligência. O ser do décimo também é uma inteligência que não está
associada à matéria e, do mesmo modo que as outras inteligências, intelige sua
165
Ibid.,p.61.
“Cada um dos dez primeiros seres intelige sua essência e intelige o Primeiro.” Cf. AL-FARABI,
Traité, op. cit. p. 67 Como o Primeiro é superior ao segundo quando este-o segundo- intelige o Primeiro
obtem uma felicidade maior do que quando intelige a si mesmo.O mesmo se dá com o prazer e com o
seu maravilhamento que experimenta pois a perfeição, a beleza e o esplendor do primeiro são
insuperáveis.
167
Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.66.
166
132
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
essência e intelige o Primeiro e, enquanto é constituída substancialmente em sua
essência própria resulta necessariamente o ser da esfera da Lua e, enquanto intelige
algo do Primeiro disso resulta necessariamente o ser de um décimo-primeiro sendo que
este também é uma inteligência incorpórea que intelige sua essência e intelige o
Primeiro “mas nesse ponto – diz Al-Fārāb÷ – se encerra a espécie de ser que, para
existir desse modo, não tem necessidade de matéria e de substrato. Esses são os seres
separados que são substancialmente inteligências e inteligíveis e na esfera da Lua se
encerra o ser dos corpos celestes os quais, por sua natureza, se movem
circularmente.”168
Nessa formulação bastante original, a metafísica da criação faz a
unidade absoluta do Primeiro emanar de si a multiplicidade dos seres mantendo-se,
ainda assim, dentro dos limites de sua própria unidade. A emanação das inteligências
cósmicas com suas respectivas almas e esferas, iniciando-se por um princípio
metafísico do existente primeiro, termina por ser coerente com o plano físico,
encontrando ressonância no sistema geocêntrico de Ptolomeu enquanto as esferas das
inteligências cósmicas possuem correspondência com as órbitas planetárias. Abaixo da
esfera da Lua está o mundo em que vivemos – o mundo sublunar – onde, a matéria
emanada por essa última inteligência, engendra os seres ligados à matéria e, portanto,
sujeitos à geração à corrupção. Mas por que é possível para Al-Fārāb÷ afirmar que a
décima inteligência emana a matéria e intelectos individualizados e não mais emana
outra inteligência cósmica separada da matéria? Uma das respostas pode ser: ora,
porque isto é o observável.(!)
Os seres existentes abaixo da esfera da Lua se distinguem dos corpos
celestes pois, estes últimos possuíram, desde o início, uma eminente perfeição em suas
substâncias isentas de matéria enquanto os sublunares, emanados a partir da décima
primeira inteligência formaram-se a partir da composição de matéria e forma. Emanada
a matéria prima como o substrato mais distante do existente primeiro, a partir desse
ponto, o processo se inverte: os seres se constituem a partir dos seres de maior
imperfeição de modo ascendente até os seres de maior perfeição.
Assim, cada um dos seres constituídos a partir da décima inteligência
localizada na esfera da Lua, compõe-se de duas coisas: “uma é do mesmo grau que a
168
Ibid.,p.62.
133
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
madeira da cama e a outra como o aspecto da cama.”169 A primeira é a matéria e a
segunda é a forma. Todos os seres sublunares são a partir dessas duas coisas: a matéria
com o fim de dar uma constituição à forma. Por esse motivo, toda e qualquer espécie
se torna substância em ato somente quando sua forma é realizada pois, enquanto a
matéria dessa espécie existe sem sua forma, esta espécie só existe em potência do
mesmo modo que “enquanto a madeira que servirá para a cama não estiver na forma da
cama, é apenas uma cama em potência. A cama é em ato quando sua forma se realiza
em sua matéria.”170
Em linhas gerais, o arco dos seres sublunares tem em sua base os quatro
elementos que compões todos os corpos naturais: o fogo, o ar, a água, e a terra assim
como os que se lhes pertencem como o vapor, a chama e outros do mesmo gênero. A
matéria dessas formas é comum sendo matéria para elas e para o conjunto dos corpos
sub-celestes pois todos os corpos sub-celestes são feitos dos quatro elementos. A base
de todos esses seres é a matéria-prima que se substansifica pela forma e se eleva pouco
a pouco até a forma que os torna seres em ato. No caso dos seres celestes estes se
classificam começando pelo mais eminente e depois os menos perfeitos e, assim
sucessivamente
resultando no existente primeiro como o mais eminente. A Ele
seguiram-se as outras inteligências destituídas de matéria sendo que dentre os seres
celestes o melhor é o primeiro céu.
A classificação dos seres sublunares, ao contrário, começa pelos menos
perfeitos, depois aqueles que são mais e mais perfeitos até o mais perfeito que não
possui nada acima dele. O ser mais deficitário é a própria matéria-prima que é comum
a todos; acima dela vêm os quatro elementos e, a esses, seguem-se os minerais tal
como as pedras e os outros corpos do mesmo gênero; em seguida aparecem os
vegetais, os animais não racionais e, por fim, o homem, ao qual, no mundo sublunar,
“nada é superior.”171 Nesse sentido, podemos considerar que a partir da décima
inteligência, o processo de emanação atinge o seu limite e se inverte tendo a matéria
prima como o
limite inferior mais extremo. Aquilo que dela releva já seria um
movimento de retorno do qual, o homem, seria uma das etapas. Aliás, no mundo
sublunar dos compostos de matéria e forma, o homem seria o limite conhecido do
169
Ibid.,p.64.
Ibid.,p.64.
171
Ibid.,p.66.
170
134
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
retorno. O homem é o ser mais próximo da inteligência separada e pura da esfera da
Lua que também é, por conseguinte, a mais próxima dele.
A partir da matéria-prima que é comum a todos os seres sublunares e do
surgimento dos quatro elementos e daquilo que é do mesmo gênero e que a eles se
assemelham – como, por exemplo, no caso do ar são os vapores, as nuvens, os ventos,
e tudo o que se produz na atmosfera e, de modo análogo ocorre com a terra, com a
água e com o fogo –, se produz nos elementos e naqueles de mesmo gênero, forças
pelas quais eles se movem por si mesmos. Em seguida, os corpos celestes agem sobre
eles fazendo com que uns ajam sobre os outros. “Da totalidade dessas ações resultam
numerosos modos de misturas e de combinações”
172
e disso resulta a existência do
conjunto de corpos do mundo sublunar. Deve-se levar em conta que todas essas ações
misturadoras
de procedências diversas resultam em novas misturas de níveis de
complexificação cada vez maior que as distanciam cada vez mais dos elementos e da
matéria-prima. Os minerais resultam da mistura mais próxima dos elementos. Por sua
vez, os vegetais resultam de uma mistura mais complexa e, conseqüentemente, mais
distanciada dos elementos estando, pois, os vegetais, num grau mais elevado do que os
minerais. Acima dessa mistura encontra-se uma outra que resulta no animal não
racional que é, por sua vez, uma mistura ainda mais complexa que a dos vegetais. E é
o homem que resulta da última e mais complexa mistura. Em todos esses seres, cada
um segundo sua espécie, se produz certas faculdades que lhe são próprias como, por
exemplo, a faculdade da nutrição, do movimento e da sensação.
No homem, a primeira faculdade constituída – nos diz Al-Fārāb÷ – é a
faculdade pela qual ele se nutre: a faculdade nutritiva. Em seguida se-lhe constituem os
sentidos externos: o tato, pelo qual percebe o frio e o calor e, depois, os outros
sentidos, isto é, o paladar, o olfato, a audição e a visão que são as faculdades pelas
quais o homem sente os sabores, os odores, os sons e as cores respectivamente. Seguese a essas, a faculdade do apetite que aproxima ou afasta o homem daquilo que ele
deseja ou não deseja. Em seguida, Al-Fārāb÷ classifica a faculdade imaginativa que
conserva na alma as formas das coisas quando essas desapareceram dos sentidos, sendo
a responsável por combinar as imagens umas com as outras e, por fim, o intelecto que
é a faculdade pela qual o homem pode inteligir os inteligíveis, “distinguir entre o
bonito e o feio, realizar as artes e as ciências.”173 Al-Fārāb÷ apresenta três níveis de
172
173
Ibid, p.75
Ibid.,p.81.
135
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
apreensão do conhecimento: “pela faculdade racional, pela faculdade. imaginativa e
também pela sensitiva”174. Note-se que Al-Fārāb÷ não indica nenhuma diferença nas
faculdades sensitivas, imaginativa ou racional entre o homem e a mulher.
Todas essas faculdades, com exceção do intelecto que não está impresso
na matéria, possuem um determinado órgão que exerce primeriamente a função dessa
faculdade e outros órgãos auxiliares que a ajudam na execução dos seus objetivos.
Assim, por exemplo, a faculdade nutritiva possui seu orgão principal – a boca – que
é auxiliada por outras faculdades auxiliares espalhadas por outros órgãos como o
fígado e o estômago. Do mesmo modo, todas as outras faculdades descritas, exceto o
intelecto, possuem seus órgãos próprios, porém o princípio de todas as faculdades tem
como sede um só órgão: o coração175.
O coração é o orgão principal que não pode ser dominado por nenhum
outro orgão do corpo. O cérebro também é um órgão diretor, mas sua direção não é
primeira pois, apesar do cérebro comandar outros órgãos e ser servido por eles, o
cérebro serve ao coração e é dirigido pelas intenções deste. O coração “é como o chefe
da casa do homem”176; ele serve o homem e é servido pelos outros membros da casa. O
cérebro, vindo depois do coração, atua como se fosse um delegado do primeiro,
substituindo-o naquilo que este não pode realizar, poupando-o de parte do serviço.
Depois do cérebro vem o fígado, depois o baço e os orgãos genitais, os últimos a
entrarem em atividade. Não é sem razão que o centro das operações reside no órgão do
coração como o órgão chefe de toda a complexa estrutura do organismo humano. É a
partir da analogia com as funções do corpo –e mais precisamente com o
reconhecimento do coração como o órgão principal- que Al-Fārāb÷ estrutura suas
idéias a respeito da cidade ideal.
Quanto ao intelecto, que é a faculdade pela qual o homem possui o
entendimento das coisas, Al-Fārāb÷ a considera como uma certa disposição preparada
para receber as impressões dos inteligíveis. Para que o intelecto passe da potência ao
ato, isto é, para que o homem compreenda e intelija, há a necessidade de algo que já
esteja em ato e que seja responsável por esta passagem. Nesse caso, é preciso um
174
175
Ibid.,p.83.
Al-F¡r¡b≈ localiza a faculdade imaginativa também no coração.
y[u `o\ˆ −g¯ ©«w¼ ”
Cf. AL-FARABI, »¬Œ\€«[ »´¿v°«[ −·[ Æ[y[ ]\c§
176
“ ²\€³×[
(Kit¡b ‘ar¡’ ’ahl ’al-mad≈na al-f¡∞ila)
op.cit., p.93.
136
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
intelecto que esteja sempre em ato. Esse agente que opera a passagem do intelecto em
potência para o intelecto em ato só pode ser uma certa essência cuja substância é uma
inteligência em ato separada da matéria que opera no intelecto humano de modo
semelhante à ação da luz do sol em relação à nossa visão. É pela luz do sol que a visão
se torna visão em ato estando, antes disso, apenas em potência. O mesmo – diz AlFārāb÷ – , ocorre com a potência intelectiva no homem e, por isso “ chamou-se
inteligência agente. Seu grau no grupo das inteligências separadas que estão abaixo da
Causa Primeira é o décimo.”177 Pelo aperfeiçoamento constante do homem através do
entendimento crescente que ele tem pelo seu intelecto, esse homem é naturalmente
levado à meditação e à reflexão. Mas sendo o homem, o grau mais complexo da
composição de matéria e forma do mundo sublunar e constituído, pois, das faculdades
mais complexas, a título de quê e com qual finalidade operariam todas as faculdades
humanas? A resposta de Al-Fārāb÷ é: a busca da felicidade.
“Além da felicidade não há nada maior que o ser humano possa
178
obter.”
As belas e boas ações, mais do que serem um bem em si mesmas, o são na
medida em que conduzem à felicidade. A esse movimento crescente de
aperfeiçoamento da alma humana corresponde um grau de felicidade que o acompanha
e é esta a finalidade maior pela qual todas as faculdades do homem operam servindo
umas às outras. O limite máximo da felicidade a que pode chegar o homem é, pois,
aquele estado no qual a sua alma humana chega à sua extrema perfeição existencial, de
modo que não haja mais necessidade de matéria para subsistir e, desse modo, ela se
assemelha e se encontra unida às inteligências separadas.
A sociedade exerce um papel importante na busca de cada ser humano
em direção à felicidade. O modo de organização da cidade pode ajudar ou não nesse
caminho. Segundo Al-Fārāb÷, deve-se partir do modelo ideal como o mais alto
paradigma a indicar o melhor caminho, mas, também, ser capaz de adaptar quando não
for possível que se encontre as condições adequadas para o modelo ideal.
Primeiramente deve se levar em conta que é da natureza do homem
necessitar de muitas coisas para subsistir. Ele tem, por exemplo, necessidade de um
conjunto de pessoas que faça cada uma das coisas da qual necessita. Cada uma dessas
pessoas também se encontra na mesma situação preenchendo um ao outro o que é
necessário para a mútua subsistência. É impossível ao ser humano obter a eminência de
177
178
Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.92.
Ibid.,p.94.
137
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
sua perfeição sem o concurso de vários indivíduos, pois, é somente através do trabalho
conjunto que reúne tudo o que cada um tem de necessidade que isso se torna possível.
Por essa razão os indivíduos multiplicam-se, estabelecem-se na parte habitável da terra
e estabelecem as suas assembléias.
Para Al-Fārāb÷, a organização da cidade ideal deve assemelhar-se ao
corpo humano em sua totalidade, cujos órgãos ajudam-se mutuamente para realizar o
acabamento da vida do organismo e conservá-lo. E, do mesmo modo que ocorre com o
corpo, vários e diferentes são os órgãos mas um só é o órgão chefe: o coração. No
corpo humano é a partir dele que os outros órgãos são hierarquizados. Cada um, por
sua natureza, tem uma potência para realizar suas ações próprias em conformidade com
o seu propósito. Assim é a cidade. Suas partes são múltiplas, diferentes entre si e
hierarquizadas segundo suas disposições próprias devendo haver um ser humano que é
o chefe. Assim como no corpo humano o coração é o principal orgão e, por natureza, o
mais completo e o mais são, “do mesmo modo o chefe da cidade é o mais completo de
todas as partes da cidade.”179 Abaixo dele, deve haver homens que ele dirige e estes,
por sua vez, dirigem outros homens. Estabelece-se, assim, uma hierarquia descendente
para que todos atuem voluntariamente na cidade em conformidade com a direção do
chefe. Por outro lado, do mesmo modo como é o coração que socorre todo e qualquer
órgão que venha a ser prejudicado, assim, também, o chefe da cidade ideal deve correr
em socorro de qualquer parte da cidade que se deteriore.
Mas a questão principal é: quem deve ser o chefe? A resposta de AlFārāb÷ inclina-se novamente para as aptidões naturais e procede segundo as qualidades
máximas próprias dos profetas. “O chefe da cidade não pode ser qualquer ser humano
pois a direção supõe duas condições: uma delas é que ele seja preparado por natureza e
por aptidão e, a segunda, é que ele tenha uma disposição e um hábito voluntário.”180
Sua faculdade imaginativa deve atingir o extremo acabamento, podendo receber no
estado de vigília ou no sono, por parte da inteligência agente, os próprios
acontecimentos ou, então, os símbolos desses acontecimentos. Seu intelecto deve ser
receptivo aos inteligíveis afim de que ele possua um perfeito entendimento das coisas
de modo que nada se lhe oculte. Em outras palavras, o chefe deve ser aquele que
possua um contato mais próximo com a inteligência agente.
179
180
Ibid.,p.105.
Ibid.,p.106.
138
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Se essas aptidões se encontrarem em um só homem – a excelência nos
dois aspectos de sua faculdade racional (teórica e prática) e de sua faculdade
imaginativa – , esse homem estará no grau daqueles a quem são dadas as revelações:
Deus – Grande e Majestoso – lhe revelará por intermédio da inteligência agente pois,
aquilo que emana de Deus sobre a inteligência agente, emana desta sobre o intelecto
desse homem e, depois, sobre sua faculdade imaginativa. Pelo que emana das
inteligências separadas para o seu intelecto, este homem se torna um sábio e um
filósofo e, em razão do que emana sobre sua imaginação, ele se torna um profeta,
anunciador daquilo que virá e conhecedor dos acontecimentos atuais particulares.
Esse ser humano está na mais alta escala da humanidade pois nele está
realizado o mais perfeito acabamento da natureza humana, o ponto mais elevado a que
podem chegar as faculdades humanas. Isso implica, pois, que este homem é o que
atingiu o mais alto grau da felicidade que se pode almejar pois sua alma está unida
constantemente à inteligência agente. Ora, sendo ele conhecedor dos caminhos e dos
atos pelos quais o homem eleva-se na busca da felicidade, e sendo esse o objetivo
maior, por natureza, de todo ser humano, é necessário que ele seja o condutor da
cidade ideal indicando os caminhos para que cada um de seus habitantes se dirijam
efetivamente ao alvo mais alto da vida humana. Para cumprir seu destino ele deve
possuir a capacidade verbal para descrever com eloqüência as metáforas provenientes
de sua imaginação e, assim, ser capaz de guiar os outros em direção à felicidade. Além
disso é preciso que ele tenha um bom equilíbrio corporal para poder realizar com
sucesso as tarefas particulares. Esse chefe, assim, não é dominado por nenhum outro e
por nada que não seja a verdade. “Ele é o “imam” e o primeiro mestre da cidade ideal.
Ele é o mestre da nação ideal e de todo território habitável sobre a terra.”181
Depois dessa descrição do dirigente da cidade, Al-Fārāb÷ enumera doze
condições necessárias para que tal homem seja reconhecido. Aponta, também, quais os
caminhos alternativos que se deve tomar quando isso não acontecer, o que, por sinal, é
o mais frequente. Assim diz Al-Fārāb÷: “mas um tal lugar só pode ser ocupado por
aquele que possuir doze qualidades inatas”182:
1- possuir os órgãos e as faculdades compatíveis com os atos que deve realizar;
2- possuir uma boa compreensão de seu interlocutor;
181
182
Ibid.,p.109.
Ibid.,p.109.
139
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
3- ter ótima memória;
4- ser perspicaz;
5- ser eloqüente e um bom orador;
6- amar a instrução e o aperfeiçoamento de seus conhecimentos constantemente;
7- não ter nenhuma avidez por bebida, por comida ou por prazeres carnais;.
8- amar a verdade e o verdadeiro e odiar a mentira e os mentirosos;
9-ser generoso e de alma nobre, distante das baixezas;
10- desprezar o ouro e a prata e que todos os bens da terra sejam pouca coisa para ele;
11-amar naturalmente a justiça e os justos e odiar a injustiça e a tirania;
12- ter uma vontade firme, ser decidido e audacioso para empreender sem medo o que
julga dever cumprir.
A partir do estabelecimento dessas doze qualidades, Al-Fārāb÷,
reconhece que todas elas reunidas num mesmo indivíduo é coisa difícil mas não
impossível pois, de tempos em tempos, tais homens surgem. No entanto, como é rara
essa situação, Al-Fārāb÷ entende que “se pode encontrar na cidade ideal um homem de
idade adulta que possua as seis primeiras condições ou cinco dentre as doze – sem
incluir as qualidades da imaginação – então, esse homem pode ser considerado como o
chefe”183
Porém se, mesmo assim, não existir tal homem, a cidade deve se
regular a partir das leis e das tradições estabelecidas pelo primeiro chefe e por aqueles
que o sucederão no comando da cidade. Nesse caso, aquele que vier a suceder ao
primeiro chefe, deve possuir as seguintes seis qualidades:
1- ser um sábio;
2- ser um conhecedor das leis, da cultura e dos costumes estabelecidos pelos primeiros
mestres da cidade;
3- ser sutil e perspicaz e seguir o exemplo dos que o antecederam na dedução de leis
necessárias que fossem inexistentes até aquele momento;
4- possuir excelente capacidade de reflexão, de dedução e de visão de futuro;
5- ser ótimo orador;
6- ter saúde corporal equilibrada compatível com suas funções, inclusive para realizar
operações de guerra.
183
Ibid.,p.110.
140
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Bem, mas se, mesmo assim, ainda não for possível encontrar tal homem
que reúna essas condições “mas que se encontre dois, um possuindo a sabedoria e o
outro as demais condições, então, os dois serão os chefes da cidade.”184 Se, ainda
assim isso não for possível, pode haver o caso em que tais qualidades encontrem-se
repartidas em um grupo de indivíduos: que um possua a sabedoria e cada um dos
outros possua uma das outras condições. Se isso ocorrer e os indivíduos estiverem de
acordo entre si, então, todos serão considerados eminentes chefes da cidade. (!).
A preeminência, porém, é para a sabedoria, pois se esta não tomar parte
no governo da cidade, mesmo que as outras condições permaneçam, a cidade
permanecerá sem chefe e aquele que exercerá as funções de chefe não será um
verdadeiro chefe. Essa cidade, se não conseguir encontrar um sábio que se associe ao
governo, estará destinada à ruína, fato que não tardará. Al-Fārāb÷ enumera e descreve
algumas cidades que se distanciam do paradigma da cidade ideal. Nesses desvios, os
habitantes sequer desconfiam qual é o objetivo maior da vida humana e o maior bem
que o homem possui, isto é, a felicidade. Por essa razão tais cidades se caracterizam
pela busca de outros bens que não levam seus habitantes à felicidade buscando
riquezas e fortuna; honrarias e vaidade; cidades que valorizam as disputas com outras;
cidades que falseiam a felicidade.
A felicidade, pois, sendo o paradigma da cidade, somente o é por ser,
antes, o paradigma da própria vida do homem. A visão de um mundo futuro que guia
Al-Fārāb÷ nessa obra encontra no destino da alma humana uma de suas raízes. Os
homens que compõem as gerações que passam, organizados em suas cidades, não
devem perder de vista o destino último ao qual se dirige o homem. Quando uma
geração passa, -diz Al-Fārāb÷ - os corpos dos indivíduos se destroem mas as almas,
liberadas da matéria, permanecem e se encontram com outras almas segundo o mesmo
grau de felicidade em que ambas estejam pois as almas se reúnem com suas
semelhantes seja em espécie, seja em profundidade intelectual ou seja em qualidade
segundo suas semelhanças. Como as almas não são corpos, o encontro entre elas não é
da mesma natureza do encontro entre os corpos. A reunião das almas não ocupa
espaço. Nesse encontro, aumenta o prazer de cada uma delas a cada vez que outra se
lhes reúne. O aumento do prazer vivido pelas almas ao reencontrarem-se é semelhante
ao aumento da capacidade da arte de escrever para o escritor que persevera muito
184
Ibid.,p.111.
141
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
tempo na sua arte pois, ao mesmo tempo em que, nele, todas as suas capacidades e
ações convergem, aumentando o prazer, também a sua escrita se intensifica e se
aperfeiçoa em força e em elegância. No caso das almas, como elas se sucedem sem
fim, a potência e o prazer em cada uma delas aumenta de um modo indefinido e
infindável e tal é o caso das almas a cada geração que passa.
Não é sem motivo, pois, que os habitantes da cidade ideal devem
conhecer, antes de tudo, as questões fundamentais às quais o homem está ligado, em
uma palavra: devem filosofar. Al-Fārāb÷ indica algumas coisas comuns que todos
deveriam saber: o conhecimento da Causa Primeira e de suas qualidades; o
conhecimento das inteligências separadas da matéria e suas respectivas descrições até a
inteligência agente e suas respectivas ações e, por fim as substâncias dos corpos
celestes. Depois disso é necessário conhecer as disposições dos corpos naturais
segundo a geração e a corrupção que, apesar disso, não indicam que eles venham à
existência sem precisão, perfeição, justiça e sabedoria. Em seguida é preciso conhecer
a natureza do homem e as faculdades de sua alma, como age sobre elas a inteligência
agente iluminando o homem em sua busca do entendimento. Depois disso,conhecer o
que é a revelação e a sucessão dos mestres e dos chefes da cidade. Conhecer também
no que consiste a cidade ideal e discerni-la das cidades perversas. Saber também que a
felicidade é a direção que nossa alma seguirá nesta e na outra vida.
O engendramento dos seres por meio da combinação dos quatro
elementos tendo partido das combinações mais simples, e seguido por combinações
que se complexificaram engendrando os minerais, as plantas, os animais, emergiu na
combinação final, o homem, que ocupa o cume dessa espiral ascendente. Todos estão
submetidos à causa suprema que é Deus, o existente primeiro. A finalidade do homem
é unir-se, pelo intelecto e pelo amor, à inteligência agente separada que é a fonte de
todo o conhecimento inteligível para o mundo em que vivemos. Ao localizar a
inteligência agente separada na esfera da Lua, Al-Fārāb÷ permite um entrelaçamento
de suas epistemologia, cosmologia e metafísica, apontando a felicidade como alvo final
através da união do intelecto humano com a inteligência agente, meta última de todo
ser humano. Os reflexos de tais concepções igualmente se entrelaçam com o campo
ético-político mas, o que poderia ser chamado de “política” em Al-Fārāb÷ tem muito
pouco do que se entenderia como um programa político. O próprio autor não foi
alguém que se interessou pelos negócios públicos e a sua política pregada para a cidade
142
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
terrestre, inseparável da cosmologia
se apresenta mais como uma justificação
amplamente argumentada da felicidade como o objetivo primeiro e último da vida
humana. Assim, a cidade terrestre não tem um fim em si mesmo que não seja o de ser
um caminho para a felicidade suprema. Nesse sentido universal, a cidade ideal se
estende por toda a terra habitada pelos homens.
5.3
Ibn S÷nā, o sistematizador
Aproximadamente após trinta anos da morte de Al-Fārāb÷, nasceu Abu
‘Ali Al-©ussayn Ibn ‘Abd Allāh Ibn Al-©asan Ibn ‘Ali Ibn S÷nā no ano de 980 d.C/
370 H. próximo a Bukhara, na região do Kurassan185. Ibn S÷nā ficou conhecido no
Ocidente como Avicena. Talvez mais do que nenhum outro, esse filósofo teve o perfil
do homem universal medieval versado em todos os saberes. Com Ibn S÷nā chega-se
não só ao apogeu da falsafa como também a um dos zênites da história da humanidade.
Seu nome ultrapassando, assim, os limites da própria falsafa, foi colocado ao lado dos
maiores nomes da história. Três aspectos levaram a esse quadro: o primeiro foi por
Ibn S÷nā ter recolhido grande parte das ciências e da filosofia de sua época; o segundo,
por ter sistematizado e reelaborado esse conjunto, resultando numa abordagem própria
e renovadora; e o terceiro diz respeito a sua presença marcante nos destinos da filosofia
e das ciências posteriores.
Ibn S÷nā esteve presente de modo decisivo tanto nos caminhos do
pensamento islâmico como nos caminhos do pensamento dos medievais do Ocidente
latino os quais, por sua vez, fizeram ecoar muitas teses avicenianas até o interior da
modernidade. Por essa razão, o seu lugar na história da filosofia é impar. Para que
ocupasse esse lugar de destaque, bastaria apontar o papel de sistematização e de
confluência que ele operou em sua obra a partir de toda tradição anterior das ciências,
da medicina e da filosofia. Mas, na medida em que reuniu a essa tradição anterior uma
série de novos elementos vindos de suas próprias reflexões, de suas experiências e de
sua prática médica, a sua importância foi muito além dessa síntese de grande
envergadura dos conhecimentos dos que o antecederam. Ibn S÷nā tornou-se um novo
ponto de partida e uma nova referência de grande parte de toda a tradição que lhe foi
posterior tanto no Oriente como no Ocidente. Nesse sentido, a sua obra é o que
185
Região da antiga Pérsia, atual Uzbequistão.
143
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
poderíamos chamar de um carrefour, um ponto de encontro onde, por um lado, muito
do que havia sido desenvolvido antes tendeu a encontrar um lugar seguro e, por outro
lado, o lugar de onde muito do que veio a se criar depois dele teve suas obras como
ponto de partida.
Gênio precoce que aliava um esforço sem limites para aprender tudo o
que lhe caía às mãos, Ibn S÷nā foi um auto-didata na maior parte de sua vida e abarcou
os principais conhecimentos de sua época. Ao mesmo tempo, tornou-se um dos mais
notáveis médicos que se teve notícia e ocupou cargos administrativos junto aos
soberanos de seu tempo sem deixar de escrever, simultaneamente, muitas páginas por
dia. Seria um engano imaginar que nosso filósofo, em seu mergulho ao conhecimento e
ao estudo, fosse uma figura recolhida que passou a vida em taciturnas práticas
ascéticas. Ao contrário, a vida de Ibn S÷nā foi um brinde à própria vida: mulheres,
vinho e música foram ingredientes que o acompanharam por todo o tempo. Uma vida
vivida intensamente em uma completa agitação, em meio aos afazeres junto aos
príncipes, à medicina e à composição de suas obras. Como disse Guerrero, “desse
poeta, músico, filósofo, médico, matemático e, inclusive gramático, que foi Abu ‘Ali
Ibn S÷nā se poderia esperar tudo: desde sofrer perseguição e ser encarcerado até ser
chegado ao vinho por ser este um poderoso reconstituinte das forças corpóreas e
intelectuais.”186 Muitos escritos e histórias fabulosas foram atribuídas ao sábio Ibn S÷nā
mas, por sorte, boa parte de sua vida nos é conhecida – e repetidamente citada –
devido a uma curta autobiografia que foi posteriormente completada pelo seu mais fiel
discípulo chamado Al-Jýzjān÷. Vejamos alguns dos principais acontecimentos que nos
são conhecidos mas, antes disso, tenhamos em mente uma breve cronologia de sua vida
segundo uma divisão de seis principais períodos que permitem reconstruir, em parte,
seu trajeto e as datas de suas principais composições. A divisão é a seguinte:
I¹ Período:
estada em Bukhara
II¹ Período: viagens
III¹ Período: estada em Jurjān
IV¹ Período: estada em Al-Ray
V¹ Período: estada em Hamadan
VI¹ Período: estada em Isfahan
186
GUERRERO, Avicena , op. cit., p. 21.
144
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Seu pai era originário de Balkh mas, antes mesmo do nascimento
de Ibn S÷nā, já havia se transportado para a cidade de Kharmaithan, na província de
Bukhara, onde se casou e passou a ocupar alguns cargos administrativos na região. Foi
nessa cidade que nasceu Ibn S÷nā e, depois, seu irmão. Aos dez anos já sabia o Alcorão
de cor “de modo que era objeto de imensa admiração.”187 Ainda jovem, foi iniciado
nos estudos de filosofia, jurisprudência, lógica, matemática, geometria e física sob a
orientação de um mestre local chamado Al-Nat÷l÷. Ibn S÷nā relata que estudou por si
mesmo os Elementos de Euclides e o Almagesto de Ptolomeu e que era capaz de
resolver todas as questões referentes a estas ciências sem que Al-Nat÷l÷ o pudesse mais
acompanhar. Então, Ibn S÷nā passou a se aprofundar no conhecimento da fisica e da
metafísica e assim – nos diz – “as portas da ciência começaram a se abrir para
mim.”188 Enquanto isso, decidiu também aprender a arte da medicina pois não a
considerou muito difícil e passou a ler todos os livros referentes a essa arte que lhe
chegavam às mãos. Em pouco tempo, os médicos da região vieram aprender medicina
com o jovem Ibn S÷nā que tinha, nessa época, apenas dezesseis anos.
Durante aproximadamente um ano e meio, dedicou-se incansavelmente,
dia e noite, ao estudo da lógica e das outras partes da filosofia. De sua própria pena
sabemos que através da construção de silogismos, nosso filósofo conseguia avançar no
conhecimento procurando respostas a todo o tipo de questão que se-lhe apresentava.
Além disso, sua autobiografia também testemunha sua piedade: “todas as vezes que um
problema me embaraçava, e que eu não podia
encontrar o termo médio de um
silogismo, me retirava à mesquita, orando, e invocava o Criador de Tudo até que ele
me revelasse a solução daquele fato difícil e obscuro.”189 Em outras vezes, enquanto
estudava até tarde da noite, Ibn S÷nā confessa que acabava caindo em sono profundo
mas continuava de tal modo envolvido com as questões que estava estudando que
muitas soluções lhe chegavam através de sonhos. Com tal persistência, aliada à
excelente memória e inteligência, Ibn S÷nā tornou-se mestre incontestável em lógica,
física e matemática antes mesmo dos vinte anos.
O seu contato com a metafísica também é frequentemente citado pelo
modo curioso pelo qual se desenrolou. Ele próprio narra que, nessa época, lhe chegou
às mãos o livro da Metafisca de Aristóteles sobre o qual, imediatamente, se debruçou
187
IBN SINA, Autobiografia, tradução em BADAWI, op. cit., p. 596.
BADAWI, op. cit., p. 597.
189
Ibid., p. 597.
188
145
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
em leituras mas estas se mostravam infrutíferas: “eu reli o livro da Metafísica por
quarenta vezes de modo que o aprendi de cor. Porém não podia compreender o que
havia em seu interior e nem o intuito de seu autor.”190 Ocorreu porém, que no dia
seguinte, estando num mercado de livros, um vendedor lhe ofereceu insistentemente
um livro de Al-Fārāb÷ intitulado Do Propósito do Livro da Metafísica . Ibn S÷nā
acabou comprando-o por uma ninharia e levou-o para casa afoito em conhecer o seu
conteúdo. Rapidamente leu o livro do velho Al-Fārāb÷ e teve imediatamente a perfeita
compreensão dos objetivos de Aristóteles. Em sinal de agradecimento ao Deus
Altíssimo, Ibn S÷nā saiu às ruas para distribuir esmolas aos pobres. Essa curiosa
passagem fez pensar que as dificuldades a que se referiu Ibn S÷nā poderiam ser devido
ao próprio vocabulário filosófico na metafísica que consistiu um obstáculo a ser
superado pela língua árabe que teve que adequar e, até mesmo, inventar termos que
ainda não existiam para poder expressar os novos conceitos provindos da filosofia
grega. Muitos dos novos termos e das adaptações da língua árabe, Al-Fārāb÷, havia
explicado em algumas de suas obras como nessa que foi citada por Ibn S÷nā.
Ainda durante o primeiro período, o príncipe de Bukhara, Nu¬ Ibn
Man½ýr, foi acometido de uma doença
que embaraçou os médicos que o
acompanhavam. Por não poderem curá-lo, Ibn S÷nā, já renomado nessa época, juntouse a eles e ajudou na cura de Man½ýr passando, dali em diante, a prestar seus serviços
ao príncipe. Não tardou muito para que Ibn S÷nā passasse também a freqüentar a
imensa biblioteca de Nu¬ Ibn Man½ýr a qual abrigava várias salas, cada uma acolhendo
um determinado assunto. Lá, Ibn S÷nā relata que leu o catálogo dos livros dos antigos
referente à filosofia e às ciências gregas e passou a estudar todas as obras que lhe
interessaram, amadurecendo sobremaneira seus conhecimentos. Nessa época, Ibn S÷nā,
contava somente dezoito anos.
