MIGUEL ATTIE FILHO » ¬ Ÿ FALSAFA A Filosofia entre os Árabes São Paulo 2001 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho »¬Ÿ FALSAFA A Filosofia entre os Árabes SUMÁRIO Tabela de transliteração das letras árabes ....................................................................4 Tabela de pronúncia .....................................................................................................5 Introdução .....................................................................................................................6 1 – ALGUNS INTRÓITOS 1.1 A importância do estudo da falsafa........................................................8 1.2 A origem e o significado do termo falsafa.............................................9 1.3 As principais características da falsafa ................................................12 1.4 Árabes, islâmicos e muçulmanos ........................................................14 1.5 Filosofia árabe ou filosofia islâmica ? .................................................17 1.6 História do pensamento e história da filosofia ....................................21 1.7 Filosofia e teologia ..............................................................................23 1.8 Filosofia e mística ................................................................................27 2 – UM TAQUINHO DE UMA HISTÓRIA DA FILOSOFIA 2.1 ...e, afinal, onde estamos?....................................................................31 2.2 Divisões na História ...........................................................................35 2.3 Os períodos da Filosofia......................................................................39 2.4 Alguns ditos sobre a filosofia dos medievais .....................................42 2.5 Um panorama religioso da época .......................................................46 2.6 O saber e alguns de seus centros ........................................................52 2.7 A chegada dos árabes .........................................................................57 3 – NO ISL¿ ¿M NASCENTE 3.1 A Arábia pré-islâmica..........................................................................59 3.2 O Profeta Mu¬ammad ........................................................................61 3.3 O Alcorão ...........................................................................................64 3.4 A expansão muçulmana .....................................................................66 3.5 Os Omíadas ........................................................................................67 2 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho 3.6 Os Abássidas.......................................................................................68 3.7 Os primeiros intérpretes ......................................................................72 3.8 O Kalām ..............................................................................................74 4 – “IDE BUSCAR O SABER ATÉ NA CHINA”... A RECEPÇÃO 4.1 Uma herança do saber ........................................................................78 4.2 Primeiras traduções..............................................................................81 4.3 Hunayn e a Casa da Sabedoria ...........................................................83 4.4 De Aristóteles a ArisÐýÐālis ................................................................87 4.5 De Platão a AflaÐýn ............................................................................91 4.6 De Plotino a AfluÐ÷n – o “mestre grego” – .......................................94 4.7 Outras presenças .................................................................................98 5 – A FALSAFA E OS FAL¶SIFA 5.1 Al-Kind÷, o anfitrião .........................................................................100 5.2 Al-Fārāb÷, o inventor ........................................................................121 5.3 Ibn S÷nā, o sistematizador .................................................................143 5.4 Al-¦azāl÷, o batedor .........................................................................172 5.5 Ibn Ru¹d, o reformador ....................................................................196 6 – AS DUAS FACES DA FALSAFA 6.1 O pouso das águias ...........................................................................220 6.2 Caminhos para o “Oriente” ...............................................................221 6.3 Caminhos para o “Ocidente” .............................................................225 6.4 Traduções para o latim ......................................................................227 6.5 A recepção dos árabes-filósofos .......................................................230 6.6 Maimônides e a falsafa......................................................................234 6.7 Santo Alberto e os medievais latinos ................................................235 À guisa de conclusão ...............................................................................................238 Bibliografia............. .................................................................................................240 3 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Tabela de transliteração das letras árabes [ ] a e i m q u w ā b t t j ¬ æ d d Vogais _´_ a __ i y { } ‚ † Š ’ – r z s ¹ ½ Å Ð Þ ‘ š ā ¢ ¦ ª ® ² ¶ ¼ ¾ Æ (Õ § f q k l m n h ý/ w ÷/ y ’ â) ´ _’_ u (  ä) 4 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Tabela de pronúncia Letra [ ] a e i m q u w y { } ‚ † nome tranlist. som aproximado Letra _______´____ a Š ’ – š ā ¢ ¦ ª ® ² ¶ ¼ ¾ Æ _______ ____ i ´ ______ ’_____ u (Õ alef ā aspirar be b beleza te t toda te t think (ing.) jim j junto ¬e ¬ H - aspirado æ æ juego (esp.) del d divino del d those (ing.) re r roda zain z zero sin s seguir ¹in ¹ chance ½ad Vogais breves ½ Seguir - enfático nome tranlist. som aproximado Åad Å Those - enfático tá Ð Todo - enfático dzá Þ Zero - enfático ‘ain ‘ -------------- §ain § -------------- fe f feliz qaf q quente kef k construir lam l longo mim m memória nun n nada he h heaven (ing.) wau ý/ w um ie ÷/y inominável ’ ----------- ---------- â --------------) hamza ( ÅA-----------AäA 5 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho INTRODUÇÃO Este não é um escrito para especialistas na filosofia em árabe mas se destina, com mais propriedade, aos estudantes de filosofia e ao público em geral, limitando-se a contornos de caráter introdutório ao tema. Não pretendi, também, escrever uma “História da Filosofia” no mundo islâmico. O meu objetivo foi mais singelo: traçar um roteiro mínimo dentro da História e da Filosofia que pudesse fornecer ao leitor um quadro da localização da falsafa como um momento crucial para se compreender com mais clareza alguns aspectos do curso de transformações do pensamento filosófico tanto do Oriente como do Ocidente. Para tal, procurei apresentar alguns temas principais que compõem o cenário da falsafa para ser um guia de assuntos ao leitor. Desse modo, é inegável que o caráter panorâmico deste trabalho carrega todas as dificuldades e os riscos que são inerentes a tal opção. No entanto, espero que, futuramente, outros autores venham a contribuir para preencher as lacunas que aqui se apresentam. Vale adiantar que o termo “falsafa” significa “filosofia”. Neste trabalho, porém, adquire um sentido mais específico, e é entendido como o período clássico da filosofia entre os árabes, a partir do movimento de recepção e desenvolvimento da filosofia grega nas terras dominadas pelo Islām circunscrito entre os sécs VIII d.C. / II H. e XIII d.C. / VII H. Visto, portanto, como um segmento histórico da filosofia, a “falsafa” a qual me refiro é um movimento que inicia-se com as obras de Al-Kind÷ e se encerra com a morte de Ibn Ru¹d sem que, com isso, se comprometa a sua continuidade, quando entendida de modo genérico. Uma importante razão que pode levar o estudante e pesquisador de filosofia a dirigir sua atenção à falsafa é, em primeiro lugar, o seu relevante papel no cenário histórico da filosofia do Oriente e do Ocidente. Além dessa importância histórica, ressalte-se que a envergadura de suas teses traz elementos enriquecedores à cena do debate filosófico. Muitas vezes, esse papel de primeira importância não é reconhecido com evidência tanto pela dificuldade de informações como pela escassez de obras especializadas em nosso idioma a esse respeito. Neste trabalho, inicialmente, são analisados alguns conceitos que guardam uma proximidade com a falsafa, tais como, os termos “árabe”, “islâmico”, “filosofia” e “teologia”, indicando direções pelas quais essas discussões caminham atualmente. Em seguida, são abordados alguns pontos da História da Filosofia no 6 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Ocidente, particularmente a respeito do período medieval, objetivando fornecer uma localização da falsafa do ponto de vista histórico e filosófico. Após esse quadro geral da História da Filosofia, há algumas informações básicas sobre o momento histórico do surgimento da religião islâmica. Com o estabelecimento do texto sagrado dos muçulmanos – o Alcorão – e a expansão do Islām, a atenção se dirige ao período de traduções da ciência e da sabedoria dos antigos para a língua árabe. Em seguida, são apresentadas algumas características básicas do pensamento dos quatro nomes de maior envergadura da falsafa, ou seja, Al-Kind÷, Al-Fārāb÷, Ibn S÷nā (Avicena) e Ibn Ru¹d (Averróis) e, também, alguns pontos da polêmica de Al-¦azāl÷. Ao final, há algumas indicações a respeito dos caminhos seguidos pela falsafa no Oriente e no Ocidente. Em todo esse trajeto, o meu maior intuito foi oferecer um conjunto mínimo de informações que se traduzisse num estímulo para que, no futuro, os estudos a respeito da falsafa, aqui no Brasil, estejam de acordo com sua importância histórica e filosófica, encontrando espaço junto ao meio acadêmico para criar uma base mínima para que outros possam continuar sem interrupção. Setembro de 2001 7 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho 1 – ALGUNS INTRÓITOS 1.1 A importância do estudo da falsafa. Mesmo que não pretendessemos contar a História da Filosofia ocidental em algumas páginas, mas procurássemos apenas traçar uma linha mínima que ligasse as principais etapas da História da Filosofia, seria natural que tivessemos em mente que, de algum modo, o mais atual pensamento do mais jovem filósofo do nosso planeta teria alguma relação com o mais antigo pensamento do mais antigo filósofo da História da Humanidade; fosse essa relação, uma relação de proximidade e concordância ou fosse de afastamento e divergência. É justamente por admitirmos que tal relação é inerente às diversas manifestações filosóficas que podemos justificar o porquê damos a isso o nome de “História da Filosofia” e, também, o porquê do interesse em pesquisála. Ao nos habituarmos em estabelecer um diálogo com a filosofia é comum estarem presentes em nossas reflexões filósofos como Aristóteles, Platão, Heráclito, e grande parte dos filósofos da antiga Grécia. Além desses, por vezes fazemos figurar pensadores do Ocidente medieval latino como Agostinho, Rogério Bacon e Tomás de Aquino. A estes, não raro, podemos acrescentar igualmente os nomes de alguns modernos como Hegel, Kant, Nietzsche, Descartes e outros. Mesmo sabendo que tais pensadores possuem extremas diferenças filosóficas entre si, não nos sentimos cometendo nenhuma contradição em reuní-los, pois sabemos que todos são tributários dos argumentos da razão – propósito da filosofia – para superar os desafios particulares que se-lhes apresentaram em cada época. Se isso nos é natural, não devemos ter, pois, a menor hesitação em trazer às nossas reflexões, por exemplo, os nomes de Al-Kind÷, Ibn S÷nā, Al-Fārāb÷ e Ibn Ru¹d que são os nomes mais representativos da falsafa, tendo sido a justo título conhecidos também como os “filósofos árabes helenizados”. Nascidos no período medieval em terras dominadas pelo Islām, entre os sécs. VIII e XII d. C./ II e VI H., esses pensadores foram denominados, em árabe, pelo termo “falāsifa”1, isto é, “filósofos” em vista de sua arte: a “falsafa”, isto é, a “filosofia”. Em suas obras, justifica-se tal denominação em virtude de haver traços profundos e marcantes de grande parte da tradição da filosofia e da ciência antiga dos 1 No singular, failasýf (filósofo). 8 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho gregos. O fato de tais pensadores estarem inseridos numa cultura mais distante da nossa, talvez nos desse a falsa impressão de que o mundo árabe e o mundo islâmico pouco teriam a acrescentar às nossas discussões histórico-filosóficas em vistas da formação do nosso pensamento ocidental. Porém, ao se entrar em contato com as obras dos falāsifa pode-se verificar que eles adotaram os princípios da filosofia através das demonstrações lógicas, estabelecidos principalmente por Aristóteles para superar os desafios impostos pelas mais variadas questões que se-lhes apresentaram. Assim, é natural que eles figurem juntamente com os grandes nomes da História da Filosofia. Curiosamente, em muitos aspectos, a sua importância se deu mais em vista do impacto causado na História da Filosofia do Ocidente do que na do próprio Oriente. De todo modo, a falsafa é um dos elos mais esclarecedores para a compreensão dos caminhos da filosofia no período medieval visto que se deu no mesmo período em que o Ocidente esteve sob a denominação (às vezes injusta) de Idade das Trevas. Uma das coisas que mais chama a atenção ao atento estudante de filosofia é que, não raras vezes, os manuais de História da Filosofia – ao tratarem do período medieval – passam de Agostinho (séc. IV d. C.) a Tomás de Aquino (séc. XIII d.C.) sem dar a devida atenção ao que ocorreu nesse ínterim, o que indiretamente acaba reforçando que, nesse período, o conhecimento científico e filosófico teriam ficado estagnados. Tal julgamento não pode se aplicar ao lado oriental medieval, pois neste, o que se viu, permite considerá-lo como um dos períodos mais luminosos da História: grandes avanços foram realizados em praticamente todas as áreas do conhecimento e, de modo particular, na filosofia. 1.2 A origem e o significado do termo “falsafa”. A transcrição do termo grego φιλοσοφια (filosofia) para a língua árabe resultou no termo »¬Ÿ ( falsafa ). Vale esclarecer que se, por um lado, na língua grega, os morfemas φιλια / σοφια (filia/sofia) se unem para dar, entre outras, a idéia de “amor à sabedoria”, por outro lado, em árabe – assim como nas transcrições que encontramos em outras línguas como, por exemplo, “philosophia” em latim; “philosophie” em francês e alemão; “philosophy” em inglês etc. – a idéia que liga os conceitos de amor e de sabedoria se dá somente por uma analogia e um retorno ao termo grego. Os vocábulos usados para significar “amor” e “sabedoria”, na língua árabe, não possuem qualquer semelhança com os radicais gregos decorrendo, portanto, 9 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho que no vocábulo »¬Ÿ ( falsafa ) não há qualquer idéia que provenha dos radicais próprios da língua árabe. É uma pura transcrição da língua grega. Mesmo não sendo o caso de nos aprofundarmos na discussão de significados dos termos gregos e nem de fazer corresponder com rigidez os termos gregos aos termos árabes, podemos aludir ao fato de que alguns conceitos que podem se incluir no conceito de φιλια (filia) são, por exemplo, o conceito de amor, de paixão, de amizade, de desejo e de inclinação da alma. No caso do conceito de σοφια (sofia), podemos incluir nele os conceitos de sabedoria, ciência e conhecimento. Quanto a φιλια (filia) há três termos na língua árabe que podem se aproximar de sua definição: `o (¬ub), »£[vˆ (½ad÷q) e ¢„— (þi¹q). Os dois primeiros, apesar de serem usados com frequência na língua árabe, não tiveram um uso muito corrente no vocabulário da falsafa. No caso de `o (¬ub), sua aplicação se dá mais propriamente ao amor no sentido da ternura, do carinho e do afeto podendo ser traduzido como o amor num sentido mais amplo. O segundo termo – »£[vˆ (½ad÷q) – se traduz por amizade, porém sua raiz original remete à noção de autenticidade, sinceridade, veracidade e outros termos afins. E, talvez, justamente pelo fato de uma amizade não poder prescindir de todos esses atributos é que, na língua árabe, o termo “amizade” provém daqueles primeiros conceitos. Por fim, a idéia de amor no sentido da paixão e da inclinação do desejo, encontra sua melhor tradução no termo ¢„— (þi¹q). Ibn S÷nā, por exemplo, ao fazer uso desse termo não o restringe meramente ao sentido material da atração carnal mas, procura espiritualizá-lo no sentido metafísico do movimento da hierarquia dos seres em direção à causa final. Nesse sentido, o termo ¢„— (þi¹q) guarda também uma certa proximidade com o conceito de ερωσ (eros) e, no vocabulário filosófico é, pois, o que mais se aproxima também da idéia de φιλια (filia). Em relação ao termo σοφια (sofia), há três termos na língua árabe que estão relacionados ao sentido de sabedoria, de ciência e de conhecimento. São eles: ±¬— (‘ilm ), »Ÿz˜° ( ma‘rifa ) e »°¨n (¬ikma). Esses três termos possuem um uso frequente na linguagem filosófica entre os árabes. No primeiro caso – ±¬— (‘ilm ) –, 10 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho sua melhor correspondência é o termo ciência. Com mais frequência foi esse o termo utilizado para traduzir a noção grega de επιστηµη (episteme). No vocabulário da falsafa é com ±¬— (‘ilm ) que se expressa, por exemplo, a noção de “ciência divina”, “ciência da natureza” “ciência da alma”, “ciência da lógica” etc. Nos dias de hoje, grande parte da denominação das ciências modernas e suas variantes como, por exemplo, Biologia, Sociologia, Economia e Ecologia é antecedido pelo termo ±¬— (‘ilm ). Quando se predica à alguém o adjetivo ±«\— (‘÷lm), o sentido mais apropriado é o de que esse alguém é douto, erudito, diplomado. O mesmo termo também é usado para designar o cientista. No segundo caso, isto é, »Ÿz˜° (ma‘rifa), este deriva da raiz do verbo āz— (‘arafa) que significa conhecer. Assim, o termo »Ÿz˜° (ma‘rifa) pode ser traduzido por “conhecimento”. É com esse termo, por exemplo, que Ibn S÷nā afirma que “o fim da filosofia especulativa é o conhecimento da verdade, e o fim da filosofia prática é o conhecimento do bem” 2. Mas, num outro sentido, há certa nuance nesse termo: ao analisá-lo, Goichon aproxima-o do termo grego γνωσισ (gnosis). Assim, por exemplo, ao se predicar alguém com o adjetivo ¡¿z— (‘ar÷f ), pode se indicar o caráter do conhecimento do iniciado, do que tem acesso ao saber esotérico, oculto. Por fim, é mais propriamente com o termo »°¨n (¬ikma) que encontramos a melhor aproximação da noção de sabedoria. Esse foi o termo usado na tradução do grego σοφια (sofia). Em alguns casos, esse termo também é usado com o sentido de ciência – ±¬— (‘ilm) – e conhecimento – »Ÿz˜° (ma‘rifa) – Porém, enquanto os dois primeiros denotam um tipo de saber mais indicativo, o espectro mais amplo do conceito »°¨n (¬ikma) é o que mais se aplica no caso do vocabulário filosófico para designar a extensão do conceito “sabedoria”. Por essa razão, às vezes, »°¨n (¬ikma) também, foi usado como sinônimo do próprio conceito de filosofia. Se os antigos gregos chamavam um homem sábio de σοφοσ (sofos), em árabe ele seria denominado ±À¨n (¬ak÷m). Vocábulos como “governador”, “juiz”, “árbitro” e outros, 2 Cf. GOICHON, Vocabulaire, p. 19 e Lexique, p.221. 11 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho também derivam da mesma raiz, remetendo a um sentido mais abrangente do conceito de sabedoria. Na medida em que, tanto nas línguas ocidentais modernas como na língua árabe, o termo “filosofia” foi uma importação de origem grega, é natural que em todas elas tenha havido uma apropriação do vocábulo. Nesse sentido é comum, por exemplo, – tanto em árabe como em português –, se dizer que um tal homem pensativo é um “filósofo” ou que determinada pessoa possui uma “filosofia de vida”. No entanto, pode haver sutis diferenças nessas mesmas afirmações pois a intensidade com que o Ocidente e o Oriente assimilaram algumas tradições da filosofia da antiga Grécia não foi a mesma. Talvez, por isso, a falsafa fôra, em muitos casos, mais estrangeira para os árabes do que a filosofia o foi para os ocidentais. 1.3 as principais características da falsafa. Preenchendo páginas e mais páginas em língua árabe, os falāsifa desenvolveram suas teses entre os séculos VIII e XII d. C. / II e VI H. Portanto, a principal característica da falsafa é ser medieval. Tal condição traz consigo uma grande bagagem de pré-conceitos a respeito da Idade Média e, conseqüentemente, da filosofia praticada nesse período. Se a binômia tabuleta em que se lê “razão e fé” pôde guardar um olhar estreito em relação ao todo da filosofia medieval, mais ainda poderia sê-lo em relação à falsafa. A isso se acrescenta, não raramente, uma visão distorcida dos povos semitas, de modo geral, e dos árabes, em particular. Outra característica da falsafa é ter sido uma novidade no cenário da filosofia que, até então, já havia se construído e se alicerçado ao longo de, pelo menos, 1200 anos. Afinal, até o séc. VIII d.C., a filosofia havia se desenvolvido principalmente entre os povos gregos, no interior do império romano e entre a cristandade do Oriente e do Ocidente. A novidade repousa no fato de que, nesse panorama de povos e culturas, também passou a figurar o povo árabe. E, do mesmo modo, que o helenismo, quando absorvido por outras culturas, teve que se adaptar às características locais, o mesmo aconteceu no caso da falsafa. Os ingredientes da filosofia e das ciências gregas também se adaptaram à cultura e à religião dos árabes. Esse encontro resultou numa filosofia original e renovada que não se confunde com particularidades filosóficas anteriores. Além disso, a filosofia que havia sido, até então, um patrimônio praticamente exclusivo da língua grega, latina e siríaca, chegou, pela 12 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho primeira vez, a ser escrita em língua árabe. Nesse caso, não é difícil imaginar que os termos e os conceitos filosóficos tiveram de seguir um novo itinerário para serem adaptados ao novo idioma. Outro ponto relevante é o fato de a filosofia se confrontar com uma nova religião. O islamismo recebeu a filosofia pouco mais de 150 anos após o seu nascimento. A filosofia, nascida entre os mitos gregos, transportada juntamente com os deuses para o panteão de Roma, absorvida pelos padres da igreja para cimentar os dogmas da cristandade, havia se confrontado, até então, com outras formas de religião mas não ainda com o islamismo. Foi a falsafa que se encarregou de fazer com que os princípios filosóficos se deparassem, pela primeira vez, com os dogmas da religião islâmica, o que foi, sem dúvida, um novo desafio para ambas. A falsafa foi a responsável não só pela imersão do pensamento da filosofia grega entre os árabes mas também pela transmissão da filosofia grega ao Ocidente. Na medida em que o paradigma grego foi um dos responsáveis pela construção filosófica do Ocidente, não é difícil imaginar que a falsafa ocupa um lugar histórico muito peculiar. Sobre o meridiano da filosofia oriental e ocidental, a meio caminho da contemplação de dois – ou mais – caminhos, a falsafa contribuiu sobremaneira para inúmeras transformações da filosofia do Oriente e do Ocidente. É assim que, por exemplo, muitas teses desenvolvidas no interior da falsafa possuem – aos moldes das duas faces da alma propostas por Ibn S÷nā – duas frontes distintas: uma voltada para o Oriente e a outra para o Ocidente. Como bem assinalou Carra de Vaux, “esta escola se divide em dois ramos: o oriental e o ocidental. Al-Kind÷, Al-Fārāb÷, Avicena são nomes célebres do primeiro ramo; Ibn Bāja, Ibn Æufayl, Averróis, os do segundo ramo.” 3 Talvez se Voltaire tivesse conhecido, além dos infindáveis volumes escritos pelos pensadores do Ocidente medieval, também os dos falāsifa, certamente teria continuado a exclamar de que tudo deveria ser colocado em dicionários. E isso não seria à toa, pois uma das características comum aos falāsifa, que chama muito a atenção, é o número de suas obras. Os títulos de Al-Kind÷, citados por Badawi em sua Histoire de la Philosophie Islamique, chega ao número de 241; no caso de Al-Fārāb÷, mais de 120; para Ibn S÷nā, Anawati cataloga 276 obras; para Ibn Ru¹d, Badawi apresenta uma lista de 92 títulos. Algumas dessas obras não chegaram até nós, muitas 3 Cf. VAUX, C. Les penseurs de l’Islam, pp. 1s. 13 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho encontram-se ainda em manuscritos arquivados em bibliotecas, algumas foram editadas em árabe, as mais importantes tiveram traduções para o latim durante a Idade Média e pouquíssimas foram traduzidas para as línguas modernas. Os temas abordados pelos falāsifa cobriram grande parte dos conhecimentos da época: lógica, física, matemática, metafísica, medicina, astronomia, música, psicologia, ética e política. Pelo fato de haver, dentre essas obras, comentários sobre Aristóteles e, em menor número, sobre outros autores, muitas vezes se quis reduzir o papel da falsafa a esses comentários. Há muito, porém, as pesquisas a respeito da falsafa, já se incumbiram de mostrar o quanto a denominação de “comentadores” era restrita e imprecisa para designar o trabalho realizado por esses pensadores. Se o comentário foi uma realidade entre os falāsifa, tanto o foi, também, o desenvolvimento de uma filosofia original, de grande envergadura, por parte de cada um deles. 