Três anos mais tarde Ibn S÷nā começou a escrever seus primeiros
tratados atendendo a pedidos dos que os cercavam. Os temas desses primeiros escritos
eram variados e se compunham de resumos explicativos a respeito das ciências em
geral, comentários a alguns livros de filosofia e alguns escritos sobre moral. Porém,
nessa mesma época houve um acontecimento que alterou os rumos de sua vida: Ibn
S÷nā perdeu seu pai e seguiu, então, em pequenas viagens através de cidades próximas
190
Ibid., p. 598.
146
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
se estabelecendo, ao final desse período, na cidade de Jurjān onde conheceu AlJýzjān÷, seu discípulo e biógrafo. 191
Em Jurjān, um amante das ciências e da filosofia, chamado Al-Širāz÷,
adquiriu para Ibn S÷nā uma casa ao lado da sua e lá, o mestre passou a compor outras
obras. Desse período destacam-se alguns escritos sobre lógica, um resumo do
Almagesto e o início de sua grande enciclopédia médica, o Canon de Medicina. Antes
de se fixar de modo mais permanente em Hamadan, Ibn S÷nā passou, ainda, de Jurjān a
uma outra cidade próxima chamada Al-Ray onde ficou a serviço de uma senhora e de
seu filho Majd Al-Dawlah que, acometido por uma profunda melancolia, foi curado de
modo prodigioso por Ibn S÷nā.
Em seguida, Ibn S÷nā se transferiu para Hamadan e ocupou o cargo de
vizir junto ao príncipe Šams Al-Dawlah. Nesse período, Al-Jýzjān÷ lhe pediu que
compusesse alguns comentários sobre as obras de Aristóteles mas Ibn S÷nā se recusou
e preferiu escrever um obra própria de grande envergadura, expondo de modo
sistemático os principais conhecimentos científicos e filosóficos de seu tempo aliados
às sua idéias e às suas experiências pessoais. Essa composição é sua obra Al-Šifā` / A
Cura dividida em quatro partes: Lógica, Matemática, Física e Metafísica. Nesse tempo
Ibn S÷nā acumulava as funções de vizir ao mesmo tempo em que escrevia
aproximadamente cinquenta páginas por dia sem consultar nenhum livro, conforme nos
relata Al-Jýzjān÷:
“Ele havia escrito o primeiro livro do Canon, e todas as noites seus
discípulos se reuniam em sua casa. Alternávamos na leitura: enquanto
eu lia a Al-Šifā`, algum outro lia o Canon. Quando terminávamos,
diferentes classes de cantores se faziam presentes e a sessão de
bebidas com seus utensílios era preparada da qual participávamos. A
instrução tinha lugar à noite, devido à escassez de tempo livre durante
o dia por causa do serviço do mestre ao príncipe.” 192
Com a morte de Šams Al-Dawlah, seu filho Tāj Al-Mulk assumiu o poder em
Hamadan. Nessa época Ibn S÷nā escreveu ao príncipe de Isfahan ‘Alā’ Al-Dawlah com
o intuito de prestar-lhe serviços mas quando Tāj Al-Mulk soube dessa
correspondência, mandou prender (!) Ibn S÷nā que acabou permanecendo no cárcere
191
Até este ponto, todas as informações foram fornecidas pelo próprio Ibn Sina. O que vem a seguir foi
relatado pelo próprio Al-J…zj¡n≈.
192
GOHLMAN, W. E. The life of Ibn Sina. New York: State university of New York press, 1974, pp. 55
- 56.
147
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
por aproximadamente quatro meses. Mesmo na prisão, Ibn S÷nā compôs o tratado Hayy
Ibn Yaqzān escrito em linguagem simbólica. Libertado da prisão, Ibn S÷nā seguiu para
Isfahan sendo bem recebido pelo príncipe ‘Alā’ Al-Dawlah com quem havia se
correspondido anteriormente. Na nova corte, Ibn S÷nā tornou-se um sábio respeitado,
afirmando-se como um mestre incontestável em todas as ciências. Nesse período, ele
terminou sua obra maior Al-Šifā`, compôs a Al-Najāt / A Salvação e também o Dāne¹
Nama / O Livro das Ciências – uma das poucas obras que escreveu em persa e não
em árabe – Al-Juzjani relata que “o mestre era forte em todas suas faculdades, sendo a
sexual a mais vigorosa e dominante de suas faculdades concupiscíveis, e ele a exercia
frequentemente”.193
Durante uma viagem em companhia do príncipe, Ibn S÷nā foi acometido
por fortes cólicas que o obrigaram a voltar para Isfahan para tentar um auto tratamento.
Numa nova viagem com o príncipe, Ibn S÷nā sofreu novamente fortes dores que o
obrigaram a voltar definitivamente a Isfahan. Nos relata Al-Jýzjān÷ que, depois de
tentar um novo auto tratamento, o mestre acabou por se render dizendo “o governador
que governa o meu corpo, já é incapaz de governar e agora o tratamento não beneficia
mais”194. Ibn S÷nā ainda permaneceu assim doente por mais alguns dias mas não teve
mais forças para resistir e acabou falecendo. Tinha, então, 58 anos de idade. Sua
tumba se encontra em Hamadan.
Numa vida bastante agitada, vivida plenamente, dado à bebida, ao amor
e à música, ele não poupou suas forças e alcançou uma envergadura filosófica e
científica de grande excelência. A extensão de sua obra e a longevidade de sua
influência tanto na história do pensamento do Oriente como do Ocidente leva qualquer
menção de poucas páginas ao inteiro fracasso. No entanto, apenas a título de ilustração,
algumas indicações podemos fornecer.
Na arte médica, Ibn S÷nā figurou entre os maiores médicos da história
da medicina, pertencendo à tradição herdada dos gregos através dos árabes pela qual
foram difundidas muitas teorias de Hipócrates e de Galeno. Sua obra Al-Qanýn fi alTib / Cânon da Medicina, uma síntese dos conhecimentos médicos de sua época e de
suas próprias experiências, foi adotada nas universidades européias até o séc. XVI d.C.,
– portanto, por mais de quinhentos anos após sua morte – como texto de base para o
ensino médico.
193
194
Ibid., p. 82s.
Ibid., p. 89.
148
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Na área da filosofia suas principais fontes foram as obras de Aristóteles
e as teses de Al-Fārāb÷. Deste herdou principalmente a doutrina cosmológica com a
vasta descrição metafísica e sistemática do mundo, a hierarquia das inteligências e a
emanação das esferas do Ser Necessário até o mundo sublunar, ligando o pensamento
plotiniano da emanação à doutrina aristotélica do intelecto. A excelência simultânea
nas duas áreas do conhecimento, isto é, medicina e filosofia, é um guia importante
quando se quer compreender as relações que Ibn S÷nā estabeleceu entre as teorias
médicas e as filosóficas.
Devido a extensão de sua obra, geralmente, os estudos a esse respeito
ora privilegiam seu aspecto médico e científico, ora seu aspecto lógico e filosófico, ora
seu aspeto poético e simbólico e ora seu aspecto religioso. No entanto, Ibn S÷nā possui
uma integração de todos esses elementos não só em sua obra, regida de modo
harmônico, mas também em sua própria vida temperada de plurais facetas. Seu sistema
e suas
grandes teses são repetidamente expostas em várias obras e variam em
extensão, desenvolvimento e posição mas não parecem apresentar alterações radicais
ao longo de sua vida.
Sua obra é bastante extensa. Na autobiografia de Ibn S÷nā, Al-Jýzjān÷
cita 45 títulos, mas depois da morte do mestre a lista foi crescendo até chegar a 276
títulos no catálogo de Anawati195. Nessa última classificação figuram uma grande
gama de assuntos tais como filosofia geral em 24 títulos; física em 26 títulos; 33 sobre
psicologia; 43 títulos de medicina; lógica em 22 títulos; 15 sobre matemática, música e
astronomia; 32 sobre metafísica; 32 tratados alegóricos; 11 títulos sobre moral,
economia e política; 6 títulos sobre a exegese do Alcorão; 22 cartas pessoais e 3 títulos
sobre lingüística.
Dentre todas elas, a Al-Šifā`, escrita em árabe, é a mais completa obra
de Ibn S÷nā. Segundo a divisão de sua vida nos seis grandes períodos citados
anteriormente, essa obra estaria situada nos dois últimos períodos, isto é, nas suas
estadas em Hamadan e posteriormente em Isfahan. “A obra, iniciada em Hamadan, foi
terminada 10 anos depois em Isfahan, quando Ibn Sina tinha 50 anos.”196 Portanto,
esta seria uma das obras da sua maturidade. De caráter enciclopédico, a Al-Šifā`
apresenta-se como um conjunto ordenado que agrupa grande parte das ciências
195
ANAWATI , op. cit., pp. 407-440. Alguns títulos talvez possam se referir à uma mesma obra.Cf.
GUERRERO, Avicena , op. cit., p. 21
196
MADKUR, I. B. “ Al-Shifa - O universo em um livro.” Revista O Correio da Unesco. Rio de Janeiro:
ano 8, nº12, 1980, p. 22.
149
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
conhecidas em seu tempo e não se assemelhando em nada a um comentário aos
antigos, mas sim uma nova síntese, na qual Ibn S÷nā introduz suas próprias pesquisas e
hipóteses pessoais. A envergadura dessa obra, com tal soma de assuntos filosóficos,
permitiu que Madkur afirmasse que “não encontramos nenhum livro de filosofia que se
assemelhe a ela”197 . Poucos livros exerceram em determinado período da história uma
influência tão grande quanto a Al-Šifā`, um marco da história da ciência e da filosofia
em que há um certo afunilamento, uma reunião, na qual tudo o que fôra produzido
nesse âmbito tende a repousar, como síntese dentro de seus limites e, por outro lado,
muito do que veio a ser realizado depois, parte, também, dessa síntese, então realizada.
“Nessa obra-prima de Avicena aparece o duplo aspecto da personalidade do autor:
influência recebida e reação pessoal; simples assimilação e contribuição original.”198
No prólogo, o filósofo declara a intenção de reunir os conhecimentos essenciais da
filosofia e das ciências da época:
“Nosso objetivo neste livro – esperamos que nos seja concedido
tempo suficiente para terminá-lo e que a ajuda de Deus nos
acompanhe para compô-lo – é registrar nele a quintessência dos
fundamentos que verificamos nas ciências filosóficas atribuídas aos
antigos, fundadas na especulação ordenada e comprovada, e os
fundamentos descobertos pelas inteligências que se ajudam entre si
para perceber a verdade (...)Procurei registrar nele uma grande parte
da arte [da filosofia]. (...) Esforcei-me em ser muito breve e me
esquivar absolutamente das repetições. (...) Nos livros dos antigos não
se encontra nada que não tenhamos levado em conta e não tenhamos
incorporado neste nosso livro. Se não se encontrar no lugar em que
usualmente os estabelecemos, será encontrado em outro lugar que me
pareceu mais conveniente.” 199
Ibn S÷nā, mantendo um perfil aristotélico, divide as ciências em teórica e prática. A
ciência teórica se subdivide em três níveis – superior, média e inferior –. A superior é a
filosofia primeira, ciência divina ou metafísica. A média é o saber matemático:
aritmética, geometria, astronomia, ótica e música teórica. A terceira é a física ou
ciência da natureza. A ciência prática compreende a ética e a política. Na Al-Šifa’
197
Ibid., p.22.
Ibid, p. 28.
199
Al Shifa, Lógica, 1, Introdução, ed. árabe, pp. 9-10 in GUERRERO, R. R. Avicena Madrid: Ediciones
del Orto. 1994, pp.53-54. Há também uma tradução deste trecho in MADKUR, I. B. “ Al-Shifa - O
universo em um livro.” Revista O Correio da Unesco. Rio de Janeiro: ano 8, nº12, 1980, p. 22.
198
150
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
assim encontramos essa divisão a partir das quatro partes: Lógica; Física; Matemática e
Metafísica:
A Lógica está disposta em nove livros:
1)
Isagoge,
6) Dialética,
2)
Categorias,
7) Sofística,
3)
Perihermeneas,
8) Retórica
4)
Primeiros Analíticos,
9) Poética,
5)
Segundos Analíticos,
A Física se dispõe em oito livros:
1)
A Física propriamente dita,
5) Os Meteoros
2)
O Céu e o Mundo,
6) A Alma
3)
A Geração e a Corrupção,
4)
As Ações e Paixões,
7) As Plantas
8) Os Animais
A Matemática é disposta em quatro livros:
1)
Geometria,
2) Aritmética,
3) Música,
4) Astronomia.
E, finalmente a Metafísica que se apresenta em dez livros.
Uma das discussões que dividiu – e ainda divide (!) – estudiosos de Ibn
S÷nā refere-se a uma possível doutrina esotérica e mística de nosso filósofo que se
oporia ao conteúdo da Al-Šifa’ e de outras obras escritas ao estilo dos peripatéticos. A
quantidade e diversidade dos temas que expõe em seus livros, os escritos em
linguagem simbólica e algumas de suas próprias afirmações contribuíram para isso e,
como há obras tanto no estilo peripatéticos como no estilo simbólico, impor-se-iam,
assim, muitas dificuldades para se expor seu verdadeiro pensamento. No próprio
prólogo da Al-Šifa’ Ibn S÷nā declarou:
“Além desses dois livros tenho outro.(...) é o meu livro sobre A
Filosofia Oriental. Por outro lado este outro livro (Al-Šifa’) é mais
detalhado e está mais de acordo com os companheiros peripatéticos.
Quem quiser a verdade sem rodeios deverá se dirigir àquele outro
livro ( A Filosofia Oriental); quem quiser a verdade de maneira que se
151
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
produza uma certa satisfação aos companheiros(...) não necessita do
outro livro, então que se dirija a este (Al- Šifa’)”200.
Essa declaração suscitou uma série de problemas. O primeiro deles é que o título da
obra que poderia ser lido tanto como “filosofia oriental” como “filosofia iluminativa”.
Não é demais lembrar que na língua árabe as vogais breves não são expressas por meio
de letras do alfabeto, mas por meio de sinais diacríticos que geralmente não são
anotados na escrita. No caso em questão, a grafia ¢z„° ( m¹rq ) pode ser vocalizada
de duas formas distintas:
¢z„° / ma¹riq que significa “oriente” ou ¢z„° / mu¹riq
que significa “iluminado”201. A segunda leitura poderia indicar um caráter místico em
suas doutrinas. O segundo problema é que a obra a que Ibn S÷nā se refere, isto é, A
Filosofia Oriental foi, em sua maior parte, perdida. Só chegou até nós uma pequena
parte da lógica.
No entanto os fragmentos que chegaram da chamada Filosofia Oriental
, intitulados como Lógica dos Orientais não confirmaram uma doutrina esotérica. A
Filosofia Oriental é um tratado completo de filosofia em três partes: Lógica, Física e
Metafísica que segue o mesmo plano das obras anteriores não se tratando, pois, nem de
mística e nem de filosofia esotérica. Uma leitura dos fragmentos mostra, também, que
não há sentido em supor que houvesse nesse tratado uma “filosofia oriental” original
de Ibn S÷nā que fora perdida e que se oporia a todo o desenvolvimento da filosofia
peripatética encontrada em suas outras obras. No prólogo da Al-Šifa’,o que esteja
indicado, talvez, seja apenas uma distinção quanto ao modo com que apresenta sua
doutrina: ou ao modo comum dos peripatéticos ou de um modo pessoal sem a
preocupação com o método anterior.
Por outro lado, os defensores da tese de uma doutrina esotérica em Ibn
S÷nā entenderam, ainda, que esta não deveria ser procurada especificamente na obra
denominada Filosofia Oriental mas que a sua “filosofia oriental” estaria dispersa ao
longo dos escritos de linguagem simbólica. No entanto, Badawi lembra que o próprio
200
GUERRERO, R.R. Avicena. Madrid: Ediciones del Orto, 1994, p.55. Para um aprofundamento da
discussão do caráter destas duas obras que dividiu boa parte dos estudiosos, remetemos a GOICHON, A.
M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médievale. Paris: Librarie d'Amérique et
d'Orient. Paris, 1940, pp. 1-53; CORBIN, H. Histoire de la philosophie islamique. Paris:
Gallimard,1986, Cap. V, item 4-Avicenne et le avicennisme-, pp. 238-247; e BADAWI, A. Histoire de
la Philosophie en Islam. Paris: J.Vrin, 1972, p. 609-610.
201
Badawi refere-se ao “magistral artigo de Nallino”que demonstra definitivamente que o título deve ser
lido como filosofia “oriental”e não “iluminativa” .
152
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Ibn S÷nā se quando refere à “filosofia oriental”, está sempre se referindo a um livro e
que, quando divide os filósofos em orientais e ocidentais entende que os primeiros são
os peripatéticos de Bagdá e os segundos os comentadores gregos de Aristóteles e nada
além disso.
Como bem observou Guerrero, deve se levar em conta que o
pensamento de Ibn S÷nā se assentou sobre dois pilares: um proveniente da Grécia e
outro da tradição da antiga Pérsia. “ O dinamismo interno de seu pensamento, o
esforço que o levou a construir seu sistema, foi o resultado de uma constante e
contínua preocupação por um conhecimento intelectual, intuitivo e experimental ao
mesmo tempo.”202 Permitindo-se usar uma dupla linguagem seus escritos visariam,
assim, atingir leitores de culturas e de entendimento diferenciados. Tal perfil eclético
explicaria os textos que escapam à linguagem filosófica e que poderiam, erroneamente,
levar a crer tratar-se de doutrina esotérica. Conhecendo-se sua exposição lógica e
filosófica verifica-se que “ainda que lidos em chave mística e simbólica, como relatos
visionários, tais textos apenas expõem sua doutrina em outro estilo literário.”203
Os textos escritos em linguagem simbólica parecem se diferenciar
apenas no tipo de linguagem, configurando-se em belas metáforas que, por sua vez,
podem ser reconduzidas às demonstrações lógicas que se encontram nas obras de
caráter científico e filosófico. Essa possibilidade dificultou, portanto, que a abordagem
de um caráter puramente místico em Ibn S÷nā fizesse sentido. Dupla linguagem não
significa dupla doutrina. Mesmo quando ele se refere a um tipo de ascese, esta só pode
ser entendida a rigor como uma ascese da parte mais nobre da alma: o intelecto. Nesse
sentido, o máximo que se poderia conceder seria entendê-la como uma razão mística
ou uma mística racional.204 “Avicena não foi um místico, nem um esotérico que
escreveu em linguagem cifrada para iniciados. Só se preocupou pelas mesmas questões
que ocuparam os demais filósofos.”205
As primeiras traduções, de partes de sua obra foram feitas para o latim,
entre os séculos XII e XIII d.C./ VI e VII H. notadamente na Espanha, que teve na
cidade de Toledo um importante centro. Essas traduções representaram muito pouco
do total de sua obra, o que fez o Ocidente medieval latino conhecer apenas uma
pequena parte da Al-Šifa’. Não obstante algumas dificuldades de identificação dos
202
GUERRERO, op. cit., p. 23.
Ibid., p. 23
204
BADAWI, op. cit., p. 662.
205
Ibid 24.
203
153
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
tradutores e até mesmo da qualidade das primeiras traduções de sua obra, estas foram
suficientes para despertar o espírito dos ocidentais medievais para novas considerações
de toda ordem, tornando-as referência, praticamente, presente em todas as formulações
medievais posteriores. Ibn S÷nā, ao mesmo tempo, trouxe a ciência dos antigos de
maneira reformulada e mais completa através de suas próprias contribuições. Sua
filosofia, conhecida principalmente pela Metafísica, os tratados Do Céu, Dos Animais,
Sobre a Geração e a Corrupção, Da Alma, além de fragmentos de lógica e das ciências
naturais (Física), foi um grupo de escritos que, nas palavras de Goichon, se comportou
como o “primeiro conjunto de doutrinas verdadeiramente constituído que chegava ao
ocidente”206. No
Ÿ´«[ ]\c¨ / Kitāb al-Nafs /O Livro da Alma
(Livro VI da parte
da Física da Al-Šifā'), nosso filósofo desenvolve sua doutrina que, iniciada pelos
princípios aristotélicos na afirmação da alma como uma forma do corpo, termina por se
aproximar de certa inspiração neoplatônica de perfil espiritualista. Ao longo desse
tratado, Ibn S÷nā classificou e estudou as faculdades anímicas e, a partir dessas
relações, procurou explicar inúmeras afecções da alma como, por exemplo, a
melancolia, a tristeza, a alegria, a raiva entre outras; temática estudada, hoje em dia,
pela psicologia moderna. Em razão desse amplo desenvolvimento, algumas vezes
encontramos referências a Ibn S÷nā quanto à sua “psicologia” e particularmente a esse
tratado, que ficou conhecido como “A Psicologia de Avicena”. O Livro da Alma foi
importante na história do pensamento não só pelo seu próprio conteúdo mas também
porque apresentava, pela primeira vez, uma síntese do De Anima de Aristóteles, tendo
causado grande impacto sobre a teologia cristã medieval. Muitos nomes da escolástica
universitária cristã tais como Alberto Magno, Rogério Bacon, Tomás de Aquino e
Duns Scot procuram referências nas obras de Ibn S÷nā, o citam frequentemente e, em
muitos casos, apóiam-se nele.
A guisa de resumo e, sem entrar em detalhes em cada um dos temas que
compõe sua filosofia, pode-se dizer que as contribuições de Ibn S÷nā estenderam-se
praticamente a todos os ramos da filosofia desde a lógica até a metafísica. Em linhas
gerais, Ibn S÷nā se amparou em muitas das teses estabelecidas por Al-Fārāb÷. Este foi o
caso de sua visão cosmológica que seguiu o ritmo das emanações das dez inteligências
a partir da distinção entre o ser necessário por si e o ser necessário por outro. A lógica
ocupou um lugar central no desenvolvimento de seu pensamento. A esta dedicou
206
GOICHON, La philosophie d’Avicenne, op. cit., p. 90.
154
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
quase a metade de sua obra Al-Šifā'. Na metafísica, considerou o ser enquanto ser o
objeto próprio dessa ciência e elaborou sua doutrina a partir do estabelecimento da
distinção entre ser necessário por si, ser possível por si e necessário por outro. Nesse
sentido a metafísica de Ibn S÷nā adquiriu um sentido “onto-teo-lógico”. Nela
encontram-se quatro vias que indicariam a existência de Deus. Também a ele se deveu
um aprofundamento significativo na distinção entre essência e existência e na
preeminência da primeira noção. Na doutrina dos universais distinguiu três modos: sua
existência nas coisas particulares, no intelecto e em si mesma a que chamou de
natureza comum. Além disso, Ibn S÷nā criticou e refutou a doutrina das idéias segundo
os platônicos.
Todos esses – e
muitos outros temas –
formaram um conjunto
harmônico e vigoroso em suas obras. Limitemo-nos à algumas palavras a respeito de
um dos pontos altos de seu pensamento referente à sua psicologia, ou seja, seu estudo
sobre a alma. De modo bastante original sua doutrina a esse respeito não se confunde
com nenhuma outra praticada por seus predecessores fossem árabes ou gregos. Suas
idéias a respeito da alma no Kitāb al-Nafs / O Livro da Alma não obstante ser
construída a partir dos elementos aristotélicos e neoplatônicos, apresentaram traços
originais que a destacaram sobremaneira de outras teorias do mesmo período,
procurando manter-se em perfeita harmonia com a cosmologia herdada de Al-Fārāb÷ e
com suas experiências médicas que se apresentam como sustentáculos empíricos às
suas teses.
A constatação da existência da alma é a primeira coisa de que se ocupa
Ibn S÷nā indicando que sua existência pode ser constatada através da observação dos
corpos que não são apenas sólidos, mas que são organismos que possuem
sensibilidade, movimento, crescimento, nutrição e outras atividades que
fazem
daquele corpo um ser vivo e não um sólido sem vida. Na medida em que há corpos que
não são dotados dessa características anímicas, forçosamente o corpo enquanto tal, não
pode ser o princípio de tais movimentos, restando, então, que devam existir princípios
além da própria corporeidade que sejam os responsáveis por tais movimentos. É
justamente isso, que é o princípio do qual procedem essas ações espontâneas, que
chamamos alma.
Sendo assim, na medida em que é certo que a alma faz parte do
composto do ser vivo, Ibn S÷nā aplica as categorias aristotélicas de ato e potência para
definir como ela participa dessa constituição. Se a alma fosse uma potência como a
155
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
matéria corpórea, deveria haver algum ato que realizasse o acabamento daquele
determinado corpo nesta ou naquela espécie. Ora, mas como é a própria alma que
realiza esse acabamento na matéria ela é, pois, o ato que faz com que determinada
matéria seja um vegetal um animal ou, então, um homem. A atualização e o
acabamento que a alma confere à matéria permite, pois, que ela seja definida como
uma forma em relação àquela determinada matéria que ela toma por receptáculo
passando a constituir as suas próprias faculdades pelas quais opera e dirige o ser vivo
para cumprir os atos referentes à vida.
Mesmo que, por vezes, haja referência ao termo “alma” no sentido do
conjunto das faculdades que ela forma no corpo – tais como as ações de crescimento,
geração e nutrição, movimento, sensibilidade e intelecção – sua melhor denominação é
ser uma “perfeição”. E, mesmo quando há referência ao termo “alma” no sentido de
que ela é uma forma – relativamente à matéria que ela tomou por receptáculo, sendo
que, desse modo, o composto matéria e forma se torna uma substância
207
vegetal ou
animal – , ainda assim é preferível para Ibn S÷nā que chamemos a alma de “perfeição”.
O termo “perfeição”, denota que a alma realiza na matéria o acabamento do gênero
pela atualização da espécie através dos seres particulares. Assim, quando se diz
“perfeição” estão incluídas as duas idéias, isto é, “forma” e “faculdade”.
Porém, não obstante o fato de chamá-la de perfeição ser o mais
apropriado, ainda é preciso verificar que o sentido de “perfeição” pode ser entendido
em dois níveis: no primeiro refere-se ao acabamento realizado na matéria e, no
segundo, refere-se ao exercício das próprias faculdades. Portanto, a alma, em vista da
atualização da espécie é uma perfeição primeira; tratando-se do exercício, das paixões
e ações vindas da espécie dessa coisa, é uma perfeição segunda. Ora, mas como a
perfeição segunda não pode existir sem a primeira, pode-se afirmar, finalmente, que o
que mais caracteriza a alma, – visto ser a definição mais geral que abarca todas as
outras – é ser perfeição primeira: “a alma que encontramos é, então, perfeição primeira
de um corpo natural, provido de órgãos, que pode realizar os atos da vida.”
208
Essa
definição aproxima-se bastante da definição dada por Aristóteles no De anima em que
afirma a alma como a forma de um corpo natural tendo a vida em potência, e também
como enteléquia primeira de um corpo natural organizado.209
207
Trata-se do συνολον de Aristóteles. Cf. Bakós n. 2.
IBN SINA, Kit¡b al-Nafs, trad. J.Bakós. Praga: Académie Tchecoslovaque des Sciences, 1956, p. 10.
209
ARISTÓTELES De anima II 412 a 20 e II 412b5.
208
156
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Porém, a matéria que a alma toma por receptáculo não é um estado
qualquer da matéria mas somente quando esta se apresenta segundo uma determinada
mistura dos elementos da natureza adequada para que a alma nela se manifeste. Isso
não deve ser tomado no sentido de que essa mistura resultasse num corpo que fosse a
causa da alma, mas é a própria alma que, a partir de tal mistura passa a formar o corpo
com os seus órgãos e suas faculdades para executar os atos da vida. Nessa medida, não
é o corpo com seu equipamento que é simplesmente forjado por si mesmo e entregue à
alma sem que essa intervenha em sua constituição, pois a alma não organiza algo que
lhe fôra dado com uma certa organização precedente. A alma vem ao ser
simultaneamente com a mistura adequada dos elementos. A alma vem ao ser
juntamente com a mistura que lhe é adequada e passa a formar o organismo corporal
que só é o que é graças à alma e, se ele é equipado para servir de instrumento no
exercício das atividades da vida, ele também o deve à alma. Por isso, pode-se dizer que
a alma constitui o seu próprio sujeito de inerência em ato e, por essa razão, é a
perfeição de um sujeito que é constituído por ela. Do contrário, deveria ter havido uma
outra perfeição primeira que o tivesse atualizado, o que não pode ser, pois isso foi
realizado justamente por ela. Se assim não fosse, a alma sobreviria a um sujeito já
formado e ela só poderia ser uma propriedade acidental.
A alma para Ibn S÷nā não é, pois, um acidente do corpo mas é uma
substância que vem à existência juntamente com a matéria que lhe é adequada. Uma
boa imagem disso, usada por Ibn S÷nā é o conceito da alma como artesã, pois ela, ao
realizar na mistura que ela tomou por receptáculo, a confecção de todos os seus
elementos vitais, é a artesã da espécie, atualizando o gênero naquela matéria específica,
tornando-a animada: “Logo, a alma é então a perfeição de um sujeito de inerência, e
esse sujeito subsiste pela perfeição. A alma é, além disso a que aperfeiçoa a espécie,
ela é a artesã desta.”210
Assim, Ibn S÷nā procura ultrapassar a definição da alma como forma do
corpo, faculdade ou perfeição e a define como uma substância que se manifesta
segundo faculdade, forma e perfeição: “a alma é uma perfeição como substância e não
inere.”211 Desse modo, a alma, emergindo no ser juntamente com o corpo, não morre
com a morte desse porque, sendo uma substância simples e imaterial não está sujeita à
210
IBN SINA, Kit¡b al-Nafs ,trad. Bakós, op. cit.,p. 23.
®|¬ «¼ z·½j«\§ ª\¯§ ²w[ Ÿ´«\Ÿ Cf. RAHMAN: I,3,32. Em BAKÓS: I, 3, 23, “ Donc
l’ame est perfection comme substance, non comme accident.”
211
157
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
corrupção como o corpo. Em outras palavras, a alma não precede o corpo mas desde
que vem à existência juntamente com ele, jamais cessa, mesmo quando do
desaparecimento deste. Do mesmo modo que não foi gerada pelo corpo, não perece
quando este se corrompe. Ibn S÷nā crê poder demonstrar a substancialidade da alma
também pelo que se passa com o ser vivo quando de sua morte: se a alma se separa do
corpo na hora da morte, este não permanece mais da mesma espécie, revestindo-se de
uma outra forma; ora, se a alma não interviesse na organização do corpo, não haveria
razão para que essa estrutura se perdesse depois da morte; não tendo sido produzida
pela alma, ela poderia se manter mesmo ao se separar dela, mas isto não ocorre
justamente porque “ a matéria animada só é o que é por uma mistura própria e por uma
disposição própria, sendo que a matéria só resta existente em ato nessa mistura própria
enquanto a alma permanece nela, pois é a alma que a coloca nessa mistura.” 212
A divisão proposta por Ibn S÷nā quanto à alma e suas faculdades
acompanha Aristóteles na clássica divisão segundo as espécies vegetal, animal e
humana. Em sentido absoluto as faculdades da alma podem ser estabelecidas segundo
as três espécies, havendo também o caso de ser possível utilizar-se os termos por
analogia. No primeiro caso está a alma vegetal, definida como perfeição primeira de
um corpo natural munido de órgãos, enquanto nasce, cresce e se nutre; referindo-se,
portanto somente ao próprio vegetal. No segundo caso encontra-se a alma animal,
definida como perfeição primeira de um corpo natural munido de órgãos, enquanto
apreende as coisas particulares e se move voluntariamente; referindo-se, portanto,
somente ao animal em sentido próprio. O terceiro caso é o da alma humana, definida
como perfeição primeira de um corpo natural munido de órgãos, enquanto se lhe
atribui a execução dos atos que se fazem por escolha refletida e por invenção efetuada
com discernimento, e também enquanto apreende as coisas universais. Em sentido
analógico pode se fazer referência às funções vegetativas da alma do animal, e às
funções vegetativas e animativas da alma do homem. Segundo essa divisão,
verifiquemos a classificação das faculdades da alma.
A alma vegetal possui três faculdades: a nutritiva, a do crescimento e a
da geração. A primeira delas é responsável pela assimilação de corpos distintos
daquele no qual ela está transformando-o em algo semelhante ao seu próprio corpo. A
segunda faculdade, isto é a do crescimento, aproveitando a transformação efetuada
212
IBN SINA, Kit¡b al-Nafs ,trad. Bakós, op. cit., p. 20.
158
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
pela nutritiva faz o corpo crescer proporcionalmente em altura, largura e profundidade.
A terceira, e última faculdade da alma vegetal, é a responsável pela geração, e age
tomando uma parte potencialmente semelhante ao corpo no qual está proporcionando
através de uma mistura adequada um outro corpo semelhante, em ato, ao seu.
No caso da alma animal, Ibn S÷nā estabelece uma ramificação básica em
duas faculdades: a motora e a perceptiva. A faculdade motora é entendida segundo
duas categorias: a pura excitação ao movimento pelo desejo e pelo apetite e o
movimento efetivo realizado pelo corpo. A faculdade do desejo enquanto pura
excitação opera segundo duas direções básicas, isto é, ou de aproximação em direção
ao que foi desejado como útil ou necessário e, nesse caso, chama-se faculdade
concupiscível ou, então, de desejo de afastamento e fuga em direção contrária ao que
foi considerado prejudicial e, nesse caso, chama-se faculdade irascível. Essas duas
faculdades motoras, enquanto pura excitação, têm apenas a função de estimar o que se
lhe apresenta, funcionando por atração e repulsa, excitando os músculos e os tendões
para que efetivamente ajam segundo o conjunto anatômico apropriado e terminem por
concretizar o que foi desejado. No caso da aproximação, provinda da excitação da
concupiscível, pode haver, por exemplo, contração de músculos, puxamento de tendões
e de ligamentos dos membros na direção do princípio ou do objetivo em questão. No
caso de afastamento, provindo da irascível, os músculos podem se relaxar e os nervos
se esticar em comprimento, colocando os tendões e os ligamentos em oposição à
direção do princípio em questão.
O segundo grupo de faculdades da alma animal refere-se à percepção e é
dividida por Ibn S÷nā em duas categorias: os sentidos externos e o sentidos internos. Os
sentidos externos são os cinco tradicionalmente conhecidos: a visão – localizada no
nervo213 ótico que é a faculdade responsável pela percepção das formas impressas no
humor cristalino que provém das imagens dos corpos coloridos; a audição – faculdade
estabelecida nos nervos dispersos na superficie do canal auditivo que percebe uma
forma qualquer que chegue à rede nervosa através da agitação do ar chegando ao canal
auditivo onde as ondas desse movimento relativo ao nervo se tocam e, então, escuta-se;
o olfato – faculdade estabelecida nas duas protuberâncias da parte anterior do cérebro
que tem por função perceber os odores que se encontram misturados ao ar; o paladar –
faculdade estabelecida no nervo estendido sobre o corpo da língua que percebe os
213
Note-se que todas as localizações nervosas das faculdades não se encontram em Aristóteles, visto que
ele não tinha conhecimento algum da existência dos nervos. (Cf. Bakós n.183).
159
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
gostos dissolvidos dos corpos quando estão contíguos à língua e, por fim, o sentido do
tato, que é uma faculdade estabelecida nos nervos da pele e da carne de todo o corpo,
tendo por função perceber tudo o que toca o corpo.
No caso dos sentidos internos, vale destacar o amplo desenvolvimento
que Ibn S÷nā dedica a este grupo de faculdades que está a meio caminho entre a
sensação e a intelecção. Essas faculdades – em número de cinco – são as responsáveis
por realizar um processo de abstração que é mais perfeito do que o dos sentidos
externos mas ainda imperfeito em vistas daquele realizado pelo intelecto.