1.4 Árabes, islâmicos e muçulmanos Apesar de muitas vezes serem tomados um pelo outro, esses três termos não são sinônimos. Certamente, podem ter mais de um sentido dependendo do modo como são empregados mas, geralmente, os encontramos utilizados a partir de uma distinção bàsica: o termo “árabe” geralmente é utilizado no sentido da língua, da cultura, da política ou da etnia e não no sentido religioso; o termo “islâmico” guarda o caráter da religião, mas também do Estado ou da cultura e não da etnia; o termo “muçulmano”, aplica-se às pessoas adeptas à religião islâmica, mas que não são, necessariamente, árabes. De todo modo, passemos a verificar com mais detalhes tais significados. Dentre os inúmeros sentidos em que é usado, o termo “árabe”, pode ser entendido a partir de duas vertentes principais: o conceito “árabe” utilizado em sua origem e o sentido atual que guarda em nossos dias. Talvez a melhor maneira de abordar esse espinhoso assunto seja compreender um pouco da história dos povos chamados árabes e as transformações que esse termo sofreu ao longo desse percurso. Os árabes fazem parte dos povos semitas. A primeira notícia que se tem a respeito desses povos, de modo geral e, dos árabes e da região da Arábia, em particular, remonta ao Antigo Testamento. No capítulo 10 do Livro do Gênesis, o povoamento da terra é apresentado pela descendência de Noé a partir de seus três filhos: Sem, Cam e 14 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Jafé. Os árabes fazem parte do conjunto de povos que se formaram a partir da descendência de Sem e, por essa razão, foram chamados “semitas”. O capítulo em questão termina do seguinte modo: “Esses foram os filhos de Sem, segundo seus clãs e suas línguas, segundo suas terras e suas nações. Esses foram os clãs dos descendentes de Noé, segundo suas linhagens e segundo suas nações. Foi a partir deles que os povos se dispersaram sobre a terra depois do dilúvio.”4 O conjunto dos povos semitas localizou-se preferencialmente na região da Mesopotâmia e originou as civilizações antigas que ocuparam essas terras. Os babilônios, caldeus, fenícios, hebreus, sírios, assírios e os árabes são, portanto, todos primos. Por volta de 850 a.C. já era possível encontrar em inscrições assírias e babilônicas termos equivalentes ao vocábulo “árabe”. A literatura grega clássica, através de Heródoto, também menciona não só os árabes como também a região da Arábia. Em princípio, o termo “árabe” se aplicou mais precisamente aos beduínos e à população nômade do deserto da Arábia em oposição à população sedentária das cidades. Restrito a esse sentido, “a forma mais pura de árabe é a dos beduínos, os quais preservaram com maior fidelidade do que quaisquer outros o modo de vida e a língua árabe originais.”5 Em português, o termo “árabe” é derivado diretamente do original ]z— (‘arab) que é um coletivo: os árabes. No caso do adjetivo, que para nós possui a mesma forma, no original sofre uma alteração para Á^z— (‘arabiy ). As derivações a partir dessa raiz englobam todos os termos afins como, por exemplo, “arabismo”, “arábico” e “arabizar”. O termo “hebreu” ¾z_— ( ‘ibriy ) deriva de uma raiz semelhante que se diferencia pela inversão da segunda com a terceira letra formando o verbo z_— (‘abara ) que significa atravessar, passar. A partir do séc. VII d.C / I H. com o surgimento do Islām, a aplicação do termo “árabe” começou a ganhar novas variantes. As conquistas que se sucederam logo após a morte do profeta Mu¬ammad, estenderam o império do norte da India ao sul da Espanha. Nesse primeiro período o califado esteve em poder dos árabes e, 4 5 Gênesis, X, 31-32. Cf. LEWIS, B. Os árabes na história, p.17. 15 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho mesmo com a rápida expansão que se verificou, o termo “árabe” ainda se aplicava somente aos que falavam a língua árabe e descendiam de algumas tribos árabes. No entanto, à medida que outros povos foram adotando a língua e a religião dos árabes como, por exemplo, os sírios e os egípcios, o termo “árabe”começou a migrar em direção a uma conotação mais próxima tanto do conceito religioso como do línguístico, pois, tanto a língua como a nova religião haviam sido geradas no seio do povo árabe. Como bem assinalou Lewis, “a partir do século VIII d.C / II H. o califado foi se transformando gradualmente de um império árabe num império islâmico”. O Califado Omíada que durou por pouco mais de 100 anos, desde o estabelecimento do Islām, esteve em poder dos árabes. Em meados do século VIII d.C. / II H. a hegemonia árabe sobre o império começou a se perder. Os Abássidas, de origem persa, assumiram o califado e transferiam a capital de Damasco para Bagdá. Nessa época os interesses do império já não eram mais exclusivamente árabes. Esse foi um marco importante no distanciamento entre os conceitos “’arabe” e “islâmico”. Não é difícil perceber que à medida que esse processo de transformação dos povos convertidos encontrava mais acolhida no termo “islâmico” do que no termo “árabe”, as discussões entre os dois conceitos se mantiveram acesas e chegaram até os dias atuais. Questões como “medicina árabe” ou “medicina islâmica” e, no nosso caso, “filosofia árabe” ou “filosofia islâmica” têm suas raízes nesse processo histórico de desenvolvimento do islamismo desde a península arábica até os limites de hoje. Atualmente, o termo “árabe” é aplicado num sentido mais genérico designando não somente os árabes que habitam a Arábia mas também os que habitam outros países tais como o Egito, Marrocos, Síria, Líbano e Iraque. Por outro lado os países árabes não designam a totalidade dos países islâmicos. Isso quer dizer que “árabe” e “islâmico” não são sinônimos, assim como “árabe”e “muçulmano” também não o são: há muçulmanos que não são árabes e árabes que não são muçulmanos. Nesse sentido, os árabes vêem a si mesmos como uma grande nação. Do mesmo modo que os países da Europa vêem a si mesmo como uma unidade, os árabes entendem ser uma nação nos limites daqueles que “falam a língua árabe e são sensíveis à memória da glória árabe passada”6 possuindo uma divisão apenas geográfica e política, que teve, entre outras causas, o próprio colonialismo europeu. 6 Cf. LEWIS, B. Os árabes na história, p.21. 16 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Na língua árabe, os termos “Islām”e “muçulmano” derivam de uma mesma raiz: conceitos ±¬ como (salima). A ideía geral aplicada a esta raiz engloba uma série de “paz”, “saúde”, “benevolência”, “integridade”, “proteção”, “resignação”, “hospitalidade” e outros tantos ligados a um ótimo sentimento. O termo ®Ø[ (Islām), derivando dessa raiz, se traduz no sentido de confiança em Deus, resignação a Deus, conformação a Deus ou submissão a Deus. A adjetivação desse termo resultou em ¾¯Ø[ (islāmiy) que se traduziu por “islâmico”. Logo, aquele que aceita o princípio contido no termo ®Ø[ ( Islām ) é um ±¬~¯ ( muslim ), termo que se traduz por “muçulmano”. Apesar de não haver uma regra rigorosa, o termo “islâmico” geralmente é usado no sentido das idéias e dos ideais contidos no Islām, ao passo que o termo “muçulmano” aplica-se com mais frequência à pessoa, ao sujeito concreto que pratica os ideais do Islām. Assim como do verbo ±¬— (‘alima ) – saber – se retira aquele que pratica o saber, isto é, o ±¬˜¯ (mu‘allim ) – professor –, do mesmo modo a prefixação “mu” indica, em ±¬~¯ (muslim) a noção do sujeito concreto. Por isso é mais comum encontrarmos “filosofia islâmica” e “filósofo muçulmano” e não o contrário, apesar de que, em casos como “mundo islâmico”, pode se encontrar também “mundo muçulmano”. No entanto o primeiro se mantém no sentido dos ideais do Islām e o segundo denota o conjunto dos sujeitos concretos. 1.5 Flosofia árabe ou filosofia islâmica? Definir o termo mais apropriado para designar o conjunto de manifestações da filosofia no período da falsafa esbarrou na variedade e na complexidade que lhe foram inerentes. Como seria possível reunir sob um mesmo nome as obras medievais escritas não só em língua árabe, mas também em persa e em hebraico; não só por muçulmanos, mas também por cristãos e por judeus ? Na década de 50, por ocasião do Congresso de Filosofia Medieval em Louvain, Georges Anawati, um nome respeitável no estudo da falsafa, patrocinou uma enquete para tentar fixar a denominação desse período da História da Filosofia. Se a quase sinonímia entre o 17 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho conceito “árabe” e o conceito “muçulmano” esteve quase sem restrições entre os medievais do Ocidente, a realidade do século XX se incomodou com essa situação. O próprio Anawati, iniciou a enquete sabendo que sua primeira opção não era definitiva: “Empregamos a expressão “filosofia árabe”, mas observamos imediatamente o perigo do exclusivismo que ela pode apresentar. Pensamos, em particular, nos nossos amigos iranianos, preocupados, com justiça, em salvaguardar os direitos de seu inestimável patrimônio filosófico.”7 A resposta do ministro iraniano ‘Ali Asghar Hekmat confirmou a negativa por parte dos iranianos, nos seguintes termos: “No que concerne a denominação “filosofia árabe”, este termo me parece inexato e estimo ser preferível (ý) “ filosofia muçulmana” que é, sem dúvida, mais apropriada e menos contestada.”8 M. Achena, tradutor de uma obra escrita em persa por Ibn S÷nā9, fez uma dupla crítica a esse impasse, dizendo: “Mesmo que nos resignássemos, por razões práticas ou outras, a uma tal escolha, o título de “filosofia árabe” e de “filosofia muçulmana” seriam assaz impróprios. Eles tem o incoveniente de dizer o que não devem dizer e de não dizer aquilo que devem dizer.”10 As principais justificativas em defesa de uma ou de outra posição foram publicadas por Anawati, ilustrando bem as dificuldades impostas numa decisão de consenso. Na mesma época Henry Corbin preparou a sua História da Filosofia Islâmica. A substituição do termo “muçulmano” pelo termo “islâmico” ganhou terreno nos anos seguintes. O projeto de Corbin pretendeu focalizar os autores islâmicos com ênfase na espiritualidade persa. Mesmo que, em princípio, parecesse mais consistente, o trabalho de Corbin deixou de fora autores cristãos e judeus que escreveram em árabe e que estavam em estreita ligação com o pensamento dos autores muçulmanos. Em defesa da denominação “filosofia islâmica” Corbin entendeu que o uso do termo “filosofia árabe” desde a Idade Média já não mais cabia nos dias atuais. Mesmo reconhecendo que o profeta Mu¬ammad era árabe, que a língua da revelação foi o árabe e que, ao 7 ANAWATI, G. Études de philosophie musulmane, p. 23. ANAWATI, G. Études de philosophie musulmane, p. 23. 9 AVICENNE, Le Livre de Science. Traduction du texte perse Danesh #ama par Mohammad Achena e Henri Massé . Paris: Les Belles Letres, 1986./ 10 ANAWATI, G. Études de philosophie musulmane, p. 24. 8 18 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho menos na base do islamismo, o elemento árabe foi preponderante, Corbin aludiu ao fato de que o termo “árabe”, teria se alterado profundamente, significando um conceito étnico, nacional e político preciso com o qual não coincidiriam totalmente o conceito religioso “Islām” nem mais os limites do seu universo. No outro extremo, numa posição preferencial pelo termo “filosofia árabe” destacou-se o argumento de T. Hussein que lembrava que a maior parte dos textos foi escrita em árabe. Além disso, segundo ele, a ortodoxia religiosa dos falāsifa foi fortemente contestada e seria um paradoxo qualificar de “muçulmana” ou “islâmica” uma filosofia que se chocou frontalmente a certos dogmas da religião. No mesmo sentido também encontrou-se o argumento de Schacht favorável ao termo “filosofia árabe” acompanhado pelo termo “ciência árabe”, o qual era aceito sem muitas restrições. Nesse caso levou-se em conta que a língua árabe foi o meio de expressão essencial no desenvolvimento verificado tanto na filosofia como na ciência. O próprio Anawati lembrava que a língua, não só do Alcorão, como do comércio e da cultura, foi o árabe, adotada por muitos povos dominados pelo Islām. No entanto, apesar dos esforços, a conclusão de Anawati foi desalentadora: “Os que tiveram a oportunidade de ler as respostas publicada para nossa enquete puderam se dar conta que, teoricamente, o problema colocado é insolúvel: não há conceito adequado que abrace ao mesmo tempo o ponto de vista linguístico e o ponto de vista religioso. (ý) Nós mesmos, com M. Gardet, tentando encontrar uma expressão sintética, “aberta” a todos os aspectos do problema, terminamos por chegar à fórmula: “filosofia medieval em terras do Islām” 11 Apesar de inovadora, a proposta não foi adotada com amplitude pela comunidade intelectual. Na década de 70, Badawi optou por lançar sua obra com a denominação de História da Filosofia no Islām, aproximando-se da sugestão de Anawati, mas não a reproduzindo totalmente. Nesse título, Badawi, sublinhava bem a diferença entre o sentido que se deveria entender por “filosofia islâmica” – compreendida como uma série de manifestações do pensamento, mesmo que não rigorosamente filosóficos – e o sentido de “filosofia no Islām” – entendida como a filosofia no sentido mais restrito das bases da filosofia grega – Na década de 80, Majid Fakhry – assim como Corbin, mas por razões diferentes – denominou sua obra de História da Filosofia Islâmica. Porém, o assunto 11 ANAWATI, G. Études de philosophie musulmane, p. 85. 19 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho não dava qualquer sinal de definição. No caso de Fakhry, as dificuldades se inverteram obrigando-o, no início de sua obra, a fazer um alerta ao leitor: “A filosofia islâmica é o produto de um processo intelectual complexo no qual sírios, árabes, persas, turcos, berberes e outros tomaram uma parte ativa. Porém, o elemento árabe é de tal modo preponderante que ela poderia, com todo o direito, ser nomeada filosofia árabe”.12 Apoiado no fato de que a língua que os autores escolheram para se expressar foi o árabe e de que a força de coesão que permitiu o desenvolvimento da filosofia e da ciência foi o árabe, Fahkry encerrou dizendo que “sem o claro interesse dos árabes pelo saber antigo, quase nenhum progresso intelectual teria sido feito ou mantido”13. Certamente, mesmo que a enquete de Anawati tenha sido bem intencionada para definir os termos, o seu resultado contemplou, antes de tudo, a aporia. Em todo o debate, observa-se que os critérios para nomear um determinado pensador, um determinado movimento ou o conjunto das manifestações do período medieval oriental foram quatro: o critério religioso, linguístico, geográfico ou étnico. Todos, por sua natureza, se mostraram excludentes ou insuficientes. O próprio Corbin ao não aceitar, por exemplo, a redução dos nascidos na Pérsia como inclusos no termo “árabe”, também deve ter imaginado não ser possível se reduzir todos os árabes ao termo “islâmico”. Apenas para que fique um exemplo, podemos citar o caso concreto de Ibn S÷nā que ilustra bem essa problemática. Nascido na região da antiga Pérsia, de fé muçulmana, a maior parte de sua obra foi escrita em árabe. Com referência a Ibn S÷nā, as três denominações podem, portanto, ser encontradas: filósofo persa, filósofo árabe e filósofo muçulmano. Certamente sempre se encontrará algum argumento para justificá-la: “filósofo persa” de nascimento, “filósofo árabe” pela língua e “filósofo muçulmano” pela religião. A opção por ouma ou outra denominação varia de acordo com a ênfase que os diversos autores entendem ser a mais adequada em cada caso particular. Desde que, fornecidas explicações que contrabalancem os outros critérios, isso não parece ofender o leitor. Dada a complexidade da questão, a única coisa que se desvia do bom senso é a tentativa de reduzir a denominação a um critério que prevaleça de modo absoluto sobre os outros. Outra opção que tem sido veiculada é o termo “filosofia em árabe”, privilegiando a língua em que foi escrita a maior parte da falsafa. Porém, essa opção 12 13 FAKHRY, M. Histoire de la philosophie islamique, p. 15. FAKHRY, M. Histoire de la philosophie islamique, p. 15. 20 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho também não consegue abarcar as obras escritas em persa, em siríaco e em hebraico que, em alguns, casos, foram fundamentais na história da falsafa. A opção pelo termo “a filosofia entre os árabes” não pode pretender ser definitiva. Mas, fazendo-se com que a falsafa figure “entre”os árabes indica-se, pois, com essa prestadia preposição, ser possível manter a presença do elemento de coesão que historicamente acompanhou praticamente todas as manifestações do Oriente medieval, sem excluir, ao mesmo tempo, nenhum outro elemento que ao longo do desenvolvimento histórico e filosófico ganhou mais destaque, quer tenha sido ele a própria religião islâmica, quer tenha sido a região da antiga Pérsia – atual Irã – , quer tenha sido uma outra língua que não o árabe, ou ainda um outro fator. E dadas, tais preeliminares, entendo-as como uma autorização para poder variar as denominações sem prejuízo de nenhuma e nem do leitor. 1.6 História do pensamento e história da filosofia Entre os séculos VIII e XII d.C. / II e VI H a filosofia começou a falar em árabe. Nas terras dominadas pelo Islām, a falsafa foi a continuadora da filosofia antiga. Por essa razão, em sentido estrito, é somente com o termo “falsafa” que é possível se referir à ocorrência da filosofia entre os árabes. Houve muitas outras manifestações do pensamento no mundo islâmico nesse mesmo período mas, pelo fato de seus princípios não estarem sob a mesma égide das demonstrações – propósito da filosofia –, torna-se incorreto designar todas elas pelo nome de “filosofia”. Na classificação das diversas manifestações do pensamento ocorridos no Islām, a falsafa pode muito bem ser caracterizada como sendo o período dos “filósofos helenizados”. Essa denominação, aliás, encontra-se na classificação de Corbin.. No caso de Fakhry e de Hernandez, o adjetivo “helenizado”não é usado para designar esses pensadores mantendo-se somente o termo “filósofo”. Badawi, por sua vez, denomina os falāsifa de “filósofos puros”. Em todos os casos parece certo que os autores julgam que o leitor tenha em mente a diferença entre a falsafa e as outras manifestações do pensamento no mundo islâmico. Em linhas gerais, a diferença entre pensamento e filosofia no mundo islâmico não encontra premissas diferentes das que aplicam-se ao caso mais geral. A primeira delas é a de que não se deve confundir pensamento com filosofia: em sentido estrito, toda filosofia é uma manifestação do 21 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho pensamento mas nem todo pensamento é filosofia. Vejamos alguns casos que ilustram essa questão. No primeiro deles, o termo “pensamento” pode ser usado num sentido mais abrangente, referindo-se a várias manifestações, como é observado, por exemplo, no título a História do Pensamento no Mundo Islâmico de Miguel Cruz Hernandez; ou ainda na opção de Carra de Vaux com o título Os Pensadores do Islām. A opção pelo termo mais genérico – “pensamento” – não cria maiores dificuldades para agrupar e classificar os autores segundo suas tendências e características: “pensamento teológico”, “pensamento espiritualista”, “pensamento místico” ou “pensamento filosófico”. Outro modo de encarar as diversas manifestações do pensamento no mundo islâmico é entender que esse conjunto seria a própria “filosofia islâmica”. Esse título é encontrado, por exemplo, nas obras de Fakhry e de Corbin. Nesse caso os autores entendem o termo “filosofia” num sentido amplo, assim como podemos dizer “filosofia hindu” ou “filosofia cristã”. Essa opção, contudo, naturalmente cria uma dificuldade para distinguir o sentido estrito do termo “filosofia” segundo a tradição da filosofia grega.. É por essa razão que Corbin optou em chamar os falāsifa – como AlKind÷, Al-Fārāb÷ e Ibn S÷nā – de “filósofos helenizados” para diferenciá-los de outros pensadores que, apesar de não poderem ser classificados, num sentido estrito, como “filósofos” poderiam, ainda assim, obter essa classificação segundo o significado mais amplo de “filosofia” adotado por Corbin. Outra opção é entender o termo “filosofia” no sentido mais estrito de acordo com a tradição grega. Nesse caso, “filosofia” possui um significado mais focal e não pode ser considerada ou dita de toda forma de manifestação do pensamento mas, ao contrário, é um caso específico e particular. É dessa maneira que Badawi entende “filosofia” quando escreve sua História da Filosofia no Islām. Nessa obra não são analisadas todas as manifestações de pensamento dentro do islamismo mas apenas as que seguem os princípios da filosofia em sentido estrito. Mesmo assim, Badawi divide sua obra em duas partes: à primeira concede o título de “filósofos teólogos” e à segunda, o de“filósofos puros” . Estes últimos são os falāsifa, e é nesse sentido que o termo “filósofo” é melhor aplicado. 22 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Se por uma lado, na classificação mais geral do termo “pensamento” podemos englobar todos os que se manifestaram de algum modo sobre as questões mais variadas a respeito do homem, do universo, da sociedade, da religião e das ciências naturais; por outro lado, na classificação mais restrita, o termo “filosofia” cabe somente à falsafa e aos falāsifa na medida em que seus representantes procuraram trilhar os caminhos do pensamento segundo a tradição da filosofia herdada da antiguidade, notadamente pelas vias estabelecidas por Platão e por Aristóteles. 1.7 Filosofia e teologia Sendo que a falsafa foi, em sentido estrito, a manifestação do pensamento filosófico no Islām, parece sensato procurar esboçar alguns limites que a diferencia de outras linhas de pensamento, também surgidas após o estabelecimento do Alcorão. Pode se especular que dentre as inúmeras posturas adotadas pelos homens diante de um texto sagrado, três parecem emergir com grande força: a teológica, a mística e a filosófica. No caso do Alcorão, não foi diferente. Se verificarmos com atenção as inúmeras manifestações do pensamento no Islām –adotando qualquer uma das divisões propostas pelos diversos autores da história do pensamento no mundo islâmico –, podemos agrupá-las segundo uma postura teológica, mística e filosófica. Por sinal, uma divisão semelhante (escolástica, teologia e mística) foi adotada por Carra de Vaux em sua obra14. Nesse caso, a teologia deve ser entendida no sentido moderno do termo que pauta seu desenvolvimento a partir da fé na revelação; a mística, no sentido da experiência interior com Deus, abandonando a razão para fundirse no divino; e a filosofia como ciência independente que busca, a partir da razão, o entendimento dos fenômenos. No Islām a teologia denominou-se ®Ø¨ (kalām); a mística é o »ÀŸ½‡ (¼ýfiya), isto é, o sufismo; e o entendimento pela demonstração lógica, é a »¬Ÿ (falsafa ). Entre as três há muitas diferenças. Como neste trabalho se pretende um olhar mais detido sobre a falsafa, não cabe, aqui, uma análise mais detida da teologia ou da mística pelo aprofundamento dos princípios do sufismo ou do kalām. Mas algumas indicações sumárias marcam alguns pontos fronteiriços entre essas posturas. Pelo fato 14 Cf. CARRA DE VAUX, Les penseurs de l’Islam. Paris: Paul Geuthner, 1921, vol. IV “A escolástica, a teologia e a mística. A música.” 23 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho de estarmos destacando aspectos dessemelhantes, talvez seja razoável observar que também existem pontos de contato mas que não serão tratados aqui. Se abrirmos um dicionário da língua portuguesa, veremos que, hoje em dia, o termo “teologia” é entendido como a “ciência da religião, do estudo sobre Deus e das coisas divinas à luz da revelação”.15 Assim, o termo “teologia”, em seu significado puramente religioso, é associado aos dogmas da fé e da reflexão feita a partir dos dados revelados por Deus nas escrituras sagradas. Os primeiros pensadores do início do cristianismo, por exemplo, usaram esse termo num sentido amplo, significando o estudo e a contemplação de Deus, sem fazer uma distinção mais rigorosa entre filosofia e teologia. Foi somente após Tomás de Aquino que se deu uma distinção mais precisa entre esses dois conceitos que, paulatinamente, se desenvolveram até chegar ao moderno sentido diviso como o conhecemos hoje em dia. No séc. XVII d.C. já se distinguia a “teologia natural” ou teodicéia da “teologia revelada”. Na primeira, a busca do conhecimento de Deus seria feita pelas vias da razão, somente com os limites da ordem da natureza, valendo-se apenas da argumentação silogística e sem recorrer à autoridade das escrituras. A “teologia revelada”, de outro modo, faria uso do princípio da fé na palavra revelada para conhecer a Deus. Tomás de Aquino faz referência a isso dizendo que “a sagrada doutrina é ciência porque parte dos princípios conhecidos através da luz de uma ciência superior, que é a ciência de Deus e dos bem aventurados.”16 A famosa díade razão e fé que se equilibrou durante o período medieval permitiu maior proximidade entre filosofia e teologia. No cristianismo, a filosofia, salva nos mosteiros, vinculou-se solidamente aos padres da igreja. Assim, talvez tenha parecido mais natural, nesse caso, que filosofia e teologia estivessem amalgamadas. A modernidade realizou a separação desses domínios e fez com que parecesse óbvio a qualquer estudante de hoje que filosofia não é teologia. No Islām não houve um paralelismo a esse respeito. Desde o início, o Islām viveu um quadro que distinguia a filosofia da teologia, isto é a falsafa do kalām. O termo ®Ø¨ ( kalām ) significa discurso, linguagem ou palavra. e o partidário do kalām foi denominado ±¬¨c¯ (mutakallim), isto é, “aquele que discursa” ou “aquele que fala”. Geralmente são citados pelo plural: ²½°¬§c° ( mutakallimun ). Logo após o estabelecimento do Alcorão, e mesmo antes das traduções das obras filosóficas gregas, 15 16 Cf. Grande dicionário Laroussse cultural da língua portuguesa. São Paulo: Abril, 1999, p.865. AQUINO, T. Suma de teologia. I.q.1,a 2 24 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho o kalām já era uma realidade no mundo islâmico. Uma de suas características foi ter aplicado o raciocínio e a argumentação filosófica aos dogmas do islamismo. Nesse sentido, a abordagem do kalām se aproximou bastante do sentido que damos ao termo “teologia” tomando por base a experiência do cristianismo. Ao se falar em teologia no Islām, é aos mutakallimun – e não aos falāsifa – que se encontram as referências. Desse modo, os representantes do kalām, enquanto se basearam na revelação, como ponto de partida para a reflexão filosófica, podem ser considerados os mais próximos dos pensadores cristãos dos primeiros séculos do cristianismo. Por isso, não é razoável estabelecer uma identidade entre a falsafa e o caráter da filosofia medieval cristã. A falsafa não tem precedente e não se confunde com nenhum outro movimento, seja no Oriente e, menos ainda, no Ocidente. Sua posição histórica é assaz peculiar e única. Apesar de se desenvolver num ambiente religioso manteve-se continuadora da filosofia antiga. A teologia ficou a cargo dos mutakallimun. Mesmo assim, os mutakallimun buscaram argumentar lógicamente a partir dos dados da revelação. Guardadas as devidas particularidades, assim como nossos manuais de “história da filosofia” figuram os padres da igreja cristã, os mutakallimun podem ser incluídos na “história da filosofia no Islam”. Isso está bem colocado por Badawi ao dividir sua obra em “filósofos puros” e “filósofos teólogos”. Os primeiros são os falāsifa pois prescindem dos dados da fé para argumentar e os segundos são os mutakallimun que se utilizam dos argumentos lógicos para justificar o que é sabido pela revelação. Diz Badawi: “quem diz filosofia diz pensamento essencialmente racional. Assim, nos limitamos ao estudo dos sistemas racionalistas, tanto em teologia especulativa como em filosofia pura” 17ou seja, tanto no kalām como na falsafa. Um dos exemplos dessa distinção é que as vias da razão levaram, muitas vezes, Al-Fārāb÷, Ibn S÷nā e o próprio Ibn Ru¹d a construírem sistemas que se confrontaram com os dogmas da religião. Por essas razões é que a falsafa não é teologia islâmica e se mantém fiel à tradição da filosofia herdada dos antigos. Vale lembrar, porém, que os próprios falāsifa também usaram o termo “teologia” mas não no sentido da religião e sim no mesmo sentido filosófico usado por Aristóteles séculos antes. Sabe-se que o próprio Aristóteles em sua Metafísica não usou o termo “metafísica” para designar os estudos sobre a causa primeira mas a denominou de θεολογια (teologia) “teologia” ou πρωτη φιλοσοφια (prote filosofia) “filosofia 17 BADAWI, A. Histoire de la Philosophie Islamique, p.5. 25 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho primeira”. Essa ciência deveria se ocupar do estudo do ser enquanto ser e da substância eterna e separada, isto é, Deus pois “a mais divina das ciências é também a mais nobre; e esta, ela só, é de duas maneiras a mais divina. Com efeito, a ciência que mais conviria a Deus possuir é uma ciência divina, e também o é aquela que trata de coisas divinas.”18 O termo “metafísica” teria sido, na verdade, o nome dado por Andrônico de Rodes no século I a.C quando organizava os livros de Aristóteles. Como esses livros haviam sido colocados após os oito livros da Física, chamou-se-lhes τα µετα τα φυσιχα (tá metá tá phisicá) que significa “os que estão depois da física”. Geralmente considera-se que o nome, a princípio de caráter classificatório, acabou servindo adequadamente ao estudo que se debruçava sobre as coisas que transcendem o mundo da natureza. Teria sido a partir dessa classificação de Rodes que os termos “teologia”, “filosofia primeira” e “metafísica” foram tomados praticamente como sinônimos, o que ocorreu também entre os falāsifa. Na língua árabe, podemos encontrar tanto o termo “teologia” como o termo “metafísica”, ora simplesmente transliterado, (como no caso de “filosofia” para “falsafa” ) ou como uma construção linguística que corresponde à idèia original grega. O primeiro é o caso, por exemplo da tradução para o árabe do apócrifo chamado Teologia de Aristóteles. Essa obra, que nos ocuparemos mais adiante, foi traduzida por À«\\y[ \Àk½«½f[ (Atýlýjiya ArisÐāÐāl÷s ) “Teologia de Aristóteles”. No segundo caso, encontramos, por exemplo, em Ibn S÷nā o termo árabe ¾¸«[ ±¬— ( ‘ilm ilahiy ) “ciência divina” em conformidade com a formação do termo grego θεολογια (teologia) “teologia”, ou seja, θεοσ (teos) “deus” e λογοσ (logos) “estudo”. Do mesmo modo ele a denomina Å«¼[ »¬Ÿ ( falsafat-al’ýla ) “filosofia primeira”. Esses dois termos – “teologia” e “ciência divina” – são usados, assim como para Aristóteles, como sinônimo de “metafísica” que no árabe guarda exatamente o sentido original do grego τα µετα τα φυσιχα (tá metá tá phisicá) “o que está depois da física” e se encontra do seguinte modo: »˜À_«[ v˜^ \° (mā ba‘d aÐÐabiy‘at) “o que está depois da física”. No segundo livro da Metafísica, Ibn S÷nā assim se refere a essa ciência: “Ela é chamada filosofia primeira porque é a ciência das primeiras das coisas na existência (ý) é igualmente a sabedoria que é a ciência mais nobre concernente ao 18 ARISTÓTELES, Metafísica. Porto Alegre: Ed. Globo, p. 40. 983a-5. 26 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho objeto de conhecimento mais excelente. Pois ela é a melhor ciência, isto é, a certeza, em vista do objeto cognoscível mais nobre que é Deus, que Ele seja exaltado, e das causas que vem depois dele. É também o conhecimento supremo das causas do todo. É também o conhecimento de Deus e é por isso que ela é definida como a ciência divina”19 1.8 Filosofia e mística Assim como os filósofos, também os místicos já existiam antes do Islām. E, assim como o Islām nascente, por um lado, absorveu os métodos e os objetivos da filosofia, por outro lado, também absorveu as práticas e o subjetivismo da mística. Seguindo o mesmo adágio de recepção, adaptação e desenvolvimento, as inúmeras manifestações do pensamento no interior do Islām tiveram a contribuição de inúmeras doutrinas que haviam se desenvolvido em outras culturas e em outras religiões que lhe eram anteriores. No sufismo, algumas correntes místicas do cristianismo, elementos do hinduísmo e do budismo contribuíram para a sua formação. Como bem assinala Chevalier, o sufismo “se desenvolveu em regiões cristianizadas e helenizadas, possuindo também a inclinação para o conhecimento, como certos filósofos, místicos e ascetas desses lugares. No entanto, não de qualquer conhecimento, mas acima de tudo, do conhecimento de Deus.”20 Os movimentos de ascese propostos pelo sufismo tem proximidade com a doutrina do Uno plotiniano que já havia se desenvolvido séculos antes através dos gnósticos da Escola de Alexandria. Vale lembrar que o termo “mística” já se encontra nas obras do chamado pseudo-Dionísio do séc. V d.C no sentido de mostrar a impossibilidade da alma humana em poder conhecer a Deus através do intelecto. Tal impossibilidade manifestar-se-ia na denominação de Deus a partir da negação de atributos (teologia negativa) como, por exemplo, Deus in-finito, in-efável, etc. Paralelamente a essa impossibilidade, insistiu-se numa relação originária, íntima e pessoal entre o homem e Deus, em virtude da qual o homem pode retornar a Deus e unir-se finalmente a Ele num ato supremo. Esse seria o êxtase supremo, que o pseudoDionísio considerou a deificação do homem. De modo geral, esse pareceu ser o 19 20 AVICENNE La métaphysique du Shifa’, p. 95. CHEVALIER, J. El sufismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1998, p.11. 27 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho esquema geral de muitas doutrinas místicas que, em certa medida, foi extraída pelo pseudo-Dionísio dos textos neoplatônicos. Além disso, o sufismo, ao penetrar na Pérsia, parece ter absorvido, também, influências do zoroastrismo. Por essas razões, não é demais dizer que as origens do sufismo se perdem e, ao mesmo tempo, se encontram em tradições místicas anteriores ao Islam. De todo modo, no séc. VIII d.C / II H. a mística islâmica já havia absorvido esses elementos a ponto de criar a sua própria face esotérica e os místicos muçulmanos, nesse período, já eram designados pelo termo “sýfi ”. A partir do séc. XI d.C./VI H. os preceitos do sufismo foram se intitucionalizando e os níveis de conhecimento ascético foram organizados segundo uma hierarquia de graus e ritos – aos moldes dos círculos esotéricos – perdurando até os dias de hoje. É por essa razão que Robert Graves afirma que, atualmente, o sufismo seria atualmente como “uma antiga maçonaria espiritual (ý) [em que] os sufis sentem-se à vontade em todas as religiões e, exatamente como os ‘pedreiros livres e aceitos’, abrem diante de si, em sua loja, qualquer livro sagrado – seja a Bíblia, seja o Alcorão, seja a Torá – aceito pelo Estado temporal.”21 Uma das interpretações para o significado do termo “sufi” é a de que ele designaria o manto de lã grossa, bem simples, usado pelos primeiros ascetas. Essa interpretação se origina na palavra árabe ā½ˆ (¼ýf) que significa “lã” e na formação de seu respectivo adjetivo “de lã”, ou seja, ÁŸ½ˆ (¼ýfiy ). Porém, não há acordo a esse respeito. Outras interpretações buscam, por exemplo, uma analogia do termo “sufi”com o termo grego “sofos” fazendo-o se aproximar de “sabedoria” ou ainda, como uma derivação da palavra árabe Æ\Ÿ‡ ( ¼afā’ ) que significa “pureza”. Mesmo que não haja um consenso quanto à origem precisa do termo “sufi”, parece ser concórdia que essas qualidades são intrínsecas ao sufismo: o desapego, a sabedoria e a pureza. Seguir adiante na definição do que é o sufismo parece ser uma tarefa para desavisados que desconhecem a própria doutrina sufi. Em seu prefácio, Idries Shah alerta: “Não é por acaso que a “doutrina secreta”, cuja existência tem sido suspeitada e procurada há tanto tempo, se revela tão esquiva ao pesquisador.(ý) Não se chega ao sufismo, à “tradição secreta”, tomando 21 SHAH, I. Os sufis. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 7. 28 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho por base suposições pertencentes a outro mundo, o mundo do intelecto. Se sentirmos que só podemos procurar a verdade do fato extrafísico por meio de certo modo de pensar, o meio racional e “científico”, não pode haver contato entre o sufi e o pesquisador supostamente objetivo.”22 Após tal alerta, para não se cair em contradição, deve se calar e entender que o sufismo é uma prática que necessita, a partir de um certo ponto, da presença de um mestre e, por essa razão, não seria razoável avançar na linguagem para querer definí-la. No entanto, a recíproca parece não valer, pois é curioso que o próprio Shah possua uma obra vastíssima para divulgar o sufismo se valendo da razão, da objetividade e da lógica da linguagem para isso. Mas, que não haja engano, pois essa aparente contradição também parece agradar alguns sufis. De todo modo, estes são pontos que indicam o grande afastamento no trato da lógica e da linguagem entre a mística do sufismo e a filosofia da falsafa. Mesmo quando encontramos algumas referências sufis a alguns dos falāsifa mais orientais como, por exemplo, Al-Fārāb÷ e Ibn S÷nā, estas, certamente, se referem a algum aspecto de sua conduta e não propriamente às suas obras filosóficas, pois nestas todo movimento da alma humana é feito pelas vias do intelecto e passíveis de entendimento. Não admitindo sua definição fora da própria vivência do místico, fica bem certo que o sufismo não pretende ser uma especulação filosófica ou teológica a respeito da divindade aos moldes da falsafa ou do kalām. O seu foco não é a demonstração, mas, sim, a experiência. É nesse sentido, isto é, por se encontrar melhor como uma experiência interna com a divindade que se reflete no modo de viver e de se comportar do homem sufi, que Ibn ‘Abdallah Tustari disse que:“o sufi é aquele que é puro de tudo o que o perturba, que é cheio de meditação, que se retirou dos homens para se consagrar a Deus, e para quem o ouro e a argila são equivalentes.”23 Juntamente com essa bela frase, poderíamos preencher muitas páginas de infindos adornos poéticos do mesmo quilate e, quase sempre, encontraríamos a beleza e a poesia nas palavras sufis. Afinal, essa é uma de suas mais marcantes características. E talvez, até pelo fato de ser mais poesia do que demonstração lógica, é que o sufismo é mística e a falsafa é filosofia. É importante notar que o objetivo do sufismo, não sendo a especulação racional e a demonstração pela lógica, é mais um convite à experiência do êxtase na união com Deus. 22 23 SHAH, I. Os sufis, p. 23. KIELCE, A. O sufismo. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 15. 29 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Inúmeras passagens do texto sagrado dos muçulmanos lidas pelo sufismo, no sentido da experiência mística colocam, por um lado, o sentido exotérico do texto revelado no Alcorão, expresso pela lei exterior que organiza e determina os direitos e deveres do muçulmano e, por outro lado, o sentido esotérico que mostra o caminho para o místico se unir à realidade divina, cumprindo a realização última, “aniquilar-se nela”.24 Em busca do êxtase místico, da união com Deus, o homem necessita se desvencilhar dos obstáculos que seus próprios limites humanos lhe impõem. Ali Shah traduz isto do seguinte modo: “Nessa união, tão grande é a influência do Espírito Eterno que o julgamento humano – aquilo que podemos descrever como a faculdade lógica do homem, seu entendimento – é inteiramente apagado e destruído por Ele.” 25 Comparada com a passagem de Platão na Carta VII, o método e objetivo da filosofia, adotada pela falsafa, a distância fica mais evidente: “Só quando esfregarmos uns nos outros, nomes, definições, percepções de vista e impressões dos sentidos, quando se discutir em discussões atentas, onde a inveja não dite nem as perguntas nem as respostas, é que, sobre o objeto estudado, vem incidir a luz da sabedoria e da inteligência com toda a intensidade que podem suportar as forças humanas.”26 Nessa medida, pode se entender que os limites fronteiriços entre a falsafa e o sufismo são praticamente os limites entre a filosofia e a mística. Levadas ao extremo, as vias de acesso ao conhecimento propostas por essas duas manifestações do pensamento têm mais diferenças do que semelhanças. No entanto, isso não impede que, em determinados autores, haja uma interpenetração das duas posturas. Afinal, parecem ser, os homens, mais complexos do que os conceitos. 24 KIELCE, A. O sufismo, p. 9. ALI SHAH, S.I. Princípios gerais do sufismo. São Paulo: Attar, 1987, p. 25. 26 PLATÃO, Cartas Lisboa: Estampa, 1989, p.77. 25 30 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho 2 – UM TAQUINHO DE UMA HISTÓRIA DA FILOSOFIA 2.1 ...e, afinal, onde estamos? Contextualizar a falsafa no interior da história da filosofia tem menos um viés didático do que uma necessidade natural da própria contextualização como exigência do entendimento. É muito grande o auxílio que nos prestam as coordenadas espacial, temporal, histórica e especulativa: onde, quando, o que e por que acontece? Mais ricos ficamos quando seguimos o adágio de que não é possível abordar a filosofia desvinculada da história e, esta, desvinculada do homem e, este, desvinculado do universo. Mesmo que profetizasse, ninguém pensou fora do seu tempo histórico, do seu espaço geográfico e do cenário das idéias que o cercava . Por essas razões, também, vale perguntar: afinal, de que mundo, de que época e de que espaço falou a falsafa ? E de onde falam, hoje, os historiadores da filosofia ? O antigo provérbio que diz: “quem não sabe o que é o mundo não sabe onde está” aponta para uma necessidade inerente ao ser humano: localizar-se. Mesmo que tal localização seja precária, equivocada, e que se altere ao longo do tempo; mesmo que seus paradigmas sejam fluidos; ainda assim, o homem parece querer sempre, e antes de tudo, localizar-se. Durante uma boa conversa com um antigo mestre, o tema da localização se transformou numa pequena viagem e se mostrou não só uma exigência analítica mas, também, um grande prazer existencial, sem o qual parece não haver filosofia. Naquela época, já quase cego dos olhos do rosto e quase surdo dos ouvidos da cabeça, me disse: “– Sabe, ‘seo’ Miguel, antigamente bastava ao homem saber que estava sobre um pedaço de terra. Bastava-lhe saber que o sol se levantava... e depois se deitava... que a chuva caía, que o rio transbordava e que o alimento crescia na terra... naquele pequenino pedaço de terra... isso, apenas isso, era a sua localização... e lhe bastava...como o nosso, o seu mundo girava, mas o fazia apenas ao redor de poucos alqueires, de poucos dias, de poucas luas... isso lhe bastava... quando nasciam as crianças, assim nasciam... e quando morriam os homens, assim morriam... não muito mais do que isso... não muito mais...” “Hoje, isso não mais nos basta... nossa necessidade de localização, ancestral, talvez se pareça com a dos nossos antepassados, mas aquelas respostas já não 31 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho nos satisfazem... precisamos demais e de mais localização... onde estamos.. ? ou, melhor, até onde podemos responder, mesmo que não seja verdade, o nosso “onde estamos”..? Hoje meus pés já não mais pisam a terra... debaixo deles está um tapete... e, em princípio, me bastaria – e assim basta para tantos – saber que se está em cima de um tapete. Se eu não fosse filósofo, a certeza de estar sobre ele também me bastaria... pois a certeza me tranqüiliza... mas como é a dúvida que me movimenta, e me atormenta, eu me pergunto: ora, mas o que sustenta o tapete que me sustenta ..? assim, avanço minha localização além dele... sobre uma laje... sobre uma viga... sobre uma fundação... tudo enfiado numa terra... ah ! a terra... que bom ... ainda há uma terra...parece que avançamos, porém nem tanto...” “Mas, insisto em ampliar minha localização espacial e sou capaz de saber que a bola que habitamos no espaço possui um diâmetro de aproximadamente 12.000 Km e circunferência equatorial por volta de 40.000 Km: uma dentre outras nove esferas girando ao redor da nossa estrela-mãe, o Sol. É daqui que falamos... para onde será que vão minhas palavras..? bem, a Terra não é o maior dos planetas do nosso sistema. Júpiter é o maior e tem aproximadamente 10 vezes o diâmetro da Terra. O do Sol chega a 1.391.704 Km. Foi-se o tempo em que nosso ego se inflava por pensarmos ser o umbigo do mundo... no céu há muitas estrelas e as estrelas do céu são companheiras do nosso sol, algumas maiores, outras menores: todas girando ao redor do centro da nossa galáxia, a Via Láctea. A estrela Antares, alfa da constelação de Escorpião, é aproximadamente 300 vezes maior do que o sol, 30.000 vezes maior do que a Terra... puxa! fico pensando...qual será o tamanho do meu pensamento..? ” “Me disseram que há mais de cento e cinqüenta bilhões de estrelas na nossa galáxia... e, sabe de uma coisa?... sequer nos foi dado o privilégio de estar no centro da nossa, estamos na periferia, num dos braços, quase caindo... é daqui que falamos, isso é bom lembrar...A Via-Láctea, com seus cento e cinqüenta bilhões de estrelas é uma dentre dezenas, centenas, milhares, infindáveis outras galáxias... algumas maiores, outras menores do que a nossa... o universo é vasto... qual será o tamanho do meu espírito ..? ” “Não sabemos quantas galáxias existem , apenas sabemos que se afastam... se afastam... e se afastam... às vezes me sinto só... dependendo da massa contida no universo, dizem os cientistas, este universo talvez se expanda até esfriar e morrer ou, talvez, se volte para o centro e se contraia e inicie novamente uma 32 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho expansão... não sabemos ainda... é daqui que falamos, sempre foi... disso é bom lembrar ...” “Alguns estudiosos defendem a idéia de que essa expansão teve um início com data e hora marcadas, em que toda a matéria de todas as galáxias estaria reunida num espaço ínfimo, menor que a cabeça de um alfinete... Depois, uma grande explosão: booom ! big-bang. Será que ainda somos capazes de ouvir esse barulho?... será que alguém me ouve?... estou quase surdo... que bom... ainda ouço o momento da criação... e você ..? ” “Mas a natureza da Natureza é curiosa. Veja só isto: a luz das estrelas para chegar até nós precisa percorrer um certo espaço, Para isso, leva um determinado tempo. A luz do sol, por exemplo, leva aproximadamente oito minutos para chegar até nós. Portanto, se o sol sumisse do céu, só saberíamos disso oito minutos depois... e, eu, que mal sabia que tomava sol atrasado?...a natureza brinca.... um outro caso mais longínquo é o da galáxia Andrômeda, nossa vizinha mais próxima, que está a uma distância aproximada de 2.3 milhões de anos-luz. Lembro de minha admiração quando vi a imagem de Andrômeda e soube que aquilo era, na verdade, sua imagem de 2.3 milhões de anos atrás, tempo em que homens e macacos talvez conversassem sobre bananas... fiquei admirado... a natureza é quase mágica... curioso... e eu querendo ir ao limite da minha localização no espaço, encontrei-me, surpreendentemente com o relógio do tempo !” “Quanto mais nos distanciamos no espaço mais para trás nós vamos no tempo e, no limite, há uma distância de mais de 12 bilhões de anos-luz, nos defrontamos com os ruídos da criação desse nosso universo... quasares... os mais distantes que nossos olhos e ouvidos científicos podem enxergar... talvez remanescentes do big-bang. Especula-se que este universo seja apenas um dentre outros. A que lugar nos levam os buracos negros..? talvez a outros universos... mas ‘seo’ Miguel isso é só uma estória que estou contando... pode não ser assim... mas é assim que nos localizamos... é daqui que falamos, disso é bom lembrar...” “Agora, imagine que pudéssemos recolher tudo que eu acabei de dizer: galáxias, andrômedas, quasares, sóis, nuvens de gás, planetas, terras, vigas, lajes, tapetes, nós, tudo, tudo. Coloquemos isso tudo num espaço minúsculo, menor que a pinta das costas de uma joaninha. A partir daí, há mais de 12 bilhões de anos atrás, estaria acionado o relógio do tempo: tic-tac... tic-tac... A matéria, então compactada, 33 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho teria iniciado sua expansão. Composta quase exclusivamente de hidrogênio, essa matéria primordial teria formado nuvens de gás que, por sua vez teriam gerado as estrelas. A matéria excedente das estrelas teria formado os planetas e seus satélites. Foi nessa dança universal que o nosso sistema solar teria se formado, há aproximadamente 4.6 bilhões de anos e a nossa Terra, teria ganho sua crosta terrestre por volta de 3 bilhões de anos passados.” “Depois, as águas se precipitaram sobre a superfície e, por volta de 1 bilhão de anos atrás, surgiram as algas azuis, uma das primeiras formas de vida. Aceitando-se os princípios da evolução e da seleção natural, a partir delas ter-se-iam originado todas as outras formas de vida que habitaram a Terra. Inclusive nós... estamos indo muito rápido, não é mesmo?... ora, mas qual será a velocidade real de todas essas mudanças... será que há uma velocidade real ?... ora, ora, perguntas não faltam... mas voltemos ao itinerário marcado pelos cientistas: plantas, primeiros peixes e os anfíbios... a natureza expandiu a vida ..! “ “Não perca a conta: há aproximadamente 350 milhões de anos surgiram os primeiros répteis que, depois de terem habitado por milhões de anos a Terra, acabaram desaparecendo... Por volta de 70 milhões de anos, expandiram-se os mamíferos e, depois, surgiram os primeiros primatas. Puxa... passaram-se mais de 11 bilhões de anos para que surgisse algum parente... é daqui que falamos, disso é bom lembrar... um dos nossos ancestrais mais longínquo é o Ramapithecus, há treze milhões de anos. Muitas de suas ramificações não conseguiram vencer na luta pela sobrevivência. O nosso parente mais próximo – homo sapiens – é um “jovenzinho” de 500 mil anos. Engraçado... nossa localização temporal é formada de um imenso tempo sem nós... não saberia ir além disso...o calendário cósmico de Sagan mostrou bem nossa posição... é desse tempo que falamos... somos recém chegados... quando tempo será que dura o meu pensamento ..? ” “Mas, por que o homem pensou ?.... pouco se sabe... o que se especula é que o homem, assim como os outros animais, deveria estar até o pescoço na luta pela sobrevivência reunido em bandos para caça e pesca. Mas num dado momento, as circunstâncias e a compleição desse animal-homem teriam se combinado de tal modo que ele se diferenciou dos demais. Como ? Talvez nunca saibamos... acho mesmo que não saberemos... podemos, por enquanto, só imaginar... talvez sempre imaginar... o que é certo é que esse homem pensou e, pensando, saiu da imediatidade da natureza.” 