Primeiramente, deve se ter em mente uma distinção fundamental para se entender o
funcionamento dos sentidos internos. Essa distinção se refere ao que Ibn S÷nā chamou
de apreensão das formas e apreensão das idéias:
214
“quanto às faculdades que
percebem interiormente, algumas são faculdades que percebem as formas das coisas
sensíveis, e outras percebem as idéias das coisas sensíveis.” 215 A diferença entre esses
dois modos de percepção é que a percepção da forma é realizada em conjunto com
algum dos sentidos externos enquanto a percepção da idéia, diferentemente,
é
realizada de modo imediato pelo sentido interno. O exemplo clássico usado por Ibn
S÷nā foi repetido incansavelmente pelos pensadores do Ocidente latino medieval e
consiste no seguinte: a ovelha percebe a “forma” do lobo, isto é, sua configuração, seu
aspecto e sua cor; com certeza o sentido interno da ovelha também percebe essa forma
do lobo, mas, primeiramente, ela é percebida somente pelo seu sentido externo. Por
outro lado, a “idéia” é a coisa que a alma percebe do sensível sem que o sentido
externo a tenha percebido anteriormente. Por exemplo: a ovelha percebe no lobo a
idéia de inimigo ou a idéia que torna necessário o medo e a fuga para longe dele sem
que o sentido externo perceba isso de modo algum; logo, isso que o sentido externo
capta primeiramente e, depois o sentido interno percebe, chama-se propriamente de
forma; e isso que a faculdade interna percebe à exclusão dos sentidos externos, chamase idéia.
Os sentidos internos ou faculdades perceptivas internas são em número
de cinco: o sentido comum, a formativa, a imaginativa, a estimativa e a memória.216
Um dos exemplos que Ibn S÷nā se utiliza para mostrar a necessidade de haver uma
214
215
Å´˜¯ /ma’ana e ºy½ˆ / sura
IBN SINA, Kit¡b al-Nafs ,trad. Bakós, op. cit.,p.30.
Ibn Sina usa mais de um nome para definir cada um dos sentidos internos. Cf. ATTIE, Os Sentidos
op. cit., anexo. Note-se que, apesar de Ibn Sina utilizar os mesmos nomes que se encontram em outros
autores, notadamente em Aristóteles, as funções não são as mesmas.
216
160
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
instância interna distinta dos sentidos externos consiste na percepção de uma gota de
chuva que cai. Ora, uma gota que cai, naturalmente é percebida por nós como se
descrevesse uma linha reta mas, nesse caso, os sentidos externos não podem nos
fornecer a percepção de uma linha reta pois eles percebem apenas o que é dado num
determinado instante. Quando o sentido externo apreende a gota de chuva a cada
instante, segundo a posição que ela ocupa, não pode apreender a continuidade entre
uma posição e as posições anteriores. Para que tal percepção ocorra, isto é, para poder
apreendê-la como uma linha reta é necessário a conservação das posições anteriores no
momento da apreensão da posição atual, o que requer necessariamente a intervenção
dos sentidos internos.
Os cinco sentidos internos são localizados por Ibn S÷nā nas câmaras
cerebrais e possuem funções distintas. O primeiro deles é o sentido comum que está
localizado no primeiro ventrículo do cérebro e funciona como um receptáculo geral
para as formas que chegam indistintamente através dos cinco sentidos externos. Seu
papel, dentre outros, é o de receber as formas provindas da realidade externa para
dentro do cérebro. Em seguida está a faculdade formativa que também se localiza na
extremidade do ventrículo anterior do cérebro e opera em conjunto com o sentido
comum enquanto tem por função conservar o que este recebeu dos cinco sentidos
particulares. Tais formas permanecem no cérebro após o distanciamento das coisas
sensíveis. Assim, se estabelece a continuidade entre a realidade externa e a realidade
interna: num primeiro estágio, os sentidos externos apreendem os sensíveis particulares
– isto é, a visão apreende a cor; a audição o som; etc. – num segundo estágio essas
formas são recebidas no cérebro, pelo sentido comum; depois, são estabilizadas pela
faculdade formativa que as mantém fixadas no interior do primeiro ventrículo cerebral.
Em sua natureza, o sentido comum possui certa maleabilidade para receber as formas e
atua como a água que é capaz de receber um determinado traçado mas não é capaz de
conservá-lo. Por isso, a conservação é feita num segundo estágio de recepção.
Ora, mas como é da nossa natureza compor formas que estão
estabilizadas com outras, é preciso que haja uma faculdade que realize essa função.
Essa é, pois, a faculdade imaginativa que está estabelecida no ventrículo médio do
cérebro perto do lóbulo médio do cerebelo entre ambos os hemisférios tendo por
função unir e separar à vontade as formas que estão estabilizadas na formativa. Assim,
somos capazes de compor novas formas que necessariamente não existem na realidade
externa. Desse modo se estabelece, além da continuidade das formas da realidade
161
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
exterior para a interior, também a criação de novas formas interiores através da
composição da imaginativa. No caso do homem, em vista da conjugação que essa
faculdade pode ter com a razão, ela é denominada cogitativa e é a responsável pela
união e separação das formas que possibilitam a cogitação.
Mas, como Ibn S÷nā havia alertado, há percepções que não são
propriamente “formas” das coisas mas são “idéias” das coisas – como no caso da
ovelha que percebe o perigo que o lobo significa – Para isso é necessário uma outra
instância que perceba essas idéias não sensíveis presentes nas coisas sensíveis
particulares. Essa é a faculdade estimativa, que se localiza na extremidade do
ventrículo médio do cérebro. Por último, funcionando como um depósito para as idéias
apreendidas pela estimativa, encontramos a memória que se localiza no ventrículo
posterior do cérebro. A sua relação com a estimativa é do mesmo tipo da relação da
formativa com o sentido comum pois a memória e a formativa são depósitos, isto é,
faculdades de conservação enquanto a estimativa e o sentido comum são faculdades de
recepção, sendo que a imaginativa é responsável pela composição das formas. No caso
das idéias que estão na memória, estas também podem ser combinadas. Entretanto isso
não é feito pela imaginativa pois esta não tem acesso às idéias mas somente às formas.
A composição das idéias é realizada pela própria estimativa que tem acesso ao depósito
das idéias e atua como se fosse a própria imaginativa para operar as funções de união e
separação das idéias. No animal, a estimativa opera como se fosse uma inteligência
animal. De todo modo, a articulação e a dinâmica dos sentidos internos a partir desse
estabelecimento primário de suas funções ganha dimensões bastante complexas na
medida em que umas se combinam com outras e, assim, Ibn S÷nā crê poder explicar o
funcionamento de inúmeras afecções da alma como, por exemplo, a tristeza, a ira e
outras do mesmo tipo.
No caso da alma humana, Ibn S÷nā utiliza-se de uma alegoria para
indicar que é possível ao homem constatar a existência de sua própria alma. Essa via
de indicação ficou conhecida como a alegoria do “homem suspenso no espaço”.
217
Nela, Ibn S÷nā propõe que concebêssemos um homem que houvesse sido criado de
uma só vez em toda sua perfeição. No entanto, embora criado perfeito, este homem
teria sua vista velada e estaria totalmente privado de seus sentidos, de modo que nada
pudesse sentir. Ele estaria caindo de cima abaixo num vácuo absoluto de maneira que
217
Esta alegoria também é referida “cogito” de Ibn Sina, no qual o homem, sem a intermediação do
corpo, se percebe existente e pensante.
162
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
sequer o ar o poderia tocar. Além disso, os seus membros estariam separados e não
poderiam se encontrar . Ora, nessas circunstâncias em que nenhuma realidade externa
lhe fosse percebida, pergunta-se Ibn S÷nā: seria possível que tal homem afirmasse sua
existência, apesar de não poder afirmar a existência de nenhum de seus membros, nem
suas entranhas, nem seu cérebro e seu coração, e nenhuma das realidades exteriores ?
A resposta dada por Ibn S÷nā, é positiva pois, mesmo destituído da apreensão de sua
realidade corporal e das realidades exteriores a ele, ainda assim, tal homem, de modo
imediato, seria capaz de afirmar-se como existente justamente pela existência da alma
nele. Para Ibn S÷nā isso se apresenta como uma evidência e, tal evidência de si mesmo,
alcançada de modo intuitivo e imediato, dispensa nosso filósofo de uma argumentação
exaustiva pois, por si só, ela é suficiente para que todo e qualquer homem possa
constatar a existência de sua própria alma. Vejamos como Ibn S÷nā termina esta
alegoria, chamando a atenção para tal evidência:
¬— ¹« »Àˆ\r \·u½k¼ a_f[ Ác«[ a[x«[ ²w\Ÿ Sendo assim, a essência cuja existência
±« Ác«[ ¹Î\Œ—[¼ ¹°€j z› ¹´˜^ ½· \¸´[
foi constatada possui uma propriedade na
medida em que ele [esse homem] é
Ŭ— ¹_c´ ²[ «[ −_€ ¹« ¹_´c°«[ [w\Ÿ G a_g distinto de seu corpo e de seus membros
¹³[¼ ±€kz› −^ ±€j«[ z› \Ï„ Ÿ´«[ u½k¼ que não eram constatados. Desse modo,
¹´— Ø·[w ²\§ ²[¼ ¹« z˜„c€° ¹^ āy\—
aquele que afirma, possui um meio para o
afirmar, em virtude da existência da alma,
! ¶\ˆ— –z£¿ ²[ i\co como algo distinto do corpo, ou melhor,
não-corpo. Assim, esse homem conhece
isso e o percebe, e se ele disso se
esqueceu, seria necessário adverti-lo. 218
Uma das melhores imagens da alma humana que nos fornece Ibn S÷nā é a de que ela
possui duas faces: “a nossa alma possui duas faces: uma face voltada para o corpo (...)
e uma face voltada para os princípios supremos.”219 Seguindo essas duas direções, Ibn
S÷nā distingue as faculdades da alma humana em “faculdade que age e faculdade que
218
IBN SINA, Kit¡b al-Nafs, edição do texto árabe por RAHMAN, F. Avicenna’s De Anima, Being the
Psycological part of Kitab Al-Shifa. London: Oxford University Press, 1960.
RAHMAN: I,1,16 / BAKÓS: I,1,13. A sentença final “ ¶\ˆ— –z£¿ ²[ i\co ” significa
literalmente “seria necessário bater nele com uma bengala (!)”.
219
»À«\˜«[ Âu\_°«[ Å«[ ¹j¼¼ !!! ²v^«[ Å«[ ¹k¼ G µ¸k¼ \´° Ÿ´¬« ²\¨Ÿ Cf. RAHMAN:
I,5, 47 IBN SINA, Kit¡b al-Nafs ,trad. Bakós, op. cit.,p.33.
163
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
conhece sendo que cada uma das duas faculdades chama-se intelecto por homonímia
ou equivocidade.”
220
Assim, temos duas faculdades: o intelecto prático e o intelecto
teórico. Sendo uma substância simples e una, mas que se relaciona com duas realidades
distintas – uma que está acima e outra abaixo dela –, a alma humana possui estas duas
faculdades que tornam possível a conexão entre ela e cada um dos dois lados. Pelo
lado inferior “nascem os hábitos morais e do lado superior nascem as ciências”.221
Acompanhando essa imagem, vejamos como Ibn S÷nā nos informa do papel da
filosofia:
“A filosofia tem como fim informar acerca das verdades de todas as
coisas na medida do possível ao homem. As coisas existentes, por sua
vez, ou existem sem depender de nossa vontade ou, então, existem por
nossa vontade e atividade. Ao conhecimento das coisas que pertencem
à primeira divisão chama-se filosofia teórica; ao conhecimento das
coisas que pertencem à segunda divisão chama-se filosofia prática. O
fim da filosofia teórica é aperfeiçoar a alma pelo conhecer; o fim da
filosofia prática é aperfeiçoar a alma, não pelo simples conhecer, mas
por conhecer o que há de ser feito e fazê-lo. Assim, o fim da teórica é
a aquisição de uma opinião que não é prática, ao passo que o fim da
prática é conhecer uma opinião que é prática.”
Na direção e comando do corpo está o intelecto prático que dirige o homem nos seus
atos particulares tais como as ações morais e políticas, a criação das artes e outras
ações realizadas em sociedade. Na outra direção, o intelecto teórico busca a aquisição
do conhecimento e das verdades supremas. Se, por um lado, o intelecto prático deve se
guiar pelo intelecto teórico, por outro lado, ele deve dirigir todas as outras faculdades
da alma e não se deixar dirigir por elas pois, se isso acontecer, corre-se o risco de se
criar hábitos morais vis por uma inversão na hierarquia das faculdades. Assim, o
intelecto prático governa o corpo mas não o faz de modo totalmente independente do
intelecto teórico pois este, em conexão com o lado superior e sob os influxos da
220
I, 5, 31. Também podem ser chamadas de faculdade prática e faculdade especulativa, ou ainda,
intelecto prático e intelecto teórico. Em Aristóteles são o intelecto teórico e o intelecto prático. O fim do
intelecto prático é a ação, dirigida ao bem prático e o contingente; enquanto o fim do intelecto teórico é
o necessário, isto é, o verdadeiro e o falso. O verdadeiro sendo absoluto, o bem relativo. (Cf. Bakós
n.210) . Note-se, ainda, que sendo faculdades da alma humana, não há uma localização fisica. Deve se
ter em mente que Ibn Sina acompanha em linhas gerais a divisão estabelecida por Al-Farabi mas não
totalmente.
221
IBN SINA, Kit¡b al-Nafs ,trad. Bakós, op. cit.,p.33.
164
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
inteligência agente (ª\˜€«[ −¤˜«[), recebe e adquire constantemente o efeito disso que
está acima dele para que a ação humana se guie pela verdade, em vista do bem.
Focalizando as primeiras definições a respeito do intelecto teóorico –
no Kitāb al-Nafs –, Ibn S÷nā o define como “ uma faculdade que tem a função de
receber a impressão das formas universais abstraídas da matéria.”222 O intelecto teórico
possui diversas relações com essas formas na medida em que passa da potência ao ato.
Segundo esses dois extremos – potência e ato –, Ibn S÷nā estabelece uma gradação no
interior do intelecto humano para representar os diferentes níveis em que se dá a
apreensão dos inteligíveis desde o seu grau mais comum – encontrado em todos os
homens –, até o seu mais alto grau – o limite do entendimento humano –, encontrado
em alguns poucos homens. Os graus são os seguintes: intelecto material, intelecto em
hábito, intelecto em ato, intelecto adquirido e, por fim intelecto sagrado. Inicialmente,
Ibn S÷nā distingue níveis de potencialidade para, em seguida, relacioná-los com os
distintos graus do intelecto.
A potência no seu sentido mais radical deve ser entendida como uma
aptidão total e absoluta da qual não é possível que algo resulte em ato como, por
exemplo, a potência de escrever que há numa criança de pouca idade. Num segundo
sentido já nuançado, a potência pode ser entendida de maneira mais desenvolvida
como, por exemplo, quando a criança já se inicia nas letras e já conhece a pena e o
tinteiro. Num terceiro sentido, a potência pode ser entendida como uma aquisição já
completa que pode ser usada a qualquer instante sem que haja a necessidade de uma
nova aquisição bastando que se decida a agir ou não como, por exemplo, a potência do
escriba perfeito na arte, quando se decide ou não a escrever. Tais níveis de potência,
Ibn S÷nā denomina: potência material; potência possível e perfeição da potência. Esses
três níveis de potencialidade, assim estabelecidos, indicam os graus com que o
intelecto apreende os inteligíveis distinguindo-se, inicialmente, três níveis na
intelecção, como se fossem três intelectos ou três faculdades intelectivas, ou ainda
graus diferenciados de apreensão por parte do intelecto teórico.
No primeiro caso, “o intelecto se encontra frente aos inteligíveis
em um estado de potencialidade absoluta”.
223
Esse é o intelecto material
(Á³×½À·«[ −£˜«[) e seu nome se deve justamente pela semelhança que guarda com a
222
223
RAHMAN I, 5, 48.
GUERRERO, R. R. Avicena. Madrid: Ed. del Orto, 1994, p. 46.
165
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
matéria prima que não possui por si uma forma, mas é sujeito de inerência para toda
forma. Na medida em que esse nível do intelecto ainda nada recebeu da perfeição que
existe em relação a ele, mantém-se em potência absoluta, é individualizado e pertence
a cada um dos membros da espécie humana. No segundo grau, ocorre que no intelecto
material já estão presentes os primeiros inteligíveis, isto é, os primeiros princípios
como, por exemplo, que o todo é maior que a parte, que duas coisas iguais a uma
terceira são iguais entre si, dos quais e pelos quais se chega aos inteligíveis segundos.
Esse segundo grau se chama intelecto em hábito ( »¨¬°«\^ −£˜«[ ), e pode se dizer em
ato em relação ao primeiro. No terceiro caso, a relação se dá conforme o que se
chamou de perfeição da potência sendo que os inteligíveis segundos estão em ato como
se estivessem armazenados e, quando quiser, o intelecto considera novamente essas
formas. Esse grau se denomina intelecto em ato (−˜Ÿ«\^ −£˜«[). Em sentido restrito
esses são os três graus do intelecto teórico e, de certo modo, talvez bastasse, no
estabelecimento dos meios pelos quais se dá o processo de apreensão dos inteligíveis
abstraídos da matéria, esse itinerário ritmado através dos três graus do intelecto
humano assim definidos: material; em hábito; em ato. Entretanto, Ibn S÷nā apresenta
mais dois graus que devem ser entendidos em sua relação com a inteligência agente.
São eles: o intelecto adquirido (u\Ÿc€¯«[ −£˜«[) e o intelecto sagrado (Á€v£«[
−£˜«[).
Antes de mais nada, deve se ter em mente que, no processo de passagem
da potência ao ato, é preciso que haja um intelecto sempre em ato que opere essa
passagem. Ibn S÷nā, – seguindo Al-Fārāb÷ – também entende que esse intelecto
sempre em ato que opera a passagem da potência ao ato no intelecto humano é uma
das inteligências separadas, – mais precisamente a décima inteligência pura e
separada da matéria – que ilumina o intelecto humano para que este consiga a
abstração destituída de todo laço material. Vejamos uma das passagens a esse
respeito:
“Às vezes a relação é uma relação do que está em ato absoluto. Isso
consiste em que a forma inteligível está presente no intelecto enquanto
este o considera em ato; então ele conhece em ato e sabe que o
conhece em ato. O que veio então ao ato nele chama-se intelecto
adquirido; e ele só se chama intelecto adquirido porque nos será claro
166
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
em breve que o intelecto em potência só passa ao ato por causa de
uma inteligência que está sempre em ato, e quando o intelecto em
potência se une por um certo modo de junção a esta inteligência que
está em ato, uma espécie das formas que são adquiridas do exterior se
imprime nele. Esses são ainda os graus das faculdades que se chamam
intelectos especulativos e, no intelecto adquirido está completado o
gênero animal e a espécie humana que pertence a ele; e aí a
inteligência humana já está assimilada aos princípios primeiros de
toda existência.” 224
Assim, o intelecto adquirido pode ser entendido, num primeiro sentido do seguinte
modo: “toda vez que ele quiser, ele pode se conectar à inteligência agente por um
modo de conexão na qual é concebido nele esse inteligível, sem que este inteligível
esteja presente em seu espírito e seja sempre concebido em ato em seu intelecto, não
como este inteligível era antes da instrução.”
225
Ou seja, atualizado um inteligível, a
alma como se soubesse a via pela qual pode acessá-lo na inteligência agente
novamente tal inteligível, o faz. Isso não significa que a alma o deva conhecer
novamente mas sim que o pode acessar novamente, pois tal inteligível em ato já fora
adquirido. Assim sendo, o que fora atualizado e fora denominado, a princípio, de
intelecto em ato, só o é em relação ao primeiro aprendizado, mas não o é em vistas do
uso deste inteligível. Sendo assim, o que se chamou de intelecto em ato tornar-se-ia
intelecto em potência em vista da atualização que faz do uso do inteligível sempre em
ato que está na inteligência agente. É por isso que nos diz Ibn S÷nā: “este modo de
intelecto está em ato por uma atualização, mas ele é a potência que vem ao ato na alma
para que a alma conheça por si o que quer conhecer, pois quando a alma quer, ela é
conectada – à inteligência agente – e nela desborda a forma inteligível; e essa forma é,
na verdade, o intelecto adquirido, enquanto que essa potência é o intelecto em ato em
nós enquanto ele tem a conhecer. E quanto ao intelecto adquirido, ele é o intelecto em
ato enquanto é uma perfeição.”226
O intelecto adquirido pode ser entendido no sentido de que o
conhecimento consiste na atualização provocada por uma forma inteligível vinda do
exterior e dele deve se entender o próprio inteligível, atuado e infundido pela
224
IBN SINA, Kit¡b al-Nafs ,trad. Bakós, op. cit.,p.I, 5, 34.
Ibid, V, 6, 247.
226
Ibid, V, 6, 247 – 248.
225
167
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
inteligência agente.227 Assim, a diferença que se estabelece entre o intelecto em ato em
nós e o intelecto adquirido, é que este último é a perfeição da conexão entre o intelecto
em ato e a inteligência agente. Assim, “enquanto o intelecto em ato é uma faculdade, o
intelecto adquirido é uma perfeição”.228 Esta perfeição significa que a atualização dos
inteligíveis no homem é, de certo modo, sempre potência pois só pode ser assegurada
pelo desbordar constante da luz da inteligência agente no intelecto do homem para que
este seja capaz de atingir a abstração última e perfeita dos inteligíveis sem nenhuma
ligação com a matéria.
Não é demais lembrar que Ibn S÷nā estabelece quatro graus de
abstração: pelos sentidos externos, pela faculdade formativa, pela estimativa e pelo
intelecto. No último caso, o homem não tem condições de realizar isoladamente o
processo de abstração absoluta a não ser pelo desbordar da luz da inteligência agente
que lhe é externa e está localizada na esfera da Lua. O grau do intelecto adquirido
sublinha a dependência da esfera sublunar à esfera lunar ao mesmo tempo que liga a o
homem ao cosmos – que tem a inteligência como princípio – de modo inequívoco,
através de sua mais alta faculdade: o intelecto. De certo modo, a condição de
atualização dos inteligíveis na alma do homem já estava garantida no estabelecimento
do último nível de seu intelecto – o intelecto em ato –, mas o intelecto adquirido
sublinha a intervenção inexorável da iluminação da inteligência agente nesse processo
de apreensão. Por isso, a cada vez que o inteligível, já conhecido, ressurge na alma,
ocorre essa conexão da forma sempre em ato da inteligência agente com o intelecto
humano. Numa metáfora poderíamos dizer que estaríamos diante da própria visão do
toque de luz da forma inteligível sempre em ato da inteligência agente com o intelecto
humano que, tocado, passa ao ato e conhece, então, tal inteligível. Como disse Gardet,
“ é o intelecto humano que totalmente iluminado pela inteligência agente, separada,
torna-se espelho perfeito das formas inteligíveis.”229 Com certeza não se trata de uma
volta ao conhecido no sentido da reminiscência mas, com mais propriedade, trata-se de
um retorno ao princípio conhecido.
Nesse sentido, pode se entender que o intelecto adquirido, em última
análise, é comum a todos os homens pela própria realização da intelecção. No entanto,
227
GARDET, L. La pensée religieuse d’Avicenne. Paris: Vrin, 1951, p. 115: “Para Ibn S≈n¡, ao contrário
de Al-F¡r¡b≈, (…) o intelecto adquirido não é o intelecto humano enquanto potência atualizada, mas é
recebido por este último.”
228
GOICHON, A.M. Introduction a Avicenne – son épître des définitions. Paris: Desclée, 1933. p. 46.
229
GARDET, op. cit. p. 115
168
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
ao se afirmar que “é comum a todos os homens” com isto não se afirma que o grau em
que ele se dá seja o mesmo para todos os homens. Por exemplo: nos homens comuns, o
aprendizado é um meio para a apreensão dos inteligíveis e, portanto, para a atualização
do intelecto. Ibn S÷nā observa que no exercício do aprendizado há distintos graus de
aptidão entre os alunos: uns são mais rápidos na apreensão do conhecimento, enquanto
outros são mais lentos. Essa aptidão – chamada por Ibn S÷nā de “intuição intelectual”
(vo/ ¬ads) 230 – não sendo observada de modo equânime em todos os homens, é
passível de ser classificada segundo sua variação, podendo ser mais ou menos ativa.
Desse modo, admitindo-se que a variação dos graus da aptidão para a
recepção dos inteligíveis tem sua causa na variação da intensidade da intuição
intelectual, não é difícil perceber que Ibn S÷nā não encontra nenhum obstáculo para
afirmar que tal aptidão levada a um grau extremo, torna o homem que a possui, um
homem com qualidades bastante distintas das qualidades do homem comum. Dessa
maneira, abre-se a possibilidade de haver uma conexão entre o intelecto humano e a
inteligência agente sem que o aprendizado ou outro meio utilizado pelo homem
comum seja o meio com que tal homem se conecte com as formas inteligíveis. Resume
Ibn S÷nā:
“ Essa aptidão aumenta, às vezes, num certo homem de modo que,
para se conectar à inteligência agente, ele não tem necessidade de
muitas coisas, nem de educação, nem de ensinamento; ao contrário,
ele é forte na aptidão. É por essa razão que a segunda aptidão vem ao
ato nele, melhor, como se ele conhecesse toda coisa por si mesmo. E
esse é o mais alto dos graus desta aptidão. E essa disposição da
inteligência material deve ser chamada inteligência sagrada, mas essa
disposição é do gênero da inteligência hábito, salvo que a inteligência
sagrada é muito elevada. Ela não é disso que todos os homens
possuem em comum.” 231
230
GOICHON, A.M., Lexique de la langue philosophique d’Ibn Sina. Paris: Desclée, 1938 pp. 65 – 66,
o termo vn ®ads é definido como “intuição intelectual” – em oposição à “intuição sensível” – . A
®ads é entendida como um tipo de lampejo de compreensão que se produz no espírito, em que se
descobre subitamente uma verdade até então não percebida. Este caráter repentino da ®ads não exclui
um certo tipo de movimento para atingir o termo médio quando o problema é colocado ou para se atingir
o termo maior quando o termo médio é obtido. No entanto, não se trata do movimento progressivo mais
próprio da cogitação que caberia melhor ao termo ºz¨Ÿ /fikra (idéia - reflexão) que é um movimento
deliberado de busca.
231
RAHMAN V, 6, 248.
169
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Assim, o intelecto sagrado se apresenta não como um intelecto no mesmo sentido da
tríplice classificação inicial – material, em hábito e em ato – mas como um grau
extremo de conexão, aliás, o mais alto grau possível no processo de apreensão das
formas inteligíveis pelo homem, formas já presentes na inteligência agente. Neste
sentido também o intelecto sagrado se dá segundo as mesmas condições do intelecto
adquirido, sendo apenas de maior alcance. Em certo sentido, os dois se aproximam
bastante e Goichon232, ao analisar a hierarquia das faculdades apresentadas por Ibn
S÷nā, chegou mesmo a identificá-los como sinônimos.
No intelecto sagrado deve-se ter em conta que seu modo de apreensão
difere do aprendizado convencional porque é atualizado de modo imediato, isto é, sem
ensinamento ou paulatino aperfeiçoamento do entendimento. Por outro lado,
a
apreensão pelo intelecto sagrado continua mediada pela intuição intelectual e pelo
silogismo. A referência a esse tipo de conhecimento imediato deve ser entendido no
sentido de que ele se dá sem a mediação da instrução convencional de transmissão dos
termos da proposição através de um mestre ou de um aprendizado comum mas, o
processo permanece mediato enquanto se realiza, necessariamente, através dos
elementos do silogismo por meio da intuição intelectual. Nesse processo, a inteligência
agente pode infundir tanto o termo médio que movimenta o silogismo permitindo a
conclusão, ou então, infundir a própria conclusão. Numa primeira afirmação, Ibn S÷nā
faz uma distinção entre dois modos de apreensão das formas inteligíveis ao dizer que o
termo médio pode vir de dois modos à alma: ou pela intuição intelectual – em que a
alma descobre por si mesma o meio termo – ou pelo ensinamento. Ora, mas não são
também os princípios do ensinamento intuições intelectuais descobertas pelos mestres
dessas intuições intelectuais? Portanto, todo o conhecimento só pode se dar por meio
da intuição intelectual, seja ela mais lenta ou mais rápida, seja ela já conhecida por
alguns ou não.
No que tange ao Kitāb Al-Nafs parece bastante clara a distância de um
sistema de iluminação mística em Ibn S÷nā, a não ser que o entendamos como uma
espécie de iluminação racional que opera por silogismos. Nessa medida, todo
conhecimento das formas inteligíveis, inclusive o do intelecto sagrado, é intuição
232
GOICHON, op. cit. p.45 “ A hierarquia das forças compreende 26 graus, desde a mais alta forma da
inteligência até as qualidades dos corpos simples. O intelecto adquirido ou intelecto sagrado é servido
por todas as outras; abaixo dela vem o intelecto em ato, servido pelo intelecto em hábito, servido, ele
mesmo, pelo intelecto em potência (…) em homens raros, enfim, cuja preparação chega à perfeição, o
intelecto adquirido merece ser chamado sagrado.”
170
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
intelectual através do silogismo. Em suma, podemos entender o intelecto sagrado
como um largo espectro do intelecto adquirido mas, pela sua intensidade que não se
encontra no homem comum, Ibn S÷nā o nomeia intelecto sagrado. Não se trata de haver
modificação da qualidade entre os dois, mas de intensidade. Não sendo comum a todos
os homens, o intelecto sagrado, é característico apenas dos que possuem raras
qualidades na alma. Estas, por sua vez, são refletidas em sua conduta. Os atos desse
homem são guiados por essa régia conexão e sua faculdade prática, recebendo esses
influxos, é dirigida por tais princípios e não o guiam as faculdades hierarquicamente
mais baixas da alma, como por exemplo, os sentidos externos, os sentidos internos, as
faculdades motoras, os desejos e as faculdades vegetais. O contato desse homem de
alma nobre com a inteligência agente é mais intenso e mais constante, sem que com
isso transgrida qualquer premissa do entendimento natural da faculdade teórica da alma
racional. Na medida em que todo o entendimento somente é possível pela cadeia do
silogismo, Ibn S÷nā ao salvaguardar tais princípios e não pedindo jamais que os
abandonemos para entendermos os fatos surpreendentes realizados por alguns homens,
fundamenta logicamente a possibilidade de haver tal caso:
µ¯ ‰s„ ²½¨¿ ²[ [wÉ ²½¨¿Ÿ
Æ\Ÿˆ«[ ºv„^ Ÿ´«[ v¿Ì¯ \´«[
Å«É »À¬£˜«[ Âu\_°«\^ ª\ˆb×[ ºv„¼
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µ¯ \_¿z£ \¯É¼ »˜Ÿu \¯É ª\˜Ÿ«[
`Àbzc^ −^ \¿vÀ¬£b × \¯\€by[ »˜Ÿu
(...) Å‘€½«[ u¼vo«[ Ŭ— −°c„¿
Ŭ—Ç −^ º½_´«[ µ¯ ]z‹ [x·¼
¶x· Á°€b ²[ Å«¼Ù[¼ G º½_´«[ ½£
Ŭ—Ç Á·¼ G »À€v£ º½£ º½£«[
. »À³\€³Û[ ½£«[ `b[z¯
Ocorre, então, dentre os homens um indivíduo
com a alma fortificada por uma grande pureza
e pela estreita junção com os princípios
intelectuais, até que se inflame de uma
intuição intelectual, quero dizer, recebendo os
princípios intelectuais da inteligência agente
em todas as coisas, e que nele se imprimem as
formas que estão na inteligência agente, seja
de um só golpe, seja quase de um só golpe,
não de uma maneira figurativa, mas sim
seguindo uma ordenação que inclui os termos
médios (...) e isso é um tipo de profecia, ou
melhor, a mais alta das faculdades da profecia.
E esta faculdade é a mais digna de ser
chamada faculdade sagrada, e ela é o mais alto
grau das faculdades humanas. 233
233
RAHMAN, V, 6, 250. A referência final de que isto é “um modo” de profecia nos leva a perguntar
quais seriam, então, os outros. A título de indicação deveríamos nos remeter aos capítulos precedentes
do Kitab al-Nafs em que encontramos mais dois modos de profecias ligados a duas outras faculdades da
171
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
5.4 Al ¦azāl÷, o batedor
Quando, no período medieval, alguns escritos de Al-¦azāl÷ foram
traduzidos do árabe para o latim, os ocidentais o aclamaram como um filósofo
partidário de Ibn S÷nā e de Al-Fārāb÷.. Contrariamente, na história do pensamento
islâmico, Al-¦azāl÷ foi considerado o inimigo mais fervoroso da falsafa e um dos mais
importantes teólogos do islamismo. Não bastasse isso, pelas suas práticas ascéticas, Al¦azāl÷ aproximou-se dos sufis e muitos viram-no, ao final da sua vida, como um
místico. Esta trípice modulação explica o porquê é comum os livros o classificarem
como um importante “filósofo, teólogo e místico.” Quais as razões dessas
controvérsias? Afinal, em que medida a razão, o dogma e a meditação forjaram o
pensamento dessa personalidade tão polêmica da história do pensamento no Islām ?
Antes de tudo, porém, importa registrar que existem muitas razões para
Al-¦azāl÷ não figurar entre os filósofos, principalmente porque ele não foi um filósofo
– no sentido estrito do termo – e condenou as principais teses metafísicas de Al-Fārāb÷
e de Ibn S÷nā. Mas, por outro lado, existem também inúmeras razões para que ele
figure entre os filósofos, quanto mais num trabalho que se propõe a ser uma introdução
à falsafa. Uma da razões é a de que Al-¦azāl÷ utilizou em algumas de suas obras, os
métodos e os princípios da filosofia, ainda que fosse para criticá-la. Por esse motivo
importa sublinhar suas relações no que concerne à falsafa. Afinal, “o maior
personagem na história da reação islâmica ao neoplatonismo é Al-¦azāl÷: jurista,
teólogo, filósofo e místico.(!)”234
Como bem assinalou Hernandez, até aquele momento “a falsafa
realizara uma interpretação peculiar da sabedoria alcorânica e que, de certo modo,
representava uma substituição da teologia do kalām por uma cosmovisão peripatética
alma: a faculdade imaginativa e a faculdade motora. O modo de profecia associado à faculdade motora
permite, por exemplo, que o homem fortificado nesta faculdade interfira na matéria e na ordem da
natureza. Quanto à profecia ligada à faculdade imaginativa destacamos que, sem ela, os profetas não
poderiam, por exemplo, criar alegorias que mostram de uma maneira simbólica as verdades intelectuais
que podem lhe chegar pelo intelecto sagrado. Os três modos de profecia não são excludentes e podem
atuar em conjunto num mesmo homem, inserindo-se em três níveis: o sensível, o imaginativo e o
intelectual
234234
FAHKRY, Histoire de la philosiohie islamique, op.cit., p. 241.
172
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
neoplatonizada”235 que suscitou uma reação antifilosófica do kalām através de Al¦azāl÷. Imbuído pela convicção de que homens de reta moral poderiam levar de novo à
restauração da fé, Al-¦azāl÷ dedicou sua vida e sua obra a revivificar o Islām por meio
do crescimento da experiência religiosa de todos os crentes. Isso não poderia ser
realizado somente pelo kalām e por seus meios, já que não se tratava somente de
debater verdades mas, também, de realizar uma verdadeira transformação de vida que
fizesse viver os princípios teológicos na alma dos crentes.
Outro fator que deve ser levado em conta nesse período é que o cenário
político do séc.XI d.C./VH. no Islām sofrera profundas mudanças desde os tempos de
ouro do califado Abássida. Desde a chegada dos turcos seljúcidas ao poder em 1055
d.C., a era Abássida já havia entrado em decadência e, apesar do califado continuar
existindo, na prática, o poder estava, de fato, nas mãos do sultão turco. O ensino havia
adquirido um outro impulso pelo surgimento das “madrasas”, isto é, escolas que se
assemelhavam ao que viriam a ser as universidades ocidentais. Nesse cenário, a
teologia ganhou mais força, assim como os sufis. De Libera, assim resumiu esse
cenário de reação teológica: “após diversos séculos de filosofismo teológico, os
adversários da falsafa atacam em todas as frentes. Apoiado pelo poder seljúcida, o
rearmamento intelectual sunita vê os ataques de Al-¦azāl÷ e de Sarrastani
concentrarem-se naquele que é, ao mesmo tempo, o doutor dos “filósofos” e de
numerosos xiitas: Avicena.”236
É nesse quadro exterior de reação antifilosófica e, interior, de busca da
verdade que Al-¦azāl÷ entrou em contato com diversas vias de conhecimento de sua
época. Apesar de ter deixado muitos escritos, uma das dificuldades para traçar em
detalhes todo o pensamento de Al-¦azāl÷ derivou do fato da atribuição equivocada de
muitas dessas obras a ele. “Bouyges em seu Essai de Chronologie (ý) lista 404
títulos”237, mas muitos eram apenas títulos compilados de listas dos quais não havia
nenhum manuscrito; outros eram os mesmos escritos sob títulos diferentes. Somou-se a
isso a questão de se estabelecer com certeza a autenticidade de todos os escritos,
assunto que apresenta, ainda, muitas lacunas. Um dos métodos mais seguros que tem
guiado as pesquisas atuais para superar essa dificuldade tem sido a tentativa de
235
HERNANDEZ, Historia del pensamiento en el mundo islamico op. cit.,p.275.
DE LIBERA, A Filosofia Medieval op. cit., p. 124.
237
THE ENCYCLOPAEDIA OF ISLAM, op. cit., p. 1039.
236
173
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
matrizar o pensamento de Al-¦azāl÷ somente a partir das obras principais que estejam
sob indubitável autenticidade.
A sua principal e maior obra – tanto em volume como em importância –
denomina-se ’I¬yā’ ‘ulým al-d÷n / Revificação das Ciências da Religião em quatro
volumes que tratam dos cultos religiosos, dos costumes sociais, dos vícios e das
virtudes do crente para o caminho da salvação. Nessa obra de teologia e moral, Al¦azāl÷, procurou submeter a uma larga revisão a atitude religiosa e buscar o sentido
mais elevado que possa fazer penetrar a fé, em seu sentido maior, no coração dos
crentes. É um dos livros mais notáveis do Islām.
Quanto à sua vida, esta nos é conhecida, em boa parte, através de uma
obra autobiográfica intitulada O Salvador do Erro
ªØ‹«[ µ¯ x¤´°«[/ Al-Munqid
min Al-Åalāl. Nessa autobiografia, escrita a poucos anos de sua morte, Al-¦azāl÷ nos
conta boa parte de seu trajeto e de suas experiências em busca da verdade. Essa obra
faz mergulhar nos problemas intelectuais e espirituais contra os quais ele lutou durante
quase toda a sua vida. Segundo o seu próprio relato pode-se identificar quatro
principais períodos em sua vida: um primeiro período de estudos em sua cidade natal;
um segundo período como professor em Bagdá; um terceiro período de viagens; e o
último período no qual retornou à sua cidade natal. Vejamos isso com mais detalhes.
Abý ©āmid Mu¬ammad Ibn Mu¬ammad Al-Æýs÷
Al-¦azāl÷
nasceu em 1059 d.C./ 450 H. na cidade de Æýs, situada na região do Korassan, ao
noroeste da Pérsia. Ainda jovem perdeu o pai que, antes de morrer, confiara a tutela
dos dois filhos a um sábio sufi. Ainda jovem, Al-¦azāl÷ seguiu para Nay¹ābýr, um
centro intelectual importante da região nesse período e recebeu a primeira formação
nas ciências tradicionais islâmicas: Alcorão, Tradições, Comentários, Direito Islâmico
e as ciências auxiliares como a Gramática e a Lexografia. Além disso, Al-¦azāl÷ teve a
oportunidade de estudar com o teólogo de maior prestígio daquela época: Al-Juwajni
(m.1086) Com a morte do mestre, Al-¦azāl÷ deixou a cidade quando tinha por volta de
28 anos.
O segundo período importante de sua vida iniciou-se com a
transferência para a cidade de Bagdá. Tendo conhecido o vizir Ni¥ām al-Mulk,
fundador da universidade de Bagdá, Al-¦azāl÷ foi nomeado professor em 1091d.C./
484H. quando tinha por volta de 31 anos. Nessa época, já era um dos mais
proeminentes homens em Bagdá e, por quatro anos proferiu conferências para uma
174
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
audiência de mais de trezentos alunos. Enquanto isso, se dedicava ao estudo dos livros
de filosofia. A esse tempo escreveu contra os filósofos, Maqā½id al-falāsifa / As
intenções dos filósofos e o Tahāfut al-falāsifa / A Autodestruição dos Filósofos.
Após aproximadamente quatro anos ensinando na escola de Bagdá, Al¦azāl÷, iniciou um terceiro momento que foi decisivo em sua vida. Buscando uma
certeza interior que fosse inabalável à sua alma, entrou em profunda crise chegando a
abandonar a profissão e a família. Em 1095 d.C./ 488 H., aos 36 anos de idade, partiu
em busca da certeza que lhe fosse a garantia da verdade e sobre a qual pudesse
testemunhar o verdadeiro conhecimento. Durante dez anos, vestido do hábito dos sufis,
ele peregrinou, solitário, através do mundo muçulmano.. Apesar de o próprio Al-¦azāl÷
explicitar que razões pessoais o motivaram a sair de Bagdá, parecem ter existido
motivos políticos, que igualmente teriam pesado em sua decisão. De todo modo,
durante esse decênio, Al-¦azāl÷ viajou para Damasco, Jerusalém, Alexandria, Cairo,
Meca e Medina. O período de peregrinação e isolamento dedicado à meditação e às
práticas espirituais dos sufis se encerrou por volta de 1105 d.C./ 498H. quando Al¦azāl÷ tinha por volta de 46 anos de idade.
O último período de sua vida durou pouco mais de 6 anos. Neste, Al¦azāl÷, depois de ter superado muitas de suas dúvidas, retornou à sua cidade natal,
ensinando alguns anos mais em Nay¹ābýr. Foi nesse último espaço de tempo que
compôs sua obra autobiografica Al-Munqid min Al-∞alāl / O Salvador do Erro quando
tinha por volta de 50 anos. Al-¦azāl÷ morreu em 1111 d.C./ 505H. deixando gravadas
em sua busca pela verdade, passagens como esta:
“O verdadeiro conhecimento é aquele pelo qual a coisa conhecida se
descobre completamente diante do espírito, de modo que nenhuma
dúvida subsista a seu respeito e que nenhum erro a possa obscurecer.
É o grau no qual o coração não saberia admitir e nem mesmo supor a
dúvida. Todo saber que não comporta esse grau de certeza é um saber
incompleto, passível de erro.” 238
Enquanto ensinava em Bagdá, Al-¦azāl÷ escreveu a obra Maqā½id al-falāsifa / As
intenções dos filósofos, na qual se propôs a expor as idéias dos filósofos,
principalmente, de Ibn S÷nā e de Al-Fārāb÷, com o intuito de refutá-las numa obra
posterior. As intenções dos filósofos foi a principal responsável pela confusão que se
deu no Ocidente medieval latino quando Al-¦azāl÷ foi classificado como um filósofo
238
CORBIN , Histoire de la philosphie islamique, op.cit., p.256
175
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
árabe juntamente com Al-Fārāb÷, Al-Kind÷ e Ibn S÷nā. O motivo da confusão foi
bastante simples: a obra em questão foi traduzida do árabe para o latim sem o
respectivo prólogo no qual Al-¦azāl÷ explicava justamente o seu objetivo de apresentar
as idéias filosóficas com a maior clareza possível para criticá-las depois. Sem esse
alerta, os leitores foram levados a concluir que Al-¦azāl÷ seria partidário, e não crítico,
das idéias filosóficas que expunha. Fahkry observa que “esta exposição das doutrinas
do neoplatonismo árabe é tão habilmente escrita que um leitor negligente concluiria
que se trata da obra de um neoplatônico clássico, tal como concluíram os doutores
escolásticos do séc.XIII d.C.” 239. Vale observar também que a fidelidade é tal, que são
poucas as diferenças entre essa obra de Al-¦azāl÷ e o Livro das Ciências / Danesh
Nama de Ibn S÷nā.
A segunda obra que completava, em parte, a crítica de Al-¦azāl÷ aos
filósofos denominou-se Tahāfut al-falāsifa / A Autodestruição dos Filósofos, na qual
são enumeradas vinte teses que, segundo ele, mostrariam as contradições em que
estariam imersos os que professavam as teses dos filósofos. O termo aŸdŸ\¸b/
tahāfut, aliás, apresentou algumas dificuldades de tradução mas, em linhas gerais, pode
ser entendido como precipitação ou ruína, no sentido daquilo que tomba por sua
própria inconsistência. Por essa razão, às vezes encontramos o termo traduzido por
“incoerência”, apesar de este conceito não ser adequado pois, não contempla de
maneira explícita a noção de ruína que está presente no termo tahāfut.
Dos vinte pontos que Al-¦azāl÷ considerou como falsos na doutrina dos
filósofos, três se destacam por irem diretamente contra as afirmações do Alcorão, o que
o leva a condenar os filósofos por impiedade. Os três pontos em questão são os
seguintes: a afirmação, por parte dos filósofos, da eternidade do mundo, do não
conhecimento por Deus dos particulares e da não–ressurreição dos corpos. Em seu
fervoroso ataque, Al-¦azāl÷ negou a eternidade do mundo – assim como fizera AlKind÷ – e a processão plotiniana das inteligências. Também negou que a filosofia fosse
capaz de demonstrar a unicidade e a incorporeidade divinas.
O que chamou a atenção nessa crítica de Al-¦azāl÷ contra a filosofia
foi foi o fato de ele ter adotado os próprios métodos da filosofia para atingir seu
objetivo. Essa estratégia revelou a dificuldade inerente de se utilizar a lógica e a
dialética racional com o intuito de demonstrar a insuficiência dos argumento
239
FAHKRY, Histoire de la philosiohie islamique,op. cit.,p.246.
176
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
filosóficos que se baseiam na lógica e na dialética racional.(!) O manifesto paradoxo
em que se enredou Al-¦azāl÷ fez com que ele, em sua busca da verdade, nunca tenha
sido tão filósofo quando ao combater os filósofos. Foi para mostrar tal contradição que
Ibn Ru¹d escreveu, anos depois, uma obra em resposta ao Tahāfut de Al-¦azāl÷ que se
intitulou Tahāfut al-Tahāfut, isto é, a Autodestruição da Autodetruição... (!)
Na polêmica em torno do Tahāfut de Al-¦azāl÷, alguns autores julgaram
que essa obra teria sido um golpe mortal à filosofia, naquela época. Essa opinião, no
entanto, esteve longe de ser unânime. Segundo Corbin “pareceria ridículo dizer dessa
crítica, como foi dito no século passado, que ela trouxe um golpe da qual ela [filosofia]
não pode se recuperar no Oriente.”240 Certamente, Corbin se referiu à opiniões como a
de Munk, quando este afirmou que Al-¦azāl÷ teria desferido “à filosofia um golpe da
qual ela não pode mais se recuperar no Oriente, tendo sido na Espanha que ela
atravessou ainda um século de glória e encontrou um ardente defensor no célebre Ibn
Ru¹d.”241 Também contra essa visão de que a filosofia não teria mais continuado no
Oriente, após a crítica de Al-¦azāl÷, Badawi argumentou para mostrar que todas as
tentativas de Al-¦azāl÷ para se opor à filosofia aristotélica estiveram destinadas ao
fracasso pois nem a Autodestruição dos Filósofos e nem os outros escritos polêmicos
contra a filosofia teriam sido capazes de diminuir a força do pensamento aristotélico no
mundo muçulmano, ao menos por mais de trezentos anos após a morte de Al-¦azāl÷.
Para justificar essa posição, Badawi cita alguns grandes nomes no Oriente que se
referem ao período que se estende três séculos depois de Al-¦azāl÷ como, por exemplo,
Abý al-Barakāt e Fahkr al-Din al-Razi , e afirma – de modo contundente – que esse
seria um exemplo “para refutar esta opinião estúpida e ridícula segundo a qual Al¦azāl÷ desferiu um golpe mortal na filosofia no Islām! Não sei qual imbecil emitiu pela
primeira vez esta bobagem, repetida com estardalhaço pelos pretensos historiadores
modernos e contemporâneos da filosofia muçulmana.”242
De todo modo, foi perceptível o esmorecimento da falsafa após Al¦azāl÷. Uma posição mais comedida, talvez possa ser encontrada em Watt que
reconhece que “depois do criticismo dos filósofos não há mais grandes nomes no
movimento filosófico no Islām oriental, mas não está claro o quanto do declínio da
filosofia é devido ao criticismo de Al-¦azāl÷ e o quanto é devido a outras causas. Sua
240
CORBIN, Histoire de la philosiohie islamique,op.cit., p. 255.
MUNK, S. Melanges de philosophie, op.cit.,p.382s.
242
BADAWI, Histoire de la philosophie en Islam op.cit., p.84.
241
177
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
continuidade no Islām ocidental, onde o Tahāfut também foi conhecido, sugere que
outras causas também foram importantes.”243
Ao se acompanhar a trajetória pessoal de Al-¦azāl÷, pode-se verificar
que a crítica endereçada aos filósofos não é toda a sua preocupação mas é, também,
uma das estações de sua longa viagem em busca da verdade, como ele próprio relata no
Al-Munqid min Al-∞alāl / O Salvador do Erro. Pelo seu caráter autobiográfico, essa
obra foi,
muitas vezes, chamada de
uma versão árabe das Confissões
de S.
Agostinho. Escrita poucos anos antes de sua morte – no último período de sua estada
em Nay¹ābýr – Al-¦azāl÷ passou em revista muitas de suas experiências com a verdade
procurando-a nas opções que o meio cultural da época lhe oferecia. Afinal, nesse
período tanto a filosofia quanto a teologia e a mística islâmicas já haviam se
estruturado a ponto de oferecer um quadro mais aperfeiçoado e acabado a Al-¦azāl÷ e
a seus contemporâneos. A verdade – diz Al-¦azāl÷ – tem que estar em algum desses
grupos significativos culturalmente pois, do contrário “não haverá expectativa de se
chegar a ela”.244 Isso explica, em parte, o porquê Al-¦azāl÷ criticou não só a falsafa,
mas também outros sistemas que se propunham ser vias de acesso à verdade que se
apresentavam em sua época. Mas passemos a verificar como o próprio Al-¦azāl÷
testemunha suas intenções ao longo de O Salvador do Erro.
Em sua divisão mais geral, a obra constitui-se de uma breve introdução
e um discurso sobre os procedimentos da sofistica. Al-¦azāl÷ estabelece diferentes
classes de buscadores da verdade discorrendo sobre a filosofia e seus ramos tais como:
lógica, metafísica, política e ética. Além disso analisa a teologia, a suposta infabilidade
dos imans, os sufis, a profecia e, por fim, explica o motivo pelo qual retorna a ensinar
no últimos anos de sua vida.
Inicialmente, Al-¦azāl÷ alude ao fato de que a diversidade de religiões e
seitas nos confundem entre o que é verdadeiro e o que não é verdadeiro, num cenário
que “um mar insondável no qual naufraga a maioria e apenas poucos se salvam.”245 Ao
longo de sua vida, confessa que o espírito da investigação e a sede por conhecer as
verdadeiras naturezas das coisas sempre o acompanharam desde sua juventude e
permaneciam presentes até aquele momento em que ele já passava dos cinquenta anos.
Em todo o seu trajeto, percorrendo as mais variadas escolas e mestres, Al-¦azāl÷ diz de
243
THE ENCICLOPAEDIA OF ISLAM, op. cit., vol.II p.1041.
ALGAZEL, Confesiones, Madrid: Alianza Editorial, 1989,p.38.
245
Ibid, p.28.
244
178
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
seu arrojo ao penetrar profundamente em cada uma das crenças e seitas que conheceu,
“tratando de averiguar os segredos da doutrina de cada grupo para distinguir entre o
veraz e o mendaz e entre aquele que segue a tradição ortodoxa e o herege que introduz
novas doutrinas.”
246
Nesta passagem podemos ver como o próprio Al-¦azāl÷ definiu
sua determinação:
“Não deixei a nenhum esotérico antes de querer vislumbrar a sua
doutrina, nem a um literato sem desejar conhecer o resultado de sua
crença, nem a um filósofo antes de intentar saber o cume de sua
filosofia, nem a um teólogo sem esforçar-me por examinar o limite
máximo de sua teologia e de sua dialética, nem a um sufi sem antes
estar ávido de conhecer o segredo do sufismo, nem a um piedoso sem
observar o que resultava de seus atos de devoção, nem a um incrédulo
negador de Deus sem espiar para além disso para me aperceber dos
motivos de sua ousada postura.” 247
A partir disso, Al-¦azāl÷ declarou que passou a se guiar na direção de buscar
primeiramente o conhecimento da verdadeira natureza das coisas. Mas para isso,
entendeu que deveria buscar, antes de tudo, a verdadeira natureza do conhecimento,
isto é, “ver no que este consiste”248. Como se antecipasse a dúvida cartesiana, a
parcial conclusão de Al-¦azāl÷ sobre esta que deveria ser a pedra fundamental de seu
caminho é a de que ele só poderia aceitar como verdadeiro um conhecimento que lhe
fosse de tal modo evidente, que nenhuma dúvida pudesse derrubá-lo, pois o
conhecimento certo só poderia ser aquele no qual o que é conhecido o é de tal modo
que não deixaria lugar a nenhuma dúvida, nem ilusão e nem erro, e que a inteligência
não pudesse sequer supor que aquilo não fosse verdadeiro. Tudo aquilo que não se
pode conhecer desse modo e do qual não é possível ter esse mesmo tipo de certeza não
pode fornecer garantia e tampouco segurança da verdade sendo, pois, um
conhecimento incerto sobre o qual não seria possível se apoiar. A postura de Al-¦azāl÷,
carregando em seu íntimo a dúvida a respeito do verdadeiro conhecimento das coisas,
terminaria por arrastá-lo a uma crise profunda.
Ora, mas quais seriam os tipos de conhecimentos que temos acesso e
quais os que podemos considerar verdadeiros? Al-¦azāl÷ responde essa questão na
segunda parte de O Salvador do Erro, instaurando uma dúvida metódica que guarda
246
Ibid, p.29.
Ibid, p.29.
248
Ibid, p.30.
247
179
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
muita semelhança com as passagens em que Descartes trata de pôr em dúvida os meios
de apreensão da realidade. Primeiramente, Al-¦azāl÷ parte da constatação de que
aquilo que conhecemos ou nos chega através da apreensão dos sentidos ou através dos
primeiros princípios que estão no intelecto. Logo, para se atingir um conhecimento
certo dever-se-ia partir desses dois tipos de apreensão e investigar em que medida o
verdadeiro conhecimento com eles se relaciona, aceitando-os como fontes de verdade
desde que nos fosse evidente e seguro que esses tipos de conhecimento não fossem
passíveis de erro. Nos diz Al-¦azāl÷: “imediatamente passei a dedicar uma grande
atenção em considerar os dados sensíveis e os primeiros princípios e a ver se me era
possível colocá-los em dúvida.”249
Assim, a primeira certeza que Al-¦azāl÷ descarta (!) é quanto à
segurança e à verdade dos dados sensíveis, nos quais não se pode confiar totalmente.
Afinal, como poderíamos confiar nos dados dos sentidos se a visão, que é o mais
excelente dos órgãos dos sentidos, ao contemplar uma sombra qualquer vendo-a parada
e imóvel, julga equivocadamente que não há naquela sombra nenhum movimento? No
entanto, depois de algum tempo, quando voltamos a observar a mesma sombra, a
vemos em outra posição e concluímos que, movendo-se pouco a pouco, houve um
movimento imperceptível aos nossos sentidos, o que nos leva a concluir que a sombra
nunca esteve em repouso apesar de nossa visão não ter sido capaz de apreender esse
movimento. Engano semelhante ocorre quando vemos pequenas estrelas que pensamos
ser “do tamanho de um dinar”250 enquanto, contrariamente, as demonstrações
geométricas provam que elas são maiores do que a Terra. “Sobre estes e outros dados
sensíveis e semelhantes, decide o árbitro do sentido, mas o árbitro da razão os declara
falso e enganoso de um modo que não admite apelação.”251
Sendo certo, pois, que não podemos confiar totalmente nos dados
sensíveis, podemos pensar que talvez esta confiança que buscamos deva ser possível
somente quanto aos inteligíveis pois estes são da ordem dos primeiros princípios como,
por exemplo, que “dez é mais do que três; que a afirmação e a negação não são
possíveis sobre uma mesma coisa; e que tampouco pode algo ser ao mesmo tempo
criado e eterno, existente e não existente, necessário e impossível.”252 Mas surge uma
dificuldade: mesmo que confiássemos nos dados inteligíveis dos primeiros princípios,
249
Ibid, p.33.
Ibid, p.33.
251
Ibid, p.33.
252
Ibid, p.33.
250
180
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
ainda assim a nossa certeza não poderia ser dada como uma certeza absoluta pois os
próprios dados sensíveis objetariam quanto a essa nossa confiança, visto que não
haveria garantias de que tal confiança depositada nos dados do intelecto e dos
primeiros princípios não fossem semelhantes à garantia que julgavamos ter nos dados
sensíveis, a qual se mostrou insustentável pelo juízo da razão. Da mesma maneira
como o árbitro da razão invalidou o julgamento do árbitro do sentidos, o que nos
garantiria que não haveria um outro árbitro superior ao árbitro da razão que invalidasse
a nossa confiança nos dados dos primeiros princípios? Valendo-se do argumento
segundo o qual a ausência de prova não é prova de ausência, Al-¦azāl÷ afirma: “que
essa outra percepção além da razão não tenha aparecido não prova que seja impossível
sua existência.” 253
Nosso pensador se põe ainda mais perplexo ao comparar os dados
sensíveis e intelectuais com os dados que nos chegam através dos sonhos. É notório
que ao sonharmos, muitas vezes, temos confiança e certeza absolutas naquilo que
sonhamos como se fosse a própria realidade mas, abruptamente, acordamos e vemos
que todas aquelas imagens e cenas não possuíam nenhum fundamento crível como o
que temos no estado de vigília. Qual seria a garantia, também, que esse estado de
vigília, no qual atestamos como absolutamente certos os dados que nos chegam pelos
sentidos e pelo intelecto, não possa ser um estado sujeito a ser surpreendido por um
outro estado que invalidasse nossas certezas, do mesmo modo que o estado de sonho é
surpreendido e invalidado pelo estado de vigília? Se isso ocorresse e “se me
sobreviesse esse estado, estaria certo de que tudo que concebi com minha razão seriam
imaginações inúteis.”254
Sob esse verdadeiro desmoronamento das certezas, não surpreende que
Al-¦azāl÷ entrasse em profunda crise. Sua dúvida, parecendo ter ultrapassado os
limites, limitava-o e, nesse estado, perdera até mesmo a condição de raciocinar. Mas
ele logo superaria a crise. Após chegar ao ápice da descrença, Al-¦azāl÷ nos relata:
“agravou-se, pois, essa enfermidade, e passei cerca de dois meses em um estado de
ceticismo, ainda que não professasse explicitamente tal doutrina, até que Deus me
curou daquela enfermidade e recobrei a saúde e o equilíbrio voltando a aceitar os
primeiros princípios na confiança de que estavam a salvo do erro e de que havia
253
254
Ibid, p.34.
Ibid, p.34.
181
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
certeza neles.”255 Nota-se, pois, que a passagem ocorrida da dúvida demolidora de
todas as certezas para a confiança nos dados dos primeiros princípios é realizada pela
intervenção da luz divina que, em última análise, é a garantia da verdade dos dados
inteligíveis. Vejamos como o próprio Al-¦azāl÷ nos relata esta passagem:
“(...) este fato não foi fruto de um raciocínio ordenado nem de um
discurso metódico mas de uma luz que Deus colocou em meu peito,
luz que é a chave da maior parte dos conhecimentos. Aquele que crê
que o desvelamento da verdade se realiza por meio de raciocínios bem
dispostos, negligencia a imensa misericórdia divina.”256
Depois de ver restabelecida a sua confiança nos primeiros princípios sustentada em
Deus como o mais extremo garante da verdade, Al-¦azāl÷ passa a verificar as diversas
classes de pesquisadores e buscadores da verdade. “Quando Deus me curou com sua
virtude e ampla generosidade vi que os que buscam a verdade podiam resumir-se em
quatro grupos”257. Primeiramente, encontra-se o grupo dos teólogos que alegam ser
homens de raciocínio independente e da especulação teórica. Em segundo lugar
classificam-se os esotéricos, que se definem como o partidários dos ensinamentos do
imam infalível, identificando neste o depositário da verdade. Em terceiro lugar, Al¦azāl÷ classifica os filósofos, que definem a si mesmos como aqueles que empregam o
método da lógica e da demonstração. Por fim, encontram-se os sufis que pretendem ser
os que se distinguem pela presença, visão e revelação divinas.
Estabelecidas as quatro vias principais de busca da verdade se
apresentavam à sua época, segundo ele – a teologia, o esoterismo, a filosofia e o
sufismo –, sua intenção passa a ser, pois, a de investigar em que medida tais vias
podem ser dignas de credibilidade e portadoras da verdade. Partindo do pressuposto de
que a verdade deve estar presente em um destes quatro grupos, Al-¦azāl÷ se lança
pelos caminhos de cada uma das quatro vias procurando chegar ao máximo dos
ensinamentos de cada um dos grupos. Em seu percurso, ele inicia por analisar a
teologia, em seguida a filosofia, os ensinamentos esotéricos dos que crêem na
infalibilidade de um imam e, por último, pela senda dos sufis. Acompanhemo-lo, pois.
Em relação à teologia, sua abordagem inicia-se com a seguinte
afirmação: “tratava-se de uma ciência fiel ao seu objeto mas não ao meu”258. Em sua
255
Ibid, p.35.
Ibid, p.36.
257
Ibid, p.38.
258
Ibid, p.39.
256
182
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
visão, o papel da teologia teria sido o de conservar e explicar a verdadeira mensagem
da tradição ortodoxa e defendê-la das inovações trazidas pelos hereges. Segundo ele,
depois de Deus ter revelado a verdade a seus servos, “logo Satanás infundiu nas
sugestões dos hereges introdutores de novas doutrinas e coisas contrárias à tradição
ortodoxa.”
259
Por essa razão, Deus teria suscitado o surgimento de grupo de teólogos
para pôr a mostra as mentiras dos hereges. “Disto surgiu, pois, a ciência da teologia e
seus representantes.”260 O papel dos teólogos teria sido, na maior parte do tempo,
colocar em evidência as contradições dos adversários e reconduzir o entendimento dos
fiéis à tradição ortodoxa e à interpretação correta da mensagem de Deus. Após a
verdade ter sido expressa na letra do livro sagrado, a teologia teria emergido como uma
forma de recondução para aqueles que perderam a simples adesão à revelação ou para
aqueles que foram confundidos pelos grupos que se desviaram da verdade. Em si
mesma, a teologia não pode ser maior que a própria revelação, mas é desta um
instrumento de esclarecimento e, ma medida em que a teologia, surgira para ser um
tipo de corretivo, não chegou, pois, a ser o fim último que Al-¦azāl÷ procurava. Apesar
de “não censurar quem buscou a saúde recorrendo à teologia”261, ele mesmo confessa:
“por tudo isso, no meu caso, a teologia não me foi suficiente, nem foi remédio para e
enfermidade que me afligia.”262
Em seguida Al-¦azāl÷ passou a examinar a filosofia, isto é, a falsafa.
Nosso autor está certo de que para identificar o erro de uma ciência é preciso conhecela profundamente. Isso explica porque “suas polêmicas contra os neoplatônicos árabes
são, de longe, as mais sustentadas e as mais minuciosas.”263 Nos diz Al-¦azāl÷ que
aprendeu a filosofia através dos livros, “sem recorrer a nenhum mestre”264. Seus
estudos duraram aproximadamente dois anos durante os períodos livres em que
ensinava em Bagdá. Depois de ter estudado os livros de filosofia durante esse período,
Al-¦azāl÷ passou cerca de mais um ano meditando a respeito da filosofia, seus
métodos, e refletindo sobre as ciências procurando explorar suas profundidades “até
que pude ver – nos diz ele – sem nenhum gênero de dúvida, a mentira e o engano e o
que tinham de verdade e falsidade.”265
259
Ibid, p.40.
Ibid, p.40.
261
Ibid, p.41.
262
Ibid, p.40.
263
FAHKRY, Histoire de la philosiohie islamique,op. cit. p. 245.
264
ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.42.
265
Ibid, p.42.
260
183
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Apesar de fazer uma distinção geral dos filósofos em três grupos – os
materialistas, os naturalistas e os teístas –, Al-¦azāl÷ considera-os todos infiéis e
incrédulos em relação aos dogmas religiosos. Ao grupo dos que ele denomina de
“materialistas” estão ligados todos os filósofos antigos que negaram a autoria de um
Deus Criador do mundo. Esses, para explicar os fenômenos do mundo, sustentaram
que o mundo é eterno, sendo dirigido apenas pelas leis da matéria. “Estes são os
incrédulos”266
Os chamados “naturalistas”, por sua vez, são aqueles que se dedicaram
a investigar a fundo as coisas da natureza e se maravilharam com elas. Dissecaram
animais, estudaram plantas e, desse modo, puderam contemplar as maravilhas da
criação e reconheceram que havia um Criador inteligente que as havia feito. Esses
acreditaram que a distribuição dos humores tinha grande influência na subsistência das
faculdades do animal e, erroneamente pensaram que também a faculdade inteligente do
homem seria uma conseqüência da mistura dos elementos e, por isso, entenderam que,
desaparecendo a mistura, desapareceria a alma humana. “Por essa razão chegaram a
pensar que a alma morre e não volta à vida e, assim, negaram a outra vida e
descartaram o céu, o inferno, a ressurreição e o juízo final, sem que houvesse, segundo
eles, nem recompensa para a obediência e nem castigo para a desobediência.”267 Por
terem acreditado que a vida do homem é limitada apenas ao tempo em que ele está
ligado a este corpo, esses homens se entregaram às paixões baixas à maneira dos
animais. Apelando, ainda para a religião, brame Al-¦azāl÷: “esses são também
incrédulos porque o fundamento da fé é a fé em Deus e no último dia e eles negam o
último dia, ainda que acreditem em Deus e em seus atributos.” 268
Já nos chamados “teístas” destacam-se os nomes de Sócrates, Platão e
Aristóteles. Al-¦azāl÷ entende que Aristóteles refutou todos os filósofos anteriores
mas não conseguiu se livrar totalmente das impiedades e heresias de suas teses. Se a
esses, Al-¦azāl÷ entende que devam ser qualificados como infiéis, conseqüentemente,
também, o são todos os filósofos islâmicos que os seguiram como Al-Fārāb÷. e Ibn
Sina “e outros mais, ainda que nenhum filósofo islâmico tenha levado a cabo a
transmissão da ciência aristotélica como esses dois homens.”269
266
Ibid, p.43.
Ibid, p.44.
268
Ibid, p.44.
269
Ibid, p.45.
267
184
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
As críticas mais contundentes de Al-¦azāl÷ recaem principalmente sobre
o último grupo, que concentra ao mesmo tempo, o nome de Aristóteles, Al-Fārāb÷. e
Ibn S÷nā. Criticando, pois, o grupo de “filósofos teístas”, Al-¦azāl÷ entendeu que não
seria necessário se importar com outros nomes de menor expressão dentro da filosofia.
Em suas investidas, afirmou que toda a filosofia aristotélica transmitida por Ibn S÷nā e
por Al-Fārāb÷ se resumia em três partes: uma que é infidelidade, outra que é heresia e
uma última, que não se deve rechaçar. Não obstante ter analisado a matemática,
lógica, física, metafísica, política e ética, em suma, as críticas de Al-¦azāl÷ centram-se
mais propriamente nas teses metafísicas dos dois filósofos. Em linhas gerais, considera
a Matemática e a Lógica inofensivas do ponto de vista religiosos sendo que a Física e a
Metafísica “contém a maior parte das heresias e dos erros dos filósofos.”270
Certamente, Al-¦azāl÷ reconheceu o valor da matemática e da lógica e
as viu como ciências neutras mas mesmo assim encontrou motivos para pregar
prudência quanto à sua utilização. Primeiramente ele alerta para dois desvios que
podem ser causados pela crença excessiva na matemática. O primeiro desvio é visto
naqueles que se maravilham em demasia com a exatidão e a evidência dessa ciência,
assim como pela clareza de suas demonstrações e transferem, erroneamente, esse
mesmo maravilhamento para a filosofia como um todo, pensando que esta também
seria tão certa quanto a primeira. O segundo desvio é observado nos homens que são
crentes no Islām mas são ignorantes em relação às ciências e, negando-as todas,
incluem a matemática mas, quando vêem a clareza desta ciência, passam a pensar que
os princípios religiosos estão baseados em pouca clareza, passando até mesmo a odiar
a religião. (!)
Em seguida, mostrando o funcionamento básico da lógica, seu método e
desenvolvimento a partir das premissas até a conclusão, e como se pode dar crédito às
demonstrações pelo silogismo, Al-¦azāl÷ não se arriscou a negar sua validade mas
alertou que pode haver um certo abuso dos que a valoram em demasia, negligenciando
as questões religiosas. Em uma das passagens justifica: “que relação tem isso com os
temas religiosos para ser negado e recusado? Sendo recusada não se produzirá outro
resultado, entre os que cultivam a lógica, do que formar-se uma pobre opinião da
capacidade mental daquele que nega, e ainda formar-se-á uma opinião pior de sua
religião, que pretende se basear em semelhante recusa” 271
270
271
FAHKRY, Histoire de la philosiohie islamique,op.cit.,p.247.
ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.49.
185
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Quanto à física, com exceção dos pontos indicados no Tahāfut, Al¦azāl÷ não vê motivos para reusá-la pois, esta, com muita propriedade, deve estudar o
mundo celeste, os astros que nele existem e os corpos que estão no mundo como, por
exemplo, a água, o ar, a terra e o fogo; os compostos, os animais, as plantas e os
minerais. “Da mesma maneira que não é condição essencial da religião repulsar a
medicina, tampouco o é de repulsar a física.272 No entanto, a condição para que estas
ciências sejam admitidas é, naturalmente, que se reconheça que os estudos da física
provém da Natureza e que a Natureza está submetida a Deus e não opera por si mesma,
mas que em cada movimento não prescinde, em última análise, de Deus.