34 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho “No novo momento de sua existência, temendo os trovões, os raios e a morte, esse mesmo homem levou sacrifícios às forças da natureza, desconhecidas... ajoelhou, rezou... e, nesse momento, esse homem se tornou um ser religioso... mas foi num outro instante, só quando esse mesmo homem, depois de pensar, depois de mitologizar a natureza, depois de se curvar diante dos deuses que ele mesmo criara, perguntou-se: “...mas por que?... por que os deuses?.. por que a natureza?... por que o mundo?.. o que é, afinal, isso tudo? O que é, afinal, esse céu que circunda e essa água?.. o que são as estrelas, a terra, essa gente toda ?... o que sou eu, afinal? ...” Nesse instante o homem filosofou...e filosofou porque pensou sobre aquilo que já havia pensado. Pensou em segundo grau se é que isso é possível. E talvez tenha sido esta, a pergunta, a maior das revoluções na história do homem... a pergunta... sistemática... incansável e duradoura pergunta...” “A prova disso é que hoje, depois de milhares e milhares de anos, ainda existem homens que, ora sozinhos, ora em grupo, ainda se perguntam: mas, afinal, o que são estas estrelas?.. o que são as galáxias?.. o que são os planetas?.. o que é a terra?.. o que é o pensamento?..afinal, o que sou eu?.. o que somos nós?.. e o que fazemos aqui, em cima desse tapete?...” 2.2 Divisões na História. Filosofia e história andam juntas. Ibn åaldýn, no século XIV d.C./VIII H., após considerar que a história em seu aspecto exterior poderia parecer meramente uma série de registros que marcaram o curso de épocas e civilizações da antiguidade, adiantou que, pelo fato de a história possuir caracteres intrínsecos como, por exemplo, o exame e a verificação dos fatos e a investigação atenta das causas e da natureza dos acontecimentos históricos, ela – a história –, “forma um ramo importante da filosofia e merece ser contada no número de suas ciências.”27 E por ser mais completo falar de uma com o auxílio da outra, importa indicar, por mais suscinto que seja, a sobreposição da História da Filosofia na própria História com o intuito de contextualizar a falsafa em ambas. Ainda que haja nisso o inconveniente da repetição de temas conhecidos para o estudante mais acostumado ao cenário histórico, que prevaleça a condição do iniciante. Comecemos pela História. 27 JALDUN, IBN. Introducción a la historia universal. México: Fondo de Cultura Economica, 1997, p.92. 35 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Enquanto este livro está sendo escrito, o Brasil comemora 500 anos de descobrimento. Nunca a nossa história fora tão contada, de muitos modos. Aquela velha história que se aprendia no ginásio parece, hoje, quase um engodo e nos faz sentirmos vitimados pelo olhar positivista e eurocêntrico, notadamente do século XIX. Esse mesmo olhar que, até há pouco, foi seguido como paradigma por grande parte dos historiadores. Mesmo assim, as mudanças no contar a história, também, já eram uma idéia existente no século passado. Vejamos um comentário a respeito do verbete “história”em um dicionário do ano de 1873 28. “A história muda de aspecto a cada geração. O século XIX não teve da história a idéia que dela teve o século XVIII e, este, não teve a idéia que dela tiveram os séculos precedentes. Cada época a estuda sob o ponto de vista que lhe preocupa. O objeto material da história, isto é, o conhecimento dos fatos, muda também segundo os tempos, por causa da incerteza inerente aos dados do testemunho humano.” Dos relatos de viagens de Heródoto (484/420 a.C.) até os dias de hoje, muitas foram as abordagens a respeito da história. De cíclica e circular, decadente ou apologística, as visões sobre a história, por se modificarem, modificam sua própria compreensão. Na experiência de contar sua própria história, o homem tem revisto o modo como a contou e a conta. Grande parte das alterações de enfoque deve-se, muitas vezes, menos à novas descobertas do que a uma mudança no olhar sobre os mesmos fatos. No horizonte das mudanças do enfoque do historiador do século XXI, as mudanças enfatizam, entre outras coisas, a inclusão de elementos esquecidos ou negligenciados. Surgem novas abordagens sobre temas que pareciam petrificados. Essa nova direção pode ser sentida numa passagem contemporânea de Dominique Vallaud : “Há não mais de meio século é que a História saiu do quadro estreito no qual a escola positivista a havia trancado, e se abriu aos fenômenos sociais e aos fatos de civilização. Além disso, os progressos fulminantes da comunicação, conjugados à descolonização, a fizeram sair de seu eurocentrismo. A História não é mais somente a do baixo mediterrâneo e da Europa ocidental, mas igualmente a da África, da América pré-colombiana, do Extremo Oriente. Ela tem a vocação para abraçar o conjunto do passado da humanidade e, aliás, os programas 28 LARROUSSE, M. Grand dicctionaire universal universel du XIX siècle. Paris, 1873, p. 301. 36 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho das escolas tem progressivamente dado o justo lugar a essa nova visão.”29 Não causa surpresa, pois, que a partir desse espírito renovador da ciência da História, enquanto, hoje, após 500 anos, se procura uma nova história na História do Brasil, ao mesmo tempo, no âmbito da História Universal, também se procure uma outra história no interior da idade mais hostilizada da História: a Idade Média. Não é demais lembrar que foi a partir da proposta entabulada por um pedagogo alemão do séc. XVII d.C. Cristoph Keller – em latim Cellarius (1638/ 1707 d.C.) – que se consagrou a divisão da História em antiga, medieval e moderna. Essa divisão, com pequenas modificações e o acréscimo da datação da revolução francesa, permaneceu como sendo a mais usada. A Idade Antiga iniciando-se com o surgimento da escrita há, pelo menos 4.000 a.C., e terminando com a tomada de Roma em 476 d.C. pelo chefe germânico Odoacro; a Idade Média compreendida entre o período de 476 d.C. até a queda de Constantinopla em 1453 d.C., pelas mãos dos turcos; e a Idade Moderna, de 1453 d.C. até a Revolução Francesa em 1789 d.C, a partir de quando se inicia, então, a Idade Contemporânea. É notório que o estabelecimento dessa divisão privilegiou dois pontos, um em cada extremidade, considerados pelos homens dos séculos das luzes como os mais significativos: a antiguidade e a modernidade. Ao se denominar os mil anos que separavam esses dois extremos de idade “média”, a impressão que se tem é, que por si só, essa idade, sendo “média”, não se definiria de modo positivo mas apenas figurava como coadjuvante das outras duas. Em outras palavras, ela existiria, ou em função de uma antiguidade que esperava ansiosa para ser revivida pelo renascimento da Europa, ou então em função de uma modernidade que dela – Idade Média –, fez seu alvo crítico preferido. De todo modo, não seria necessário especular muito para concluir que essa impressão é preconceituosa. Parece que o próprio Cellarius, voz de sua época, se encarregou disso: ao fixar essa divisão “fixou também a idéia de que este período intermediário entre a antiguidade e a época moderna nada produziu de importante. Foi um período não só estéril, mas de retrocesso: a idade das trevas.”30 Não valeria a pena, aqui, desfilar as inúmeras desqualificações que partiram da modernidade em direção aos medievais. De todo modo, é preciso ressaltar que os efeitos dessas críticas ecoaram por muito tempo: “afirmações historicamente falsas, mas suficientes para impor um 29 30 VALLAUD, D. Dictionnaire historique. Paris: ed. Librarie Arthème Fayard, 1995, p.7. NASCIMENTO, C.A. filosofia medieval, São Paulo: ed. Brasiliense, 1992, p.9. 37 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho cenário de catástrofe do qual as eras posteriores se abastecerão até o início do século XX. ”31 Um comentário do Prof. Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento sintetiza bem a estupefação natural a qualquer mente de bom senso a respeito das dificuldades que tal divisão arbitrária e a desconsideração do período medieval como um momento igualmente rico da história proporcionou: “Tanto a periodização da história ocidental em antiga, medieval e moderna como a interpretação negativa do período medieval foram e são objeto de profundas críticas. Não há nenhuma razão evidente para privilegiar como marcos de início e fim as datas de 476 e 1453. Não é também nada claro que os mil anos compreendidos entre estas datas constituam um único período. Além disso, nada mais estranho do que supor que a humanidade tenha sido vítima durante tão longo tempo de uma irreparável estupidez e, repentinamente, se tenha curado da doença com o renascimento do séc. XV d.C. (!)”32 Pensar a história a partir dessa divisão, isolando a Idade Média das luzes da humanidade certamente encontra muitas dificuldades quando se pensa, sobretudo, na ciência e na filosofia desenvolvidas no mundo árabe medieval. Esse hiato criou inúmeros obstáculos para o estabelecimento de uma cadência contínua dos acontecimentos e das transmissões e recepções entre a ciência antiga, medieval e moderna. Ao se entender a história como algo que se caracteriza, entre outras coisas, por sua ininterrupta continuidade, torna-se difícil reestabelecer essa mesma continuidade depois que se passa tantos anos aprendendo a história por divisões de épocas, eras, idades e períodos. Se é certo que um continente não conhece os traços que o divide em vários países, assim também a história, em sua contínua caminhada, não poderia conhecer as divisões que a ela atribuímos.A falsa impressão de uma interrupção medieval compromete os fios que tecem a história. Não é sem propósito que, para compreender melhor a trajetória humana , seria melhor entoarmos em coro com De Libera que, numa tentativa extrema de mudar a nossa lente a esse respeito, diz: “a primeira coisa que um estudante deve aprender ao abordar a Idade Média é que a Idade Média não existe.(!) ”33 Segundo De Libera, o fato de a Idade Média estar circunscrita entre o nascimento e morte da romanidade deveria ser fator suficiente para que ao menos 31 DE LIBERA, A. A filosofia medieval. São Paulo: Ed. Loyola: 1998, p. 12. NASCIMENTO, C.A. filosofia medieval, p.9. 33 DE LIBERA,A. A filosofia medieval, p.7. 32 38 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Constantinopla –a Roma do oriente – figurasse como um dos pilares sobre os quais se apoiaria uma visão não de trevas, mas de luzes no período medieval. Isso sem falar na contribuição dos árabes, a partir do séc. VIII d.C. Porém, isso não acontece de modo razoável e as razões dessa discrepância, para ele, se devem ao fato de que “no fundo, a visão de Idade Média confunde-se com o que é chamado ocidente cristão, ela está nele centrada, e o que não é simultaneamente ocidental e cristão é posto à margem, considerando-se apêndice exótico sem legitimidade própria. Assim rejeitam-se: o que é cristão mas não ocidental, quer dizer, os cristão do oriente; o que é ocidental mas não cristão, ou seja, os árabes e os judeus.(ý) Dessa forma, a Idade Média é confiscada em proveito de um só grupo: os ocidentais cristãos ou cristãos ocidentais.” 34 As críticas contra os preconceitos a tudo o que se refere à Idade Média têm se acumulado na recuperação de uma visão mais justa a respeito desse período. Contudo é necessário, ainda, muito trabalho para desvincular a série de conceitos negativos que se associaram aos medievais. Na medida em que a falsafa foi uma das manifestações filosóficas desse período, naturalmente, alinha-se com essa recuperação, reforçando a visão da ininterruptibilidade da tradição filosófica desde o seu estabelecimento até a atualidade. Assim, faz mais sentido a máxima: “aquilo que a história uniu, que o homem não separeý” 2.3 Os períodos da filosofia Se a divisão da História em antiga, medieval, moderna e contemporânea trouxe inúmeros inconvenientes, a justaposição da história da filosofia sobre tal divisão histórica se fez igualmente problemática. A Idade Antiga, berço da filosofia grega, salientou a questão inicial da classificação da manifestação de sistemas de pensamento desenvolvidos em civilizações anteriores a Grécia, antes do nascimento da filosofia. Não obstante a filosofia ocidental ter como marco inicial o pensamento grego, este não se formou de modo isolado mas esteve em contato com outros povos e culturas que lhe forneceram inúmeros elementos tais como o alfabeto e a moeda por parte dos fenícios. A própria filosofia grega, nascida nas colônias estabelecidas nas costas da Ásia menor, 34 DE LIBERA, A. A filosofia medieval, p.12. 39 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho justificaram, em parte, o fato de alguns manuais de história da filosofia reservarem um espaço inicial também às filosofias orientais – entendidas em sentido amplo – tais como o sistema de pensamento originário dos Vedas, na India, e suas vertentes como o budismo e o jainismo; assim como o taoísmo e o confucionismo na China ou, ainda, o dualismo de Zaratustra e as tradições persas. Afinal, India, China, Egito e os povos da Mesopotâmia já eram civilizações milenares ao tempo da Grécia e tiveram manifestações anteriores ao surgimento da filosofia grega. Mesmo não sendo tributárias da razão do mundo grego, apresentaram elementos enriquecedores para se compreender as transformações do pensamento e a formação da filosofia na Grécia. É comum a periodização tradicional da filosofia antiga se iniciar com Tales de Mileto (aprox. 624/546 a.C.) e terminar com Plotino (aprox. 204/270 d.C.), enquanto a história antiga se inicia milênios antes do nascimento de Tales e se estende até 476 d.C. com a queda de Roma, o que mostra que a História e a História da Filosofia não andam, e nem poderiam, andar par e passo mas, ao contrário, o fazem num certo descompasso. Nesse intervalo acomoda-se, com alguns anos de diferença o período da filosofia cristã nascente – a patrística – chegando até a morte de Santo Agostinho (430 d.C.) que, praticamente, coincide com o fim da Idade Antiga. Tomando-se Tales como ponto de partida, segue-se o período dos présocráticos – (aprox. 624/470 a.C.) marcado por uma reflexão inicial a respeito dos pincípios da natureza – Em seguida, o período clássico (aprox. 470/324 a.C.) com o trio Sócrates, Platão e Aristóteles numa relação direta de mestre e discípulo em Atenas. Foi, portanto, nesse período clássico da filosofia antiga que a filosofia encontrou não apenas uma sólida sistematização mas também suas principais direções, estendendo-se, inclusive, através de todo o período medieval entre os árabes. A esse período clássico, o intercâmbio que se estabeleceu entre o Oriente e o Ocidente, a partir das conquistas de Alexandre, denominou-se de filosofia helenística. Esta teve na escola epicurista e na estóica suas principais manifestações. O neoplatonismo, praticamente, encerrou o período da filosofia antiga. Com Plotino, o maior e mais vigoroso representante dos pensadores platônicos desse período, a filosofia antiga teve um novo apogeu e praticamente seu término. Na classificação da História da Filosofia, o encontro do paganismo com o cristianismo – que se iniciara ainda na antiguidade tardia e que se desenvolveu durante o século II d.C. – preenche o hiato entre o final da filosofia antiga e o início da Idade Média com a presença dos primeiros pensadores convertidos ao cristianismo. 40 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Esse período, denominado patrística – com duas vertentes: uma de língua grega e outra de língua latina – encerrou-se com a síntese de Santo Agostinho (354/ 430 d.C.) . Boécio (aprox. 480/524) chamado “o último romano e o primeiro escolástico”35, foi um transmissor importante da filosofia antiga para o período medieval do Ocidente latino e um dos símbolos da ligação entre os dois períodos. A partir do século V d.C., os pensadores, já ambientados na divisão histórica da Idade Média encontraram a tradição filosófica dividida em dois mundos: o mundo do Ocidente de língua latina e o mundo do Oriente de língua grega. Do lado ocidental, a filosofia medieval foi, praticamente, uma filosofia cristã tanto do ponto de vista de suas intenções como pelos seus próprios representantes. A partir do séc. VII d.C./I H., a escolástica dominou todo o espaço filosófico do Ocidente até o séc. XIVd.C./VIII H. Nesse ínterim, do lado oriental, a patrística grega preparou o caminho para a recepção da filosofia antiga para o mundo árabe. A partir do séc. VIII d.C./ II H., o volume de traduções para o árabe se configurou num desenvolvimento dos caminhos da filosofia totalmente diverso do ocidente latino. A recepção da filosofia antiga por Al-Kind÷, as consistentes teses de Al-Fārāb÷, a envergadura e a sistematização da obra de Ibn S÷nā e as críticas de Ibn Ru¹d foram realizadas num período em que o Ocidente latino, à meia luz, sequer sabia o que não sabia. A partir do séc. XII d.C./V H. iniciou-se um período fecundo de traduções de obras filosóficas e científicas do árabe para o latim. Inicialmente, o Ocidente latino foi revigorado pelas traduções de obras em árabe e, quase simultaneamente, pelas obras gregas. Ao mesmo tempo em que a falsafa já não tinha mais tanta força no mundo muçulmano, a. escolástica cristã conhecia seu apogeu . Tomás de Aquino tendo realizado uma nova síntese do cristianismo sobre as bases aristotélicas foi o exemplo mais acabado desse período, equilibrando o binômio fé e razão. Ao final da escolástica, Guilherme de Ockham (1280/ 1348 d.C.) apontou inúmeras questões que anunciaram o final desse período. Sobre muitas de suas teses, os modernos se ampararam para separar os dois caminhos em questão: razão e fé. Nesse ponto, pois, já é possível localizar e contextualizar a falsafa no interior da História da Filosofia: situa-se entre os séculos VIII d.C/II H. e XIII d.C./VI H. Mais precisamente, a partir da recepção, por Al-Kind÷, das obras traduzidas para a língua árabe até a morte de Ibn Ru¹d. Vale notar que a influência da falsafa não se deu 35 KUNZMANN,P. Atlas de la philosophie. Paris: La Pochothèque, 1993, p.63. 41 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho do mesmo modo nas duas frentes que absorveram suas teses, isto é, o Oriente e o Ocidente, mas isso será detalhado mais adiante. Continuando com nosso vôo panorâmico sobre a História da Filosofia, pode se dizer que a partir do século XII d.C./ VI H., o contato crescente entre o Ocidente latino e o mundo islâmico foi o responsável pela introdução da ciência e da filosofia na Europa. Nessa época, um grande volume de tratados e novos conhecimentos encontrou solo fértil nos pensadores ocidentais e alicerçou as condições para o renascimento europeu. O que não se imaginava, talvez, é que muitos pensadores do renascimento, ao redescobrir a antiguidade, paradoxalmente, preparassem tanta ingratidão para com os medievais, esquecendo-se que, durante séculos, estes haviam sido os responsáveis por guardar e desenvolver a filosofia e as ciências dos antigos. Nessa época, a filosofia medieval, mesmo não tendo o seu fim lembrado de modo tão marcante e aparente quanto o final da própria Idade Média em 1453 d.C. com a tomada de Constantinopla pelos turcos, também já se findava. Com o incremento das ciências em direção ao domínio da natureza, os nomes de Francis Bacon (1521/ 1626 d.C.) e Renée Descartes (1596/ 1650 d.C.) foram grafados como alguns dos símbolos mais ilustres que impulsionaram os europeus na direção do que se chamou de filosofia moderna. No novo cenário da filosofia, três principais tradições se destacaram: a francesa, a inglesa e a alemã associando-se a elas, comumente, o o racionalismo, o empirismo e o idealismo, respectivamente. Em alguns casos, muitos dos partidários dessas escolas foram tributários, ainda que indiretamente, de teses desenvolvidas pelos medievais, inclusive pelos falasifa. O sistema de grande envergadura proposto por Hegel (1770/ 1831 d.C.) pôde ser considerado como o apogeu e o fim da modernidade, coincidindo, praticamente, com a data histórica do fim da Idade Moderna, isto é, com a Revolução Francesa em 1789 d.C. Temporal e espacialmente, os críticos mais próximos de Hegel tais como Schopenhauer (1788/ 1860 d.C.) e Nietzsche (1844/ 1900 d.C.) anunciaram alguns caminhos da filosofia que, na virada do século XX d.C. se expandiu numa miríade infindável de escolas, tendências e caminhos. Aqui, a filosofia já não tinha mais um só rosto. Mas teve, algum dia? O que será que pensaria Ibn S÷nā a esse respeito ? 2.4 alguns ditos sobre a filosofia dos medievais As críticas negativas a respeito da filosofia medieval de modo indiscriminado acompanharam, em linhas gerais, o que se disse de desqualificante da 42 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho própria Idade Média. A falsafa, sendo medieval, não esteve, pois, isenta de tais preconceitos. No século XVIII d.C., as palavras do marquês Saint- Aubin em seu Tratado da opinião podem dão uma idéia da visão negativa que a filosofia medieval despertou entre os modernos, tanto de modo genérico, como de modo particular em vistas da intersecção da falsafa com o pensamento do Ocidente latino. Assim o lemos: “Após a tomada de Constantinopla, os franceses trouxeram os livros de Aristóteles comentados pelos árabes. Introduziu-se, então, uma filosofia tirada de Avicena e de outros comentadores africanos; e o mau gosto arabesco estragou as escolas, como a arquitetura e as demais artes haviam sido corrompidas pelo gosto gótico.”36 Gradualmente, interpretações como essa foram sendo sobrepostas pelo bom senso. Assim como os tempos mudaram para a História, também mudaram para a História da Filosofia. Na mesma direção e intenção de recuperar aspectos positivos da Idade Média, o estudo a respeito da filosofia medieval também procurou lançar um olhar mais generoso sobre a produção filosófica desse período. Essa nova abordagem da filosofia medieval inevitavelmente levou a falsafa a ser incluída de modo mais consistente no trajeto da História da Filosofia, também ocidental; pois se, em boa parte, a história da filosofia medieval foi a história da filosofia escrita e pensada em árabe, isso significa que todo reclamo em vistas da recuperação do valor filosófico da Idade Média – para que não manque – deve incluir, necessariamente e de modo positivo, a falsafa. Não valeria a pena, aqui, analisar o espaço dedicado à falsafa nos inúmeros manuais da história da filosofia do Ocidente escritos no século XX d.C. pelos europeus pois, basta ao leitor verificar que a maioria deles é geralmente lacunar ao tratar da falsafa. Apenas para citar um exemplo de peso, um dos manuais mais completos a respeito da filosofia medieval foi escrito por Étienne Gilson, um dentre os três nomes de maior destaque no medievalismo francês que surgiu no século XX d.C. O título dessa obra exemplar, que tem aproximadamente 1.000 páginas, é A Filosofia na Idade Média37. Ressalte-se que esse livro tornou-se referência praticamente obrigatória aos medievalistas. O enfoque do autor já é bastante claro em sua introdução, percorrendo os temas e as questões principais concernentes à filosofia ocidental do ponto de vista do cristianismo. Mesmo assim, Gilson dedica dois capítulos 36 DE LIBERA, A.A filosofia medieval, p.13. 43 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho referentes à filosofia em árabe: o capítulo VI, denominado de “As Filosofia Orientais” e o capítulo VII, intitulado “A influência greco-árabe no século XIII e a fundação das universidades”. Esses dois capítulos ocupam aproximadamente dez por cento da obra. Apesar da valorosa contribuição de Gilson aos estudos medievais, a geração que o sucedeu na França, buscou novos caminhos e propostas. Dos nomes atuais, destacou-se o de Alain de Libera. Em sua A Filosofia Medieval, De Libera, apresenta sua visão a respeito da filosofia nesse período em dez capítulos que ocupam aproximadamente 500 páginas. Os quatro primeiros capítulos são dedicados a outras fontes que não as do Ocidente latino e têm os seguintes títulos: “A filosofia em Bizâncio”; “O Islām oriental”; “O Islām ocidental” e “A filosofia judaica”. Esses quatro capítulos ocupam quase a metade do referido livro. O fato não é meramente de caráter quantitativo mas indica o interesse crescente a respeito da falsafa. Uma das teses centrais de De Libera diz respeito a uma visão descentradada filosofia medieval cristã procurando incluir de modo positivo outras filosofias que se desenvolveram durante o mesmo período. Isso permitiu que o estudo da falsafa se emancipasse da visão meramente utilitária de ter sido a transmissora da filosofia de Aristóteles ao Ocidente; opinião provinda, muitas vezes, dos próprios medievalistas; opinião essa tão funesta quanto a dos modernos em relação à Idade Média como um todo. Um breve recolhimento de algumas palavras de De Libera nos fornece essa distinção: “A história da filosofia medieval é escrita, em geral, do ponto de vista do cristianismo ocidental (ý) [mas] filosoficamente o mundo medieval não tem centro. Não só porque o mundo medieval ocidental tem uma pluralidade de centros mas, sobretudo, porque há muitos mundos medievais.”38 Em outra obra – Pensar na Idade Média –, De Libera intitula um dos oito capítulos do livro de “A herança esquecida”39, no qual apresenta a importância da falsafa na dimensão dos estudos da filosofia medieval. Ao discutir, por exemplo, o tema do nascimento do conceito de intelectual na Europa, vincula algumas posturas dos falāsifa ao que seria o espírito dos intelectuais, aludindo ao fato de que esse espírito e o nascimento do próprio conceito seriam a marca mais profunda da influência dos 38 39 DE LIBERA,A. A filosofia medieval,1998, p.7. Título que inspirou o subtítulo deste trabalho. 44 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho falāsifa sobre a Idade Média do Ocidente. Visando recuperar as ligações que explicam as transformações no ocidente medieval, ele explica: “É dessa herança esquecida que queremos aqui partir – o papel positivo dos “arabes”, tendo se apagado da nossa memória juntamente com a época, a cultura e o meio em que ele se manifestou plenamente. Essa herança é a trama, o pano de fundo de tudo o que segue. É através dela que iremos a Siger, mas sobretudo a Dante e a Eckhart.”40 A adoção de uma visão que interliga a história da filosofia numa continuidade ininterrupta se apóia na afirmação da existência de múltiplos centros de desenvolvimento da filosofia, ora sem comunicações uns com os outros, ora interpenetrando-se e criando novos rumos ao pensamento. Outra fator que permitiu uma visão renovada respeito da filosofia medieval e, particularmente da falsafa, foi a ênfase no conceito da translatio studiorum , salientando a importância da transmissão do saber através dos seus centros. Muitas foram as transmissões do saber que se iniciaram na antiguidade tardia e se estenderam além da Idade Média: “ Uma é feita de Atenas para a Pérsia e da Pérsia para Harran; outras se fazem de Alexandria para os mosteiros sírios dos séculos VII e VIII; um terceiro movimento vai da cultura siríaca para a cultura árabe, de Alexandria a Bagdá.(ý) nessa mesma época o ocidente cristão é filosoficamente estéril. Só desperta do seu longo sono com uma nova translatio que vem de Bagdá para Córdoba e, daí, para Toledo, isto é: do oriente muçulmano para o ocidente muçulmano e, de lá, para o ocidente cristão.”41 A idéia de que o saber caminhou através dos grandes centros sendo incorporado pelas sequentes civilizações e culturas encontra menos dificuldades, para se compreender os caminhos da filosofia, do que a visão de uma suposta estagnação milenar do saber. O próprio Al-Fārāb÷ entendia que esse movimento o antecedia em Bagdá. Explicou que o saber filosófico dos antigos teria se transladado dos caldeus, na Mesopotâmia, para os egípcios, destes aos gregos, aos sírios cristãos e, até aquela época, aos árabes. Vivo, hoje, talvez acrescentasse as posteriores translações. Ora... ora... “onde estão, portanto, as trevas?”42 40 DE LIBERA,A. Pensar na Idade Média. São Paulo: editora 34,1999,pp.133-134. DE LIBERA,A. A filosofia medieval, p.17. 42 DE LIBERA,A. Pensar na Idade Média, p.86. 41 45 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho 2.5 um panorama religioso da época Aos olhos dos conterrâneos de Mu¬ammad, a mensagem de um Deus único, rivalizou com as crenças politeístas e idólatras das tribos da península arábica. Nessa época, Meca, centro de peregrinação religiosa, abrigava inúmeros deuses e ídolos. Aos que detinham o poder em Meca não interessava que essa fonte de lucro e de vantagens comerciais e políticas fosse molestada. Foi nesse cenário de conflito de interesses, por um lado, e de sincretismo de religiosidades primitivas, por outro, que as transformações propostas pela mensagem de Mu¬ammad ao povo iniciaram uma verdadeira ebulição religiosa e social. Ao mesmo tempo em que a palavra do profeta desmontava as estruturas da religiosidade primitiva da península, propunha-se como um elemento unificador das tribos e das crenças dos árabes em torno de um só Deus, de uma só direção, de uma só fonte de regra e de conduta. Ao momento da unificação em torno da nova mensagem, as influências dos elementos do judaísmo, do cristianismo, das religiosidades locais e outras que constituíam o sincretismo da região iam sendo ultrapassadas. Mesmo tendo suas raízes no tempo do patriarca Abraão, o Islām surgia no cenário histórico como uma nova religião. Quando o profeta Mu¬ammad deixou a cidade de Meca em direção à cidade de Yatrib – que passou a se chamar Medina (Mad÷na al-Nabi – a Cidade do Profeta) em 622 d.C. / 1H. – marcou-se o início do calendário muçulmano: a Hégira. Ao retornar a Meca, Mu¬ammad destronou os deuses e ídolos da Kaaba. Para se estabelecer, o Islām não lutara, ainda, com povos estrangeiros mas, ao contrário, Mu¬ammad fôra obrigado a enfrentar os seus próprios conterrâneos para que prevalecesse a nova mensagem. As lutas não foram só no campo das idéias e nesse cenário, a filosofia era uma realidade ainda muito distante dos árabes, e esperaria mais de um século para ser incorporada. À essa época, o panorama religioso da Pérsia era dominado pela religião fundada por Zaratustra. Apesar de a doutrina desse reformador da religiosidade iraniana não ser precisamente documentada, deduz-se que viveu por volta do ano 1.000 a.C. Por atribuir o bem ao deus Ahura Mazda, sua religião também ficou conhecida como mazdeísmo. De caráter profético, pregava uma doutrina revelada opondo-se às práticas animistas e de sacrifícios da ortodoxia antiga da região. O fundamento da religião de Zaratustra foi essencialmente pautado sobre o dualismo, opondo o bem ao mal; a luz às trevas. O Avesta, conjunto de textos a ele atribuídos, e a principal fonte de 46 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho sua doutrina, impulsionava o homem a escolher o bem e a se afastar do mal. Após a morte havia a promessa do paraíso e da vida eterna ou, então, do sofrimento eterno. Os judeus, por sua vez, estavam espalhados principalmente pelos grandes centros da Mesopotâmia e por toda a costa do Mediterrâneo – Espanha, Itália, Grécia, costas da Ásia Menor e no norte da África, particularmente em Alexandria – A diáspora, ou a dispersão dos judeus da Palestina, desde a invasão dos assírios em 721 a.C. e dos babilônios em 568 a.C. conquistando os reinos de Israel e de Judá, respectivamente, –época da destruição do primeiro Templo de Salomão –, havia levado os judeus a procurar uma unidade que não se estruturasse mais em bases políticas ou territoriais mas na própria sobrevivência de suas tradições. O conjunto das regras litúrgicas e das práticas sacerdotais se destinaram a manter a unidade religiosa das comunidades dispersas diante da impossibilidade política da manutenção de um território próprio. Inicialmente exilados na Mesopotâmia, antes da destruição do segundo Templo pelos romanos em 70 d.C., alguns judeus que estavam fora da Palestina se destacaram no campo da filosofia. Vivendo em comunidades independentes, com seus costumes e tradições, os judeus foram constantemente afetados pelas instabilidades dos povos que dominavam os territórios onde estiveram instalados. Sob o domínio do Islām, tanto cristãos como judeus tiveram a tolerância característica da chamada Idade de Ouro do islamismo (sécs. VII à XIII d.C. / I a VII H.), período que pôde ser considerado um dos mais pacíficos e prósperos. O Cristianismo, por sua vez, nascido nas terras da Palestina, isto é, no Oriente, que naquela época estava sob o domínio de Roma, isto é, do Ocidente, teve em seu desenvolvimento o caráter duplo que marcou seu nascimento. Em mil anos de história, até o cisma de 1054 d.C. quando o bispo de Roma, Leão IX ( 1049/1054 d.C.), e o patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulário (1043/1058 d.C.), se excomungaram mutuamente, as relações da Igreja do Ocidente e do Oriente – assim como a dos povos que se sucederam no domínio territorial do Mediterrâneo – se interpenetraram e modificaram os rumos de sua história. Algumas datas e fatos refletem transformações que interessam em vista da transmissão da filosofia ao mundo árabe. Em 313 d.C., Constantino promulgou o Edito de Milão declarando o cristianismo como religião oficial do Império Romano. Muitos especialistas separaram, a partir dessa data, a igreja vivida como testemunho da igreja estruturada como poder ou, em outras palavras, a igreja que vivia dentro do Império Romano da igreja que se 47 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho preparava para ser a herdeira das antigas estruturas, se tornando ela mesma um novo império que se estendeu por todo o período medieval. Em 330 d.C. o mesmo Constantino fundou Constantinopla nas margens do Bósforo, onde já existia desde 658 a.C., Bizâncio, antiga colônia grega. Em 395 d.C. o Império Romano foi dividido em duas capitais por Teodósio: Roma, no Ocidente, e Constantinopla, no Oriente. Mesmo quando em 476 d.C., Rômulo Augústulo foi deposto, marcando o fim do Império Romano do Ocidente, o Império Romano do Oriente ou Império Bizantino, seguiu unificado julgando-se o sucessor legítimo do Império como um todo e só cairia em 1453 d.C. com a tomada da cidade de Constantinopla pelos turcos. Do lado ocidental, a partir da queda de Roma em 476 d.C., a Europa teve de esperar mais de trezentos anos para ter algum vislumbre de reunificação que aconteceu somente no ano 800 d.C. quando papa Leão III coroou Carlos Magno imperador, na tentativa de reerguer o antigo império. No âmbito ocidental, portanto, à época do nascimento do Islām, a igreja cristã havia seguido sua trajetória vitoriosa desde seu nascimento como religião no Oriente em terras dominadas por Roma, passando a religião oficial do Império (313 d.C.) , sobrevivido à queda de Roma (476 d.C.), convertido os bárbaros – lembre-se o batismo de Clóvis, rei dos francos em 496 d.C. – e coroado um deles, Carlos Magno (800 d.C.) na tentativa de reerguer o antigo império. Mas o Cristianismo não estava confinado ao poder de Roma e do Ocidente. O Concílio de Constantinopla, em 381 d.C., havia determinado cinco patriarcados, a partir das cidades preeminentes e de maior influência, constituindo-os como os principais centros de difusão e controle do cristianismo ao mesmo tempo em que paralisou a formação de outras zonas autônomas que requeriam o mesmo estatuto. No século V d.C. o título de patriarca era utilizado para nomear os bispos de Alexandria, Antioquia, Roma, Constantinopla e Jerusalém que dividiam o poder e o controle religioso. Com o passar do tempo, o Ocidente reconheceu apenas a sede de Roma como centro único, entendendo a supremacia do bispo de Roma sobre os outros patriarcados. Ao longo dessas transformações, duas tradições se desenvolveram de maneira diversa: uma no Oriente, outra no Ocidente. Há pelo menos quatrocentos anos antes do surgimento do Islām, a formação das bases filosóficas das doutrinas do cristianismo já havia colocado os primeiros pensadores cristãos em contato com a filosofia pagã. O Cristianismo, na busca de esclarecer e articular suas próprias teses, teve no período da patrística o seu primeiro apogeu filosófico. Nesse período, as duas 48 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho línguas, isto é, o latim e o grego se mostravam como dois pilares, um no Ocidente e o outro no Oriente, a sustentar uma única fé. Alguns nomes de destaque no Ocidente latino foram Hilário, bispo de Poitiers; Ambrósio (334/397 d.C.), bispo de Milão; Agostinho (354/430 d.C.), bispo de Hipona e o Papa Gregório Magno (590/604 d.C.) dentre outros. Entre os padres da igreja de língua grega, estiveram Atanásio, bispo de Alexandria; Basílio Magno (329/379 d.C.), bispo de Cesaréia; Gregório (330/395 d.C.), bispo de Nissa e João Crisóstomo, bispo de Constantinopla dentre outros. No caso da formação da falsafa, importa sobremaneira a absorção e o desenvolvimento da filosofia pelos pensadores cristãos do Oriente de língua grega. Estes tiveram um importante papel na transmissão dos conhecimentos para os emergentes pensadores do Islām, ao passo que os pensadores cristãos de língua latina não tiveram papel de destaque na formação da falsafa. A queda de Roma em 476 d.C. só veio acentuar o contraste entre os caminhos da filosofia no Oriente e no Ocidente. Nesse período, o que se chamou de “a noite da alta Idade Média” aplicar-se-ia, com mais propriedade, ao Ocidente. A crise da cultura latina, revigorada somente no renascimento carolíngeo, com o insterstício de um novo eclipse cultural até o século XI d.C., fez com que a atividade teológica, filosófica e literária tenham sido mais intensas em Bizâncio. Assim como o Cristianismo não era um monopólio de Roma, a filosofia também não era um monopólio latino. “O esplendor cultural de Bizâncio atingiu um nível comparável e frequentemente superior ao dos latinos. (ý) a ‘roma caçula’ não deixou de produzir um saber filosófico teológico original e vivo” 43 A maior parte desses pensadores se envolveu em debates doutrinais a respeito de questões cruciais das doutrinas cristãs tais como a natureza de Cristo: homem e Deus, Deus, ou homem-Deus ? “Os derrotados, quanto às posições que defendiam, passariam à história como heréticos.”44 Apesar do fechamento da escola de Atenas, em 529 d.C. por Justiniano, a organização da cultura bizantina manteve a filosofia como ensino superior imperial em Constantinopla. A dita Antiguidade tardia que se prolongou na Idade Média através de Bizâncio foi elo importante na transmissão da filosofia ao mundo árabe. Como bem observa Charles Diehl “O que dá à literatura bizantina caráter particular, o que a torna muito diferente das outras literaturas da Idade Média é o contato íntimo que 43 44 DE LIBERA, A, A filosofia medieval ,p.20 DEL ROIO, J.L. Igreja medieval. São Paulo: Ed.Ática, 1997, p.20. 49 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho manteve com a antiguidade grega. O grego, como sabemos, era a língua nacional do império bizantino; as obras dos grandes escritores da Grécia eram, portanto, acessíveis a todos, compreendidas por todos, admiradas por todos.(ý) Nas escolas bizantinas, ao lado das obras dos padres, os autores gregos constituíam a base da educação; Homero era o livro de cabeceira.”45 Do mesmo modo, Platão, Aristóteles e outros filósofos eram leitura corrente entre os sábios de Bizâncio. No entanto, a filosofia produzida em Bizâncio, marcada fortemente pelo neoplatonismo, adquiriu contornos bastante peculiares enquanto se mesclava com elementos locais – “os presságios, os sonhos, os transes mediúnicos foram durante muito tempo moeda corrente”46 – resultando numa configuração própria de seu mundo e não propriamente do mundo grego. Mas os traços característicos da filosofia que se desenvolveu nas terras dominada pelo Império Bizantino estiveram longe de lhe conferir homogeneidade. Marcada principalmente pelos embates doutrinais do Cristianismo, as heresias que se situaram principalmente no Egito e na Síria rivalizaram com o poder central de Constantinopla. Os temas teológicos podem ser encontrados, por exemplo, nos escritos de São João Crisóstomo, Gregório de Nazianzeno e Gregório de Nicéia. Verifica-se que “a teologia constituiu sozinha pelo menos a metade do que produziu a literatura bizantina, e que em Bizâncio encontremse poucos escritores, mesmo profanos, que não tivessem de algum modo tocado em assuntos teológicos.”47 O desenvolvimento da filosofia grega foi um instrumento valoroso para auxíliar os pensadores cristãos de Bizâncio a estabelecer o que consideravam as verdadeiras doutrinas do cristianismo. A polarização se deu pela ortodoxia de um lado e pelas heresias de outro ou, pela primazia do patriarcado de Constantinopla de um lado e pelas outras sés orientais de outro: Alexandria, Antióquia e Jerusalém. O fato de o imperador Teodósio I ter convocado o Concílio de Constantinopla em 381 d.C., ter reafirmado a consubstancialidade do Pai e do Filho (doutrina de Nicéia) e ter definido a primazia do patriarcado de Constantinopla sobre os outros patriarcados gerou forte reação dos cristãos orientais refletida nas lutas doutrinais. A questão da Natureza de Cristo e da Trindade foram temas centrais que ocuparam grande parte da tensão vivida no interior do cristianismo de Bizâncio num cenário que pareceu entrelaçar a teologia, 45 DIEHL, C. Grandes Problemas da História Bizantina.São Paulo: Ed. Das Américas, 1961, p.180s. DE LIBERA, A, A filosofia medieval , p.20. 47 DIEHL, C. Grandes Problemas da História Bizantina.São Paulo: Ed. Das Américas, 1961, p.183. 46 50 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho a política e a filosofia: pelo aspecto político, havia uma clara disputa de poder entre os patriarcados; pelo aspecto teológico, as disputas refletiam esses interesses; e a filosofia foi um instrumento valoroso na estruturação da argumentação lógica para se chegar à vitória. Um dos centros de difusão das heresias em Bizâncio surgiu em Antioquia, na Síria, onde um padre, Nestório (381- 451d.C.) enfrentou o tema da Natureza de Cristo separando de modo absoluto a natureza divina eterna e a natureza humana gerada. Essas duas naturezas não estariam unidas consubstancialmente em Cristo mas apenas de modo acidental. Uma das consequências de afirmar a existência de duas naturezas e duas hipóstases na única Pessoa do Cristo Filho de Deus, ou duas naturezas e duas pessoas, poderia levar à conclusão de que a Virgem Maria não seria portadora da natureza divina: teria sido mãe de Cristo sem ter sido mãe de Deus. Nestório enfrentou a irredutível oposição do patriarcado de Alexandria e Cirilo de Alexandria levou o Imperador Teodósio II a convocar um novo Concílio (Éfeso em 431 d.C.) no qual Nestório foi deposto e a doutrina das duas naturezas, condenada. Sua obras foram destruídas, o que infelizmente não permitiu que se fizesse uma idéia mais precisa de sua doutrina. Mesmo assim, ela se propagou e se impôs como doutrina oficial da igreja da Pérsia entre os cristãos do império sassânida. A oposição enfrentada pelo nestorianismo acabou gerando uma outra heresia no sentido radicalmente oposto: o Monofisismo. Este se opôs, ao mesmo tempo, aos nestorianos e ao poder central de Constantinopla afirmando que o Verbo encarnado possuía apenas uma natureza, a divina. Essa posição de independência na interpretação da doutrina da Natureza de Cristo também foi condenada em 448 d.C. Seu principal articulador, Êutico, foi condenado pelo Concílio de Calcedônia em 451 d.C. que impôs uma nova formulação para a questão: “o Verbo divino, Filho Único de Deus, nascido da Virgem Maria quanto à sua humanidade, está em duas naturezas que permanecem sem confusão, sem mudança, sem divisão ou separação”. 48 Mas, longe de desaparecer, o monofisismo, como que escolhido para integrar uma unidade cultural étnica e política independente do domínio centralizador de Constantinopla, desenvolveu-se na Síria e no Egito e espalhou-se por outras províncias do Oriente. Nesse cenário, prenunciou-se um clima de insatisfação pela dura autoridade exercida pela capital do império bizantino em face de suas províncias, 48 Cf. DE LIBERA, A. A filosofia medieval, p.27 51 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho entrelaçando os campos teológico, político e filosófico. Tanto a dissidência na Síria e no Egito como a difusão do nestorianismo entre os cristãos do império sassânida tiveram sérias consequências e predispuseram à uma recepção dos árabes com pouca resistência para se livrarem do domínio de Bizâncio. 2.6 O saber e alguns de seus centros A tensão desse cenário espalhada por inúmeros focos de resistência manteve, à essa época, o saber disseminado por vários centros que absorveram e desenvolveram a filosofia grega. Se, por um lado, a filosofia bizantina era uma das formas cristãs do pensamento grego, da razão e da alma grega, por outro lado, as terras de Bizâncio abrigavam, também, pensadores que não eram cristãos. Nesse rico cenário, a contribuição é plural: tanto os padres da igreja, como judeus e pagãos tiveram papel relevante. Traçar algumas linhas a esse respeito nos auxilia a compreender algumas reações favoráveis das populações locais, inclusive dos eruditos, na recepção dos árabes, na conversão para o islamismo e na transmissão da filosofia ao mundo árabe. Esse conjunto de várias vertentes, proporcionados pelas bases da filosofia grega foi absorvido pelos árabes como um conjunto de conhecimentos da antiguidade dos quais eles mesmos se julgaram os legítimos continuadores. A filosofia, assim transladada, justificou a translatio studiorum sem interrupção da Grécia para Bizâncio – com todas as suas divergências – , desta para o mundo árabe e, depois, destes para o Ocidente latino. Alguns desses centros encontravam-se em Antióquia e Nísibe, onde a filosofia e a teologia não se faziam somente em grego mas também no idioma siríaco que era a língua da liturgia local. Na época da invasão dos árabes na Síria, muitos textos filosóficos traduzidos para o árabe se valeram das traduções siríacas para serem concluídos, isso quando não foram traduzidos diretamente do siríaco. Vale notar, pois, a importância desse período da filosofia escrita em siríaco como um relevante elemento transmissor da filosofia grega aos árabes e que só desapareceria filosoficamente como língua de tradução no final do séc. X.d.C. quando de sua substituição pela língua árabe. De Libera sublinhou com propriedade esse fato ao comentar que “é no séc. VII d.C., e depois na época de ouro do califado abássida, a produção filosófica siríaca conheceu apogeu. Foi o mundo islâmico que dela se beneficiou, já que o conquistador árabe foi frequentemente recebido como libertador. 52 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Por razões religiosas, o Império bizantino, que não soube ceder lugar aos ‘dissidentes’, encontrou-se alijado de uma parte essencial de seus recursos intelectuais.”49 Ao norte da Mesopotâmia, duas cidades abrigaram outros dois centros importantes de desenvolvimento dos estudos filosóficos nesses tempos de transição: Harran e Edessa. Harran, célebre pelo seu culto à deusa Lua, já era uma cidade tão antiga quanto a promessa de Deus ao patriarca Abrãao: “O senhor disse a Abraão: parte da tua terra, da tua pátria, e da tua casa paterna e vai para a região que eu te mostrarei (ý) Abraão partiu, como o senhor lhe tinha ordenado, e levou consigo Ló. Ao partir de Harran, Abraão tinha setenta e cinco anos de idade.”50. Em 312 a.C. essa região fez parte do império de Alexandre. Com o fechamento da Escola de Atenas em 529 d.C. por Justiniano, alguns filósofos tais como Damáscio, Simplício, Hérmias, Diógenes e Isidoro de Gaza deixaram o Império Bizantino e refugiaram-se no Império Sassânida. No entanto, três anos depois, em 532 d.C. retornaram e mantiveram a tradição dos estudos em Harran onde Simplício redigiu seus comentários aristotélicos. Assim, Harran, uma cidade dedicada à filosofia, afirmou sua importância na translação do saber: “Numa época em que o ensino da filosofia sofria restrições intensas no coração do Império, a persistência da tradição de Harran faz dela um dos elos mais importantes do que se poderia chamar “orientação” dos centros de estudos da Antiguidade tardia até a Idade Média.”51 Também foi notório o desenvolvimento da Escola de Edessa que, depois da tomada de Nísibe pelos persas em 363 d.C. tornou-se o principal foco da difusão do cristianismo no império persa. A partir de 430 d.C. foi marcada pelo nestorianismo mas rivalizou com outros centros de viés mais próximos à ortodoxia . A Escola foi fechada pelo imperador Zenão em 489 d.C. e muitos se transferiram para Nísibe. Mas foi em Alexandria, dominada no primeiro século de existência do Islamismo, que os árabes tomaram contato com um dos mais antigos e ricos centros de saber da antiguidade. Localizada no Egito a aproximadamente 200 Km da atual capital do Cairo, Alexandria fôra formada no local onde desde 1.500 a.C. existia uma antiga cidade faraônica chamada Rhakotis. Quando Alexandre o Grande, rei da Macedônia e difusor da cultura helênica, dominou essa região, unindo algumas regiões próximas a 49 Cf. DE LIBERA, A. A filosofia medieval, p.30 Genesis. 