Outra ciência abordada por Al-¦azāl÷ é a política à qual ele recruta
apenas as obras que contêm máximas de conduta e, praticamente, não se opõe a elas,
mas curiosamente não menciona o Tratado dos Habitantes da Cidade Ideal de AlFārāb÷. Do mesmo modo, não se opõe frontalmente às obras sobre ética, título sob o
qual entende figurar as obras de aforismos morais. Admitindo que as máximas morais
dos filósofos contêm muitas verdades, Al-¦azāl÷ apenas alerta que não se deve tomar
posição radical em relação a isto em nenhum dos dois sentidos extremos, isto é, de
recusa ou de aceitação total de tais máximas. Nesse caso, radicalizar resulta em dois
erros: aceitando-as totalmente, pode se cair em contradição com a lei maior da
revelação e recusando-as totalmente pode se privar de reconhecer algumas máximas
verdadeiras.
Na metafísica, por outro lado, Al-¦azāl÷ viu a maior parte dos erros dos
filósofos, endereçando suas críticas aos dois maiores expoentes da falsafa: Ibn S÷nā e
Al-Fārāb÷. A refutação mais sistemática, não obstante encontrar-se nos vinte pontos
discordantes elencados no Tahāfut, é mencionada de modo resumido por Al-¦azāl÷.
Das vinte teses defendidas na mesma obra contra os filósofos, dezessete resultam em
heresia e três em infidelidade. Há três questões fundamentais sobre as quais os
filósofos estão em desacordo com a religião. A primeira delas se refere à ressurreição
dos corpos, visto que os filósofos entendem que a sobrevivência do corpo não é
possível mas somente a da alma. O segundo ponto discordante refere-se ao fato de os
filósofos afirmarem que Deus conhece apenas os universais e não os particulares. Para
Al-¦azāl÷ essa é um impiedade manifesta, visto que o Alcorão afirma que “não Lhe
passa despercebido nem o peso de um átomo nos céus ou na Terra.”273 O terceiro ponto
272
273
Ibid, p.50.
Alcorão, 34,3. ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.52
186
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
de discordância refere-se ao fato de os filósofos defenderem a idéia da eternidade do
mundo, enquanto a tradição da Profecia é unânime em pregar que o mundo é uma
criação de Deus. Nesses três pontos a falsafa se desenhou em toda a sua originalidade,
mostrando-se uma heresia religiosa já no Oriente, antes do Ocidente tê-lo feito.
Mais explícita no Tahāfut, as posições de Al-¦azāl÷ contra os filósofos
incluiram, entre outras, a crítica à falsafa por defender que Deus é um puro intelecto
subordinando, assim, a ciência divina e suprimindo sua liberdade toda onipotente. Para
Al-¦azāl÷ “Deus não é um ser essencialmente intelectual, mas uma vontade pura que
opera do melhor modo que quer (...)”274 criando tudo o que existe por pura vontade e
não por uma imposição de sua própria inteligibilidade como queriam Al-Fārāb÷. e Ibn
S÷nā pois as coisas não são “nem necessárias e nem possíveis por si mesmas e o único
que torna possíveis os seres é o puro ato da vontade divina ao criar livremente.”275 Essa
crítica de Al-¦azāl÷ ao “Deus dos filósofos” se ateve, particularmente, ao sistema de
Al-Fārāb÷. e de Ibn S÷nā que fizeram emanar de Deus necessariamente as diversas
esferas que só se distinguem de Deus por diferenças de grau. Além disso, a prova da
existência de Deus, segundo a tese dos filósofos aparece como resultante da
interrupção da série de causas e efeitos encadeados que não poderia prolongar-se
infinitamente mas, para Al-¦azāl÷, “esta é uma suposição absolutamente gratuita e não
há razão alguma para excluir a série infinita ou a cadeia fechada de causas.”276
Destacada a vontade absoluta como a causa mais radical que determina o ato divino,
este passa a ser considerado rigorosamente contingente, pois “Deus não realiza atos
necessários enquanto não tem fins a cumprir, perigos a evitar e nem necessidade lógica
para cumprir.”277
Duas outras questões emergem a partir disso: a primeira delas é que
nada escapa ao poder de Deus que pode fazer tudo quanto queira “inclusive o mal, e se
não o faz é por sua infinita bondade e misericórdia”278 e poderia ordenar também o
impossível e o absurdo que seria, nesse caso, a lei. Assim entendido, o nosso mundo
pode ser pensado como o melhor mundo possível pois, do contrário “seria duvidar da
infinita misericórdia de Deus”279.
274
HERNANDEZ, Historia del pensamiento en el mundo islamico,op.cit.,p.280.
Ibid, p.280.
276
Ibid, p.280.
277
Ibid, p.284.
278
Ibid, p.284.
279
Ibid, p.284.
275
187
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Quanto à teoria da emanação afirmada pelos falāsifa seguindo o
princípio neoplatônico, Al-¦azāl÷ defendeu que não há nenhuma prova conclusiva de
que a multiplicidade do mundo derive necessariamente da unidade de Deus. Também
quanto à compreensão do destino da alma, os filósofos estariam em desacordo com a
verdade revelada pois negaram a ressurreição da carne sem provar de modo algum que
alma não é um mero acidente do corpo que, sem a intervenção de Deus, desapareceria
com a dissolução deste. Para provar a imortalidade da alma, os filósofos aludiram ao
fato de ser da natureza humana apreender os inteligíveis, o que explicaria a diferença
da apreensão sempre dos particulares da alma animal. Porém, com isso nada provariam
pois, para Al-¦azāl÷, “o conhecimento universal não conhece nada além do particular,
pois os universais não são entes reais e só existem no entendimento que os
apreende.”280 O único meio, pois de se aceitar a imortalidade da alma é aceitar que isto
só pode se dar por uma livre disposição de Deus.
Continuando em sua busca, Al-¦azāl÷, depois de reconhecer o valor da
Teologia mas não encontrar nesta a resposta que procurava, também deixava para trás
a Filsoofia depois de “ter condenado suas falsidades”281 e se dar conta que esta ciência
não satisfazia seus propósitos. Após suas críticas à Filosofia, sentencia Al-¦azāl÷:
“compreendi que a razão não bastava para conhecer todas as questões nem poderia
descobrir a solução de todos os problemas.”282
Depois disso, nosso autor, passa a investigar aqueles que pregavam que
a figura de um imam infalível era o meio pelo qual poder-se-ia entrar em contato com a
verdade para verificar se essa posição seria merecedora de crédito. A resposta é
negativa. Ao iniciar a discussão, Al-¦azāl÷ já indica que não aprova tal premissa, ao
dizer que naquele tempo já “haviam aparecido os hereges partidários do ensinamento
do imam”283 mas mesmo assim, inclinado por um impulso íntimo a conhecer suas
teses, Al-¦azāl÷ viu esse impulso reforçado por uma ordem do próprio califa para que
ele se aproximasse desse grupo e verificasse o que poderia haver de verdadeiro entre
eles. Desse modo, Al-¦azāl÷ passou a recolher os escritos e os tratados dos partidários
do imam infalível e, depois de organizá-los, leu-os e submeteu-os a provas rigorosas,
procurando responder sistematicamente ponto a ponto cada uma das questões que
encontrava em tais escritos. A discussão, transcorrendo a partir do fato de tal grupo
280
Ibid, p.281.
ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.60.
282
Ibid, p.60.
283
Ibid, p.60.
281
188
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
afirmar a necessidade de se buscar um imam que fosse o depositário da verdade, recaiu
sobre os argumentos internos do direito e da legislação islâmica. Para refutar os
partidários dessa doutrina, Al-¦azāl÷ se ocupou do problema básico da lei e do direito
islâmico. “Nosso mestre infalível – diz – é Mu¬ammad.”284
O tom da refutação de Al-¦azāl÷ a esse grupo é veemente: “o que aqui
se pretende mostrar é que eles não tem nenhum remédio que os salve das trevas em que
estão submersas suas opiniões.”285 Não há um só deles que consiga estabelecer uma
prova para a designação da necessidade de um imam infalível e, quando perguntados
sobre o que aprenderam desse imam, não conseguem apresentar nada além de
problemas que sequer entenderam e muito menos que tenham conseguido solucionálos. Daqueles que se rogam possuir alguma ciência dentre eles, nada mais se vê do que
a “raquítica filosofia de Pitágoras, que é um filósofo dos antigos, dos primeiros, e sua
doutrina é a mais débil das doutrinas filosóficas.”286 Al-¦azāl÷ é contundente com
aqueles que se rogam ser mestres e imans infalíveis acusando-os de sedutores da gente
e do povo simples de curto entendimento. Quando a eles é pedido algum ensinamento
–diz Al-¦azāl÷ –, calam diante do consulente dizendo que este deveria buscar o
conhecimento por si mesmo. O certo é que esse suposto detentor da verdade, se
tentasse algum ensinamento, encher-se-ia de vergonha porque “seria incapaz de
solucionar o menor dos problemas, sequer seria capaz de compreendê-lo e muito
menos, portanto de responder à sua pergunta”287 Al-¦azāl÷ os deixa: “esta é sua
verdadeira situação, quando os conheceres, diminuirá tua consideração para com eles.
De nosso lado, quando os conhecemos nos afastamos deles.”288
Por fim, Al-¦azāl÷ passou à análise do grupo dos sufis, o último grupo
por ele indicado na divisão das classes dos buscadores da verdade. “Quando terminei
com estas ciências –diz ele –, meu interesse se dirigiu ao caminho dos sufis e me dei
conta de que seu caminho só se tornava perfeito com a teoria e com a prática.”289 Nesse
grupo, Al-¦azāl÷ encontrou na prática meditativa a justificativa maior que o fez elegêlo como o que mais se acercou da verdade. Se, por um lado, Al-¦azāl÷ era um crente
fervoroso que colocou a fé nas escrituras e nas palavras do profeta como condição de
encontro com a verdade, por outro lado, elegeu a prática sufi como a que mais o
284
Ibid, p.63.
Ibid, p.71.
286
Ibid, p.71.
287
Ibid, p.72.
288
Ibid, p.72.
289
Ibid, p.73.
285
189
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
aproximava da verdade contida nas escrituras e na profecia. Segundo ele, o verdadeiro
objetivo sufi consistia em eliminar as dificuldades da alma purificando-a de más
qualidades e de esvaziar o coração de tudo quanto não fosse Deus. Isso podia ser
conseguido pela repetição ininterrupta do nome de Deus. Percebendo que a principal
diferença, nesse caso, consistia fundamentalmente entre um conhecimento adquirido
através do discurso ou através da razão e um conhecimento que se tem pela própria
experiência, Al-¦azāl÷ se inclina a viver como um asceta e a experimentar os estados
profundos da meditação. Nos diz ele:
“igual é a diferença que existe entre que
conheças a realidade, as condições e as causas do ascetismo e que o estado de tua alma
seja o ascetismo e o desapego do mundo.”290 Assim, pois, vendo que os verdadeiros
sufis eram homens que provavam os estados elevados da meditação e não eram do tipo
dos homens de palavras, Al-¦azāl÷ se inclinou a levar a vida do asceta.
Mantendo sua fé em Deus, na Profecia e no Ultimo Dia, – por nenhuma
razão lógica mas por “indícios e experiências cujos detalhes particulares não se pode
enumerar”291 – Al-¦azāl÷ entendeu que para desfrutar de tudo isso, o mais importante
seria cortar os laços que uniam seu coração a este mundo, tirando-o da mansão do
engano e levando-o à mansão da eternidade, dirigindo-se até Deus. Porém, ao olhar
para sua própria vida, percebeu-se enredado por uma série de compromissos que o
impediam de seguir essa via ao mesmo tempo em que via que o seu ensinamento em
Bagdá não era mais uma profissão de fé e de exaltação de Deus mas uma busca vã de
honrarias, de fama e de vaidade pessoal. Assolado por uma crise de decisão, ainda
permaneceu inseguro por algum tempo sem saber discernir qual o caminho que Deus
lhe preparava. Ao mesmo tempo em que ouvia uma voz que lhe dizia: “ponha-te a
caminho, marcha! Te resta apenas um pouco de vida e tendes antes uma longa viagem.
Se não te preparas agora para outra vida, quando o farás? Se não cortas agora essas
amarras, quando as cortarás?”292, também ouvia Satanás, de outro lado tentando
dissuadi-lo dizendo que que essa era uma situação passageira que logo passaria. Al¦azāl÷ permaneceu na dúvida por uns seis meses até que ocorreu um estranho fato que
ele entendeu como um sinal de Deus: sua língua foi travada!
290
Ibid, p.74.
Ibid,p.74.
292
Ibid, p.75.
291
190
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Al-¦azāl÷ não conseguia mais dar aulas. “Minha língua – nos diz ele –
não acertava articular uma só palavra”.293 A travada de língua gerou uma tristeza em
seu coração a tal ponto que resultou em alteração e problemas em sua digestão,
passando a ter dificuldades para se alimentar e, assim, foi ficando cada vez mais fraco
até que os médicos desistiram de tratá-lo, afirmando: “isto que ele tem é algo que se
alojou no coração e passou aos humores. Não há como lhe dar um tratamento enquanto
o mais íntimo de seu ser não se livre da pena que o aflige.”294 Esse foi o fato que fez
com que Al-¦azāl÷ decidisse ir embora de Bagdá, deixando a universidade, os amigos,
a família e tudo o mais para seguir viagem numa peregrinação que durou
aproximadamente dez anos.
Sua primeira parada foi na Síria, onde, permanecendo por dois anos,
não teve “outra ocupação que não o retiro, a solidão, os exercícios piedosos e a vida
ascética, tratando de elevar a alma, corrigir o caráter e purificar o coração recorrendo à
menção do nome de Deus como havia aprendido nos livros dos sufis.”295 Na mesquita
de Damasco, entrava e ficava só. “Foi nesse período que ele compôs seu obra maior,
’I¬yā’ ‘ulým al-d÷n / Revificação das Ciências da Religião, e realizou conferências
sobre seu conteúdo para públicos seletos.”296. Em seguida foi a Jerusalém, a Meca e a
Medina mantendo a mesma atitude de retiro e meditação. Assim ele nos narra estes
tempos: “continuei assim pelo espaço de
dez anos e, naqueles retiros, a mim
revelaram-se coisas que não é possível compreender nem chegar a seu fundo.”297 Al¦azāl÷, mostrou sua preferência pela prática sufi dizendo que são eles em especial que
“percorrem os caminhos de Deus” 298 tendo a melhor conduta, o caminho mais acertado
e o caráter mais puro.
Com o intuito de testemunhar sua experiência, Al-¦azāl÷ afirmou que o
verdadeiro objetivo dos sufis consistia em purificar totalmente o coração de tudo o que
não fosse Deus, consagrando-se em oração e submergindo totalmente o coração na
menção do nome de Deus para que, ao final, isto resultasse na união e no
aniquilamento total em Deus. Em seu comentário, Hernandez nos dá uma boa imagem
dessa passagem ao dizer que quando se “aplica à compreensão da verdade revelada o
esforço da razão iluminada pela fé, então aparece o mistério; e no santuário do coração
293
Ibid,p.76.
Ibid,p.76.
295
Ibid, p.78.
296
THE ENCYCLOPAEDIA OF ISLAM.,op.cit.,p. 1039.
297
ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.79.
298
Ibid, p.79.
294
191
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
humano, purificado pelo seu próprio esforço espiritual e iluminado pela luz divina, se
mostram as maravilhas de Deus e se goza a felicidade do espírito, antecipação daquilo
que logo será a ciência direta de Deus e a felicidade eterna.”299
Al-¦azāl÷ atesta que experimentou um estado de meditação profunda
mas a sua experiência mística deve ser tomada num sentido moderado. Afirmou que
nesse estado, logo iniciaram-se revelações e visões nas quais se vêem os anjos e os
profetas, escutam-se as suas vozes conseguindo-se, até mesmo, benefícios deles e
“logo, seu estado ascende desde a contemplação de imagens e figuras até a uns graus
inefáveis nos quais aquele que intenta expressar-los incorre em um erro crasso do qual
não é possível guardar-se. Em uma palavra, se chega a uma cercania de Deus, que
alguns representam como uma encarnação de Deus nele, outros como uma
identificação com Deus e outro como uma união com Deus. Mas tudo isso é um erro
(ý)”300. Al-¦azāl÷ nos remete a uma outra obra de sua pena intitulada Al-Maq½ad alAsnā / A Meta mais Elevada na qual esclarece esse erro que considera um dos abusos
dos sufis. Mostrando que este caminho só é possível pela própria experiência, Al¦azāl÷ o diferencia radicalmente das outras proposições que havia vivido sublinhando
que “a comprovação mediante a demonstração é uma ciência, o submergir-se no núcleo
mais íntimo daquele estado é uma experiência e o aceitar de bom grado o que se
transmite de boca em boca e da experiência vivida por outros é uma fé.”301
Não é sem razão, pois, que Al-¦azāl÷ depois de relatar sua experiência
com a meditação e o retiro espiritual e de confirmar a possibilidade de se atingir estado
elevados de comunhão com Deus, reconheceu a profecia como o lugar mais elevado ao
qual o homem pode chegar. Curiosamente, esta é a mesma conclusão a que havia
chegado Ibn S÷nā e, Al-¦azāl÷, mesmo criticando os filósofos acabou por estabelecer
uma hierarquia de ascensão ao conhecimento semelhante àquela que encontramos em
Ibn S÷nā que, no caso deste último, culmina com a aquisição do intelecto sagrado que
é, em suma, o estado profético. Em sua classificação hierárquica, Al-¦azāl÷ entendeu –
no O Salvador do Erro – que o homem recebe primeiramente o sentido do tato que
forma o todo o seu corpo, depois recebe o sentido da visão com o qual vê as cores e as
figuras, o sentido da audição e o do paladar.302 Depois, o homem
recebe o
discernimento para perceber aquilo que está além dos sentidos. Em seguida, recebe a
299
HERNANDEZ, Historia del pensamiento en el mundo islamico, op.cit., p.284.
ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.80s.
301
Ibid, p.82.
302
Curiosamente não cita o olfato. Cf. ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.84.
300
192
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
razão pela qual percebe o necessário, o impossível e o possível. Por fim, Al-¦azāl÷
afirma ainda uma outra instância: “depois da razão há outra etapa na qual se abre outro
olho com o qual se percebe o oculto, o que haverá no futuro e outras coisas.”303 Com
essa última propriedade garante-se a verdade das profecias como, por exemplo, aquilo
que chega a determinados homens através de seus sonhos em que podem ver o futuro
com clareza ou revestidos de símbolos que procuram desvelar . Nos diz Al-¦azāl÷:
“Assim como a razão é uma das etapas do homem na qual ele obtém
um olho com o qual vê distintas classes de inteligíveis, dos quais
estão privados os sentidos, também a profecia é o passo a uma etapa
na qual se obtém um olho que é uma luz diante da qual aparecem as
coisas ocultas, presentes, passadas e futuras e coisas que o intelecto
não percebe .”304
Nesse ponto e, a partir dessas indicações, cabe salientar diferenças sensíveis em torno
da teoria de Al-¦azāl÷ em vistas da teoria de Ibn S÷nā a respeito da profecia. Al-¦azāl÷,
ao hierarquizar as potências da alma, enumera um tipo de apreensão além do intelecto
que seria a responsável por apreender aquelas realidades últimas. No caso da teoria da
iluminação de Ibn S÷nā essa faculdade nada mais é do que o próprio intelecto
conectado de modo mais intenso com os inteligíveis. Não há pode haver o caso,
segundo Ibn S÷nā, de que algo se manifestasse não pudesse ser inteligido. Mesmo que
considerássemos o fato de os profetas não conseguirem, muitas vezes, comunicar por
palavras aquilo que apreenderam, ainda assim a apreensão em si mesma é sempre
inteligível.
Na última parte de O Salvador do Erro, Al-¦azāl÷ depois de ter se
retirado de Bagdá e peregrinado por dez anos pelas terras do Islām, recebeu uma ordem
categórica do sultão Fajr al-Mulk para que voltasse: “assim, o sultão ordenou-me
peremptoriamente que me dirigisse a Nay¹ābýr (...) a ordem era tão imperiosa que
chegava aos maus modos se persistisse em desobedecê-la”.305 Entretanto, Al-¦azāl÷
ainda resistiu à ordem do sultão e, só depois de consultar outros sufis com quem
convivia, entendeu que aquele era mesmo o caminho que Deus guardava para ele. Em
tempo presente, depois de retornado à sua terra natal, nos confessa Al-¦azāl÷:
“Assim, pois esta é atualmente a minha intenção, meu objetivo e meu
desejo – Deus o sabe – e pretendo melhorar a mim mesmo e aos
303
ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.84.
Ibid, p.86.
305
Ibid, p.98.
304
193
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
demais não sabendo se chegarei ao que pretendo ou se me verei
impedido disto. De todo modo, creio com uma fé certa e por ter
experimentado que não existe força nem poder a não ser em Deus,
que não fui em quem se moveu de um lugar a outro, mas que foi Ele
quem me moveu, e que não fui eu quem atuou mas que foi Ele quem
me empregou como instrumento de sua atuação. Peço a Deus, em
primeiro lugar, que melhore a mim e logo que, por meio de mim,
melhore a outros; que me guie pela senda reta e que por meu
intermédio guie a outros; que me mostre a verdade como verdadeira e
me dê a segui-la firmemente e que me mostre a falsidade como falsa e
me conceda apartar-me dela.”306
Esse não é o caso de tentarmos traçar a matriz do pensamento de Al-¦azāl÷ por todas
as dificuldades que isso implica e que foram citadas no início deste capítulo. Porém,
podemos apontar para algumas direções que o seu pensamento suscita. Uma delas, que
parece ter se tornado o tecido de sua reflexão, resulta da própria trama que ele viveu a
partir da travessia realizada através das três maiores tradições do pensamento de sua
época – o kalām, a falsafa e o sufismo – Uma das matrizes de seu pensamento
resultaria, nesse caso, da interpenetração das três tendências num certo equilíbrio em
que excluem-se os reducionismos. Se, por um lado, – e em tese – essas três linhas de
busca da verdade podem ser consideradas incompatíveis, por outro lado, não são
impossíveis de coexistir num mesmo homem, como atesta o caso de Al-¦azāl÷.
Fundamentado na fé inabalável da revelação, procurando excluir todos
os exageros provenientes dos filósofos, dos místicos e, até mesmo, dos teólogos,
procurou, assim, indicar o caminho até o justo meio onde, guardados os exageros,
frutos do abandono da fé, a verdade resplandeceria. Assim entendida, a busca da
verdade deveria acolher aquilo que cada via pudesse oferecer dentro de seus próprios
limites.
No Tahāfut Al-¦azāl÷ chegou a afirmar que a razão retamente utilizada
permitiria concordar os caminhos da revelação e da razão mas o problema maior se
daria quando o homem se entregava à pura especulação racional que não poderia, de
maneira isolada, conduzi-lo à verdade. Apesar de a razão humana procurar explicar as
intuições do coração, quando a abandonamos à própria força, ela nos conduz antes ao
erro do que à verdade.
306
Ibid, p.100.
194
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
O conhecimento científico, por sua vez, conhece o funcionamento dos
fenômenos mas não o porquê dos fenômenos e menos ainda pode conhecer a Deus,
aquele que comanda todos os fenômenos. No conjunto dos saberes é preciso ter
prudência pois “o valor da experiência é limitado e os argumentos filosóficos e
teológicos apoiados na lógica conduzem a resultados contraditórios. Por outro lado, o
abuso do testemunho da autoridade só serve para enganar os ignorantes.”307 Para o
homem, resta como caminho para alcançar a verdade entrar dentro de si e meditando
profundamente, entrar em seu próprio coração “no qual brilha entre cinzas uma faísca
divina; essa luz interior é o único salvador do erro que pode o homem utilizar.”308
Todo o trajeto deve ter a fé como suma condutora pois, pressuposta a fé,
então pode se confiar no esforço racional por ela iluminado. Nesse sentido, “a razão
iluminada pela fé conduz à sabedoria.”309 A razão, assim iluminada, alcança um
conhecimento que, de modo algum pode contradizer as verdades reveladas. Se ao
homem simples, basta a fé no Alcorão, aos doutos e ilustrados cabe esquivarem-se dos
obstáculos do caminho necessitando “uma serena luz interior que nada tem a ver com a
embriaguez mística do sufismo popular, nem com as manifestações mais ou menos
sublimadas do erotismo místico e da ginástica ascética.”310
Assim entendido, o pensamento de Al-¦azāl÷ indicaria o equilíbrio e a
moderação com o objetivo de nos preservar do erro causado pelos excessos. Em suas
múltiplas tarefas, Al-¦azāl÷ procurou reavivar o ânimo dos fiéis no Islām e, no campo
da especulação teológica, os seus estudos sobre a falsafa levaram à incorporação de
certos aspectos da filosofia, notadamente a lógica, para o interior da teologia islâmica.
Na filosofia, suas duras críticas aos filósofos não negaram os princípios da razão mas
alertaram sobre os abusos da razão pura sem a fé. Além disso, viveu juntamente com
os sufis tendo adotado a prática da meditação deste mas não admitindo os exageros
místicos praticados por muitos deles. Não surpreende, pois, que sua postura
contemplasse o equilíbrio ético que deve prevalecer no homem para que se atinja a
posição justa ou balança da moral, como a chama Al-¦azāl÷, que consiste em um
sistema de equilíbrio entre o mundo espiritual e o mundo natural, limites da natureza
humana. Tal equilíbrio não se poderia conseguir sem a ajuda de Deus. Foi por todos
esses motivos e por muitos outros que deixamos de mencionar aqui que Al-¦azāl÷,
307
Ibid.,p. 100
HERNANDEZ, Historia del pensamiento en el mundo islamico, op.cit., 278.
309
Ibid, p. 281.
310
Ibid,p. 283.
308
195
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
entre os árabes, foi chamado de ®Ø€×[ »ko
/
Hujja al-Islām, isto é, O Garante do
Islām.
5.5
Ibn Ru¹d, o reformador
Quando Ibn Ru¹d nasceu, três séculos já haviam se passado desde que
Al-Kind÷ recepcionara a filosofia entre os árabes. Passando em revista todo o
desenvolvimento das teses de seus predecessores, sob uma leitura rigorosa das obras de
Aristóteles, Ibn Ru¹d tinha em mente recobrar a autêntica doutrina do pensador grego.
Afinal, por volta do séc. XI d.C./V H., Ibn S÷nā – o mais oriental dos falāsifa – era uma
referência obrigatória da filosofia grega na parte oriental do mundo muçulmano
interpenetrando às teses de Aristóteles um caráter neoplatônico. A tarefa de procurar
reconduzir o pensamento ao rigor da filosofia aristotélica, Ibn Ru¹d exerceu do ponto
mais ocidental do mundo muçulmano: a Espanha.
Não é demais lembrar que, até aquela data, a especulação filosófica se
desenvolvera sobremaneira a partir da ascensão da dinastia Abássida – com capital em
Bagdá – que impusera uma dura queda à dinastia Omíada – com capital em Damasco.
Porém, à época dessa inversão de poder no mundo islâmico, os árabes já haviam
tomado o sul da Espanha, região que passou a contar com muitos governadores sírios,
que lá se estabeleceram e contribuíram para arabização de diversas províncias da
região ibérica. Antes da queda dos Omíadas, a região de Al-Andaluz era, assim,
dirigida por governadores dependentes de Damasco. Quando a dinastia Omíada foi
derrotada pelos Abássidas, notadamente os sírios na Espanha “puderam oferecer um
refúgio ao jovem ‘Abd Al-Ra¬mān, salvo do massacre de 750 d.C. Com o apoio dos
sírios, ‘Abd Al-Ra¬mān conseguiu impor-se aos chefes locais e, em julho de 756 d.C.,
foi proclamado emir em Córdoba.”311 ‘Abd Al-Ra¬mān reinou até 788 d.C., ano de sua
morte e, durante seu reinado, usou tanto o título de emir quanto o de rei mas não,
ainda, o de califa, mantendo as aparências de reconhecimento ao califado de Bagdá.
Porém, na prática, a Espanha muçulmana funcionava como uma região independente.
A medida em que os califas do oriente passavam a enfrentar mais dificuldades, cada
vez mais a independência do emirado ibérico Omíada se anunciava. Mesmo asssim, o
311
MANTRAN, op.cit., p 155s.
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emirado estabelecido durou até 929 d.C. quando Abd Al-Ra¬mān III (912-961d.C.),
proclamou-se califa, instaurando o califado Omíada na Espanha.
Nesse período, sob o domínio dos Omíadas, Al-Andaluz conheceu seu
apogeu e sob suas luzes se fez da Espanha o maior centro intelectual e artístico do
Ocidente. Mesmo com toda instabilidade política, no campo religioso, ali conviveriam
durante séculos, num clima de certa tolerância, muçulmanos, cristãos e judeus. Nessa
época já se verificava uma atmosfera de grandeza política, econômica e intelectual na
qual a filosofia não podia estar ausente. Esse ressurgimento do califado Omíada durou
aproximadamente cem anos quando, em 1031 d.C, o último califa, Hisham III foi
deposto. “Por volta de 1031 d.C., o califado Omíada desapareceu de maneira
inglória.”312 Em seu lugar, a região se dividiu em pequenos estados independentes
denominados de reinos de taifas. No séc XI d.C./V H., do norte da África, a dinastia
dos Almorávidas, de origem berbere, ocupou o cenário da Espanha. No séc XII d.C./
VI H., um novo grupo de tribos berberes constituiu-se no núcleo da dinastia dos
Almôadas. Nessa época, Al-Andaluz já não era mais uma primazia árabe mas turca
pelo leste e berbere pelo oeste. “Uma grande revolução se operou no Magreb durante a
juventude de Ibn Ru¹d: os Almôadas derrubaram a dinastia dos Almorávidas e se
apossaram sucessivamente do noroeste da África e da Espanha muçulmana.”313
Foi nesse cenário que, com Ibn Bāja (Avempace), Ibn Æufayl e,
finalmente, com Ibn Ru¹d, a falsafa inaugurou um novo perfil geográfico, não mais
exclusivamente centrado em Bagdá ou em Hamadan, mas, também, na Europa – mais
precisamente na Espanha. Apesar de ter havido um intenso intercâmbio entre as partes
orientais e ocidentais do mundo islâmico, isso não significou que não houve rivalidade
entre os dois cantos do império. Al-Andaluz, sempre que pode, rivalizou com os
Abássidas tanto política como culturalmente. Fatores políticos e culturais não deixaram
de estar presentes na postura adotada por Ibn Ru¹d frente aos seus antecessores do
extremo oriente do império. Mas, antes dele, a
Espanha muçulmana já deixara
gravados dois nomes de importância: Ibn Bāja e Ibn Æufayl.
O primeiro, nascido em Saragoza, esteve em Sevilha e Granada e
morreu em Fez em 1138 d.C. Deixou alguns tratados que introduziram os aspectos
mais próprios da filosofia no mundo árabe-espanhol. Ibn Bāja preparou o terreno para
a exposição islâmica da doutrina aristotélica que chegaria ao apogeu com Ibn Ru¹d.
312
313
Ibid, p. 173.
MUNK, Mélanges de Philosophie, op. cit., p.420.
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Miguel Attie Filho
Ibn Æufayl, por sua vez, estudou medicina e filosofia em Córdoba e esteve sob a
proteção do califa ’Abý Ya‘qýb Yýsuf – mecenas generoso das ciências e da filosofia.
Foi
médico da corte e tinha muito prestígio junto a ’Abý Ya‘qýb, tendo-lhe
apresentado o próprio Ibn Ru¹d. Além de escritos sobre medicina, astronomia e
filosofia, Ibn Æufayl deixou para a posteridade a obra ©ayy Ibn Yaqzān, título
homônimo de uma obra de Ibn S÷nā que também, em linguagem simbólica, descrevia a
viagem da alma em seu retorno ao mundo inteligível. É comum encontrarmos essa
obra de Ibn Æufayl indicada como uma das possíveis fontes originárias do romance
Robinson Crusoé – 1719 – de Daniel Defoe314. De todo modo, o apogeu da filosofia
verificado em Al-Andaluz se deu com Ibn Ru¹d. Vejamos alguns dados sobre sua vida.
Abý al-Wal÷d Mu¬ammad Ibn A¬mad Ibn Ru¹d (1126/1198 d.C 520/595 H.), conhecido no Ocidente como Averróis, nasceu em Córdoba. O mais
ocidental dos falāsifa descendeu de uma longa linhagem de sábios e juristas eminentes.
Seu avô fôra o mais ilustre juiz de seu tempo por toda Al-Andaluz sob o domínio dos
Almorávidas e um dos personagens políticos mais importantes. O pai de Ibn Ru¹d
também ocupou o cargo de juiz e, igualmente, foi uma figura ilustre. Ibn Ru¹d seguiu a
mesma trajetória dos seus antepassados tendo se formado, inicialmente, nos estudos
tradicionais a respeito do direito islâmico. Em seguida estudou medicina, astronomia,
teologia, matemática e as outras ciências que compunham a base do conhecimento da
época e, naturalmente, filosofia. Chegou-se a dizer que Ibn Bāja teria sido seu
preceptor, mas essa hipótese foi descartada pois quando Ibn Bāja faleceu, Ibn Ru¹d era
apenas um jovem de doze anos. Ibn Æufayl é indicado, geralmente, como um de seus
amigos próximos e um de seus mestres, mas parece que Ibn Ru¹d não o conhecera
muito antes de 1169 d.C. quando este o apresentou ao emir Abý Ya‘qýb Yýsuf, que
tinha grande interesse pela filosofia e pela ciência. O próprio Ibn Ru¹d comentou a
passagem da seguinte maneira:
“Quando entrei na casa do emir315 dos crentes, o encontrei a sós com
Ibn Æufayl. Este começou a tecer elogios a mim, a exaltar minha
nobreza e a tradição de minha família e reuniu a isso, por sua
bondade, elogios que eu estava longe de merecer. Após ter perguntado
314
FAHKRY, Histoire de la Philosophie Islamique, op. cit.,p. 291.
A referência ao soberano às vezes é feita sob o título de “emir” que significa “príncipe”, ou ainda,
“rei” ou até mesmo “califa”, se bem que esta última denominação se aplique mais propriamente aos
soberanos que governaram durante o califado Omíada em Al-Andaluz. Às vezes aparece o termo
“sultão” mas, apesar de ter sido usado por alguns príncipes muçulmanos, aplica-se mais propriamente
aos soberanos do império turco.
315
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o meu nome, o de meu pai e de minha família, o emir assim abriu a
conversação: qual a opinião dos filósofos a respeito do céu? É uma
substância eterna ou teve um começo ?!”316
Ibn Ru¹d, tomado de surpresa e por um certo temor por desconhecer as verdadeiras
intenções do emir e por não saber o que Ibn Æufayl havia dito ao soberano a esse
respeito, procurou desconversar e inventar um pretexto qualquer para se esquivar de
assunto tão espinhoso. Enquanto procurava uma saída, o soberano, compreendendo a
situação embaraçosa em que se encontrava Ibn Ru¹d, voltou-se a Ibn Æufayl e começou
a discorrer sobre a questão da eternidade do mundo reportando-se à filosofia de
Aristóteles, de Platão e de outros filósofos a esse respeito. Expunha com igual mestria,
também, a argumentação dos teólogos muçulmanos contra os filósofos. Ibn Ru¹d,
surpreso pela vasta erudição e pela excelente memória do emir em relação à filosofia,
pôde ficar mais à vontade e expor também os seus conhecimento a respeito deste que
seria um dos temas importantes de sua filosofia. Na verdade, o soberano e Ibn Æufayl
já haviam combinado toda a cena e queriam apenas colocar o filósofo à prova. Ao se
retirar, Ibn Ru¹d recebeu alguns presentes do emir e partiu.
Numa outra passagem Ibn Ru¹d conta como foi que se aplicou aos
comentários à obra de Aristóteles: um dia, Ibn Æufayl o chamou e lhe relatou que
escutara o emir se lamentar por causa da obscuridade das obras de Aristóteles e de seus
tradutores, dizendo que adoraria encontrar um homem que pudesse comentar esses
livros e explicá-los de modo mais claro para torná-los mais acessíveis aos homens. Ibn
Æufayl, já com idade avançada, insistiu para que Ibn Ru¹d tomasse para si esse
trabalho, já que possuía grande aplicação nos estudos, clareza, lucidez e inteligência
suficientes para tão importante tarefa. Pelas sua própria pena sabe-se que de 1169 à
1180 d.C. aproximadamente, Ibn Ru¹d já escrevera o Comentário sobre o Tratado dos
Animais, Comentário Médio sobre a Física, Comentário sobre os Metereológicos,
Comentário Médio sobre a Retórica, Comentário sobre a Metafísica – dentre outros
referentes a Aristóteles – e uma paráfrase do Almagesto de Ptolomeu.
Em 1182 d.C. o emir Yýsuf chamou Ibn Ru¹d ao Marrocos e o nomeou
seu primeiro médico no lugar de Ibn Æufayl, conferindo-lhe também o cargo de “qāÅi
al-quÅah” – juiz dos juízes – de Córdoba, cargo que fora ocupado por seu pai e
também por seu avô. Nessa época, Ibn Ru¹d tinha por volta de 56 anos. Logo em
316
BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam op. cit., p. 738.
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seguida, em 1184 d.C., o soberano veio a falecer e subiu ao poder seu filho AlManÆýr. De imediato nada mudou em relação à condição do nosso filósofo que foi
mantido em suas funções e continuou sob a proteção do novo emir. Ao passar dos
anos, Ibn Ru¹d ao mesmo tempo que se dedicava aos afazeres políticos, compunha
seus trabalhos filosóficos. Suas posições na interpretação do Alcorão já criavam,
naquela época, certas tensões com os doutores da lei.
Desde que Al-Man½ýr subira ao trono, Ibn Ru¹d viveria mais 14 anos e
entre eles se estabeleceu uma grande amizade: passavam horas discutindo sobre
filosofia onde se ouvia Ibn Ru¹d chegando mesmo a dizer ao emir: tasma‘ yā a¬÷ –
escuta meu irmãoý Até 1195 d.C. quando Al-Man½ýr se preparava para lutar contra
Afonso VIII de Castela na batalha dos Alarcos, ainda se testemunhava o grande
prestígio de Ibn Ru¹d junto ao soberano. Mas, logo em seguida, as pressões dos
adversários do filósofo aumentaram levando-o à desgraça. Ele mesmo narra como, ao
entrar numa mesquita de Córdoba com seu filho ‘Abd Allāh para a prece, viu a turba se
dirigir contra eles e expulsá-los do templo. Seus discípulos abandonaram suas aulas
temendo mesmo invocar sua autoridade. Recebendo injúrias e ataques dos teólogos
radicais e da própria população, até mesmo Al-Man½ýr se viu obrigado a retirar-lhe a
proteção antes confiada. “Ele foi acusado, assim como vários outros sábios da
Espanha, de preconizar a filosofia e as ciências da antiguidade em detrimento da
religião muçulmana.”317
As verdadeiras razões que desbancaram Ibn Ru¹d de sua posição ainda
são tema de controvérsia. “Todos os historiadores muçulmanos se perderam em
conjecturas para explicar as causas dessa desgraça.”318 Seus adversários acusaram-no
de heresia, procurando em seus escritos passagens que pudessem indicar que ele se
afastava dos preceitos do Alcorão. Sua atividade como qād÷ também gerou inimizades
e os que discordavam de seus métodos na aplicação da lei islâmica passaram a
persegui-lo. Numa assembléia de juristas, reunida por Al-Man½ýr, para analisar as
posições de Ibn Ru¹d em relação à ortodoxia muçulmana, nosso filósofo foi condenado
como um extraviado do bom caminho da religião.
Parece que a perseguição a Ibn Ru¹d, deveu-se, em boa medida a
questões internas de interpretação da lei muçulmana mais do que propriamente à sua
317
318
MUNK, Mélanges de Philosophie, op. cit., p. 425.
BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, op.cit. p., 741.
200
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Miguel Attie Filho
dedicação à filosofia. Não é demais sublinhar que Al-Man½ýr 319 foi bem instruído e era
um grande admirador de Aristóteles para ceder a uma campanha contra a filosofia mas,
pressionado pelas circunstâncias, acabou ordenando que os livros de Ibn Ru¹d fossem
queimados (!) Al-Man½ýr ordenou reprimir os que estivessem convencidos de estudar a
filosofia grega, confiscar e jogar ao “fogo todos os livros de lógica e de filosofia que se
pudesse encontrar nas livrarias e nos particulares.”320Como se tal não bastasse, talvez
para acalmar os ânimos, Al-Man½ýr, ordenou ainda que Ibn Ru¹d fosse exilado em
Lucena, pequena cidade ao sul de Córdoba, juntamente com outros estudantes de
filosofia e ciências, ao mesmo tempo em que proibia o estudo sobre esses assuntos. O
exílio durou pouco tempo pois os notáveis de Sevilha pleitearam a favor de Ibn Ru¹d.
Quando Al-Man½ýr voltou ao Marrocos, perdoou-o e chamou-o para voltar aos seus
serviços. Assim, Ibn Ru¹d seguiu para Marrocos mas, pouco tempo depois, veio a
falecer por volta de 1198 d.C. com a idade de 72 anos sem voltar a ver a Espanha. Seus
restos mortais, no entanto, foram transferidos para Córdoba três meses depois, onde foi
enterrado no túmulo de sua família no cemitério de Ibn ‘Abbās.
A produção de Ibn Ru¹d foi volumosa. Badawi apresenta uma lista de
92 títulos que pode ser dividida em seis grandes grupos temáticos: filosofia, teologia,
direito, astronomia, gramática e medicina.321 Em filosofia destacam-se 32 comentários,
em sua maior parte referentes à obra de Aristóteles, além de 29 títulos originais. Nove
obras sobre teologia e jurisprudência; 3 sobre astronomia e 2 sobre gramática. Em
medicina, listam-se 8 comentários –
principalmente sobre Galeno – e 9 obras
originais. “Ibn Ru¹d foi, incontestavelmente, um dos homens mais sábios no mundo
muçulmano e um dos mais profundos comentadores das obras de Aristóteles. Ele
possuía todas as ciências acessíveis, então aos árabes, e foi um dos escritores mais
fecundos.”322
Como médico ficou conhecido principalmente por sua obra Kulliyyāt alÆib / Princípios Gerais de Medicina, um tratado de terapia geral que foi publicado em
latim sob o título de Colliget. Seus conhecimentos astronômicos podem ser verificados
num resumo do Almagesto, que ainda existe numa versão hebraica. Escreveu obras
originais em filosofia das quais se destaca o Tahāfut al-Tahāfut / A Autodestruição da
319
Conhecido como “o emir dos crentes e o sultão das duas margens (a Africa do Norte e a AlAndaluz)” Cf. BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, op.cit., p.742.
320
MUNK, Mélanges de Philosophie, op. cit., p. 427
321
BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, pp. 743-761. Cf. também a lista de HERNANDEZ,
op. cit., pp.236-239.
322
MUNK, Mélanges de Philosophie, op. cit., p. 429.
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Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Autodestruição como resposta ao Tahāfut al-Falāsifa/ A Autodestruição dos Filósofos
de Al-¦azāl÷. Nesta obra, Ibn Ru¹d saiu em defesa da falsafa em vista dos ataques dos
teólogos, principalmente de Al-µazāl≈ mas também criticou Al-Fārāb÷ e Ibn S÷nā por
terem se desviado do aristotelismo.323 No Fa½l al-maqāl f÷mā a¹ari‘a wa al-¬ikma min
al-it½āl / O Tratado Decisivo entre a Religião e a Filosofia, Ibn Ru¹d procurou
demonstrar o acordo essencial entre a filosofia rigorosamente compreendida e a
escritura corretamente interpretada. Incansável defensor da falsafa e da escritura,
procurou mostrar que a lei religiosa não se opunha à filosofia nem vice-versa.
Em vistas dos falāsifa orientais – Al-Fārāb÷ e Ibn S÷nā – , Ibn Ru¹d
surpreende pela meticulosidade com que comenta os textos de Aristóteles. No
Ocidente, a justo título, foi chamado de “O Comentador” por excelência. Na Idade
Média – e mesmo na Renascença – repetiu-se o rifão: “a natureza interpretada por
Aristóteles e Aristóteles interpretado por Averróis.”324
Ibn Ru¹d não conhecia a língua grega e nem a língua siríaca. Seus
comentários se fizeram diretamente a partir das traduções árabes da obra de
Aristóteles. Não parece ter havido, portanto, uma correção das traduções do grego ou
do siríaco para o árabe pelo próprio Ibn Ru¹d. Ele comentou praticamente a totalidade
das obras de Aristóteles (exceto A Política) e, em alguns casos, chegou a compor dois
ou três comentários para a mesma obra como, por exemplo, no caso da Física. Os
textos referentes aos comentários foram classificados em “grandes”, “médios” e
“pequenos comentários” ou paráfrases.
Nos grandes comentários, Ibn Ru¹d geralmente apresenta um parágrafo
do texto guia e, em seguida, levanta os problemas filológicos, históricos e doutrinais
que ali estão implicados desenvolvendo, assim, o próprio corpo do comentário.
Incluem-se nessa categoria, por exemplo, os comentários à Metafísica, aos Segundos
Analíticos, à Física e ao De Anima de Aristóteles. O comentário médio segue o mesmo
modelo diferindo, apenas, pela menor extensão. Neste, Ibn Ru¹d geralmente começa
pelo termo “qāl” (disse) e resume o restante do parágrafo reunindo a ele explicações, o
que, por vezes, torna mais difícil saber o que é de Aristóteles e o que é propriamente de
Ibn Ru¹d. Nessa categoria estão presentes, por exemplo, os comentários à Retórica, às
Categorias, à Poética, às Refutações Sofísticas, à Ética à Nicômaco de Aristóteles –
323
Chama a atenção o fato de Ibn Ruºd não ter comentado a Teologia de Aristóteles e de, ao mesmo
tempo, reclamar o aristotelismo puro.
324
BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, op. cit., p. 743.
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Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
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entre outros – e à Isagoge de Porfírio. Quanto ao pequeno comentário ou paráfrase,
este geralmente se caracterizou como um resumo paráfrasico ao texto de Aristóteles no
qual Ibn Ru¹d inclui também suas próprias reflexões e opiniões de outros filósofos.
Neste, Ibn Ru¹d não segue fielmente a estrutura do texto guia mas adota um itinerário
próprio assemelhando-se ao método utilizado por Ibn S÷nā em algumas de suas obras.
Nessa categoria encontram-se, por exemplo, paráfrase da Física, Metafísica, Poética
de Aristóteles e da República de Platão. Na paráfrase da República de Platão, Ibn
Ru¹d se refere à ausência de uma tradução da Política de Aristóteles que não havia,
até aquele momento, chegado em Al-Andaluz e, por isso, – nos diz – comenta a
República. Alude também ao fato de ter havido uma tradução árabe da Política no
Oriente conforme o relato de Al-Fārāb÷. No entanto, não se sabe, até o momento, em
que obra Al-Fārāb÷ teria feito tal referência e sequer houve alguma passagem de AlFārāb÷ que fizesse concluir que realmente a tradução da Política de Aristóteles existiu
em árabe.
No fim do comentário médio à Física ele nos diz:
“Isso que escrevemos sobre esses temas, só o fizemos para fornecer a
interpretação no sentido dos peripatéticos, a fim de facilitar a
compreensão aos que desejam conhecer essas coisas. Nosso objetivo
foi o mesmo que o de Abý ©āmid [Al-¦azāl÷] em seu livro Maqā½id,
pois, quando não se aprofunda a opinião dos homens em sua origem,
não se sabe reconhecer os erros que lhes são atribuídos, nem os
distinguir disso que é verdadeiro.”325
É comum encontrarmos passagens em que Ibn Ru¹d mostra alta consideração e
deferência pelo mestre grego. Em sua opinião, a doutrina do Estagirita era a soberana
verdade e, assim, a considerou como o limite da especulação humana. As alusões de
Ibn Ru¹d a Aristóteles não mediram palavras para colocar o mestre grego no mais alto
grau da inteligência humana: “dirigimos louvores sem fim àquele que predestinou esse
homem [Aristóteles] à perfeição e que o colocou no mais alto grau de excelência
humana onde nenhum homem em nenhum século pôde chegar. É a ele que Deus aludiu
quando disse: “tal superioridade Deus concede a quem Ele quer.”326 Em outra
passagem – no prefácio de seu Comentário à Física –, a admiração por Aristóteles é
igualmente insigne:
325
MUNK, Mélanges de Philosophie, op. cit., p.442.
BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam , op. cit., p. 763. “Tal é a graça de Deus que a concede
a quem Lhe apraz porque Deus é Agraciante por excelência.” Cf. ALCORÃO, LVII, 21.
326
203
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
“O autor desse livro é Aristóteles, filho de Nicômaco, o mais sábio
dos gregos, que fundou e concluiu a lógica, a física e a metafísica.
Digo que ele as fundou porque todas as obras que foram escritas antes
dele sobre tais ciências sequer vale a pena que se diga algo sobre elas,
sendo eclipsadas pelos seus próprios escritos. Digo que ele as
terminou, porque nenhum daqueles que seguiram-se a ele até o nosso
tempo, isto é, durante aproximadamente mil e quinhentos anos, nada
puderam reunir aos seus escritos e nem mesmo encontrar algum erro
de alguma importância. Ora, que tudo isso se encontre reunido em um
só homem, é coisa estranha e miraculosa. Quem é assim privilegiado
merece, antes, ser chamado divino, do que humano e, eis o porquê
dos antigos o chamarem divino .”327
É, pois, segundo essa profunda e sincera admiração – mais do que as hipérboles do
elogio oriental – que Ibn Ru¹d procurou restituir o que ele considerava ser o
pensamento autêntico de Aristóteles. Nesse caso, não se trataria propriamente de
modificar a filosofia do mestre grego e nem de introduzir inovações mas de procurar
compreendê-la de modo rigoroso e sistemático.
Porém, não obstante o rigor e a meticulosidade de Ibn Ru¹d o terem
afastado de algumas teses de Al-Fārāb÷ e de Ibn S÷nā, ainda assim, o desenvolvimento
de sua filosofia não foi totalmente ao encontro das doutrinas propriamente aristotélicas.
Na medida em que havia na filosofia de Aristóteles uma grande quantidade de pontos
obscuros sobre os quais os antigos comentadores não chegaram a um acordo ou
calaram sobre a questão; enquanto procurava extrair o que supunha ser a verdadeira
opinião de Aristóteles, Ibn Ru¹d chegou algumas vezes a estabelecer doutrinas que
eram as suas próprias.
Muito dessa originalidade é tributária da presença do neoplatonismo.
Mas saber com extrema precisão em que medida o neoplatonismo esteve presente na
visão de Ibn Ru¹d é uma questão que não encontra conformidade entre os
pesquisadores na medida em que se procure focalizar uma ou outra área de seu
pensamento. Muito da depuração dos elementos neoplatônicos em vista da teoria
aristotélica pode ter na ausência de um comentário ou um tratamento que integrasse a
chamada Teologia de Aristóteles no sistema aristotélico um elemento importante e
esclarecedor. Ibn Ru¹d parece ter percebido que o sistema baseado sobre o princípio
327
Ibid, p. 762.
204
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
que do um só procede o um não poderia ter sido inspirado em Aristóteles e tampouco
nos célebres peripatéticos antigos, mas em Porfírio de Tyr, o autor da Isagoge.
“Observe-se que em nenhum lugar Ibn Ru¹d atribuiu a famosa Teologia a Aristóteles.
Ele esteve firmemente convencido que esse livro não poderia jamais ser da pena do
Estagirita.”328 Em largo espectro Ibn Ru¹d pôde distinguir com mais propriedade
muitas doutrinas que se mesclaram ao aristotelismo mas, “a verdade é que resta
neoplatonismo mesmo em Averróis e que, sabendo-o ou não, o Comentador procedeu
de maneira mais original do que ele mesmo disse.”329 Se é demais nivelar de modo
equivalente a presença do neoplatonismo por toda a falsafa e afirmar com Munk que
“o caráter geral da doutrina de de Ibn Ru¹d é o mesmo que aquele que verificamos nos
outros filósofos árabes”330 ainda assim é possível entender que, mesmo que tenha sido
em menor grau, Ibn Ru¹d também viu as doutrinas de Aristóteles pelo prisma dos
comentadores neoplatônicos e forneceu modificações significativas no sistema
peripatético. Na defesa de Aristóteles, na crítica dura aos comentadores que o
antecederam é possível encontrar elementos originais de sua filosofia no Tahāfut alTahāfut que, pela força de sua argumentação e pela riqueza de idéias constitui-se numa
obra mestra.
O Tahāfut al-Tahāfut, obra escrita provavelmente em 1180 d.C. refletiu
um pensamento mais maduro do nosso filósofo, apresentando as linhas principais de
suas convicções. Por um lado Ibn Ru¹d desenvolveu uma refutação sistemática da
condenação da falsafa por Al-¦azāl÷ e, por outro lado, sustentou que Ibn S÷nā e AlFārāb÷, preocupados com o problema da harmonia, minimizaram as grandes diferenças
entre Aristóteles e seu mestre Platão, particularmente na crítica a respeito da teoria das
idéias. Do mesmo modo, toda a teoria da emanação que formou a pedra angular da
cosmologia e da metafísica de Ibn S÷nā e de Al-Fārāb÷, foi apontada por Ibn Ru¹d
como não aristotélica. A construção de um universo que desborda de modo múltiplo a
partir do Uno conteria, segundo ele, diversos erros lógicos. “Averroes viu muito bem
que interesses teológicos haviam favorecido essa mistura [neoplatonismo e
aristotelismo]. Ele sabia que restaurar o aristotelismo autêntico era excluir da filosofia
o que melhor nela se harmonizava com a religião.”331
328
Ibid, p. 814.
GILSON, A Filosofia na Idade Média, op. cit., p. 445.
330
MUNK,. Mélanges de Philosophie, op.cit, p. 443.
331
GILSON, A Filosofia na Idade Média, op. cit. p. 444.
329
205
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Algumas das críticas de Ibn Ru¹d ao desvio da interpretação do que ele
julgou ser correto na doutrina de Aristóteles – referidas mais propriamente a Ibn S÷nā –
foram, por exemplo: a inclusão da prova da existência do Primeiro Motor na
Metafísica e não na Física como fizera Aristóteles; a confusão entre o um
transcendental com o um numérico; a consideração da existência como um acidente da
essência; a influência das formas separadas sobre as coisas engendradas; a afirmação
que do um só pode proceder o um e a referente crítica da teoria da emanação; falta de
fundamentação entre a distinção de possível e necessário; e a afirmação de que os
corpos celestes possuem a faculdade imaginativa.
Nas críticas a Al-¦azāl÷, Ibn Ru¹d entendeu que a argumentação do
primeiro não se encontrava numa linguagem rigorosamente filosófica pois os
raciocínios dos quais ele se utilizou eram prováveis, dialéticos e retóricos mas não
demonstrativos. Por exemplo, Al-¦azāl÷ teria se enganado em condenar os filósofos
peripatéticos acusando-os de ter dito que Deus não conheceria os particulares. Ora, Al¦azāl÷ não entendera que o termo “conhecer”, nesse caso, só é usado por homonímia: o
modo pelo qual Deus conhece não é o mesmo pelo qual nós conhecemos; o nosso
“conhecer” se faz e se modifica; o de Deus é eterno. Como o verdadeiro discurso do
filósofo só pode ser o demonstrativo, as reprovações de Ibn Ru¹d estenderam-se
também aos filósofos muçulmanos que serviram-se, muitas vezes, de argumentos
dialéticos e prováveis. “Os discursos demonstrativos estão nos livros dos antigos que
escreveram acerca dessa ciência , particularmente nos livros do Filósofo Primeiro, não
no que afirmaram a esse respeito Ibn Sina e outros que pertencem ao Islām.”332
Quanto à questão da criação ou da emanação Ibn Ru¹d criticou ambas as
posições: a de Ibn S÷nā e de Al-Fārāb÷ quanto à emanação, por um lado e, a doutrina de
Al-¦azāl÷ de uma criação a partir do nada, por outro lado. Em sua explicação, tanto os
filósofos quanto os teólogos aceitaram que havia, nessa questão, basicamente três
modos de ser: dois extremos e um intermediário. Um dos extremos seria entendido
como sendo formado de matéria, foi causado e o tempo precedeu sua existência como,
por exemplo, a água, a terra, o fogo, o ar, as plantas e os animais. Todos esses são
“produzidos”. No outro extremo estaria um ser que não é causado e que o tempo não o
precedeu sendo, pois, eterno. Este é Deus – Bendito e Altíssimo –, que deu existência a
todas as coisas e as conserva. O ser intermediário seria o mundo em seu conjunto. Os
332
AVERROES, Tahafut cit in. GUERRERO, op. cit., p. 52.
206
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
teólogos afirmam que o mundo teve um começo e, portanto seu passado é finito, ao
passo que alguns filósofos o afirmam infinito. “As duas partes divergem somente
quanto ao tempo passado e à existência passada: os teólogos as vêem como finitas, e
esta também é a doutrina de Platão e seus seguidores, ao passo que Aristóteles e sua
escola as vêem como infinitas, assim como o futuro.”333
Ibn Ru¹d defendeu a tese da eternidade do mundo sem ver nisso
qualquer discordância com a Revelação. A tese comumente defendida pelos teólogos
era, como no caso de Al-¦azāl÷, de que o mundo teria sido criado por Deus a partir do
nada. Isso signficava que a idade do mundo seria limitada no tempo o que, por sua vez,
indicava que.um tempo infinito passado deveria ser visto como impossível. Ibn Ru¹d
refuta, no Tahāfut , um a um os argumentos de Al-¦azāl÷. Partindo do conceito do
caráter todo-poderoso de Deus, “se a vontade divina tivesse tido que esperar para criar
no tempo, tal espera estaria condicionada por algo extrínseco e Deus estaria
determinado em suas ações, o que é incompatível com o próprio conceito de divindade.
Deus quis desde sempre o cosmos possível que é o que realmente existe.”334
Baseado na própria Revelação para defender sua posição, afirmou que
“os teólogos (mutakallimýn) quando falam sobre o mundo não seguem o sentido literal
da lei: a interpretam. Na Lei não se diz que Deus teria existido com o puro nada, em
nenhum texto se encontra isto.”335 Ao contrário, há varias passagens no Alcorão que
sugerem que “sua forma [do mundo] é produzida realmente e que a própria existência
e o tempo perduram em vista dos dois extremos, isto é, ininterruptamente.”336 Desse
modo, as próprias palavras: “Ele, Quem criou os céus e a terra em seis dias, e seu trono
estava sobre a água.”337 implicariam, em sentido literal, que antes da existência do
mundo existia outro ser: “o trono e a água, e um tempo antes desse tempo.”338 Do
mesmo modo, Suas palavras “o dia em que a terra seja substituída por outra terra e os
céus por outros céus”339 implicariam, também , em sentido literal que haveria uma
segunda existência depois dessa. Ou, ainda, quando diz: “dirigiu-Se aos céus quando
estes ainda eram fumaça”340 significaria que os céus teriam sido criados a partir de
algo. Para Ibn Ru¹d, na medida em que uma série temporal passada infinita é possível,
333
AVERROES, Traité Decisif op. cit., p. 29.
HERNANDEZ, Historia del pensamiento en el mundo islamico, op. cit.,p 201.
335
AVERROES, Traité Decisif op. cit., p. 31.
336
Ibid, op. cit., p. 30. / Cf. trad. GUERRERO, p. 91.
337
ALCORÃO, XI, 7.
338
AVERROES, Traité Decisif op. cit., p. 30.
339
ALCORÃO, XIV, 48.
340
ALCORÃO, XLI,11.
334
207
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
a idéia propriamente de criação deve ser corretamente compreendida, ou seja, sem a
exigência de que um tempo vazio tenha precedido a realização atual do mundo. “O
mundo pode ser eterno e Deus ser seu Autor; basta admitir que em nenhum momento o
mundo exista por si mesmo sem que Deus o sustente e o faça existir. Mas Deus pode
faze-lo existir de toda a eternidade.”341
A cosmovisão de Ibn Ru¹d é a de um universo fechado, esférico,
formado por uma série de esferas concênctricas cujo centro é a terra, em torno da qual
giram as órbitas celestes. Para explicar o movimento dos céus, Ibn Ru¹d,
acompanhando os estudos astronômicos de seu tempo, seguiu a opinião mais corrente e
estabeleceu 45 motores: 38 corresponderiam às esferas das estrelas fixas e dos planetas
e sete aos movimentos diurnos de cada uma das esferas móveis. Os 38 estariam assim
repartidos: 5 para cada um dos planetas superiores (Saturno, Júpiter e Marte), 5 para a
Lua; 8 para Mercúrio; 7 para Vênus, um par o Sol e um para as estrelas fixas.342
Na medida em que os motores se hierarquizam, devem chegar a um
primeiro motor separado, que é o princípio primeiro e último ao qual todos tendem. É o
Primeiro Motor Imóvel, a Primeira Inteligência separada cuja unidade assegura a do
universo e, por conseguinte, seu próprio ser. Mas, não obstante sua posição naturalista,
Ibn Ru¹d afirmou que o Primeiro Motor Imóvel e eterno é Deus. As intrínsecas
relações de Deus e do mundo podem ser ilustradas por essa passsagem corânica: “se no
universo houvesse deuses além de Deus, os dois mundos (céu e terra) cessariam de
existir.”343 Deus é a causa da existência da inteligência motriz da esfera dos fixos à
qual seguem-se as outras esferas tendo, no centro do universo, os quatro elementos.
Desde Al-Fārāb÷, a tese da inteligência das esferas interpostas entre o
mundo sublunar e o Primeiro Motor – segundo a emanação que ligava, unificava e
comunicava todas as partes do universo até o mundo sublunar – já estava estabelecida
e cobria o abismo que separava a energia pura, ou Deus, da matéria primeira. Em boa
parte, Ibn Ru¹d admitiu essa hipótese e concebeu o céu como um ser que não nasce e
nem morre e cuja matéria própria é superior à das coisas sublunares, comunicando a
estas o movimento que lhe vem da causa primeira e do desejo que o atrai em direção ao
Primeiro Motor. As órbitas celestes seriam movidas pela atração que a Inteligência
suprema exerce sobre elas, ou seja, o movimento seria determinado pela sua causa
341
CARRA DE VAUX, Les Penseurs de l’Islam, op. cit., p. 70s.
HERNANDEZ, Historia del pensamiento en el mundo islamico, op. cit., p. 241, n. 44 comenta a
ausência de um motor.
343
ALCORÃO, XXI, 22.
342
208
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
final. Assim, numa nova perspectiva, Ibn Ru¹d rejeitou que haveria uma causa primeira
criadora a partir do nada como queriam os teólogos do Islām ao mesmo tempo em que
afastou a idéia de pura emanação como queriam Al-Fārāb÷ e Ibn S÷nā mas apontou para
uma simultaneidade de Deus e mundo num eterno começo.
Outra questão importante desenvolvida por Ibn Ru¹d, – e não menos
espinhosa – referiu-se ao intelecto. Os temas envolvidos nessa discussão ligam-se,
principalmente, à questão da transcendência ou da imanência da inteligência humana.
No processo de intelecção três perguntas podem surgir com mais força: o homem
pensa por si mesmo; o pensamento no homem se dá pelo resultado do contato entre ele
e uma inteligência que está fora dele ou é a própria inteligência, externa ao homem,
que pensa nele?
Seguindo Aristóteles, Ibn Ru¹d entendeu, assim como os seus
antecessores peripatéticos que, para inteligir, o intelecto humano deve passar da
potência ao ato e é preciso, para isso, que haja um intelecto sempre em ato – intelecto
agente – que realize esse processo. Desde Al-Fārāb÷, o intelecto agente fôra
estabelecido como uma inteligência cósmica na esfera da Lua sendo que, entretanto, ao
homem ainda estava reservado um núcleo intelectivo que lhe era próprio e individual
que assegurava o seu contato com as formas permanentes da inteligência agente
resultando, consequentemente, na própria intelecção, isto é, no entendimento das
coisas por parte do homem. Esse núcleo intelectivo no homem, inclusive, sobreviveria
de modo individualizado após a morte do corpo como uma consciência individual,
tanto para Al-Fārāb÷ como para Ibn S÷nā, a contemplar as formas permanentes da
inteligência agente.
A direção tomada por Ibn Ru¹d permitiu colocar em questão esse núcleo
próprio ao homem, trazendo à discussão a possibilidade de se entender o processo de
intelecção como um processo da própria inteligência agente que, momentaneamente, se
daria de modo particularizado no homem. O contato da inteligência agente com nossa
alma, sendo como uma luz que iluminaria os inteligíveis para nós, poderia ser
interpretado, pois, como uma operação da própria inteligência agente particularizada
num determinado indivíduo. Em última análise, não seria o homem a pensar mas seria
sempre a própria inteligência a pensar, nele. O que sobreviveria, nesse caso, após a
morte? Seguindo os ditames da razão, seria a própria inteligência agente que seria a
única propriamente substancial e separada da matéria. A sobrevivência da humanidade
só poderia ser entendida, pois, como a sobrevivência da espécie e não como a
sobrevivência individual.
209
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
No Comentário Médio Sobre a Alma, Ibn Ru¹d – atribuindo tal
interpretação à Alexandre de Afrodísias – falou diretamente sobre essa questão
aludindo que é preciso, pois, que essa faculdade de intelecção que recebe a impressão
das coisas inteligíveis seja inteiramente impassível e esteja absolutamente livre de toda
mistura com a matéria. Com efeito, visto que essa faculdade que chama-se intelecto
material pensa todas as coisas, é necessário que não seja misturada de modo algum ao
sujeito no qual ela se encontra – como ocorre com as outras faculdades que estão
ligadas à matéria. A sua natureza só pode ser de uma simples disposição: “quero dizer
que o intelecto em potência é uma simples disposição e não algo no qual se encontra a
disposição.”344
Uma passagem do Alcorão foi usada por Ibn Ru¹d para ilustrar essa
idéia, quando Moisés pediu a Deus que se mostrasse: “Nunca poderás ver-Me mas
olha em direção do monte e se ele permanecer em seu lugar, então me verás. E quando
a Majestade de Deus resplandeceu sobre o monte, este se reduziu a pó, e Moisés
tombou desmaiado.”345 Por analogia, o intelecto material no homem não teria,
inicialmente, a possibilidade de perceber a inteligência agente. Para tal, deveria se
tornar intelecto em ato – então, “tu me verás”. Mas, na verdade, nessa união seria
apenas a inteligência agente que se perceberia particularizada momentaneamente em
uma alma humana. A intelecção humana não seria, pois, a garantia da sobrevivência
individual sendo possível que a união marcasse, em última análise, o esfacelamento do
intelecto passivo assim como ocorreu com a montanha. Como bem assinalou Corbin,
isso se colocaria muito distante do avicenismo, “no qual a garantia inalienável da
individualidade espiritual está precisamente na consciência de si que é atingida pela
união com a inteligência agente”346.
Mas se a Revelação afirma a vida eterna, suas penas e recompensas,
como conciliá-la com essa conclusão da razão? A primeira coisa a saber é se realmente
essa seria a melhor interpretação da teoria do intelecto em Ibn Ru¹d. Mesmo que a
resposta fosse afirmativa, valeria transpor a discussão para as relações entre a razão e a
fé, e lembrar com Mehren que Ibn Ru¹d declarou, também, que há questões que devem
ser colocadas em espera para serem bem entendidas “aguardando que um dia se
encontrem a explicação racional e que, até o momento, rejeitar a exposição alcorânica
344
Tradução em MUNK, op. cit, p. 445.
ALCORÃO, VII, 143.
346
CORBIN, Histoire de la Philosophie islamique, op. cit, p. 343.
345
210
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
ou dela duvidar, seria um ato sacrílego e blasfematório”347 pois a filosofia se apoia ao
mesmo tempo sobre a razão e sobre a revelação divina. Valeria também, se observar a
continuação da surata citada: “e quando [ Moisés] voltou a si, disse: Glorificado sejas!
Volto a ti contrito e sou o primeiro dos crentes.”
Em outras passagens, como na Paráfrase à Metafísica Ibn Ru¹d parece
permanecer de acordo com Ibn S÷nā quanto à conexão do homem com o mundo das
inteligências separadas e sua junção final com a inteligência agente, na esfera da Lua.
Assim, o destino do homem seria uma certa beatitude intelectual em que estaria
sublinhado mais o caráter da ciência do que o da contemplação como o elo que liga o
homem ao céu e a Deus e o faz participar, até um certo ponto, da ciência superior,
princípio da ordem universal. “É somente pela ciência e não por uma contemplação
vazia que podemos chegar a apreender o ser.”348
Se no chamado “averroísmo” a tese da unidade do intelecto com a
conseqüente negação da imortalidade da alma individual esteve presente, é preciso
levar em conta que entre “Ibn Ru¹d e Averróis” pode haver muita distância. Afirmar
categoricamente que essa seria sido a interpretação mais acertada de sua doutrina não é
algo que possa ser assegurado com tanta certeza. “É verdade que Ibn Ru¹d professou
que há um intelecto apenas comum a todos os homens? Renan foi o primeiro a se
elevar contra essa atribuição a Ibn Ru¹d.”
349
Um outro tema que ocupou um lugar central em sua obra foi a relação
entre a religião e a filosofia. O fundamento dessa discussão estava na crença da
verdade em todas as suas manifestações. Incansável defensor da falsafa e do dogma,
Ibn Ru¹d procurou mostrar que a lei religiosa não se opunha à filosofia e que a
filosofia não se opunha ao dogma. Para ele, filosofia e revelação não teriam mais do
que um único e mesmo fim, conhecer a verdade e atuar conforme ela. A concepção da
filosofia como ciência demonstrativa, apresentar-se-ia como o saber racional e
conceitual frente ao caráter simbólico e alegórico próprio da religião.
No Fa½l al-maqāl / Tratado Decisivo sobre o Acordo da Religião e da
Filosofia, Ibn Ru¹d iniciou afirmando que tencionava examinar, do ponto de vista da
especulação religiosa, se o estudo da falsafa e das ciências lógicas deveria ser
347
MEHREN, cit em BADAWI, op. cit., p. 13.
MUNK, Mélanges de Philosophie, op. cit., p. 444.
349
BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, op. cit., p 849. Para aprofundar essa questão,
verificar as posições de Aristóteles, Tomás, Siger de Brabant apresentadas por Badawi, pp. 840-856.
Assim como a pópria polêmica entre os analistas, inclusive Renan.