12, 1-5 51 DE LIBERA, A. A Filosofia Medieval, p.26 50 53 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho essa, fundou a cidade que levou seu nome. O objetivo de Alexandre foi torná-la um centro de difusão da cultura grega no Egito. Também planejou que Alexandria fosse uma base naval e uma ligação de acesso para o vale do Nilo pelos macedônios. Alexandre, morto em 323 a.C. na Babilônia, teria sido enterrado num caixão de ouro na cidade por ele fundada. Depois de Alexandre, a cidade foi administrada pelos Ptolomeus, época em que se ergueu o Farol de Alexandria e, pela sua riquíssima biblioteca que reunia mais de 500.000 papiros tornou-se o centro da cultura mundial acolhendo sábios de inúmeras partes do mundo. Alexandria, sob o domínio do império romano, teve a biblioteca incendiada em 48 a.C. pela invasão de Júlio César mas foi reconstruída em outro local. Essa não foi, porém, a única destruição que a biblioteca sofreu. Subsequentes ataques à região fizeram a cidade sofrer numerosas perdas de seus monumentos. O termo “Escola de Alexandria”, em seu sentido mais amplo, referiu-se tanto aos gregos, como aos judeus ou cristãos que lá desenvolveram suas doutrinas filosóficas. A gama de assuntos tratada foi ampla e envolveu trabalhos de gramática, astronomia, medicina, teologia, geografia e de todas as ciências conhecidas na época. Os nomes que estiveram ligados a Escola de Alexandria mostram a acolhida de pensadores das mais distintas origens: Aristarco, Eratóstenes, Amônio Sacas, Fílon e Clemente dentre outros. Além de Alexandria ter sido um dos mais ativos centros do pensamento cristão, abrigou também cultos egípcios e romanos. Com a crescente ascenção do cristianismo, o termo “Escola de Alexandria” adquiriu algumas vezes o sentido mais específico da aproximação que lá se fez entre a filosofia e a religião e as interpretações alegóricas do texto sagrado. Clemente de Alexandria foi um dos expoentes desse período mas também Sinesio de Cirene que mesclou o neoplatonismo com o cristianismo; Herméia de Alexandria comentou o Fedro, usando ideias dialéticas de Jamblico e Asclépio comentou a Metafisica. Em Alexandria, o helenismo presente no judaísmo teve em Fílon um de seus notáveis representantes. Seu trabalho teve papel fundamental para o desenvolvimento dos cristãos helenizados. Uma de suas importantes contribuições se deu pela passagem que operou da filosofia com a religião monoteísta num período em que o cristianismo estava apenas surgindo no cenário religioso e o Islamismo estava há pelo menos cinco séculos de seu nascimento. De origem judaica, Filon de Alexandria (25 a.C. -50 d.C) adotou a interpretacao alegórica do Antigo Testamento que se efetuava entre os judeus cultos da comunidade de Alexandria. As influencias da filosofia grega, principalmente de Platão e dos estóicos, foram a marca das grandes 54 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho características de suas especulações. Em Fílon encontramos obras de comentários às escrituras – algumas alegóricas e outra exegéticas – e obras de caráter especulativo teológico-filosófico. A título de ilustração podemos verificar, na passagem seguinte, a aproximação com o platonismo: “Entre Deus, que é o ser puro, do qual nada pode predicar-se, e o mundo sensível, que vai se aproximando do nada à medida que desce até a matéria, existe uma hierarquia de seres , de anjos e demônios e de mensageiros que são ao mesmo tempo modelos e essências subordinadas ao modelo perfeito, ao espírito puro, ao logos em que toda idéia se assenta. O Homem se aproxima de Deus à medida em que vai se desfazendo da matéria que o vincula ao mundo sensível, e se faz mais semelhante à idéia segundo a qual foi formado. Sua verdadeira missão é a ascenção até o mundo das idéias, único modo de chegar até a contemplação estática de Deus.”52 A penetração recíproca do helenismo e do pensamento oriental, depois de manifesta nos judeus de Alexandria, foi absorvido pelo cristianismo na tentantiva de estabelecer suas doutrinas e isolar os movimentos heréticos. Os cristãos mais eruditos dos primeiros séculos adotaram posturas diversas em relação à filosofia pagã. Alguns deles, antes de se converterem, haviam recebido a formação na filosofia inclinando-os a adotá-la na construção das teses da religião. Como assinalou Gilson, “o que proporciona todo interesse a essas primeiras tentativas filosóficas é que seus autores parecem em busca não de verdades a descobrir mas, antes, de fórmulas para exprimirem as que já descobriram. Ora a única técnica filosófica que possuem é a dos mesmos gregos de quem precisam, ao mesmo tempo, reformar a filosofia e refutar a religião.”53 Os anos subsequentes ao nascimento do cristianismo tiveram em Alexandria um exemplo da concivência mútua de inúmeras vertentes do pensamento que interpôs a filosofia pagã, o judaísmo, o cristianismo e os diversos cultos que se formaram de modo independente. Essa movimentação fez com que Brehier afirmasse que não houve “nada mais confuso que a história do pensamento intelectual nos dois primeiros séculos de nossa era.” No conjunto desse sincretismo, os cristãos travaram lutas para determinar seus verdadeiros dogmas e afastar o que consideraram distorções como, por exemplo, o gnosticismo que espelhava a insuficicência da pura filosofia para 52 53 MORA, J.F. Diccionario de Filosofia. Buenos Aires:Sudamericana, 171 pp.345. GILSON, A Filosofia na Idade Média, p. 23 55 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho o encontro com Deus propondo uma experiência unificadora e divinzadora através de um contato íntimo pessoal com Deus. Nesse cenário, a filosofia exerceu um papel fundamental não mais para criar novos sistemas mas principalmente para comentar e argumentar a respeito da verdade revelada. Os anos que antecederam a chegada dos árabes à esses centros já contava, pois, com um desenvolvimento da filosofia que será por eles absorvida. O fechamento da Escola de Edessa por Zenão e da Escola de Atenas por Justiniano transladou a atividade intelectual para outras regiões do Império Bizantino mas Alexandria permaneceu como um importante centro que antecedeu a chegada dos árabes. Os tesouros culturais acumulados em Alexandria e a persistência de uma tradição intelectual viva nessa cidade justificaram que ela tenha sido o principal foco da aculturação científica dos árabes desde os primeiros anos da dominação Omíada. A tomada de Alexandria em 642 d.C. pelos árabes desempenhou um papel decisivo na falsafa: o neoplatonismo alexandrino foi sua principal fonte. Os grandes pensadores árabes leram Aristóteles com os olhos dos comentadores alexandrinos da Antiguidade tardia.”54A filosofia grega, presente entre os cristãos do oriente, encontrou nos escritos do chamado Pseudo-Dionísio (séc.VI d.C.) e em João Damasceno (séc. VIII d.C.) dois exemplos – um neoplatônico e o outro aristotélico – do diálogo da filosofia com o mundo oriental cristão à época da chegada dos árabes nas terras dominadas por Bizâncio. Deve se levar em conta que, no século VI d.C., a filosofia em Bizâncio foi marcada não só pelo aristotelismo mas também pelo neoplatonismo. Este último principalmente pelos textos do pseudo-Dionísio. De identidade desconhecida, talvez um monge sírio que se fez passar por Dionísio, o Aeropagita, contemporâneo de São Paulo e que se convertera aos olhos do apóstolo, “o autor do corpus atribuído a “Dinonísio” operou, nos anos 480-510 d.C., uma extraordinária cristianização da filosofia neoplatônica.” 55 A força, pois, desses escritos tinham a intensidade de um testemunho dos primeiros anos do Cristianismo e, não obstante o engodo, contribuíram para inaugurar uma teologia negativa exaurindo a possibilidade do intelecto referir-se a Deus de modo positivo, o que indicava os limites da razão humana para chegar ao divino. Pela via mística na qual descreve a união com Deus em termos de agnôsia (desconhecimento) e de henosis (união além de toda apreensão intelectual), o pseudo54 55 DE LIBERA, A. A filosofia medieval ,p.30 DE LIBERA, A. A filosofia medieval, p.32 56 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Dionísio opôs-se á metafísica aristotélica ou, “como se a sabedoria metafísica de Aristóteles estivesse subordinada à hipersabedoria da henosis.”56 Depois de Dionisio, pensador pré-islâmico, o centro da atividade filosófica deslocou-se do Império Bizantino para o oriente dissidente, depois islamizado. Desse modo, foi num mundo oriental dominado principalmente pelo Império Bizantino e pela Pérsia, que agrupou povos em constante tensão, num cenário de convivência entre judeus, cristãos e pagãos; de influências recíprocas, de tensões e lutas doutrinais entre os religiosos, de desenvolvimento e ininterrupta sequência do conhecimento da língua e da filosofia gregas que reuniam as teses platônicas, aristotélicas e neoplatônicas, que os árabes, irrompendo no cenário histórico empunhando a bandeira de uma nova fé, defrontaram-se com a filosofia, com suas soluções e seus problemas que passaram, também, a sê-los na língua árabe. 2.7 A chegada dos árabes. À época da expansão do islamismo, do lado Ocidental, pouca atividade restava aos mais instruídos. A anarquia que se sucedeu à tomada do Império Romano do Ocidente em 476 d.C. teve como consequência, entre outras, o refúgio da filosofia aos mosteiros. Bento de Núrsia ( 480/543 d.C.), que fundou a ordem monástica dos beneditinos e o mosteiro de Monte Cassino (529 d.C.), criara “centros relativamente protegidos cuja finalidade, em última instância – como percebe muito bem o perspicaz monge Cassiodoro (m. 575 d.C.) –, será cultivar elites intelectuais capazes de florescerem assim que as condições externas fossem mais favoráveis. A primeira oportunidade só surgirá com a criação do Império Carolíngeo (800 d.C.)”57 No mesmo período em que o Ocidente se fechou nos mosteiros, do lado oriental, os árabes surgiram no cenário histórico e tomaram para si a herança filosófica dos principais centros de cultura da época, sob o domínio, até então, de Bizâncio ou da Pérsia: Alexandria, Antioquia, Harran, Edessa e Gundishapur dentre os principais. A rápida expansão do Islām seguiu-se à união dos povos árabes na península com várias vitórias importantes: Damasco em 635 d.C., Jerusalém e Antioquia em 638 d.C. a Mesopotâmia em 640 d.C e o Egito de 639 a 643 d.C. No outro extremo, os árabes conquistaram a Pérsia de 637 a 650 d.C.e , na Europa, em 711 d.C., já haviam chegado ao sul da Espanha sendo freados em 732 d.C. quando Carlos Martel conseguiu dete-los 56 57 DE LIBERA, A. A filosofia medieval , p.32 ELIADE, M. Dicionário das Religiões. São Paulo: ed. Martins Fontes: 1999, pp.108-109. 57 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho na França, mas mesmo assim tomaram, ainda, Creta em 823 d.C. e a Sicília em 827 d.C. As conquistas árabes frente às regiões dominadas por Bizâncio, contaram, surpreendentemente, com a ajuda das próprias populações locais, devido, principalmente, à insatisfação dos grupos heréticos que se opunham à opressão exercida por Constantinopla sobre essas regiões. “Na batalha de Yarmýk, na qual foram destroçados os exércitos do Império, 12.000 cristãos árabes passaram para o lado do inimigo.”58 Aos heréticos do cristianismo instalados nos domínios do Império Bizantino, era preferível aderirem ao islamismo a suportarem as pressões locais e, assim, não regiram e facilitaram a invasão árabe. O Império Bizantino ficou bastante reduzido mas talvez mais homogêneo pois se livrara dos monofisitas e de outros grupos dissidentes que haviam sido causas de constantes ameaças de desintegração do Império. Por outro lado, os diversos centros de estudos, de cultura, filosofia e religião que estiveram sob o domínio de Bizâncio e da língua grega, como língua oficial, foram sendo paulatinamente, substituídos pela língua árabe. 58 DUÉ,A. Atlas histórico do Cristianismo São Paulo, ed.Vozes, 1999,p.102. 58 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho 3- NO ISLAM NASCENTE 3.1 a Arábia pré-islâmica A palavra de Deus proferida, transmitida a Mu¬ammad pelo arcanjo Gabriel, repetida pelos primeiros fiéis e gravada logo após a morte do Profeta, constituiu o Alcorão. Esse fato distingue a Arábia pré-islâmica da Arábia islâmica. Em sua raiz, o Alcorão foi, não somente um acontecimento religioso, mas também cultural e linguísitco que tendeu a unificar os povos da península arábica em torno de um só Deus, de uma só língua e de um só povo. Antes da mensagem do Profeta, a diversidade de deuses, de dialetos e de regionalismos tribais caracterizou a Arábia desse período e foi designado pelo termo »À¬·\j (jāhiliyya) significando desconhecimento, ignorância e paganismo. Os dois modos de existência interpenetraram-se ao longo da história apesar do fato do período pré-islâmico ter sido bem menos conhecido e pouco documentado. A Península Arábica é quase uma ilha de areia cercada naturalmente pelo mar por três lados, tendo o próprio deserto como ligação com o continente. Essa imensa região desértica, aparentemente vazia, é pontilhada por inúmeros oásis com águas subterrâneas captadas por poços, tamareiras e árvores frutíferas que foram pontos de descanso de caravanas. Originariamente, a região teria sido um território fértil e pátria de muitos povos semitas mas, ao longo do tempo, sofreu um processo natural de seca crescente. Entre os povos que habitaram a região estiveram Arameus, Sírios, Cananeus, Hebreus, Fenícios e Nabateus . As populações locais se distribuíram em tribos ao longo da península. O termo “árabe” se referiu quase sempre ao beduíno do deserto de caráter nômade que vivia de seu rebanho, muitas vezes dos saques, do comércio de caravanas que se serviam dos oásis e das cidades como postos de interligação. Uma das notícias mais remotas que se tem do sul da Arábia foi a existência, por volta de 1.000 a.C., do reino de Sabá, cuja rainha teria estabelecido estreitas relações com o rei Salomão: “A rainha de Sabá ouviu falar da fama de Salomão e veio pô-lo à prova por meio de enigmas. Chegou a Jerusalém com numerosa comitiva, com camelos carregados de aromas, grande quantidade de ouro e de pedras preciosas.”59 5959 1REIS 10, 1. 59 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Do norte até o sul da península, a religiosidade primitiva das tribos árabes variou na adoração de deuses e deusas que simbolizaram planetas, pedras, árvores e fenômenos naturais. Apesar da variedade de cultos e da pluralidade de deuses, parece ter havido uma tendência à unidade na adoção de algumas divindades por grande parte das tribos, especialmente quanto às deusas Manat, Uzza e Al-Lat que eram encimadas por uma divindade superior, Alá, o deus, a divindade. Se por um lado, a cosmovisão dos judeus e dos cristãos os havia aproximado do próprio Deus e, por outro lado, a cosmovisão dos gregos os levara à idéia de um cosmos eterno mesmo que mutável, a visão pré-islâmica do cosmos se alimentou de sua realidade desértica e mutante. No deserto o homem está à mercê da instabilidade e da mudança. Uma tempestade de areia apaga as pegadas, dunas mudam de lugar, real e imaginário se interpõem. Nesse cenário, as referências são, pois, caprichosas e entregar tudo ao destino que vem do alto é, muitas vezes, o que restava ao beduíno. Como disse Hernandez, nesse caso, “ o homem não está acima da natureza como pensavam os gregos e nem foi criado pelo senhor da criação como acreditavam os hebreus. As coisas não são substâncias permanentes em suas essências, mas fantasmas velozes, estrelas fugazes que se desvanecem na noite.”60 Essa visão de mundo, mesmo que atenuada pela mensagem de um Deus único, ainda assim, se fez presente na religiosidade islâmica. A esse cenário somou-se a força estética da palavra que sempre esteve presente entre os árabes, e se intensificou após o estabelecimento do Alcorão. A força e a beleza da poesia lapidada num deserto encimado pelo mais estrelado céu levou os árabes a terem na manifestação lingüística uma de suas mais puras e legítimas obras de arte. Como assinala Lewis, “a língua árabe, se bem que a mais recente das línguas semíticas no seu surgimento como instrumento literário e cultural é, não obstante, de diversas formas, a mais antiga de todas na sua estrutura gramatical e, por conseqüência, a que se encontra mais próxima da língua original proto-semítica.”61 Entretanto, mesmo nesse mundo original, protegido e quase mágico, a Arábia não era um mundo fechado. A esse tempo, já era rota de caravanas que atravessavam a península carregadas não só de sedas e especiarias mas também de influências persas, indianas, judaicas, cristãs e helenísticas trazidas pelos mercadores. 60 61 HERNANDEZ, M.C. História del pensamiento en el mundo islâmico. , p.31. LEWIS, B. Os árabes na história. p. 29. 60 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Ser uma rota de tráfego entre os países do Mediterrâneo e o Extremo Oriente parece ter sido, desde sempre, uma de suas mais singulares missões e assim como, geograficamente, os árabes foram rotas de comércio, na filosofia foram pontes de saber. Em algumas cidades havia comunidades cristãs e judaicas que, pelo perfil monoteísta, viriam a contribuir para a formação da nova religião islâmica. Durante o séc. VI d.C. tanto o império sassânida que dominava Pérsia e parte da Mesopotâmia, como o império Bizantino que dominava o Oriente Próximo, tentaram estabelecer o seu domínio nas regiões desérticas da Arábia através de incursões com o auxílio de algumas tribos, mas nunca chegaram a ter sucesso efetivo. Dentre as cidades da Arábia, Meca destacou-se pela sua posição geográfica como uma encruzilhada das regiões por onde passavam as caravanas. O poder econômico e político da tribo …¿z£ / Qurai¹, por volta do século V d.C. consolidou a cidade como um importante centro de peregrinação. Meca reunia em um só santuário – a »_˜¨ / Ka‘aba. – imagens principais deusas e deuses das diversas tribos além de pedras, divindades astrais e ícones cristãos. Segundo a tradição, a Caaba teria sido construída pelo próprio Adão mas, levada pelo dilúvio, fora sido reconstruída por Abraão e seu filho Ismael, os quais teriam colocado em seu interior a Pedra Negra – provavelmente um meteorito – que teria sido trazida pelo anjo Gabriel para selar a amizade de Deus com os homens. Como bem assinala Mantran, “em fins do séc. VI d.C. a Arábia era um mundo menos isolado do que se supôs durante muito tempo, um mundo em vias de transformação, de evolução: uma certa tendência para a unidade se fazia sentir, tanto no domínio religioso, como no da organização social e política. Essa tendência, o Profeta Mu¬ammad iria transformar numa realidade dinâmica.”62 2.2 O profeta Mu¬ammad As referências a respeito de Mu¬ammad têm ao menos duas abordagens. A primeira delas se detem mais em seu aspecto histórico e costuma sublinhar a sua trajetória como um chefe de Estado que, sob a égide da religião, reuniu seus conterrâneos e iniciou as conquistas do que mais tarde seria o império islâmico em 62 MANTRAM, R. Expansão muçullmana., p.56. 61 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho toda sua extensão. No entanto, a importância e a força interior que Mu¬ammad representou – e representa – para os muçulmanos é contemplada pela segunda abordagem, a qual se baseia naquilo que a tradição compilou a partir de relatos dos contemporâneos de Mu¬ammad, de seus atos e seus feitos. O conjunto desses relatos é chamado de Hadit. Uma organização preeliminar desse conjunto de textos foi realizada por Ibn Is¬āq em meados do séc. VIII d.C. / II H. e revista por Ibn Hi¹am no século IX d.C./ III H. Situar Mu¬ammad somente a partir de uma ou outra abordagem pode nos afastar tanto do rigor histórico quanto do valor intrínseco que possui junto ao seu povo. No Ocidente, muitas vezes, a deturpação da imagem do profeta dos árabes deveu-se menos ao desconhecimento de sua vida e muito mais ao preconceito que guiou alguns espíritos, por razões menores e pouco religiosas. O historiador Lewis destaca esse fato comentando que, geralmente, “o Ocidente criou um “Maomé” lendário, desde as inexatidões absurdas e grotescas e os insultos mesquinhos da polêmica e dos libelos difamatórios medievais até o personagem-títere do “Maomé” de Voltaire.”63 Mais do que analisar com os olhos ocidentais o fenômeno religioso iniciado por Mu¬ammad, é mister buscar o entendimento no interior de sua própria cultura e época. Para o muçulmano, Mu¬ammad é o mensageiro de Deus, o “Sêlo dos Profetas” na linhagem direta da tradição judaico-cristã a partir do patriarca Abrãao, de Moisés e de Jesus. Mu¬ammad nasceu por volta de 570 d.C. numa família pertencente ao clã de Ha¹im da tribo de Qurai¹. O pai ‘Abdallāh morreu antes de seu nascimento; aos sete anos perdeu a mãe e passou a ser educado pelo avô que morreu dois anos mais tarde. Antes de morrer, o avô confiou a educação do jovem a um de seus filhos – Abu Æālib – cujo filho, ‘Ali, foi o companheiro do Profeta, seu primo e depois seu genro. O período de sua juventude não é muito claro, mas parece que Mu¬ammad dedicou-se ao comércio e talvez tivesse realizado algumas viagens. Por volta dos vinte e cinco anos casou-se com åad÷ja, uma viúva de muitas posses que teve papel decisivo em sua vida, apoiando-o nos momentos mais difíceis que se seguiram a partir das revelações. A tradição colocou åad÷ja ao lado de Maria, mãe de Jesus, como uma das mulheres perfeitas da humanidade. Esposa dedicada, foi a primeira adepta às revelações do Profeta, mãe de sete filhos dos quais só sobreviveu, em idade adulta, Fátima. 63 LEWIS, op. cit. p.57. 62 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Aproximadamente aos quarenta anos de idade, Mu¬ammad começou a ter visões e revelações durante meditações que costumava realizar em grutas próximas a Meca. Conta a tradição que o anjo se lhe apareceu e disse: ±Ànz«[ µ°oz«[ ¹ã[ ±^ “Em nome de Deus, o Clemente, o ¢¬r ¾x«[ ©^y ±\^ [z£[ Misericordioso. Recita (Lê) ! Em nome do teu Senhor que ¢¬— µ¯ ²\³×[ ¢¬r criou. ®z¨×[ ©^y¼ [z£[ Criou o Homem de uma célula. Recita (Lê) pois teu Senhor é generosíssimo ±¬£«\^ ±¬— ¾x«[ E ensinou através do cálamo. ±¬˜¿ ®[ \¯ ²\³×[ ±¬— Ensinou ao Homem tudo o que este não sabia!”64 Mu¬ammad, desculpando-se por não saber, mesmo assim foi capaz de ler tudo sem nenhuma dificuldade. As primeiras revelações em Meca trataram dos aspectos religiosos propriamente ditos, tais como, a absoluta unidade de Deus, a reprovação dos espíritos idólatras e a certeza do juízo final. No início, os primeiros convertidos foram os seus próprios familiares, entre eles ‘Ali que, anos depois, seria o quarto Califa. Depois de aproximadamente três anos, Mu¬ammad passou a pregar entre seus concidadãos e começou a enfrentar forte oposição na medida em que desafiava a religiosidade politeísta existente em Meca. Inicialmente, apoiada na conversão dos mais pobres e humildes, a nova religião foi também uma luta pelas desigualdades econômicas crescentes que se verificavam entre a burguesia dominante em Meca e a população mais pobre. Os que detinham o poder em Meca se valiam da exploração comercial local e se opunham fortemente à Mu¬ammad e a seus seguidores. Isso levou esses últimos a uma ação política crescente. Nesse período, a perseguição aos muçulmanos fez com que Mu¬ammad e seus partidários se transferissem para Medina, a aproximadamente 400 Km de Meca em 622 d.C. marcando o início do calendário muçulmano – Hégira (Hijra) – Nas palavras de Lewis, indica-se a importância dessa virada na vida do Islām: “Em Meca, Mu¬ammad era um simples cidadão, em Medina, o magistrado supremo de uma comunidade. Em Meca era forçado a submeter-se de forma mais ou menos passiva à 64 ¢¬˜«[ / Surata 96 / a célula ou o coágulo (de sangue). 63 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho ordem existente, em Medina era ele que governava. Em Meca pregava o Islām, em Medina podia pô-lo em prática.”65 Mu¬ammad permaneceu nessa cidade por dez anos, continuando a receber revelações e a fortificar a nova religião. À crescente conversão verificada nesses anos seguiram-se algumas peregrinações pacíficas dos muçulmanos a Meca mas que não escondiam a tensão insurgente que levaria Mu¬ammad a tomar a cidade anos depois, tornando-a o centro de peregrinação e de orientação do islamismo. A missão de Mu¬ammad parecia praticamente concluída. Depois disso, ele viveu apenas mais um ano vindo a falecer em 8 de junho de 632 d.C. / 11 H. O caminho indicado pelo Profeta havia dado aos árabes uma unidade que, talvez, latente no seio do povo, só foi possível após a crença de que o testamento escrito pelo próprio Deus, em árabe, era o selo da unidade e o guia da verdade, assim como o fôra anteriormente aos judeus e aos cristãos. 3.3 O Alcorão O termo “Alcorão” ²[z¤«[ / Al-qurān deriva do verbo [z£ / qara’ que significa ler ou recitar, significando, portanto, algo para ser lido ou recitado. Para os muçulmanos, o Alcorão é a palavra de Deus transmitida por Gabriel ao profeta Mu¬ammad, o último da sucessão iniciada pelos profetas bíblicos. O Profeta acreditava que sua missão e as revelações eram da mesma inspiração das anteriores, enviadas aos judeus e aos cristãos e, por isso, coincidiam em parte. Tratar-se-ia, assim, de uma renovação da mensagem de Deus que fôra anunciada no Antigo e no Novo Testamento. A primeira surata denomina-se “A Abertura” ( Al-Fāt÷¬a / »ob\Ÿ«[ ): “Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso. Louvado seja Deus, Senhor do Universo, O Clemente, o Misericordioso, Soberano do Dia do Juízo, Só a Ti adoramos e só a Ti pedimos auxílio. Mostra-nos o reto caminho, O caminho dos que agraciaste, Não o caminho dos que abominastes Nem o dos que se extraviaram.”66 65 66 LEWIS, op. cit. p.49. Alcorão, 1a Surata. 64 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho O Alcorão fornece istruções acerca da conduta de vida do crente e é uma fonte ética de orientação para a comunidade. A maior parte das revelações se deu por aproximadamente vinte anos e foi registrada por vários discípulos e secretários. Logo após sua morte, havia grande número de textos somados à tradição oral que estava fortemente viva pelos testemunhos daqueles que conviveram com ele, lembravam de suas palavras e as repetiam. Os primeiros califas trataram de organizar o texto em ordem decrescente por extensão de capítulos e estabeleceram-no como o encontramos até os dias de hoje dividido em 114 capítulos – ou suratas – que contém, cada uma, um número variável de versos . Uma das diferenças entre a composição do Alcorão em vistas da Torá e da Bíblia Sagrada foi o fato do primeiro ter sido revelado a um só homem e ter sido registrado poucos anos depois de sua morte. A mensagem do Alcorão não procurou uma nova fé, mas sim reestabelecer a pureza original da religião revelada por Deus a Abraão e a Ismael. Esta teria sido alterada por judeus e por cristãos, apesar de lhes ter sido lembrada por inúmeros profetas de Moisés até Jesus ao longo do tempo. No Alcorão, depois do nome de Deus, o mais citado é o de Abraão –Ibrah÷m – Também há referências a Ismael, Isaac, Moisés, Salomão e uma série de nomes provenientes da revelação contida no Antigo Testamento. Quanto ao Novo Testamento, são citados os nomes de vários Apóstolos e o de São João Batista. Jesus é considerado filho do Espírito com a Virgem Maria, e o profeta que antecedeu o próprio Mu¬ammad. Ao invés da trindade, afirma-se a unidade absoluta de Deus.67 Perde-se muito na tradução do Alcorão para as línguas modernas porque o texto é escrito numa prosa ritmada e com grande força imagética própria da língua árabe. Muito da força religiosa repousa na sonoridade e no ritmo que lhe são próprios. Vale lembrar que “antes de ser um texto graficamente fixado, o Alcorão foi uma recitação; e resta uma recitação litúrgica até os nossos dias.”68Seguindo basicamente três níveis, isto é, metafórico, narrativo e estilístico, o Alcorão centra-se em temas como a unidade absoluta e transcendente de Deus, seu poder e a condição humana frente a Ele e à sua Criação. A imagem do Juízo Final é afirmada como um paradigma pelo qual o crente deve guiar-se. Vários relatos da Bíblia são reinterpretados (Adão e Eva, Abraão e Ismael, dentre outros). Na medida em que exorta a uma vida digna e verdadeira, o Alcorão recomenda a conduta que o fiel deve seguir tanto no 67 68 HERNANDEZ op.cit. p.45. ARKOUN, op. cit. p. 9. 