348
211
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
permitido ou não pela lei religiosa; se deveria ser recomendada seja a título meritório
ou a título obrigatório. O filósofo entende que, visto que a falsafa não é nada além que
a especulação sobre o universo e, na medida em que se conhece o Artífice pelo
conhecimento da arte que dele procede e, quanto mais perfeito é o conhecimento de
sua obra, mais é perfeito o conhecimento de seu Autor e, na medida em que a lei
religiosa convida e incita à instrução a respeito das coisas do universo é, pois, evidente
que o estudo da filosofia deveria ser, em vista da lei religiosa ou obrigatório ou
meritório.
A própria Lei divina contida no Alcorão convidaria, segundo ele, ao
estudo e ao aprimoramento racional como “aparece claramente em mais de um verso
do Livro de Deus – O Bendito, o Altíssimo! – ”350 Por exemplo, lê-se na surata 59
:“tirai ensinamento disso, oh! vós que sois dotados de visão!”351 Ou então: “Não tens
refletido sobre o reino dos céus e da terra e sobre todas as coisas que Deus criou?”352 ;
ou, ainda: “(ý) aqueles que refletem sobre a criação dos céus e da terra (ý)”353 Esses
seriam alguns dentre inúmeros versos que mostrariam a obrigação da utilização da
argumentação racional ou, ao menos, racional e religiosa ao mesmo tempo, exortando à
reflexão sobre o universo.
Sendo assim, na medida em que a própria Lei divina indicaria a
aplicação da reflexão sobre o universo pela especulação racional e, como a reflexão
consiste unicamente em tornar conhecido o que se desconhece e, como isso se faz pelo
silogismo, haveria a obrigação de se aplicar o silogismo racional na especulação a
respeito do universo. Nessa medida, “é evidente que tal modo de especulação, à qual a
lei divina convida e incita, toma a forma mais perfeita quando ela se faz pela forma
mais perfeita do silogismo que chama-se demonstração.”354 Ibn Ru¹d aludiu ao fato de
que alguém poderia objetar que esse modo de especulação a respeito do silogismo
racional fosse uma inovação ou mesmo uma heresia, visto que não existia nos
primeiros tempos do Islām. Mas, na medida em que o silogismo jurídico usado na lei
islâmica também foi posterior às primeiras interpretações do Alcorão e não foi
considerado uma heresia, a mesma permissão deveria ser dada ao uso do silogismo
racional.
350
AVERROÈS (IBN ROCHD), Traité Decisif - L’Accord de la Religion et de la Philosoohie trad.
Léon Gauthier. Paris: ed. Sidbad , 1988, p. 12.
351
ALCORÃO, LIX, 2. AVERROES, Traité Decisif op. cit., p. 12, Cf. GUERRERO, p. 76.
352
AVERROES, Traité Decisif op. cit., p. 12, Alcorão, VII, 185.
353
Ibid , op. cit., p. 12 .
354
Ibid, op. cit., p. 13.
212
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Além disso, na medida em que a Lei divina incitaria ao conhecimento,
pela demonstração, do Deus Altíssimo e dos entes cujos Ele é o Autor, seria preferível
e mesmo necessário que aquele que assim quisesse proceder conhecesse, previamente,
as diversas espécies de demonstração e suas condições, ou seja, seria preciso que se
conhecesse no que especificamente o silogismo demonstrativo difere do silogismo
dialético, do silogismo oratório e do silogismo sofístico. Seria obrigatório, pois, que
antes de abordar a especulação, se tratasse, primeiramente, das coisas que se referem à
especulação do mesmo modo, que antes de se fazer um certo trabalho, seus
instrumentos devessem ser conhecidos.
Assim dever-se-ia, pois, – na medida que é difícil e mesmo impossível
que um homem, por si só, pudesse descobrir tudo o que fosse necessário nessa matéria
– se aproveitar os estudos sobre esse tema feitos no passado, tenham eles sido
elaborados pelos muçulmanos ou não. “Entendo como não sendo nossos
correligionários, os antigos que especularam sobre essas questões antes do
aparecimento do islamismo.”355 Desse modo, como os silogismos racionais foram
estudados pelos antigos, Ibn Ru¹d exortou a que se estudasse sobre isso nos livros dos
antigos com o intuito de verificar o que eles disseram. O que for certo e conforme a
verdade, deveria ser aceito com alegria e reconhecimento; o que não for conforme a
verdade, deveria simplesmente ser assinalado como algo que se deva abster.
Ibn Ru¹d entendeu que o estudo dos livros dos antigos deveria ser
fundamental visto que a intenção que comporta é justamente a mesma que a Lei Divina
incita a conhecer. “E quem proíbe o estudo a qualquer um que esteja apto fazê-lo, isto
é, a qualquer um que possua estas duas qualidades reunidas: em primeiro lugar a
inteligência inata e, em segundo lugar, a retidão legal e a virtude moral, está fechando
a porta pela qual a Lei Divina chama as pessoas ao conhecimento de Deus, isto é a
porta da especulação que conduz ao Seu conhecimento, ao verdadeiro conhecimento.
Isto seria o cúmulo da ignorância e do distanciamento de Deus Altíssimo”356 Dizer que
a filosofia poderia resultar num mal não seria suficiente para mostrar que os que
estejam preparados, dela possam obter ganhos pois o mal que poderia resultar
acidentalmente dessa ciência ou arte, poderia resultar acidentalmente também de todas
as outras ciências ou artes.
355
356
Ibid, op. cit., p. 15.
Ibid, trad. Guerrero, p. 81.
213
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Em seguida, Ibn Ru¹d propôs que o acesso ao saber, não obstante dever
ser assegurado para todos, deveria seguir conforme as características e os limites de
cada um conforme as três classes que identificou entre os homens segundo sua
suscetibilidade quanto à aceitação da verdade “pois as características dos homens se
escalonam do ponto de vista do assentimento”
357
: alguns dão seu assentimento à
demonstração; outros aos argumento dialéticos e outros aos argumentos oratórios. Essa
divisão tríplice é ilustrada pelos três tipos de homem que existem diante da letra da
escritura: a primeira – grande massa da população – é a dos que não a possuem o
menor grau de abstração interpretativa deixando se levar apenas pela retórica; a
segunda é constituída pelos homens dialéticos que trabalham com as hipóteses mas não
chegam a uma conclusão sobre as questões; a terceira é a dos homens de julgamento
correto, isto é, aptos na arte da filosofia.
Assim, visto que a Lei Divina faz apelo aos homens segundo esses três
graus, ela deve ser capaz, pois, de obter o assentimento geral de todos os homens a
não ser – obviamente – daqueles que não a aceitam. Assim, encontram-se três ordens
de abordagens: “no topo a filosofia que confere a ciência e a verdade absolutas; abaixo
a teologia, domínio da interpretação dialética e do verossímil; no pé da escala, a
religião e a fé, que devem ser cuidadosamente deixadas àqueles para quem são
necessárias. Justapõem-se, assim, e hierarquizam-se três graus de intelecção de uma só
e mesma verdade.”358 É isso que estaria expresso na frase do Altíssimo: “Chama-os ao
caminho do teu Senhor com sabedoria e exortações benevolentes. Discute com eles do
modo mais conveniente.”359
Ibn Ru¹d não viu como a especulação fundada sobre a demonstração
poderia conduzir, de algum modo, à contradição dos ensinamentos dados pela Lei
Divina “pois certamente a verdade não poderia ser contrária à verdade mas ela se
acorda consigo mesma e testemunha em seu próprio favor.”360 É necessário que a
crença, pela qual Deus caracteriza os sábios, seja produzida pela demonstração e, se ela
é produzida pela demonstração, ela não pode vir sem a ciência da interpretação: pois
Deus , Grande e Poderoso, fez saber que para essas passagens do Alcorão há uma
interpretação que é a verdade, e a demonstração não possui outro sujeito que a verdade.
357
Ibid, op. cit., p. 20.
GILSON, A Filosofia Medieval, op. cit. p. 443.
359
ALCORÃO XVI, 125 Guerrero, filosófico-sabedoria/ retórico-exortação/ dialético-discussão.p. 83
360
AVERROES, Traité Decisif op. cit., p. 20.
358
214
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Não é demais lembrar que, quanto à interpretação que deve ser dada às
passagens do texto revelado, no caso dos muçulmanos isto implica não somente a
compreensão dos caminhos da espiritualidade mas a própria legislação que estabelece
as regras de conduta da comunidade. Sobre isso, diz Ibn Ru¹d, quando houver
desacordo entre o sentido literal do texto revelado e a conclusão demonstrativa a partir
do silogismo, um acordo deve ser buscado procurando-se utilizar um sentido figurado
no texto. Quando o texto apresentar expressões que, tomadas no sentido literal se
contradizem, deve-se buscar um conhecimento mais profundo, conciliando-as pela
interpretação.
Isso deve ser verificado a partir de uma outra distinção tradicional
utilizada por Ibn Ru¹d. O texto revelado possui dois sentidos básicos: um sentido
literal ou externo (¥āhir) e um sentido oculto ou interior (bāÐin). Dito de outro modo:
um sentido exotérico e um sentido esotérico. “O exotérico são as figuras empregadas
como símbolos das coisas significadas; e o esotérico são as coisas significadas, que só
se revelam aos homens da demonstração.”361 O caráter exotérico seriam, assim, as
figuras empregadas como símbolos dos inteligíveis
A partir dessa distinção, deve-se ter em conta que o sentido oculto não
deveria ser conhecido por quem não pertencer aos homens de ciência e quem não for
capaz de compreendê-lo. Foi para chamar a atenção sobre isso e para que se refletisse a
respeito dos limites de entendimento de cada um que ‘Ali Ibn Ab÷ Æālib362 teria dito:
“Fale aos homens daquilo que conhecem. Quereis, acaso, que Deus e seu enviado
sejam acusados de mentirosos?”363 Segundo Ibn Ru¹d, o conhecimento da existência
de Deus, da missão dos profetas e da vida futura seria acessível a todos mas para que
isso seja atingido seria preciso se respeitar as três vias de acesso a esse conhecimento:
a via oratória, dialética ou demonstrativa. “Pois se é um homem de demonstração, uma
via lhe é oferecida para conduzi-lo à aquiescência pela demonstração, se é um homem
de dialética, pela dialética; e se é um homem de exortação, pelas exortações”364 na
medida em que o objetivo da Lei divina não é outro que o de ensinar a verdadeira
ciência e a verdadeira prática. A verdadeira ciência seria o conhecimento de Deus e de
todas as coisas tais como são e a verdade prática consistiria nas boas ações do homem
361
Ibid, op. cit., p. 34.
O quarto califa, primo e genro do Profeta.
363
AVERROES, Traité Decisif op. cit., p. 24.
364
Ibid, op. cit., p. 33.
362
215
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
fossem elas externas, como os atos corporais, fossem elas internas como a paciência e
a gratidão.
Ora, se o texto sagrado possui dois níveis de compreensão – o sentido
literal e o oculto –, se o primeiro sentido é o que é apreendido pela massa, e o segundo
sentido só é atingido pelos aptos ao filosofar que encontram o verdadeiro sentido da
passagem em questão, logo, a segunda classe, dos dialéticos, não seria necessária nem
no primeiro nem no terceiro caso. Essa classe Ibn Ru¹d identifica com as correntes de
teólogos que crêem compreender, mas por estarem cegamente presos ao dogma, não
apreendem o sentido correto só apreendido pela ciência demonstrativa e, por isso,
segundo ele, teriam semeado o germe da discórdia no Islām. Divididas em duas
classes: os ignorantes e os sábios, os que estão a meio caminham nada mais fariam do
que confundir as coisas pois revelam parte da compreensão esotérica e divulgam
conclusões da ciência. Por essa razão, segundo ele, nem os teólogos, nem os literatos, e
nem mesmo os partidários do método esotérico são capazes de formular as
interpretações justas que exige a fé verdadeira. Somente os filósofos são capazes disso.
Assim, os dois níveis de linguagem do texto sagrado – exotérico e
esotérico – devem atingir o assentimento segundo os três graus de argumentação –
demonstrativa, dialética e oratória – e, por isso, a Lei divina, para ser acessível a todos
os homens, conteria os três tipos de argumentação.Visto que a Lei divina tem como
primeiro objetivo atingir o maior número de pessoas sem negligenciar, ao mesmo
tempo, sua atenção aos espíritos de elite, os métodos que aparecem na lei religiosa
seriam métodos de concepção e de assentimento comuns ao maior número de pessoas,
isto é, símbolos e alegorias. Quando for o caso de haver interpretação, esta só poderia
atingir a verdade pela demonstração através do silogismo. “São esses unicamente os
métodos que se encontram no Livro Sagrado. Pois quando o examinamos, encontramos
os três métodos: o método que existe para todos os homens, os métodos comuns para o
ensinamento do maior número e o método reservado.”365
Expor determinadas coisas, notadamente interpretações demonstrativas
que estão distantes do conhecimento comum, a quem não está apto leva ao erro tanto o
que expõe quanto àquele que é exposto. Quando se retira o sentido exterior deve-se ser
capaz de instalar, em seu lugar, o sentido da interpretação pois fazer ruir o sentido
exterior num espírito que está apto apenas a conceber o sentido exterior é conduzi-lo
365
Ibid ,op. cit., p. 49.
216
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
ao erro. Este erro é apontado por Ibn Ru¹d nas obras dos teólogos justamente porque
“as interpretações não devem ser expostas ao vulgar nem nos livros oratórios nem nos
dialéticos, quero dizer nos livros onde as argumentações são desses dois gêneros como
o fez Abý ©amid [Al-¦azāl÷].”366
Refletir corretamente sobre a revelação segundo os métodos da filosofia
não conduziria, assim, à negação da revelação. Quando a conclusão do silogismo
demonstrativo se acorda com a revelação não há problemas mas quando não se
encontram em concordância trata-se apenas de um desacordo aparente, devido ao
sentido literal e ao sentido oculto. Nessse caso o filósofo deve recorrer a hermenêutica
segundo os princípios da demonstração. Desse modo, harmonizam-se duas abordagens
de uma só e mesma verdade, desde que corretamente compreendidas: a filosofia e a
religião, pois ambas têm a mesma finalidade para o homem: atingir a felicidade. Se a
filosofia cumpre o papel de mestra de felicidade somente para uma parte dos homens
suscetíveis à demonstração, as religiões têm em vista o ensinamento de todos os
homens sem exceção.
Assim elaboradas, as duas dimensões – razão e fé – se interpenetram no
pensamento de Ibn Ru¹d. Afirmar sem reservas que ele professou um racionalismo sem
limites ou um puro fideísmo faz parecer distante as sua intenções em contemplar essas
duas realidades. As palavras de Renan sintetizam um pouco desse aspecto: “Ibn Ru¹d
filosofa livremente, sem buscar se chocar com a teologia, mas, também, sem se
incomodar em evitar o choque.”367 Segundo suas próprias palavras: “os que admitem
que pode existir uma religião fundada somente sobre a razão devem reconhecer que ela
é inferior às religiões tiradas ao mesmo tempo da razão e da revelação”368 Se por um
lado, Ibn Ru¹d reconhece isso, não deixa, por outro, de tirar as conclusões racionais até
às últimas conseqüências ao mesmo tempo em que “admite que há verdades que
ultrapassam a razão, que tudo não se reduz ao inteligível, que a revelação ensina
verdades que a razão não pode atingir; que a razão humana é incapaz de aprofundar e
de discutir certas questões resolvidas pela revelação.”369 Isso não significaria, por outro
lado, um acomodar-se na revelação mas que a busca pela demonstração deve ir ao
encontro da própria revelação que sublinha: “os enviamos com as evidências e os
366
Ibid, op. cit., p. 44.
RENAN, apud BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, p.788.
368
AVERROES, Tah¡fut apud BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, 785.
369
Ibid, p. 786.
367
217
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
livros. E a ti revelamos a mensagem para que esclareças os humanos, conforme o que
foi revelado, a fim de que meditem.” 370
Os dois modos de apresentar a verdade – revelação e demonstração –
não seriam, pois, contraditórios. O chamado “averroísmo latino” teria compreendido
mal essa posição, atribuindo a Ibn Ru¹d a tese de que haveria duas verdades distintas:
uma filosófica e uma religiosa. Equivocadamente acabou atribuindo-se a Ibn Ru¹d uma
condenação de todas as religiões, quando o ataque se restringia mais a algumas
correntes teológicas do Islām. Mas as injustiças parecem ter feito parte integrante de
sua história pessoal e também da interpretação de suas teses. Como bem lembra De
Libera: “nenhum filósofo terá sido menos compreendido nem mais caluniado do que
Ibn Ru¹d. Entre os pensadores da terra do Islām nenhum terá tido mais influência sobre
a cultura universal.”371
O destino das obras de Ibn Ru¹d foi curioso. A maioria dos originais
árabes foram perdidos e foi sobretudo por traduções hebraicas e latinas que nos são
conhecidos. Chegar até nós já foi suficientemente formidável pois suas obras ardiam
nas chamas, por ordem de Al-Man½ýr, enquanto o filósofo ainda era vivo. Mesmo que
grande parte dos originais de Ibn Ru¹d tenha sido destruída ainda em Córdoba,
algumas cópias foram salvas e seguiram-se, a estas, as traduções hebraicas. Em AlAndaluz, havia muitos cristãos e judeus e sabe-se que, antes do fim do séc. XII d.C./VI
H. suas obras eram lidas em árabe pelos judeus que inauguraram essa fase inicial de
tradução para o hebraico. A “fase judaica foi a primeira na migração de Ibn Ru¹d em
direção ao Ocidente. Em razão dos laços culturais estreitos entre judeus e cristãos, e
do conhecimento corrente do hebraico na Europa ocidental (...) a tradução latina das
obras árabes, frequentemente intermediadas pelo hebraico, tornou-se extremamente
desenvolvidas no começo do séc. XII d.C. no qual já se encontram traduzidos, por
exemplo, 15 comentários.”372 Munk frisa a importância dessa transmissão afirmando
que “a obstinação com a qual os Almôadas perseguiram a filosofia e os filósofos não
permitiu que cópias árabes dos escritos de Ibn Ru¹d se multiplicassem e elas foram a
todo momento extremamente raras”373.
Curioso também foi o destino de sua filosofia: Ibn Ru¹d não teve
praticamente discípulos ou sucessores no mundo islâmico e nem sequer grandes
370
ALCORÃO XVI, 44.
DE LIBERA, A Filosofia Medieval, op. cit, p. 164.
372
FAHKRY, Histoire de la Philosophie Islamique, op. cit., p. 301.
373
MUNK, Mélanges de Philosophie, op. cit., p. 439.
371
218
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
críticos. (!) A influência de seu trabalho se deu mais em vista da filosofia judaica e
cristã do que propriamente no mundo árabe muçulmano. “No mundo árabe foi
esquecido de imediato.”374
Do lado ocidental, ele encontrou, por exemplo,
a
companhia do judeu Maimônides e – nas disputas dos cristãos – Siger de Brabant,
Alberto Magno e Tomás de Aquino.
Ao mesmo tempo em que acreditou firmemente em Deus e em Seu
Profeta Mu¬ammad, Ibn Ru¹d apontou rumos na filosofia e na ciência pelos quais os
homens deveriam continuar em busca do saber. No Ocidente, muitas de suas idéias
chegaram com vigor, anunciadoras de novos caminhos.
374
GUERRERO, Averroes ,op.cit., p.47.
219
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
6– AS DUAS FACES DA FALSAFA
6.1
O pouso das águias
Com a morte de Ibn Ru¹d algo se encerrou. Mas, precisamente, o que ?
Esse é um tema que ainda está longe do consenso. Com a morte de Ibn Ru¹d morreu
também a filosofia no mundo islâmico? Essa, por sinal, foi a idéia mais corrente que se
tinha até há pouco. Muito das controvérsias a esse respeito são tributárias do sentido
que se atribui ao que seja “filosofia”; outras pelo sentido que se dá ao termo “falsafa”.
Não é demais lembrar que, no nosso caso, o termo “filosofia” é entendido em sentido
estrito e não como sinônimo de pensamento e, no caso do termo “falsafa”, este é
entendido não somente como a transcrição do termo “filosofia” mas também como o
nome do período específico que comporta os filósofos helenizados circunscrito entre
Al-Kind÷ e Ibn Ru¹d.
Se tomarmos o termo “falsafa” simplesmente como a transcrição do
termo “filosofia”, não seria nada razoável dizer que a falsafa terminou com a morte de
Ibn Ru¹d pois isso seria afirmar que, depois dele, nenhum pensador islâmico teria
adotado qualquer um dos princípios da filosofia, o que não é verdade. Mas quando
tomamos o termo “falsafa” como um momento circunscrito da história da filosofia
nada nos impede de afirmar que Ibn Ru¹d, foi o último grande nome e o selo de ouro
do período clássico da filosofia entre os árabes. A curva ascendente da falsafa iniciada
por Al-Kind÷, atingira o fim de um ciclo com o filósofo de Córdoba.
Depois de ter sobrevoado os céus medievais do mundo árabe por mais
de quatrocentos anos, deu-se como se o pássaro da filosofia pousasse. O Oriente
tenderia a ficar com uma de suas asas e o Ocidente com a outra. Os dois mundos
continuaram a meditar mas os caminhos do saber se fizeram por diferentes trilhas.
Uma propensão mística e teológica se firmou, a partir de então, no Islām, enquanto a
ciência e a filosofia ganharam novos rumos no Ocidente medieval latino. A falsafa já
não seria mais a mesma, mas havia frutificado ao longo de quatro séculos inúmeras
idéias que se fariam presentes nos dois lados do mundo. Sobre o meridiano dos
caminhos do saber, a falsafa foi um momento de busca de integração do conhecimento
que parecia não poder mais viver naquele momento da história.
Os desafios da cultura e da religião saída do deserto da Arábia já eram,
naqueles dias, outros que os da ciência e da filosofia. Como bem assinalou Rémi
220
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Brague “ninguém contestará que os muçulmanos continuaram a pensar depois de
Averróis. Mas resta saber em que medida esse pensamento deve ser qualificado do
nome de “filosofia”375. Os pensadores do Islām seguiram os seus caminhos de
meditação, mas inclinaram-se menos à falsafa e mais a partir dos princípios da
sabedoria divina –»À¸«[
»°¨o / ¬ikma ’ilahiyya
– que poderia ser designada como
uma “teosofia”; ou a partir dos princípios da experiência mística e da metafísica do
sufismo; ou
a partir da continuação da exegese teológica do kalām e das tendências
político-religiosas dos doutores da lei islâmica. A filosofia minguou.
Por outro – e de outro – lado, o Ocidente latino foi tocado por uma
enxurrada de textos filosóficos que brotavam das mãos dos tradutores e inundaram os
pensadores latinos com novas idéias e teses que, até então, desconheciam. De Ibn
Ru¹d, Ibn S÷nā, Al-Fārāb÷ e Al-Kind÷ à Aristóteles, Platão e Plotino, o Ocidente passou
em revista, a partir de então, a história da filosofia e seguiu, insistentemente, tirando as
conclusões que o pensamento filosófico e científico impunha aos seus adeptos. Tais
revoluções tiveram como cenário os séculos XII e XIII d.C./ VI e VII H. e a falsafa,
em seu último ato, contribuiu para essa transmissão.
6.2
Caminhos para o “Oriente”.
A história do pensamento no mundo islâmico não segue a mesma
divisão da história da filosofia ocidental. Sua periodização interna invariavelmente cria
polêmicas ao se adotar critérios diferentes para estabelecer períodos, escolas e
tendências. Vejamos algumas opiniões a respeito. Em sua Histoire de la Philosophie
en Islam, Badawi deixou clara sua posição ao encerrar de modo inconteste seu trabalho
com o nome de Ibn Ru¹d como o último dentre os filósofos árabes do período clássico.
Não obstante, ter havido alguns nomes posteriores tais como Abhari e Ibn Sabin, estes
não alcançaram o grau de complexidade e importância dos seus antecessores. Fahkry,
em sua A History os Islamic Philosophy, optou por uma divisão intercalada entre a
mística, a filosofia e a teologia num movimento de reações mútuas cobrindo o período
iniciado por volta do séc. XI d.C. / V H. até o séc. XIV d.C. / VIII H. Hernandez, por
sua vez, dedicou todo o segundo volume de sua História del Pensamiento en el Mundo
375
BRAGUE, R. “Sens et Valeur de la Philosophia dans les trois cultures médiévales.” In Miscellanea
Mediaevalia / Was ist Philosophie im Mittelalter ? Berlin: Walter de Gruyter, 1998, p. 236.
221
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Islâmico às correntes da Andaluzia, retomou o terceiro volume a partir de Ibn åaldýn
no séc. XIV d.C./ VIII H., seguindo até os nossos dias. Em todos os casos aponta-se a
morte de Ibn Ru¹d como um marco importante.
Mas é propriamente Corbin em sua Histoire de la Philosophie
Islamique, que sublinhou com mais intensidade esse marco ao adotar a seguinte
divisão: “I- Das origens à morte de Averróis” e “II- Da morte de Averróis até os nossos
dias”. Tal posição se justificaria entendendo-se que, apesar dos oito séculos que
seguiram-se à morte de Ibn Ru¹d, não teria havido rupturas ou movimentos de impacto
semelhantes ao que houve, por exemplo, com a entrada da própria falsafa no cenário
oriental ou – em relação à filosofia ocidental – com o advento do cristianismo ou do
Renascimento europeu. Assim, a morte do filósofo de Córdoba foi, por ele,
considerada como um marco decisivo para a periodização da história da filosofia
islâmica. Essa divisão refletiu com mais agudeza a importância do antes e depois de
Ibn Ru¹d, marcando com mais ênfase as mudanças nas tendências do pensamento no
mundo islâmico.
Dentre as inúmeras correntes e pensadores que podem ser indicados –
tais como a abordagem teológica de Fa¬r al-Din al-Rāzi (1149/1209 d.C) ou
a
contribuição que Ibn åaldýn (1332/1406 d.C.) legou em sua obra Os Prolegômenos,
anunciando o caráter científico da história e da sociologia e outras figuras de caráter
mais isolado –, duas chamam mais a atenção pelo maior caráter de continuidade e
podem ser ilustradas por dois fatos próximos ao filósofo de Córdoba: Sohraward÷
morreu sete anos antes de que Ibn ‘Arab÷ assistisse aos funerais de Ibn Ru¹d. A esses
dois nomes contemporâneos de Ibn Ru¹d – Sohraward÷ e Ibn ‘Arab÷ –, ligaram-se duas
tendências de profunda influência nos caminhos do pensamento no mundo islâmico
mantendo-se crescentes até os dias de hoje. Ao comentar os significados da morte de
Ibn Ru¹d, Corbin aludiu ao fato de que “por muito tempo se considerou que seus
funerais teriam sido igualmente os da filosofia islâmica. Tem-se razão, no sentido de
que com ele se acabava esta fase da filosofia islâmica que se designou como
“peripatetismo árabe”. Mas isso não é menos injusto pois se perdia de vista que, com a
morte de Averróis começava algo de novo, alguma coisa que é simbolizada pelos
nomes de Sohraward÷ e Mu¬yidd÷n Ibn ‘Arab÷.”376 Nessa sua afirmação duas coisas
ficam claras: a primeira é a de que se, por um lado, o funeral de Ibn Ru¹d não
376
CORBIN, op. cit, p. 352.
222
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
significou o fim da filosofia islâmica, por outro lado, significou, sim, o fim do período
clássico da filosofia no Islām; a segunda é a de que a sequência da filosofia islâmica
encontrou duas de suas grandes direções durante o ocaso da falsafa. Em largo esboço,
pode se dizer que a “teosofia das luzes” de Sohraward÷ e a “teosofia mística” de Ibn
‘Arab÷ sucederam o confronto entre o Kalām e a falsafa ditando duas grandes linhas
das fontes de meditação no Islām. “A corrente proveniente de Sohraward÷ (’I¹rāq) é de
tal originalidade que deu nascimento ao corrente adágio: o ’I¹rāq é em vista da
filosofia o que o sufismo é em vista do kalām. Não cabe neste trabalho penetrar no
universo de extrema riqueza e complexidade dessas duas correntes mas apenas
permanecer nos limites de algumas linhas sumárias de caráter biográfico de seus
autores.
Sohraward÷, também chamado Šai¬ al-I¹rāq / o Mestre das Luzes,
nasceu no Irã e morreu muito jovem com apenas 36 anos de idade. Seguindo-se a Ibn
S÷nā, foi um dos exemplos da transferência das fontes da meditação do Islām ocidental
para o Islām oriental sob os eflúvios dos pensadores iranianos a partir da retomada de
suas tradições mais antigas, ou seja, de origem persa. Sua obra situou-se na
encruzilhada dos caminhos entre o destino de Ibn Ru¹d no Ocidente e no de Ibn S÷nā
no Oriente ou, ainda, entre o peripatetismo e a “filosofia das luzes”. Esta última
assentou no Oriente, notadamente no Irã, novas rotas sobre as quais tantos pensadores
e espiritualistas se engajaram até os nossos dias. Seguindo as indicações de caráter
simbólico deixadas por seu conterrâneo Ibn S÷nā, Sohraward÷ acreditou poder
reconduzir o projeto aviceniano de uma filosofia oriental como mostra sua obra ©ikma
al-I¹rāq / A Sabedoria das Luzes. Desse modo, as noções colocadas por Ibn S÷nā nas
poucas páginas que restaram de sua obra Filosofia Oriental e no caráter simbólico da
obra ©ayy Ibn Yaq¥ān, nortearam o pensamento de Sohraward÷. A partir dessas
indicações, o jovem pensador pretendeu dar seguimento ao que entendeu ter sido a
intenção de Ibn S÷nā que, em sua opinião, não teria chegado ao fim de suas intenções
por não ter apresentado os verdadeiros fundamentos da sabedoria própria do Oriente:
os ensinamentos dos sábios da antiga Pérsia. Desse modo, com o intuito de revivificar
os saberes de suas tradições mais remotas, muito antes do surgimento do Islām, em seu
horizonte meditativo dominam as figuras de Hermes, Platão e Zaratustra. Nesse
cenário, o termo “platônicos da Pérsia” designou essa escola cuja uma de suas
características foi interpretar os arquétipos platônicos em termos da angeologia
223
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
zoroastriana. Aristóteles e outros filósofos, quando surgem, são nomes cujas próprias
doutrinas já não são reconhecidas em sua totalidade.
Outra linha importante determinou-se a partir da obra incomparável de
Ibn ‘Arab÷ (1165- 1240 d.C / 569-638 H.). Nascido no sul da Espanha e
contemporâneo de Ibn Ru¹d, Ibn ‘Arab÷ viajou por toda a Espanha, norte da África,
pelas terras do Oriente Próximo e se instalou, por fim, em Damasco, na Síria, onde
morreu por volta dos 75 anos de idade. Dentre os mais de 800 títulos a ele atribuídos,
400 parecem ser autênticos e chegaram até os nossos dias. Os adjetivos de Corbin, a
seu respeito, mostram um pouco desse incomparável místico: “um dos maiores
teósofos visionários de todos os tempos (ý)com essa obra, algo de novo e original
começa (ý) a filosofia dos falāsifa, o kalām dos escolásticos, a ascese dos piedosos
sufis primitivos, tudo isso é levado na torrente de uma metafísica especulativa e de
uma potência visionária sem precedentes.”
377
Fahkry assinala a obra de Ibn ‘Arab÷
como tendo sido “a tentativa mais audaciosa e a mais radical para expressar a versão
mística da realidade em termos neoplatônicos.”378 Ibn ‘Arab÷ recusou que a filosofia
peripatética desenvolvida por Ibn Ru¹d fosse capaz de atingir o grau supremo do
verdadeiro conhecimento. Mesmo assim, suas obras sobre a experiência mística
revelam uma sistematização que só foi possível graças a uma certa adaptação dos
elementos oriundos da filosofia aos quais Ibn ‘Arab÷ teve acesso. O conjunto de seus
escritos se mostra como uma verdadeira enciclopédia mística, ascética, teológica,
poética e literária; com temas de grande extensão e profundidade que marcaram
praticamente todo o desenvolvimento da mística posterior no mundo islâmico.
Desse modo, entendendo-se a morte de Ibn Ru¹d como uma ruptura da
continuidade da filosofia – em sentido estrito – com o mundo islâmico duas grandes
linhas de desenvolvimento ganharam terreno: a de Sohraward÷ e a de Ibn ‘Arab÷.
Indicações como essas são fornecidas, também, por Corbin e Hernandez que parecem
ser dois dos estudos mais autorizados para se ter uma idéia mais detalhada da
continuidade do desenvolvimento do pensamento islâmico desde a morte de Ibn Ru¹d
até os nossos dias. Apesar das dificuldades enfrentadas para se traçar um itinerário de
quase oitocentos anos – do séc. XII d.C./ II H. até os dias de hoje – as duas obras se
complementam: Corbin confere mais ênfase ao caráter místico das doutrinas e escolas
que elenca ao passo que Hernandez o complementa com ótimas abordagens de caráter
377
378
CORBIN, op. cit, p. 402.
FAHKRY, op. cit., p. 276.
224
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
político e religioso tais como a penetração do marxismo e de outras correntes de
pensamento européias da modernidade que serviram de base na construção do
pensamento político no mundo árabe.
A obra Crítica da Razão Árabe de Mu¬ammad ‘Abd Al-Jabr÷ é uma
obra contemporânea. Algumas posições desse pensador revelam em que medida alguns
intelectuais muçulmanos se posicionam em relação à filosofia nos dias de hoje. A
primeira delas é a de que muitos estão procurando voltar para sua própria história do
pensamento pelas portas da filosofia. Não bastou que Ibn Ru¹d fosse esquecido. O
ocidente o guardou e, há não muito tempo, foi apresentado novamente à sua própria
história da filosofia. As críticas de Jabr÷ são contundentes. O Islām teria entrado nas
trevas da filosofia por não seguir os caminhos antecipados por Ibn Ru¹d. Al-Jabr÷
critica o exagerado caminho místico proposto pelos seguidores de Ibn S÷nā e propõe
uma retomada dos caminhos indicados pelo peripatetismo de Ibn Ru¹d como um novo
renascimento da filosofia no mundo árabe. Os caminhos ainda parecem abertos.
6.3
Caminhos para o “Ocidente”.
Mas alguém poderia perguntar: ora, mas que interesse teríamos nós, do
Ocidente, com a influência da filosofia grega no mundo árabe? O que nos importa a
falsafa quando, na verdade, deveríamos nos preocupar com a formação das bases do
nosso próprio pensamento? Afinal, não podemos traçar a nossa história da filosofia
ocidental sem falar na falsafa? A resposta é que os caminhos da filosofia no Ocidente,
a partir do séc. XII d.C / VI H. foram também marcados pela presença da falsafa. Ela
faz parte da nossa história, e não apenas da história do mundo árabe. É nessa medida,
pois, que se destaca o papel da falsafa na formação do pensamento ocidental tanto na
baixa Idade Média, quanto no impulso posterior do Renascimento pelo contato que se
deu a partir do séc. XII d.C./IV H. entre o Ocidente medieval latino cristão com o
Oriente medieval árabe muçulmano. Quer tenha sido através do contato das
emergentes universidades da Europa com o pensamento dos árabes, quer tenha sido
pelo estreito contato na Espanha moura ou quer tenha sido, em menor grau, pelo
contato das cruzadas, os ocidentais foram marcados não só pelo refinamento das sedas
e dos perfumes, mas também pelo refinamento do astrolábio, pelas técnicas de
navegação, pela astronomia, pela medicina e, mais do que tudo, pela recepção da
ciência e da filosofia provindas das obras gregas assim como das obras dos falāsifa.
225
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Afinal, fora entre os árabes que essas ciências haviam sido guardadas e desenvolvidas
por mais de quatro séculos.
A vida nova no campo da filosofia veio juntamente com as traduções de
importantes obras escritas em árabe em muitos campos do conhecimento: matemática,
astronomia, navegação, medicina e filosofia. Das ervas curativas ao vocabulário
náutico de Portugal, a presença árabe foi duradoura: “nas artes náuticas, nas ciências
astronômicas, nas ciências naturais e aplicadas, a ciência portuguesa tomou uma vasta
porção da ciência árabe e sujeitou-a logo em seguida a um cotidiano
experimentalismo.”379 Na medicina, o Canon de Medicina de Ibn S÷nā, traduzido para
o latim, permaneceu como texto base do ensino médico nas universidades européias
até, pelo menos, o século XVI d.C. Também foi natural que, na medida em que os
textos árabes traziam a ciência dos antigos gregos, os pensadores do ocidente latino,
paulatinamente, foram se desfazendo das interpretações e seguiram em direção às
próprias fontes de Aristóteles, Platão, Galeno e outros. Mas, num primeiro momento, o
que os ocidentais latinos conheceram foram as obras dos falāsifa. No campo da
filosofia, não coube mais na roupa da história repetir que os falāsifa teriam sido para a
história da filosofia ocidental, meramente, “comentadores árabes de Aristóteles”, em
alguns casos suas teses foram tão duradouras como as do próprio Aristóteles entre os
medievais do Ocidente.
Foi nesse contexto que, pela dificuldade de pronúncia, Ibn S÷nā foi
transformado em Avicena (trocando-se a letra “b” pela letra “v” como é comum em
Portugal e Espanha) e Ibn Ru¹d ficou conhecido pelo seu nome latinizado de Averróis.
Já foi dito que assim como modificaram seus nomes, em alguns casos, confundiram
suas teses e fizeram crer que os falāsifa dissessem coisas que não haviam dito. Mas as
falsas atribuições de textos, a compreensão equivocada de teses e de idéias, os
manuscritos incompletos e faltantes eram moeda corrente e também fizeram parte da
construção filosófica do ocidente latino naquela época.
Em todo o conjunto de mudanças que se anunciou, a falsafa contribuiu
para a recepção da filosofia grega ao ocidente. Impulsionados pelos novos desafios, na
mesma época, a filosofia cristã procurou reformular muitas das bases que sustentavam
suas teses e, para tal, valeu-se, em alguns casos, das doutrinas dos falāsifa . O final da
Idade Média no ocidente, já nas raias da modernidade, escutou os fragmentos de idéias
379
PINHARANDA, op. cit., p. 288.
226
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
que deveriam circular na época e que, talvez, os próprios europeus sequer sabiam de
onde provinham. Muitas destas eram tributárias de Ibn S÷nā, Ibn Ru¹d ou Al-Fārāb÷.
Por vezes encontramos nos textos em árabe inspirações que pela semelhança, talvez
tenham tocado indiretamente os nossos filósofos modernos.
Como vimos, no Islām, após a morte de Ibn Ru¹d, a falsafa não se
desenvolveu como antes o fizera. Deu-se como se a filosofia escrita em árabe houvesse
cumprido uma nobre missão de guardar e desenvolver durante anos a filosofia e a
ciência dos antigos enquanto o ocidente, à meia luz, se preparava para recebê-las.
Durante a Idade Média ao longo de, pelo menos quatro séculos, a filosofia esteve em
boas mãos; mais do que isso, esteve no coração, na palavra e no pensamento dos
falāsifa que escreveram uma importante página da história da filosofia, em árabe.
6.4
Traduções para o latim
A partir do séc. XII d.C./ VI H., o conjunto de obras traduzido para o
latim pode ser denominado corpus greco-árabe, pois não se trata apenas de obras em
árabe, à exclusão das gregas, e nem de conhecimentos a partir das obras gregas, à
exclusão das obras em árabe. Apesar de as primeiras traduções terem sido feitas do
árabe para o latim, estas foram seguidas simultaneamente pelas traduções a partir do
grego.
Um dos primeiros registros são traduções esporádicas do árabe para o
latim de Adelardo de Bath (m.1142), de alguns títulos ligados às ciências da natureza.
Dentre elas situam-se as Tabelas Astronômicas
de Al-åawārizmi, uma obra de
astrologia de Abu Ma‘¹ar, um tratado sobre os talismãs de Ibn Qurra e os Elementos
de Euclides – todas diretamente do árabe. As condições das traduções eram precárias e
difíceis. De todo modo Adelardo indicou qual o rumo que a história iria tomar. “Com
ele começava uma identificação dos árabes com os ‘homens de razão’ que dominaria o
pensamento cristão durante pelo menos dois séculos.380
O grande avanço no período de traduções ocorreu na cidade de
Toledo381, na época do Bispo Raimundo, embora não se possa determinar, com muita
clareza, qual teria sido a real intervenção dos arcebispos ou de outros personagens
380
DE LIBERA, op. cit., p. 346.
Cf. o artigo de Danielle Jacquart, “ A escola de tradutores” em CARDILLAC, L. (org). Toledo,
séculos XII-XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. pp. 155-167.
381
227
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
conhecidos no conjunto de traduções que teve Toledo como centro.
O Bispo
Raimundo é, geralmente, considerado um mecenas cuja intervenção foi decisiva para a
elaboração de traduções do árabe para o latim e parece não ter havido, nesta época,
uma “célebre escola dos tradutores de Toledo”. Na verdade, as circunstâncias da
tradução também forma difíceis, resultando muito mais do fruto do trabalho de alguns
homens obrando de maneira mais isolada do que se suporia haver numa escola
sistemática de tradução. Muitas das traduções do árabe para o latim se deveram aos
judeus bilíngües que viviam na Espanha e conheciam a língua árabe. Não é demais
lembrar que o meio toledano, neste período, compunha-se de muçulmanos, judeus e
cristãos arabizados, chamados “moçárabes”. Estes, às vezes, respondiam por dois
nomes: um árabe e um latino.
Em relação à falsafa, as traduções podem ser divididas em dois
principais momentos: no primeiro prevalece a filosofia de Ibn S÷nā, no segundo traduzse Ibn Ru¹d. Do primeiro período de traduções três nomes se destacam: Gerardo de
Cremona, Domingos Gundissalino e João de Espanha.
Gerardo de Cremona (1114/1187 d.C.) traduziu mais de 70 obras.
Dentre elas, o Canon de Medicina de Ibn S÷nā, o De Intellectu de Al-Kind÷ e talvez a
obra homônima de Al-Fārāb÷ dentre outras. Ainda do árabe, traduziu os Segundos
Analíticos, De Caelo et Mundo, De Generatione et Corruptione e parte dos
Meteorológicos dentre outras. João de Espanha – ou Ibn Daýd / Avendauth / e outras
mais de dez formas que podem se referir a esse mesmo personagem – trabalhou em
conjunto com Gundissalino e traduziu, por exemplo, o Maqā½id al-Falāsifa de Al¦azāl÷. Em conjunto com Domingos Gundissalino – ou Domenico Gundissalvi –
atribui-se-lhe a tradução da Metafísica de Ibn S÷nā382, partes da Lógica da Al-Šifā`, o
Liber de scientiis, Fontes Quaestionum, De Intellectu, Liber exercitationis ad viam
Felicitatis
de Al-Fārāb÷, dentre outras. No caso de Ibn S÷nā, sua filosofia foi
conhecida, fundamentalmente, pela Metafísica, os tratados Do Céu, Dos Animais,
Sobre a Geração e a Corrupção e o Livro da Alma. Esse grupo de escritos, mesmo que
fragmentários, era o “primeiro conjunto de doutrinas verdadeiramente constituído que
chegava ao ocidente”
383
No caso do De anima, seu impacto foi verificado não só pelo
382
Para detalhes sobre as traduções para o latim da obra de Avicena vide D’ALVERNY, M.T. Avicenne
en occident. Paris: J.Vrin, 1993.
383
GOICHON, A. M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médiévale. Paris: Librarie
d'Amérique et d'Orient, 1940, p.90.
228
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
seu próprio conteúdo mas também porque apresentava, pela primeira vez, uma síntese
do De Anima de Aristóteles.384
No caso da tradução do Kitāb al-Nafs / Livro da Alma de Ibn S÷nā,
considerado o mais decisivo tratado de psicologia que penetrou no Ocidente naquela
época, a principal fonte histórica que fornece preciosos elementos das condições em
que se realizou esta tradução é a própria dedicatória385 que se encontra em mais de
quarenta manuscritos386. Por ela sabemos como, quando e onde foi realizado este
trabalho. A dedicatória se faz em nome de um arcebispo de Toledo de nome João: “
Johanni Reverentissimo Toletanae sedis Archiepiscopo et Hispaniarum Primati ” e
fornece, em seguida, dados sobre algumas circunstâncias da tradução, seu método e
seus tradutores mas, mesmo assim, os enigmas e as contradições que ela apresenta
dividem as opiniões, deixando ainda muitas lacunas. De todo modo, pela menção do
nome do arcebispo citado na dedicatória como “João” sucessor de Raimundo, é
possível situar a elaboração da tradução do De Anima entre 1152 d.C., data da morte de
Raimundo e 1166 d.C., data da morte de João. O método de tradução é relatado na
própria dedicatória como um trabalho de equipe: “Eis, pois, este livro, traduzido do
árabe conforme vossa orientação, eu dizendo cada palavra em língua vulgar387 e o
arque diácono Domenico a transferindo e convertendo em latim.” No entanto, em que
medida esta etapa oral era realizada, isso é algo que não se esclareceu e não se sabe se
o tradutor arabofone conhecia ou não o latim e, se o tradutor latinista conhecia ou não
o árabe. O que se confirma é que a tradução contém muitos equívocos. A confrontação
entre o texto árabe e o latino mostra inúmeras distorções, dentre elas, confusões entre
raízes árabes e erros de sintaxe, devido à estrutura maleável da língua árabe. O latinista
da equipe é nomeado como Domenico embora nenhum dos manuscritos forneça o seu
nome completo. Mesmo assim, seu nome é identificado com o de “Domenico
Gundissalinus” ou “Domenico Gundissalvi”, de quem já falamos, e que faleceu em
1190 d.C. e que, na sua juventude entre 1152d.C. e 1160d.C., talvez pudesse ter
realizado esse trabalho. Tal identificação , no entanto, não põe fim a uma série de
questões que ainda permanecem sem resposta em torno do latinista da equipe.
384
Parece ter havido uma tradução de Nemésio (De #atura hominis) que também foi feita à mesma
época. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.102.
385
O texto integral da dedicatória é reproduzido em VERBEKE. Introd. IV-V, pp.103-104.
386
O texto do De Anima de Ibn S≈n¡ nos é transmitido por 50 manuscritos: dezessete encontram-se na
Itália (oito em Roma); treze na França (dez em Paris); seis na Inglaterra (três em Oxford); cinco na
Alemanha; três na Bélgica; dois na Espanha (mas nenhum em Toledo); um em Leiden; um na Suíça; um
na Suécia e um na Iugoslávia. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.105.
387
A língua vulgar era a língua românica. Cf. VERBEKE. Introd. I-III, p. 98.
229
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Depois do nome e dos títulos do arcebispo de Toledo, a dedicatória traz
o nome do personagem que escreve a própria carta e que se identifica como o
arabofone da equipe: “Avendauth Israelita Philosophus”.388 Há muitas hipóteses em
torno de seu nome mas a verdade é que não se sabe ao certo quem era o sábio
“Avendauth” de Toledo por volta de 1150 d.C.. Uma das hipóteses é que Avendauth
seria “Abraham Ibn Daýd”, sábio judeu que viveu em Toledo nessa época e que era
conhecido por um tratado filosófico escrito em árabe. No entanto, a afirmação de
Verbeke mantém o tema na obscuridade: “Em torno da personalidade de Avendauth, o
mistério permanece”.389
No segundo avanço das traduções, seguiram-se as obras de Ibn Ru¹d já,
então, chamado “Averróis”. As traduções também iniciaram-se em Toledo e, dentre os
tradutores estão Miguel Escoto, Armínio o Alemão, Guilherme de Luna e Pedro
Gallego. As dificuldades no trabalho dos tradutores permaneceu e contribuiu para que
Ibn Ru¹d fosse ainda menos compreendido e ainda mais distorcido.
“ As traduções toledanas cuja influência imediata foi mais profunda
foram as das obras originais dos próprios filósofos árabes e judeus” sendo que “esse
conjunto de traduções exerceu sobre o pensamento do século seginte uma influência
profunda, duradoura e relativamente homogênea.”390 Com esse primeiro conjunto de
traduções, o ocidente latino recebeu Aristóteles pela lente neoplatônica dos falāsifa.
Não obstante as inúmeras dificuldades de identificação dos tradutores e até mesmo os
vários equívocos nas traduções dos falāsifa, estas foram suficientes para despertar o
espírito dos ocidentais medievais para novas considerações de toda ordem. Muitas
dessas obras tornaram-se referência presente em inúmeras formulações medievais
posteriores.
6.5
A recepção dos árabes-filósofos
Não obstante as transformações ocorridas no âmbito do pensamento
filosófico e teológico do séc. XII d.C / VI H. no ocidente medieval latino terem sido
um dos resultados da penetração conjunta da falsafa com os escritos de Aristóteles, a
ênfase recaiu sobre as teses de Ibn S÷nā, melhor, o “Avicena” dos latinos: “os dois
388
Há alguns manuscritos que citam o nome de Gerardo de Cremona como o tradutor do De Anima. No
entanto, esta atribuição parece ter pouca credibilidade pois na mesma época, Gerardo estava traduzindo
o Canon de Ibn S≈n¡. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.102.
389
VERBEKE. Introd. IV-V, p.101.
390
GILSON, op. cit, p.466.
230
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
últimos terços do século XII d.C. avicenizaram-se”391.
Mesmo
assim,
não
se
encontra uma corrente de pensadores exclusivamente “avicenianos” aos moldes dos
que foram chamados “averroístas”.
Nesse período encontra-se um sem número de teses de “Avicena”, em
diversas e curiosas obras, combinadas com correntes de caráter platônico, com
fragmentos do pensamento de Agostinho, Pseudo-Dionísio, Boécio, João Escoto
Erígena e outros. Além das idéias próprias de Ibn S÷nā, no alforje das traduções
seguiam-se obras apócrifas que a ele eram atribuídas. Um dos exemplos disso foi a
obra anônima De fluxu entis na qual igualmente se encontram teses do falāsifa
mescladas e harmonizadas a teses de Santo Agostinho e de outros pensadores cristãos.
Até que as análise mais detidas revelassem questões que os cristãos teriam de
ultrapassar, “Avicena” foi o livro de cabeceira de muitos pensadores cristãos do
ocidente medieval latino.
Assim, mesclada a outras fontes, a cosmologia e a teoria da alma de
“Avicena”, inicialmente recebida como uma aliada do encontro místico pregado por
algumas correntes do cristianismo, marcou presença em muitos escritos dos latinos
desse período. Domenico Gundissalino traduziu o Kitāb al-Nafs / Livro da Alma de
Ibn S÷nā que ficou conhecido no Ocidente como o “De Anima
de Avicena”. A
Gundissalino também se atribui a composição de De Anima próprio – uma compilação
de extratos literais da tradução latina do De Anima de “Avicena” – ilustrando bem o
que seria, a partir de então, a interpenetração do avicenismo com inúmeras doutrinas
cristãs. Nessa obra, é possível identificar por quase todo o texto de Gundissalino a
fonte árabe da qual o autor se utilizou.
O peripatetismo da teoria da alma de
“Avicena” ficava frente a frente com as doutrinas de perfil platônico de Boécio e
Agostinho. O De anima de “Avicena”, conhecido antes do que o de Aristóteles
fornecia uma organicidade entre a biologia, psicologia e a teologia, o que explicou seu
sucesso. Não era um comentário, mas uma exposição sistemática e uma nova síntese
que pensava o homem a partir do desenvolvimento das ciências, particularmente da
medicina, fornecendo elementos que possibilitavam a articulação dos elementos
fisiológicos tanto da anatomia do cérebro, da estrutura dos órgãos, das funções do
coração e fígado, do papel do sistema nervoso e inúmeras outras características do
homem visto como organismo corporal. Por outro lado, desenvolvia um aspecto mais
391
DE LIBERA , op. cit., p. 349.
231
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
espiritualista que o de Aristóteles e, por isso, foi inicialmente acolhido com simpatia
pelo ocidente latino.
Tanto a psicologia como a cosmologia de “Avicena” pareciam
completar o que diziam os cristãos. Desse modo, muitas de suas teses funcionavam
como amálgamas às doutrinas cristãs. Assim, por exemplo, era possível aproximar a
iluminação divina na teoria de Agostinho com a iluminação da inteligência agente dos
árabes. No século XII d.C. encontra-se essa mescla entre as doutrinas de Avicena com
as de Santo Agostinho na corrente que se denominou “agostinismo avicenizante”.
Essa situação de interpenetração, porém, não foi duradoura. Mas,
enquanto isso, até que houvesse uma melhor compreensão de todo o conjunto de
escritos que desaguava no mundo latino, muitos textos confusos e pouco filosóficos
foram escritos. O excessivo número de “De Animas” existentes indica a efervescência
nos espíritos nessa época. À medida em que a confusão na compreensão mais rigorosa
das teses dos falāsifa diminuía, o pensamento cristão procurava recobrar o que lhe era
próprio. Era preciso separar joio do trigo. A melhor imagem do que foi o inevitável
conflito entre a falsafa e a teologia cristã que se produz no início do séc. XIII d.C., é a
Universidade de Paris. A mais célebre das grandes universidades medievais,
constituída em 1200 d.C. e sancionada em 1215 d.C., desde os primeiros anos de sua
atividade recebia as obras de Aristóteles e dos falāsifa. Os mestres que lá ensinaram
como, por exemplo, Guilherme de Auxerre (m.1237) e e Filipe de Greve (m. 1236) não
ignoraram o papel que essa massa de novas idéias emergente cumpria.
Aproximadamente
na
mesma
época
começaram
a
chegar
progressivamente os escritos de Ibn Ru¹d, melhor, o “Averróis” latino. Rogério Bacon
e Alberto Magno começaram a citá-lo entre 1240 d.C. e 1250 d.C. Nesse período
tornou-se mais clara a impossibilidade de harmonizar as teses dos falāsifa com as
doutrinas cristãs. “A grande época da teologia e da filosofia escolásticas começa então”
e coincide com o trabalho dos pensadores cristãos de simultaneamente absorver e
conter o fluxo dos escritos greco-árabe da filosofia.
Até que esses escritos fossem devidamente analisados pela autoridade
eclesiástica, permaneceram proibidos. Em 1210 d.C. foi proibido o ensino dos escritos
de Aristóteles e de seus seguidores e tudo o que se referisse à filosofia natural sob pena
de excomunhão. Os tratados de lógica eram aceitos, mas os de física e de metafísica
representavam um perigo de todo, ainda, desconhecido. Em 1231 d.C., o papa
Gregorio IX renovou a proibição mas os escritos de Aristóteles e dos falāsifa sobre
232
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
física e metafísica se infiltraram em todas as partes e ganharam terreno. Outra
renovação da proibição foi feita em 1263 d.C.
Enquanto a proibição, oficialmente, procurava conter o avanço do
peripatetismo de Aristóteles e dos falāsifa, eram feitas simultaneamente traduções
diretamente do grego como, por exemplo, as de Guilherme de Moerbecke (1215-1286).
Assim, os mestres cristãos passaram a assimilar diretamente as doutrinas de Aristóteles
procurando isolar as interpretações dos falāsifa. Quando o peripatetismo foi controlado
pelo cristianismo, a proibição se converteu em seu oposto: em 1336 d.C. a autoridade
eclesiástica tornou obrigatório o estudo de Aristóteles aos candidatos à licença em
artes. O que veio a seguir foi o fortalecimento dos laços da cristandade com o
peripatetismo aristotélico e não mais com o peripatetismo árabe. Os cristãos fizeram
sua própria harmonia entre o aristotelismo e o dogma cristão, assim como se fizera
anteriormente com o platonismo pela pena de Santo Agostinho.
As diferentes reações e adaptações em vistas do peripatetismo pelos
diversos meios filosóficos da época sintetizaram em que medida os escritos grecoarabes se infiltraram no desenvolvimento das teses dos pensadores cristãos desse
período. As universidades já eram uma realidade européia e em Toulose e Oxford,
simultaneamente também foram acolhidas as novas idéias. O impacto que esse
conjunto de escritos causou sobre a teologia cristã foi extraordinário. Praticamente
todos os nomes da escolástica universitária cristã se referem aos falāsifa e , quando
deles discordam, dão-se ao trabalho de discutir detalhadamente suas teses.
Ao aludir a reação da cristandade em vistas desse novo impulso, Gilson
destacou quatro correntes principais no período: a primeira referiu-se ao agostinismo
dos franciscanos do qual São Boaventura é o mais ilustre representante; a segunda foi a
escola dominicana, coroada com a síntese aristotélica-cristã de São Tomás de Aquino;
a terceira foi o averroísmo latino, na qual destaca-se Sigeer de Brabante que entendia a
interpretação de “Averróis” sobre Aristóteles como a verdade e a quarta e última se
deu na direção das ciências da natureza, antecipando o Renascimento em Oxford onde
Rogério Bacon foi o principal representante.
Nos quatro casos, a falsafa se faz presente: no primeiro, pelo seu caráter
neoplatônico; no segundo, pelo seu perfil aristotélico; no terceiro, pelos seus diretos
seguidores e no quarto, pelo seu aspecto científico. Se tomarmos o exemplo de Ibn
S÷nā, é possível verificar que esses elementos ainda compunham um quadro orgânico e
harmônico. O quadro proposto por Gilson ilustra a divisão das influências, a separação
233
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
dos domínios no que foi um novo desenvolvimento na história da filosofia. O
desmembramento de um certo conjunto harmônico da falsafa já a descaracterizava,
assim como ocorrera no Oriente.
.
6.6
Maimônides e a falsafa:
As teses dos falāsifa também estiveram presentes entre os judeus. Não é
demais lembrar que desde os primeiros tempos do cristianismo, em Alexandria, Fílon,
o judeu, já havia trabalhado no sentido de aproximar as escrituras judaicas da filosofia
grega. A filosofia, portanto, já tivera contato com o monoteísmo judaico antes do
surgimento do Islām. No entanto, vale ressaltar que as comunidades judaicas sempre
estiveram em contato com os árabes desde o nascimento do Islām na península arábica,
habitada por muitos judeus, até a época das traduções em Bagdá no séc. IX d.C.,
judeus acompanharam o movimento da translação dos centros de estudo. Com o
grande impulso das traduções de Bagdá, os pensadores judeus tiveram novo estímulo
para incorporar a filosofia grega em sua trajetória. “Foi por meio do, ou aliada ao
trabalho dos pensadores muçulmanos, devido à falsafa , que os judeus tomaram ou
retomaram gosto pela filosofia.”392 Os pensadores judeus que viviam em terras do
Islām liam e escreviam em árabe. Isso era feito de dois modos; ou com a grafia própria
da língua árabe ou, então, utilizando os caracteres hebraicos para escrever em árabe,
isto é, transliteravam o árabe para o hebraico.
As traduções do árabe para o hebraico datam apenas dos últimos tempos
em que a falsafa começou a declinar nas terras do Islām. A filosofia escrita em
hebraico se deu mais propriamente quando os judeus passaram a viver nos países
dominados pela cristandade. Nesse sentido a falsafa entre os judeus foi um momento
determinado de aculturação do judaísmo enquanto vivia nas terras do Islām. Enquanto
a falsafa, entre os árabes diminue sua influência, alguns pensadores judeus
acompanham o movimento de da filosofia para as terras da Espanha, primeiramente,
sob o domínio árabe e, depois, sob o domínio do cristianismo e, finalmente
acompanham a transmissão da filosofia para o mundo latino. No primeiro caso usaram
a língua árabe, no segundo caso, o hebraico. Isaac Israeli (855/955 d.C.),
contemporâneo de Al-Kind÷ ; Ibn Gabirol (1021/1051 d.C.) conhecido no ocidente
392
DELIBERA, op. cit., p. 196.
234
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
como Avicebron, Judas Halevi (1075/1141 d.C.) e sobretudo Maimônides (1135/1204
d.C.) fazem parte dessa constelação de autores judeus medievais marcados pela falsafa.
Moisés ben Maymýn – Maimônides – era conterrâneo e contemporâneo
de Ibn Ru¹d. Nasceu em Córdoba mas circulou por várias cidades até se estabelecer no
Cairo, tornando-se médico da corte, usufruindo a proteção do vizir de Salāh al-Din –
Saladino. No Egito escreveu várias obras das quais se destacou o Guia dos Perplexos .
O próprio Maimônides testemunhou a chegada das obras de Ibn Ru¹d ao Cairo por
volta de 1190 d.C. Apesar da estima por Ibn Ru¹d, ness época Maimônides já havia
escrito sua filosofia na trilha e no debate com Al-Fārāb÷, Ibn S÷nā e Ibn Bājja. Sua
estima por Aristóteles lembra os elogios de Ibn Ru¹d ao mestre grego como é possível
verificar nesta carta que Maimônides endereçou a Samuel ben Tibon:
“Tendes muito cuidado em só estudar as obras de Aristóteles
acompanhadas de seus comentários: o de Alexandre de Afrodísia, o de
Temístio ou o de Averróis. Os escritos do mestre de Aristóteles,
Platão, são parábolas e difíceis de compreender, e não são necessários
pois a obra de Aristóteles é suficiente; não é necessário, tampouco,
levar em conta os ivros escritos por seus predecessores, pois seus
intelecto é grau supremo do intelecto humano, excetuando os que
receberam a inspiração divina.”393
A obra de Maimônides também foi traduzida para o latim e chegou juntamente com as
obras dos falāsifa a estar presente nas teses dos pensadores cristãos do ocidente
medieval latino como, por exemplo, em Tomás de Aquino e Alberto Magno. Muitas
das teses de Maimônides se ampararam nos desenvolvimentos anteriores realizados por
Ibn S÷nā e Ibn Ru¹d. Nesse sentido o pensamento de Maimônides, não obstante dirigirse mais propriamente às questões do judaísmo, trouxe em sua estrutura, muito da
falsafa.
6.7
Santo Alberto e os medievais latinos
No Ocidente, o século XII d.C. foi o século da escolástica latina e o
século XIII d.C. ainda foi pleno de falsafa. Os textos de Platão conhecidos pelos
medievais limitavam-se a fragmentos do Timeu, o Mênon e o Fédon. Ainda assim, a
393
Citado em DE LIBERA, op. cit., p. 217.
235
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
maioria das referências dos escolásticos latinos a essas obras eram de segunda mão. A
grande difusão do platonismo terá de esperar ainda por volta de duzentos anos sendo
mais intensa a partir do século XV d.C. Boa parte da obra de Aristóteles, inclusive os
apócrifos, esteve disponível desde o final do séc. XII d.C. Antes disso, os tratados de
Ibn S÷nā assim como os de Ibn Ru¹d, logo em seguida, haviam deixado suas marcas
antecipadamente na interpretação da filosofia de Aristóteles. Na verdade, o
aristotelismo não podia ser entendido em estado puro. Entre a sua neoplatonização pela
lente aviceniana até a sua desplatonização, iniciada por Ibn Ru¹d e continuada por São
Tomás de Aquino, “a história da formação do Aristóteles latinus é dominada por um
jogo complicado de fatores perturbadores.”394
Os primeiros mestres das universidades emergentes da Europa tinham
em suas múltiplas tarefas, uma que era prioritária: dialogar com o recém-chegado
corpus filosófico greco-árabe e procurar adaptá-lo às necessidades da fé e do dogma
cristão, afastando ao mesmo tempo, as tendências que se lhe opunham fossem elas
oriundas dos gregos, dos árabes ou mesmo das próprias correntes de pensamento que
se formavam dentro do cristianismo.
Um desses casos foi o averroísmo contra quem lançou suas teses Tomás
de Aquino. Averróis havia entrado de modo duplo no mundo latino sendo que se lhe
atribuiram doutrinas que ele talvez nunca tenha professado. Da mortalidade individual
da parte intelectual da alma, a defensor de duas verdades –uma da fé e uma da razãoeste “Averróis” só pode ser entendido em sua relação com o averroísmo. Mas, apesar
disso, o averroísmo ganhou muitos adeptos no século XII d.C. como João de Jandun
(m.1328), Boécio da Dácia (m.1260) e seu maior representante Siger de Brabante
(1240/1284). O averroísmo seguiu ainda fazendo adeptos por Bolonha e em Pádua até
o século XV d.C. nas raias do Renascimento.
Alguns nomes são inseparáveis da escolástica no séc. XIII d.C.:
São Boaventura (1217/1274) foi mestre da cátedra franciscana da
Faculdade de Teologia de Paris. Se, por um lado combateu o averroísmo por defender
a eternidade do mundo e a unicidade do intelecto, por outro lado, “a filosofia
boaventuriana baseia-se na síntese da Avicena e de Dionísio.”395 Mas essa já é uma
outra história.
394
395
DE LIBERA , op. cit., p. 359.
DE LIBERA , op. cit., p. 403.
236
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Em 1932, Pio XI tornou Alberto, Santo Alberto. Ele, portador do título
de “Doutor Universal”, poderia ser chamado, na verdade,
“doutor em ciências
árabes”396 melhor, Santo Al-Berto. Ele foi o principal articulador, ou ao menos,
compilador das doutrinas recém-chegadas, caracterizando-se pela sua ligação com as
fontes árabes de “Avicena” a “Averróis”, passando por ©unayn Ibn Is¬āq e outros
nomes da ciência árabe. Sua obra, muito vasta, permitiu identificar que a
documentação árabe o acompanhou em todo o seu trajeto intelectual. Mas essa já é
uma outra história.
Tomás de Aquino (1225/ 1274) nasceu próximo a Nápoles. Enviado a
Paris para terminar seus estudos, tornou-se o aluno preferido de Alberto Magno. Sua
monumental síntese filosófica e teológica foi o coroamento de grande parte do
processo que começara com as traduções esporádicas do corpus filosófico greco-árabe.
Ora combatendo, ora adotando, ora transformando, em qualquer circunstância, a obra
de Tomás denota a importância dos falāsifa no desenvolvimento de suas teses. Das
vias de constatação de Deus até a estruturação de sua psicologia, quantas vezes se
identifica as presenças de Ibn S÷nā e de Ibn Ru¹d. Mas isso já é uma outra história.
Rogério Bacon, inglês, franciscano, nascido por volta de 1220 d.C.
anunciou o caminho das ciências experimentais. Em sua Opus maius apoiou-se em
muitas teses de Ibn S÷nā em referência ao estudo da luz e da visão. Sua classificação
dos sentidos internos reproduz em detalhes a classificação de Ibn S÷nā. Na verdade é
possível encontrar ilustrações das indicações fornecidas por Ibn S÷nā até por volta do
séc. XVII d.C. Mas essa também já é uma outra história.
Mas... será mesmo uma outra história?...
396
DE LIBERA, op. cit., p. 107.
237
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
7 – À GUISA DE CONCLUSÃO
Quando aquele senhor me perguntou qual a atualidade da falsafa fiquei
desconcertado por um instante. Eu falava com um homem do nosso tempo. – Não é
atual, respondi. Por que ? Porque é fundamental. Que atualidade há em perdermos o
nosso precioso tempo voltando há mil anos atrás para ler o que disseram homens
barbudos e de turbante numa língua estranha ? Nada atual. Me perguntou, então, qual
era a utilidade. Ora, fui embora. Não é útil. A filosofia é o não-útil. E a história da
filosofia é a história dos não–úteis inatuais. Agora, ao homem atual se lhe restar
alguma pergunta fundamental, então pode encontrar em sua atualidade a companhia
dos inatuais. As perguntas fundamentais acompanharam os falāsifa
assim como
acompanharam também outros pensadores de sua época e os mais antigos também.
Aos inatuais não espanta poder circular pelas vielas da história em busca
de momentos de lucidez. Pouco importa qual o traje que vestiam e se usavam ou não
chapéu. Vale o que traziam dentro de suas cabeças, de seus corações e de seus atos.
Pouco importa a religião ou o país. Aos inatuais o paradigma é outro. Pois se a
filosofia é a busca do saber, então, a pátria dos filósofos é a sabedoria. É para lá que
vão. O tempo dos sábios não se conta por datas, a língua dos sábios é a consciência, e
sua religião, o entendimento e o bem.
Recolher na história momentos de consciência é um patrimônio
universal. Os inatuais estão sempre presentes. Talvez valha para um mundo que se
embate com os diferentes, que esbarra no diverso e que se propõe global. A tolerância,
na integração do mundo é axioma que deriva do conhecimento e do entendimento do
outro, do diferente e diverso que, no fundo, toca algo que ultrapassa as diversidades. É
de lá que ecoam as vozes da integração dos povos, sem que se percam suas
particularidades. É de lá que se clama que cada um conheça a si mesmo para abraçar a
humanidade inteira.
Não é demais lembrar que a visão de mundo condiciona nossos atos. O
mundo reflete seus cidadãos. A filosofia auxilia nessa construção e nesse encontro.
Nos coloca frente a questões e a soluções que ampliam horizontes e nos fazem
acompanhados por pensadores e pensadoras de todos os tempos. Ao entrarmos em
contato com a cosmovisão dos falāsifa uma coisa é clara: a integração das coisas. Hoje
em dia, isso ainda parece algo complicado. A fragmentação e o estilhaçamento da
238
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
cosmovisão dos nossos dias dificulta que possamos ter uma visão mais integrada da
realidade. Mas alguém pode dizer que, talvez, a realidade não seja integrada. Essa é
uma questão. Mas o refúgio da integração no interior de nós mesmos é o princípio de
uma realidade sadia.
Ibn S÷nā escreveu uma obra chamada A Cura, como vimos. Ibn S÷nā era
médico. A Cura é uma obra de filosofia. Qual é, então a cura da filosofia? Essa obra é
um conjunto de todas as ciências conhecidas da época. Ibn Sina realizou uma grande
síntese. Será que ele colocou em sua obra tudo o que havia de conhecimentos em sua
época? Não, é claro que não. Mas certamente colocou tudo ou quase tudo que ele sabia
num conjunto ordenado segundo a sua própria organização. Essa lição me fica, sempre.
A cura é a integração dos conhecimentos a partir de uma cosmovisão própria. Isso é
sadio e filosófico.
Quase tudo o que ele pensava em termos de ciência, hoje é obsoleto.
Terra no centro do universo, teorias do pneuma, teoria da luz. Nada mais vale. É
inatual. É fundamental. Ele pensou sobre isso. No limite de seu entendimento e dos
recursos que possuía, elaborou sua síntese própria. Integrado, unificado em sua
pluralidade. Se a cosmovisão do mundo é o retrato da alma do homem, cosmovisões
integradas geram homens integrados. Por isso vale a pena ler os falāsifa . Eles respiram
e transpiram integração do mundo, da alma e do homem. Para qualquer construção de
si mesmo ý vale estar nas proximidades... vale escolher boas companhias... Aquece-te,
pois, à luz dos sábios.
239
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
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