65 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho âmbito religioso como no moral e político. As bases da legislação e do direito muçulmanos são tributárias dessa legislação inerente à revelação corânica mas, as diversas interpretações desses princípios, levaram os muçulmanos a teses e posições conflitantes que, afinal, são próprias da exegese. 3.4 A expansão muçulmana Nos tempos de Mu¬ammad não havia ainda um verdadeiro estado muçulmano. No período inícial do islamismo a comunidade muçulmana – Umma – conservava ainda elementos da organiação tribal pré-islamica. Essa organização foi se transformando, principalmente por sublinhar mais o traço religioso como elemento de união do que os laços de sangue e parentesco. Abriu-se, assim, a possibilidade de universalizar-se. Por suas características, o islamismo procurou ultrapassar os regionalismos e suas antigas tradições. Nos dez anos que se passaram entre a Hégira e sua morte (622 d.C. à 632 d.C.), Mu¬ammad lançou a semente de um estado árabe de cunho teocrático. Este foi aceito cada vez mais por um número maior de árabes, transpondo as barreiras tribais em direção ao surgimento de uma unidade social, política e religiosa. “ O entusiasmo das conquistas e da fé iam conferir dimensões consideráveis a esse Estado: durante vários séculos, o mundo muçulmano ocupou o lugar do mundo antigo e cristão.”69 Com a morte de Mu¬ammad a comunidade não se dissolveu e acelerou o processo de expansão do Islām. Apesar de Mu¬ammad não ter deixado herdeiros e nem instruções a respeito de sua sucessão, a direção da comunidade se amparou na figura do Califa. O termo árabe »ŸÀ¬r / åal÷fa significa “sucessor”. A responsabilidade do califa deveria ser conduzir a comunidade segundo a Palavra de Deus e do exemplo do Profeta. Desde o início, a sucessão e a legitimidade do Califa foram motivo de dissensões e responsáveis pelas divisões que se verificaram ao longo da história do Islām. O primeiro período do califado, conhecido como o período dos “califas ortodoxos”, durou por volta de 30 anos. Os primeiros quatro califas foram ‘Abu Bakr (632-634 d.C.); ‘Omar ( 634-644 d.C.); Utmān ( 644-656 d.C.) e ‘Ali (656661 d.C.) que dirigiram a comunidade muçulmana numa época em que as palavras do Profeta ainda ecoavam pela Arábia. Nesse período, a sede do califado era Medina, transferindo-se para Kufa, no Iraque, no califado de ‘Ali. 69 MANTRAN, op.cit.p.75. 66 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho O primeiro Califa, Abu Bekr, em menos de um ano após a morte do Profeta, unificou a Península Arábica em torno do islamismo. Formou-se um exército de fiéis que não tardou a ultrapassar as fronteiras do norte da Arábia e mostrar sua força frente aos territórios dominados pela Pérsia sassânida e pelo Império bizantino. Os motivos que levaram à sucessivas vitórias dos árabes sobre os persas e os bizantinos são tema controverso pelo fato da superioridade dos exércitos destes últimos. Além do impulso da fé, a promessa de ricos espólios levou os beduínos a se alistarem sob as bandeiras dos Califas num período em que nem Bizâncio e nem a Pérsia – que há muito combatiam entre si pela supremacia na Asia Menor e do Oriente Próximo – pareciam crer numa real possibilidade do domínio árabe. “Quando, após uma série de derrotas, compreenderam a gravidade da ameaça, já era tarde demais.” 70 Vale lembrar que, nesse período, a Pérsia vivia um certo vácuo de poder. De 629 a 632 d.C. sucederam-se oito soberanos. A entrada dos muçulmanos em territórios dominados por Bizâncio como, por exemplo, na Síria, foi facilitada tanto pelas querelas religiosas dos monofisitas como pelos árabes que lá viviam e, há tempos, já mantinham relações comerciais com a Arábia. Também no Egito, devido a profundas dissensões, a chegada dos árabes teve uma acolhida favorável. Com a conquista do Egito, encerrou-se a primeira fase da expansão muçulmana. Em seguida, iniciaram-se as conquistas marítimas que puseram fim à supremacia bizantina no Mediterrâneo. O último califa desse primeiro período, ‘Ali, genro do Profeta, sofreu muita pressão política e transferiu a capital para Kufa, no Iraque. Nesse período, a unidade do mundo muçulmano e a supremacia árabe passaram por grandes transformações e divisões internas. 3.5 Os Omíadas Após o curto califado de ‘Ali, o poder passou às mãos dos Omíadas. Essa dinastia dirigiu o mundo muçulmano por 90 anos (661 a 750 d.C.) tendo Mu‘āwiya como seu fundador. Objetivando restaurar o poder do Califa e reestabelecer a unidade do Islām, comprometida por movimentos separatistas, Mu‘āwiya centralizou o poder e transferiu a capital política para Damasco na Síria. Esta escolha resultou em forte oposição dos muçulmanos mais conservadores que só aceitavam Meca e Medina como cidades destinadas a cumprir esse papel. Além disso, a dinastia Omíada instituiu 70 MANTRAN, op.cit. p.80. 67 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho a sucessão dos califas por linha direta tentando evitar os perigos da eleição e da guerra civil. Também criou conselhos consultivos junto ao califado procurando amenizar as tensões do separatismo. Após o califado de Mu‘āwiya (661 a 681 d.C.), a dinastia Omíada governou por mais 70 anos através de nove sucessores em meio a extremas agitações. A segunda fase da expansão muçulmana se deu nos períodos de certa calma interna do califado Omíada. As expedições tiveram três direções: Constantinopla e Ásia Menor; norte da África e Espanha; e Ásia Central. Nesse período, vários foram os cercos à capital do Império bizantino – Constantinopla –, mas esta resistiu e iria cair somente sete séculos mais tarde com a invasão dos turcos. Os árabes também fizeram incursões nas ilhas gregas de Rodes, Creta e, possivelmente, na Sicília. À conquista em direção ao norte da África seguiram-se as incursões na Espanha. Em 711 d.C., Æāriq ocupou Córdoba e Toledo cidades onde a conquista foi facilitada pelos judeus que lá habitavam e que apoiaram os muçulmanos, reagindo, assim, contra as perseguições dos visigodos. Os muçulmanos prosseguiram mais ao norte, penetraram no sul da Gália, e só foram detidos em 732 d.C. em Poitiers. Esse foi o ponto extremo a que chegaram na Europa. Na direção da Asia Central, avançaram ao nordeste do Irã, atingiram o rio Indo, em 713 d.C. chegando ao centro budista de Multan que por algum tempo foi o ponto mais avançado do Islām na India. No último reinado de ‘Abd al-Malik houve um período de esplendor que antecedeu os anos finais de anarquia entre 744 e 750 d.C., e terminou com a queda da dinastia Omíada. 3.6 Os Abássidas Dentre as oposições que a dinastia Omíada enfrentou, principalmente nos últimos anos, a dos Abássidas foi determinante e tomou a frente do Islām. Descendentes de ‘Abbās, um tio do Profeta, os Abássidas organizaram-se nas regiões do Irã e, em 750 d.C., enquanto os Omíadas perdiam o controle central, Abu Abbas foi proclamado califa. Sob a dinastia Abássida, o Islām ganhou um novo impulso e uma nova força. Os historiadores tem procurado afastar a idéia de se tomar a vitória dos Abássidas sobre os Omíadas como uma vitória dos persas sobre os árabes. Justificam isso pelo fato de que esse movimento contou, inclusive, com a participacao de muitos árabes, iraquianos, sírios e egípcios. “É na insatisfação socioeconômica da população 68 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho urbana menos favorecida, designadamente dos mercadores e artesãos (...) que a força impulsionadora da revolução deve ser procurada.”71 Mais do que a simples mudança de dinastia, a substituição dos Omíadas pelos Abássidas na direção da comunidade islâmica se configurou numa grande revolução na história do Islām, “uma viragem tão importante quanto as revoluções francesas e russa na história do Ocidente.” 72 Considerado como um período de amplo desenvolvimento da arte, da cultura, da filosofia e das ciências da época, o califado dos Abássidas manteve seu vigor até meados do sec. XI d.C. quando as invasões dos mongóis, turcos seldjúcidas e, depois, dos turcos otomanos alteraram definitivamente a fisionomia do império arabo-islâmico dos primeiros séculos. Uma das primeiras medidas tomada pela nova dinastia – e um de seus marcos –, foi a transferência da capital política de Damasco, na Síria, para Bagdá, no Iraque durante o reinado do primeiro califa, ’Abu ‘Abbā as-Saffāh (750 a 754 d.C) e de seu irmão ’Abu Ja‘far Al-Mansýr que reinou durante por pouco mais duas décadas ( 754 - 775 d.C.). Foi sob o reinado deste último que se efetivou a mudança da capital com a fundação da cidade de Mad÷nat as-Salām (a Cidade da Paz) que acabou ficando conhecida pela região que a abrigava, isto é, Bagdá. O geógrafo Ya‘qýbi, conta como Al-Mansur se referiu ao local escolhido para a fundação da cidade: “ Essa ilha entre o Tigre, a oriente e o Eufrates, a ocidente, é um mercado para o mundo.(...) Louvado seja Deus que guardou esse lugar para mim e fez com que todos aqueles que me precederam, o tivessem desprezado. Juro por Deus que farei a sua reconstrução e, então, habitarei aqui enquanto viver e os meus descendentes habitarão depois de mim. Será a cidade mais próspera do mundo.” 73 Inicialmente, de formato circular, Bagdá continha o palácio do califa ao centro e, ao redor, mesquitas, edifícios públicos e residências para funcionários. A mudança da capital não significou apenas uma mudança territorial mas também o conceito de califado. Enquanto os primeiros califas árabes eram homens que se igualavam aos outros e podiam ser abordados e misturavam-se ao povo, a dinastia Abássida cercou-se de pompas e cerimônias –possivelmente de influência persa-, reivindicando um direito quase divino. Se o califa Omíada ainda guardava traços do chefe das tribos árabes, ou 71 LEWIS, op. cit. p. 94 LEWIS, op. cit .p. 93. 73 LEWIS, op. cit.p.96 72 69 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho um rei árabe limitado por ser o representante do profeta de Deus, o califa Abássida teve o perfil do chefe espiritual e temporal, um soberano absoluto que atribuiu a si mesmo ser o representante de Deus sobre a terra. Foi nesse período que se criou, também, a figura do vizir (waz÷r), inovação, possivelmente também de origem persa para este que tinha toda a responsabilidade da burocracia administrativa e, por isso, tinha muito poder. Al-Mahd÷ (775-785 d.C.) sucedeu Al-Man½ýr, seguiu na organização do estado e se ocupou em reprimir inúmeros movimentos separatistas de seitas heterodoxas. Ao mesmo tempo as transações comerciais se intensificaram. Vale lembrar que o comércio tinha, para os árabes, o paradigma do mercador íntegro seguindo o exemplo de Mu¬ammad, símbolo ético nas transações. Segundo a tradição, disse o Profeta: “os mercadores são os mensageiros do universo e os servos a quem Deus depositou confiança na Terra.”74 Depois do reinado de Al-Mahd÷, Harýn arRa¹id, talvez o mais conhecido califa desse período, governou de 786 a 809 d.C. No Ocidente ficou conhecido pelo seu relacionamento com Carlos Magno. Morto numa expedição, sua sucessão gerou uma guerra da qual Al-Ma’mýn saiu vencedor e permaneceu no poder durante vinte anos (813 a 833 d.C.). O reinado de Al-Ma’mýn foi o apogeu da dinastia Abássida. Nessa época, em que Bagdá já havia se desenvolvido a ponto de ser renomada pelos seus intelectuais, o próprio califa interessou-se pelas obra gregas que eram traduzidas por cristãos e judeus para a língua árabe e incentivou esse movimento. Após o governo de Al-Ma’mýn sucedeu-o Al-Mu‘ta½im (833-847 d.C.) e Al-Mutawakkil (847- 861 d.C.) Com a morte deste último a dinastia se enfraqueceu e não dominou mais de modo absoluto. Do grande desenvolvimento que se observou na administração do império, no comércio e nas cidades, o impulso nas letras foi o mais relevante no estabelecimento das bases para o pensamento filosófico no Islām. Nesse período a língua árabe foi amplamente adotada por todo o império. Se nos tempos dos Omíadas, a cultura e literatura dos beduínos eram tratadas com preeminência, no califado Abássida, os núcleos de ciência e cultura se fixaram definitivamente nas cidades e, entre elas, Bagdá. Com a fundação da Bait al-Hikma ( a Casa da Sabedoria) por AlMa’mýn, Bagdá se tornou a capital intelectual do império numa época em que os 74 LEWIS, op.cit.p.105. 70 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho mecenas sustentavam escritores e poetas e onde se reuniam muitos sábios árabes, iranianos, indianos, gregos, cristãos e judeus. Não era de se surpreender, pois, que, nesse cenário, houvesse uma efervescência em todas as áreas do saber: Matemática, Astronomia, Filosofia e todas as ciências da época foram sendo traduzidas e discutidas por essa nova elite que se formou em Bagdá. “Graças aos trabalhos, estudos e pesquisas dos pensadores e sábios árabes, o espírito humano fez enorme progresso, que o Ocidente cristão só veio a conhecer mais tarde, por intermédio da Itália e, sobretudo, da Espanha.” 75 Os nomes ligados a esse período são, por exemplo, Al-åawārizmi, Ibn Qurra e Al-Batani, nomes aos quais se referem os avanços da Matemática como a introdução do zero, a inclinação do plano da eclíptica e o amplo desenvolvimento da álgebra. Na Física e na Química, assim como na Medicina, o avanço e a sistematização dos conhecimentos encontrou em Al-Rāz÷, Ibn S÷nā e Ibn Zuhr (Avenzoar) nomes de destaque. Do mesmo modo – como verificaremos com detalhes mais adiante –, a filosofia grega penetrou nesse universo que, em paralelo, mantinha como áreas reservadas à sua própria cultura o estudo do Alcorão, a poesia, a gramática e a filologia. As traduções das obras estrangeiras e a presença de intelectuais de várias partes do mundo proporcionaram uma via de duas mãos de influências. A maioria dos árabes que desconhecia esses gêneros, mostrou vocação para continuar o desenvolvimento em praticamente todas as áreas enquanto os não-árabes traziam grande parte de sua história intelectual. “Seja como for, cumpre notar que houve um fenômeno de aculturação recíproca.” 76 A partir da segunda metade do sec. IX. d.C./III H. o império foi perdendo paulatinamente a sua unidade com a formação de emirados autônomos, oposições religiosas crescentes que anunciaram um desmembramento político de um mundo muçulmano que, em suas origens, pregou sua unidade. Ao mesmo tempo em que o califado Abássida centralizou seu poder em Bagdá, no norte da Africa, mais propriamente no Egito, uma facção supostamente de descendentes de ‘Ali e Fátima fundou o califado dos Fatímidas. Na Espanha muçulmana, logo após a conquista desses territórios, as lutas internas haviam obrigado o califado Omíada, ainda em Damasco, a enviar muitos sírios para a região e estabelecer o entendimento das facções. Quando o califado Omíada de Damasco foi extinto, a Espanha muçulmana ofereceu refúgio aos Omíadas e, com o apoio dos sírios, em 756 d.C. ‘Abd al-Ra¬mān 75 76 MANTRAN op.cit.,p.136. MANTRAN, op. cit., 137. 71 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho foi proclamado emir em Córdoba. Essa situação permaneceu até o governo Fatímida no Egito ter se proclamado como um novo califado. Na mesma época, o emir ‘Abd alRa¬mān III também se proclamou califa em Córdoba, afirmando a tradição do califado Omíada e sustentando-se como chefe da comunidade muçulmana no período de apogeu de Córdoba. As divisões internas do mundo islâmico, a partir do séc. X d.C./ V H., lhe conferiram uma face bem distinta da época das conquistas. “ O sec. X. d.C. foi o último grande século do mundo muçulmano, resultado da expansão que começou logo após a morte do Profeta (...) daí resultaram tendências que fizeram do Islām não mais uma realidade árabe, mas uma realidade berbere, turca ou iraniana.”77. Já no século XI d.C. / VI H. o mundo islâmico sofreu, simultaneamente, ataques e invasões dos turcos pelo Oriente, dos berberes no norte da África e na Espanha, dos cristãos na Síria, na Sicília e na Espanha, modificando a face política, cultural e territorial do Islām. O período de apogeu do império arabo-islâmico criou momentos florescentes, pela intersecção de várias culturas sob a égide da religião trazida pelos árabes. Dessa construção cultural participaram muitos povos além dos árabes tais como persas, egípcios e sírios, dentre outros. Ao mesmo tempo, a tolerância religiosa nas regiões conquistadas abrigou uma comunidade que não era exclusivamente muçulmana mas que contava com cristãos, judeus, zoroastrianos e hindus, entre outros. Para nosso desiderato, cumpre deter-se sobre a chamada “idade do ouro”, notadamente sob o reinado de Al-Ma’mýn no qual se deu a recepção das obras filosóficas gregas e do conjunto de grande parte das ciências conhecidas da época, somando-se a isso a reunião de vários sábios na cidade de Bagdá do séc. IX d.C. / III H., particularmente nas traduções realizadas na Casa da Sabedoria, o berço da falsafa. 3.7 Os primeiros intérpretes Pode se considerar que a história intelectual dos árabes começou propriamente com o nascimento do Islām e teve, no estabelecimento do Alcorão, o principal foco da reflexão que ocupou os primeiros sábios árabes. Antes da palavra revelada e grafada, os principais monumentos da cultura árabe haviam sido as tradições da poesia e da literatura. Essas, transmitidas oralmente, continham as regras sociais, 77 MANTRAN, op. cit., p. 162 72 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho políticas, religiosas e morais, e estavam circunscritas, ainda, nos limites de cada grupo. Os regionalismos e as regras estanques de cada tribo, de cada clã e de cada família foram sendo ultrapassados pelo chamamento do Profeta para a união dos árabes. A mensagem do Alcorão permitia uma visão universal que deveria ultrapassar os regionalismos tribais. Porém, mais do que mensagens religiosas de oração e devoção, o Alcorão trazia, também, uma série de princípios, regras de conduta e a própria lei pela qual a comunidade deveria se guiar e o crente, em particular, deveria seguir. A fonte corânica, somada à tradição das ações e decisões atribuídas a Mu¬ammad precisariam, assim, ser bem compreendidas para que fosse atingido o termo da fé. Isso, obviamente não era tarefa fácil e, como bem assinalou Hernandez, “os primeiros doutos na religião islâmica – os ulemás medinenses – encontraram seriíssimas dificuldades na hora de aplicar o Alcorão a toda a ordem social do Islām.”78 Vale lembrar que o texto corânico só fora estabelecido durante o reinado do terceiro califa, Otman (644-656d.C.) e que as tradições circularam oralmente durante quase dois séculos, com a reunião de muitos apócrifos. Somente no séc. IX d.C./II H. foi estabelecida a compilação das “Tradições Irrefutáveis” ou canônicas, das quais a mais conhecida foi de Al-Bu¬ār÷ (m.870 d.C.) Esse quadro evidencia que a ocupação dos sábios desse primeiro período se deu muito em vistas da materialidade dos textos, de sua organização para uma mínima compreensão das questões mais obscuras. Os mais ilustrados desse primeiro período eram essencialmente lingüistas ou exegetas do texto sagrado. Dedicaram-se, por um lado, ao estudo e à analise dos textos do Alcorão e das Tradições e, por outro lado, à interpretação dos aspectos jurídicos da Escritura e de sua aplicação aos casos concretos. Do conjunto do texto corânico e das narrativas da tradição, a primeira geração de sábios muçulmanos procurou extrair princípios jurídicos gerais e morais que fornecessem uma trilha segura aos crentes. Desse modo nasceram, inicialmente, três tipos de ciência: da leitura ( ºÆ[z£«[ tafs÷r); e da jurisprudência ( ±¬— / ‘ilm al-qirā’at); da exegese ( zÀŸb / ¹£Ÿ / fiqh ) formando uma base mínima de exegese no início do islamismo. No campo jurídico, por exemplo, uma classe de sábios deu início 78 HERNANDEZ, op.cit.,p.99 73 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho ao uso da analogia e do julgamento independente para as matérias indecisas dando surgimento a quatro escolas jurídicas nas quais a jurisprudência muçulmana se baseou: a de Abu Hanifa (m. 767) e a de Al-Safi (m. 820) foram as mais liberais e rivalizaram com as de Malik Ibn Anas (m.795) e a de Ahmad Ibn Hanbal (m. 855). Não é difícil perceber, pois, que os primeiros pensadores do islamismo defrontaram-se com o desafio dos desafios diante de um texto sagrado: a exegese. De acordo com a interpretação que se dê a uma determinada passagem, a conclusão pode ser tão diversa de outra interpretação que não parecem as duas, às vezes, provir do mesmo texto. Mas isso, aliás, não foi privilégio da exegese do Alcorão mas ocorreu em todas as comunidades que possuíam um livro revelado por Deus. Se a palavra sagrada é vista como perfeita e única, o entendimento dos homens é múltiplo e imperfeito, o que gerou controvérsias desde sempre. Ao mesmo tempo em que as questões jurídicas colocavam desafios de interpretação para o julgamento dos casos concretos, a abordagem do texto corânico também ganhava corpo em direção aos princípios propriamente teológicos que lhes serviam de base e justificativa. Desse modo, a teologia – kalām – cumpriu um papel decisivo para fundamentar posições e tornou-se cada vez mais urgente a necessidade de se ordenar esse conjunto de coisas numa explicação sistemática dos dados da revelação e da tradição. Além disso, foi preciso definir o entendimento das próprias doutrinas para traçar seus limites em vistas do paganismo, do judaísmo e do cristianismo. 3.8 O Kalām O termo “kalām”, como vimos anteriormente79, significa discurso, palavra, linguagem no sentido da argumentação discursiva. O método usado pelo kalām anunciou, em certa medida, o raciocínio filosófico que penetraria de modo mais sistemático o mundo islâmico a partir dos grandes movimentos de traduções das obras de filosofia grega. Como bem sintetizou Carra de Vaux, “a ciência do kalām penetrou nessa religião pela via tradicional e oral; ela é anterior à tradução dos livros gregos antigos, da qual recebeu somente um novo impulso, ela não é propriamente escolástica. Ela tem semelhança com as meticulosas disputas de teologia que apaixonaram os 79 Cf. Cap. 1./1.7. 74 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho bizantinos e é, sem dúvida, do lado da cultura cristã que é preciso buscar sua origem.”80 As disputas iniciais acerca das diferentes teses suscitadas pela interpretação do texto sagrado dividiram, logo de início, as opiniões e originaram uma série de escolas. O termo “mutakallimýn”, a princípio usado para nomear os teólogos de modo indistinto, se aplicou, depois, mais para designar os ortodoxos em vista das escolas que se afastaram da ortodoxia. Por sinal, “a primeira escola de teólogos especulativos é herética: a dos mu’tazilitas.”81 Além das disputas internas, os primeiros mu’tazilitas se ocuparam também em refutar os argumentos dirigidos contra o Islām pelos judeus, pelos cristãos e pelos pagãos. Dentre esses últimos, os materialistas e os maniqueus. Para tal, desde o início, os mu’tazilitas apoiaram-se no que denominaram de “a racionalidade das vias de Deus”, buscando fundamentar intelectualmente suas posições sem descartar a autoridade da Escritura. Suas teses ficaram conhecidas através de comentadores posteriores que as citaram em suas obras. Caracteristicamente marcada pela heterogeneidade de suas opiniões, a escola mu’tazilita integrou teólogos que, apesar das divergências, tinham pontos básicos de concórdia, dentre os quais a unidade de Deus e o modo pela qual a expressavam: “Deus não é, dizem eles, como as coisas; ele não é nem corpo, nem acidente, nem elemento, nem átomo, nem substância, Ele não é perceptível aos sentidos nem neste mundo e nem no outro; ele não está contido num lugar e nem limitado por dimensões, mas ele é aquele que não cessa. Ele não conhece nem tempo e nem lugar; nem fim nem limite; ele é o Criador de todas as coisas e ele as faz sair do nada. Ele é eterno, e tudo, fora dele, é engendrado.”82 Aos primeiros sinais da possibilidade de um racionalização da concepção da unidade de Deus, os mu’tazilita manifestaram uma certa proximidade com os conceitos aristotélicos a esse respeito e com fontes anteriores que se mesclaram nesta síntese. Um outro exemplo dos problemas enfrentados pelos primeiros teólogos encontrou-se na questão do livre-arbítrio e da predestinação (yv£/ qadar ), geralmente reconhecida como uma das primeiras questões maiores tratadas no séc. VII d.C. Também os 80 CARRA DE VAUX, op. cit.,p. 134. CARRA DE VAUX, op. cit.,p. 134 82 CARRA DE VAUX, op. cit.,p. 137 81 75 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho mu’tazilita foram pioneiros em fornecer interpretações de caráter alegórico a determinadas passagens do Alcorão tais como aquelas em que Deus aparecia de modo antropomórfico. Nesses casos, somente a interpretação alegórica podia salvaguardar a imaterialidade e transcendência de Deus. Outra questão tratada nesse período foi, também, a da justiça divina e da responsabilidade do homem frente a ela. Não é difícil imaginar que num cenário de crescente interesse e de discussões a respeito da interpretação do Alcorão e da tradição, a introdução posterior da filosofia e da lógica gregas foi um elemento de sofisticação no pensamento e uma força que, ao menos no início e para alguns, mostrou-se uma aliada. Outros, ao contrário, condenaram a razão grega desde o início. De todo modo, o fato é que a filosofia, a partir das traduções para o árabe, cumpriu um papel decisivo no pensamento islâmico. Aliás, esse interesse parece ter sido semelhante ao dos cristãos do Egito, da Síria e da Pérsia séculos antes, como um estímulo para a sofisticação do valoroso instrumento da argumentação para, em suma, explicar o dogma. Assim como os árabes, também “os sírios cristãos que prepararam o terreno à introdução da herança grega ao oriente próximo pouco tempo antes da conquista árabe do séc. VII d.C., foram essencialmente interessados pela lógica aristotélica e a filosofia grega como prelúdio aos textos teológicos.”83 O instrumental para exegese teológica, assim como todo o conjunto da intelectualidade entre os árabes, foi incrementado a partir dos impulsos para o saber que se verificou nos tempos da dinastia Abássida. Se no período Omíada o crescimento da filosofia e das ciências dependeu exclusivamente de esforços individuais, com os Abássidas – notadamente no período de Al-Ma’mýn – o Estado passou a ser um importante mecenas para um trabalho em larga escala na ordem das traduções. É bom destacar, no entanto, que o crescente aprofundamento nessas questões, gerou divisões teológicas que serviram de instrumento político para os califas reforçarem o poder e o domínio em vista das regiões que se lhe opunham. Nesse período, os califas, sustentando posições teológicas contra outras por questões políticas, colocaram a teologia – e também a filosofia – a serviço direto da política. Em conseqüência disso “a liberdade de pensamento e de consciência foi seriamente comprometida.” 84 Deve se levar em conta, também, que antes das traduções realizadas no período Abássida, os muçulmanos estavam envolvidos com questões militares e 83 84 FAKHRY, op.cit., p.21 FAKHRY, op.cit., p.19 76 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho políticas de primeira ordem. A estreita relação entre a política e a religião, entre estado temporal e espiritual nutriram desde o início as controvérsias político-religiosas. Como bem destaca Fakhry, “Os conceitos religiosos foram frequentemente formulados para servir de sustentação a posições políticas opostas tendo, depois, uma importância decisiva no desenvolvimento ulterior da teologia islâmica.”85 Ao mesmo tempo que a filosofia e a lógica gregas forneciam elementos para a teologia islâmica, o volume de traduções foi suficiente para despertar o interesse dos árabes fazendo com que a filosofia se constituísse num ramo próprio que não se confundiria com a teologia. Tendo continuado em árabe, a falsafa foi, assim, herdeira do pensamento filosófico da antiguidade de inspiração grega no mundo islâmico. 85 FAHKRY, op.cit., p.61. 77 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho 4 – “IDE BUSCAR O SABER ATÉ NA CHINA” (...) A RECEPÇÃO. 4.1 Uma herança do saber O nascimento do Islām no séc. VII d.C./ I.H., fez com que os árabes saíssem da península arábica e, sob o comando de Mu¬ammad e dos primeiros califas, estabelecessem um império que iria se consolidar, posteriormente, desde o sul da Espanha até a India, passando por todo o norte da África, pelo Oriente Médio e chegando às portas de Bizâncio. “O fato tem conseqüências incalculáveis: pela primeira vez estes dois conjuntos, do delta do Indo à Hispânia, são reunidos sob uma mesma autoridade, fundidos num mesmo domínio econômico, prometidos a uma mesma cultura.”86 O avanço dos árabes, em busca não só do domínio das terras e da administração mas também do saber, impulsionados por sua nova religião, pelas próprias palavras do Profeta e do Alcorão, fez com que tivessem um contato proveitoso com culturas que possuíam uma tradição filosófica e científica mais antiga e bem diversa daquela que eles haviam produzido nos desertos da arábia. No novo cenário histórico que se desenhou, os árabes se colocaram em contato mais íntimo com a Pérsia, o Egito, a Síria, a Índia, dentre outras. Culturas que forneceram diversos elementos para que grande parte dos conhecimentos da época se constituísse num conjunto reelaborado que foi, então, unificado pela língua árabe. Assim, os árabes se beneficiaram pelo desenvolvimento anterior que havia se verificado, por exemplo, nos centros de estudos de Gundishapur, de Edessa e de Alexandria, dentre os principais. Além disso, nunca é demais lembrar que por toda extensão das terras conquistadas pelos árabes já havia núcleos da cultura helênica desde os tempos do império de Alexandre. Nestes, há muito tempo já se tinha contato com as obras e com o idioma dos antigos gregos. Assim como a tomada de Alexandria pelos árabes em 641 d.C. – que já era o centro mais importante para a filosofia grega e para a teologia desde o início do primeiro milênio da era cristã – os colocaria em contato com esses estudos, assim também o seria com o domínio de alguns outros núcleos da cultura helênica espalhados pela Síria e pela Pérsia como os de Antióquia, Harran, Edessa e Nísibe. Estes cultivavam a língua grega objetivando, dentre outras coisas, ter acesso aos principais textos teológicos vindos da própria Alexandria. 86 MIQUEL, O Islame in GIORDANI, p. 71. 78 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Se por um lado, a presença dos árabes proporcionou um novo impulso tanto às ciências práticas como à própria filosofia, por outro lado, a importância dos comentadores sírios de Aristóteles – e as traduções do grego para o siríaco que antecederam a passagem da sabedoria dos gregos aos árabes – foi fundamental, pois forneceu elementos filosóficos e teológicos que, em seguida, foram desenvolvidos pelos árabes em sua realidade religiosa nascente. Apesar disso, deve se levar em conta que muitas das traduções siríacas foram realizadas em vista de uma tradução para a língua arabe. Se, por um lado, isso indica que talvez não tenha havido propriamente uma forte tradição siríaca da filosofia nesse período, por outro lado mostra que a filosofia grega era estudada na língua original. Na tradição dos comentadores sírios, “a tradução de textos teológicos se acompanhava frequentemente da tradução de obras de lógica. Isso era necessário para examinar mais profundamente a significação dos conceitos teológicos e os procedimentos dialéticos implicados nos debates cristológicos da época.”87 Um dos exemplos disso foi a presença de Severe Sebokt (m.667) que viveu no monastério monofisita de Qinasr÷n e escreveu comentários sobre o Tratado da Interpretação e sobre A Retórica de Aristóteles e escreveu um tratado sobre os Silogismos dos Primeiros Analíticos. Seu discípulo, Jaques de Edessa deixou como legado uma versão siríaca das Categorias. É importante salientar, pois, que nessa rápida expansão que abarcou os núcleos de saber da Antiguidade, a passagem da ciência e do saber dos antigos aos árabes teria sido mais difícil sem a colaboração que obtiveram de tradutores, teólogos e lingüistas que não eram nem muçulmanos e nem árabes. A ajuda recebida dos cristãos nestorianos, monofisistas e melquitas – principalmente na Síria e no Egito que os recebeu praticamente como libertadores da opressão do poder central de Bizâncio – se estendeu até a época das traduções dos textos gregos e siríacos para a língua árabe. Em quase sua totalidade, essas traduções foram realizadas pelos sábios cristãos do oriente como, por exemplo, o trabalho dos sábios de Harran na Síria – que era centro dos adoradores dos astros mescladas a influências helenísticas, gnósticas e herméticas, e que forneceria os astrólogos para a corte Abássida – , mas notadamente por Hunayn Ibn Is¬āq. 87 FAHKRY, op. cit., p. 26 79 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Também foi importante o papel dos mestres cristãos nestorianos da tradição do saber grego-siríaco juntamente com outros que deixaram a escola de Atenas quando esta foi fechada por Justiniano em 529 d.C. e que se encontravam em Gundishapur. Esta, fundada em 555 d.C., já possuía uma academia renomada, observatórios e escolas de medicina muito antes de que Bagdá fosse fundada em 762 d.C. ou que a Casa da Sabedoria – fundada em 830d.C. – tivesse na figura de Hunayn o seu diretor e o maior tradutor desse período. Além disso, Gundishapur também forneceu aos califas, médicos para a corte e contribuiu para a fundação do primeiro hospital em Bagdá. Num segundo momento, não foram somente as conquistas que colocaram os árabes em contato com a herança de conhecimentos da antiguidade mas também a algumas missões enviadas pelos califas ou por famílias de posses. A época de maior interesse por esse tipo de expedições do saber se deu no período Abássida. Algumas missões eram oficiais e tinham como objetivo principal procurar manuscritos gregos. Uma das mais importantes foi enviada pelo próprio califa Al-Ma’mýn com o objetivo de ir a Bizâncio para trazer manuscritos a serem traduzidos na Casa da Sabedoria. Outra missão que ficou muito conhecida foi organizada pelos irmãos Šakir que levou, entre outros, ©unayn Ibn Is¬āq. Igualmente importante foi a aquisição de obras científicas e filosóficas pelos membros de uma rica família chamada Baný Mýsā. Muitos representantes dessa família foram grandes mecenas para as traduções chegando mesmo a rivalizar com os califas ao enviar missões a Bizâncio e reunindo, por própria conta, renomados tradutores do império para o trabalho final. Os temas eram diversos e incluíam tratados de matemática, astronomia e física, dentre outros. Os próprios membros da família chegaram a compor certos tratados que são atribuídos a um de seus membros chamado Mu¬ammad tais como o Tratado sobre o Átomo e um Tratado sobre a Eternidade do Mundo. Além dessas expedições, os próprios sábios como, por exemplo, Qusta ben Luqa, conseguiram muitos dos manuscritos que se conseguiu traduzir. De todo modo, foi nesse cenário rico de influências que, em pouco tempo, os árabes se viram detentores de grande parte da herança filosófica e científica da antiguidade a qual, paulatinamente, foi sendo traduzida para a língua árabe. 80 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho 4.2 as primeiras traduções As primeiras fontes que forneceram o material para ser traduzido provinham em grande parte da língua grega e do siríaco. Os primeiros temas que foram traduzidos, não foram propriamente filosóficos, mas sim temas que tinham uma aplicação prática. Havia sido, em boa medida, considerações de ordem prática que levaram, paulatinamente, à substituição do persa e do grego como língua oficial no âmbito administrativo pela língua árabe. Pode-se aceitar como crível que os textos científicos e médicos foram as primeiras obras traduzidas em árabe. Os textos de alquimia e astrologia também aí se incluíram. A justificativa para isso, talvez, se encontre no perfil prático dos árabes, o que despertou um interesse mais imediato de aplicação deixando os aspectos mais abstratos do pensamento grego para um momento posterior. No campo da medicina, uma das primeiras traduções foi atribuída a um médico judeu (Māsaræawayh). Essa obra, um breviário médico síriaco denominado Kunnā¹ de autoria do médico monofisita alexandrino Aaron, foi realizada por volta de 683 d.C. e tinha grande reputação entre os sírios. O processo de tradução de obras científicas e filosóficas começou a se intensificar durante o período Abássida sob os reinados de Harýn arRa¹÷d e de Al-Man½ýr o qual era versado na jurisprudência e amador da filosofia e astronomia e tinha a seu serviço sábios, médicos e astrólogos. Nesse período possivelmente foram traduzidos O Almagesto de Ptolomeu e Os Elementos de Euclides. Na mesma época foi traduzido, também, um célebre tratado de astronomia indiano (Siddhānta) por Al- Fazār÷ (m.806) que juntamente com seu pai Ibrāh÷m construiu o primeiro astrolábio no Islām e são computados entre os primeiros astrônomos islâmicos.Uma das razões para a importância da tradução de obras de astronomia e de astrologia podem estar ligadas diretamente aos conselhos políticos dos sábios da corte a partir dos movimentos dos astros. As convulsões políticas que culminaram com a quedas dos Omíadas e a sucessão dos Abássidas haviam inclinado os califas a uma valorização dos movimentos dos astros como determinantes na vida das nações. Fahkry anota esse fato do seguinte modo: “Mesmo os califas mais esclarecidos desse período, como Al- Ma’mýn, não escaparam dessa dependência frente às estrelas. Havia, não somente um astrólogo real contratado ao seus serviços, mas ele não 81 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho tomava nenhuma decisão militar ou política importante sem, primeiro, o consultar.”88 Num primeiro momento parece que foram traduzidos muitos textos apócrifos como, por exemplo, aforismos morais atribuídos a Sócrates, Sólon, Hermes e Pitágoras. Um dos tradutores mais importantes que viveu durante o califado Abassida foi Ya¬ya Ibn al-Bitr÷q que traduziu para o árabe, dentre outras, o Timeu de Platão – talvez não propriamente a obra original mas uma paráfrase de Galeno. Igualmente traduziu uma paráfrase do Tratado sobre a Alma de Aristóteles – talvez numa versão de Temisthius. Das obras aristotélicas atribui-se-lhe também dezenove livros de zoologia, os Primeiros Analíticos e o apócrifo Segredo dos segredos o qual ele dizia ter “descoberto durante suas pesquisas da Política de Aristóteles sob a ordem do califa.”89 Até o reinado de Al-Man½ýr, porém, ainda não havia à disposição dos califas um grupo tão competente como o que veio em seguida sob o reinado de Al-Ma’mýn que fez um esforço sistemático e determinado para adquirir e traduzir os principais monumentos da ciência e da filosofia grega. À época das traduções, podia se verificar – pelo relato de Salāh ad-d÷n as-½afad÷ – que havia dois métodos de tradução existentes. O primeiro método –inicialmente talvez usado por Ibn al-Bitr÷q e Ibn Naima – consistia em identificar termo a termo o texto grego e depois procurar os termos correspondentes na língua árabe. Esse, porém, não foi considerado um bom método devido à inexistência de equivalência de termos correspondentes – notadamente porque a língua árabe não fôra esculpida, até então para isso – e mesmo porque a peculiar sintaxe da língua árabe dificultava esse processo. O segundo método de tradução, amplamente adotado por ser o mais confiável, foi o de ©unayn Ibn Is¬āq e de sua escola. Neste, a sentença em grego era lida até ser compreendida perfeitamente para, depois, o tradutor procurar o mesmo sentido na língua árabe independente de seguir a sentença termo a termo. Deve-se destacar que isso só era realizado depois de se estabelecer previamente um bom texto grego fixado por diferentes manuscritos disponíveis, fornecendo, inclusive, as variantes mais importantes. 88 89 Ibid, p. 32 Ibid, p. 33 82 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Al-Jāhiz, opinando sobre a tradução, já refletia àquela época também a preocupação com o rigor ao mostrar, por exemplo, que o tradutor deveria ter o mesmo nível intelectual do autor e ser versado nas duas línguas de modo excelente e equivalente. No caso das traduções do próprio ©unayn, estas necessitavam pouca revisão pois ele era versado em medicina, lógica, física e metafísica. Apontando questões que são problemas de tradução até hoje, Al-Jāhiz também se mostrava cônscio de que os textos poéticos, teológicos e filosóficos impunham uma dificuldade maior que os textos de matemática, astronomia e medicina. 4.3 ©unayn e a Casa da Sabedoria O marco decisivo do período de traduções ocorreu em 830d.C./220H. quando o califa Abássida Al-Ma'mýn fundou em Bagdá a “Casa da Sabedoria” que continha um instituto de pesquisas, uma biblioteca, um museu e um centro de traduções. Para reunir obras na biblioteca, o califa enviava emissários a Bizâncio para pesquisar e adquirir obras de “ciência antiga” ordenando, em seguida, que fossem traduzidas por um grupo de especialistas. Nas palavras de Fhahkry é possível identificar a importância de Al-Ma'mýn e seu amor pela filosofia: “Nenhum dos mecenas da ciência grega mencionados até o presente pôde se igualar em zêlo, em generosidade ou em distinção intelectual ao célebre califa Abássida Al-Ma'mýn, cujo reinado marcou um ponto decisivo no desenvolvimento do pensamento filosófico e teológico no Islām. Ao esplendor do ofício de califa, Al-Ma'mýn reunia a distinção rara de uma profunda paixão intelectual.”90 Conta-se que Al-Ma'mýn tivera um sonho com o próprio Aristóteles e que isso o teria inclinado a orientar os seus esforços na aquisição e na tradução das obras gregas. Nesse sonho o mestre grego teria travado um diálogo com o califa a respeito da natureza do bem, terminando com o conselho do filósofo ao califa de se ligar à confissão da unicidade. Como o maior mecenas para a filosofia e a ciência dessa movimentada história do Islām, Al-Ma'mýn presidia reuniões de sábios com debates filosóficos e teológicos.Este califa, apaixonado pelo saber chegou a compor alguns tratados referentes a questões teológicas sob um perfil que o aproximava dos mu’tazilitas como por exemplo, As Luzes da Profecia. Também escreveu uma série de aforismos e 90 Ibid, p. 34 83 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho adágios. Por seu espírito liberal, acabou popularizando os debates teológicos e influenciou os teólogos a se valerem das categorias da lógica da filosofia grega aplicada aos dogmas muçulmanos, aos moldes dos mu’tazilitas. Tudo isto aumentou o interesse pela ciência e pela filosofia grega. O nome mais importante durante o reinado de Al-Ma'mýn foi o do cristão nestoriano ©unayn Ibn Is¬āq (809/873 d.C- 193/260 H.). Sob sua condução foi traduzida para a língua árabe grande parte da filosofia e da ciência dos antigos gregos. Assim lhe faz referência Fahkry: “o personagem de primeira ordem na história da tradução da filosofia e da ciência gregas é de longe ©unayn Ibn Is¬aq, discípulo e colega de Ibn Masawayh, que fundou a arte da tradução árabe sobre bases cientificas.”91 Parece certo que o próprio ©unayn tenha dirigido a Casa da Sabedoria por um breve período e esteve a serviço do califa. No entanto, a família Baný Mýsā parece ter subvencionado grande parte de seu trabalho. O método rigoroso desenvolvido por ©unayn resultou em traduções em que os exemplares gregos eram revistos incansavelmente até que se chegasse às melhores formas de se adaptar termos que a língua árabe muitas vezes não tinha para se expressar. Além disso, os textos traduzidos para o árabe também eram comparados com as traduções em siríaco para que se obtivesse mais precisão. A atividade de ©unayn marcou uma etapa decisiva na história da tradução, na medida em que a exatidão foi um critério buscado com persistência. Textos que haviam sido traduzidos anteriormente voltaram a ser traduzidos através de exames minuciosos a partir de vários manuscritos da mesma obra. O próprio Hunayn relata que em sua juventude fizera uma tradução em siríaco de uma obra de Galeno e que, 20 anos mais tarde, a corrigiu. “Tendo adquirido um certo número de cópias gregas dessa obra, eu as confrontei cuidadosamente umas com as outras até que eu tivesse uma boa cópia em meu poder, que eu confrontei, em seguida, com a versão siríaca e a corrigi. Depois eu a traduzi pela segunda vez.” 92 ©unayn acrescenta ainda que esse era seu hábito para tudo o que traduzia para seu mecenas Mu¬ammad Ibn Mýsā, para quem ©unayn fez, também, uma tradução para o árabe da referida obra de Galeno. Os interesses principais de ©unayn parecem ter sido mesmo quanto à tradução das obras médicas e estas entende-se que traduziu 91 92 Ibid, p.36 Ibid, p. 37 84 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho pessoalmente. Deve-se-lhe a tradução de quase todos os escritos de Galeno e de Hipócrates que continham grande parte de toda a tradição médica da Antiguidade, e que, em sua maioria, está conservada em árabe até os dias de hoje. Quanto às obras filosóficas de Galeno, ©unayn traduziu, por exemplo, O Tratado sobre a demonstração, Silogismos hipotéticos, e algumas paráfrases das obras de Platão como As Leis, a República, Timeu e Parmênides dentre outras. Além do trabalho de tradução, ©unayn também compôs alguns tratados próprios tais como A gramática grega, A verdade das crenças religiosas e uma História Universal . Diferentemente do que aconteceu no período inicial das traduções, o trabalho de Hunayn não era um trabalho isolado mas ele foi auxiliado por uma equipe de tradutores igualmente competentes que, sob sua orientação, também entrariam para a História. Os três mais importantes foram seu filho Is¬āq Ibn ©unayn (m.911), seu sobrinho ©ubai¹ e seu discípulo ‘Isa Ibn Yahia. Muitas obras de Aristóteles foram traduzidas por esse grupo sob a orientação de ©unayn que encarregou-os de traduzir praticamente todo o corpus aristotélico. A seu fiho Is¬āq Ibn ©unayn atribui-se a tradução para o árabe das Categorias, Da Geração e da Corrupção, Física, partes da Metafísica, além de alguns tratados de Platão como o Sofista, das quais muitas existem até hoje. ©ubai¹, o sobrinho de ©unayn parece ter se dedicado mais às traduções das obras médicas. Ao lado de ©unayn e de seu grupo de tradutores também houve outros nomes importantes dos quais destacam-se Ibn Na‘ima, Abu Matta, QusÐa Ibn Lýqā, Abu ‘Utmān al-Dima¹q÷ e Tābit Ibn Qurra. Note-se que todos eles eram cristãos da seita nestoriana ou jacobita exceto o grande astrólogo e filósofo pagão Tābit Ibn Qurra que viveu em Harran ao norte da Síria mas tarabalhou aos serviços da família Baný Mýsā em Bagdá. Vale notar que ao lado do trabalho de tradução, os próprios tradutores também arriscavam escrever suas próprias obras. Apesar de, na maioria das vezes, não possuirem muita originalidade e conterem geralmente idéias recolhidas e sobrepostas de modo pouco sistemático esse fato é bem característico desse período. Qustā Ibn Lýqā, talvez de origem grega convertido ao cristianismo, nasceu na cidade de Ba‘albek (cidade do atual Líbano). Viveu em Bagdá e depois na Armênia onde morreu por volta do ano 900 d.C. Traduziu do grego para árabe obra de filosofia, geometria, mecânica e ciências naturais, dentre outras. Atribui-se a ele a tradução dos quatro primeiros livros da Física de Aristóteles e o tratado Da Geração e da Corrupção assim como o pseudo-Plutarco Opiniões dos Físicos. Além das 85 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho traduções, escreveu obras de filosofia, astronomia, medicina, física e aritmética tais como Propósitos dos filósofos , Sobre a diferença entre alma e espírito, Tratado sobre o átomo e Exposição das doutrinas gregas. Também escreveu um Tratado histórico que ainda é conservado até os dias de hoje. Abu ‘Utmān al-Dima¹q÷ (m.900) também se destacou pela transmissão das obras de Aristóteles para os árabes. Traduziu os Tópicos, a Ética a Nicômaco e uma parte da Física, além de algumas obras médicas, uma versão da Isagoge de Porfírio e três tratados de Alexandre de Afrodísias: As cores, As substância imateriais e O Crescimento. No século X d.C. Abý Mattā (m.940), um dos mais renomados lógicos de seu tempo, e seu discípulo Ya¬yā Ibn ‘Ad÷ (m.974) foram importantes na tradução e comentários principalmente às obras de lógica de Aristóteles. A Abý Mattā atribui-se comentários às Categorias, Tratados da Interpretação, Primeiros Analíticos e Segundos Analíticos. Escreveu também um Comentário sobre a Isagoge de Porfírio e um Tratado sobre os silogismos condicionais. Seguindo os passos de seu mestre, Ya¬yā ben ‘Ad÷, cristão jacobita, foi chamado de “O Lógico” e a ele se atribui as traduções da Poética, Refutações sofísticas, partes da Física e talvez a Metafísica de Aristóteles. Também escreveu suas próprias obras como A impossibilidade da existência do infinito, A Natureza do possível e O Todo e as Partes. Tābit Ibn Qurra (m.901), viveu em Harran, norte da Síria e depois se estabeleceu em Bagdá e esteve ligado aos serviços da célebre família Baný Mýsā. Diferentemente da maioria dos destaques desse período Tābit bin Qurra era pagão e foi conhecido como um renomado filósofo e astrólogo. Além de inúmeras traduções do grego e do siríaco principalmente em matemática e filosofia, também escreveu um comentário sobre a Física de Aristóteles e tratados sobre A natureza das Estrelas e suas Influências, Princípios da Música, e Princípios da Ética dentre outros títulos. Traduziu para o árabe uma versão do Almagesto de Ptolomeu e também dos Elementos de Euclides com melhoramentos fundamentais em vista das versões anteriores. Igualmente valoroso foi o trabalho de Ibn al–åammār (m.1017), também conhecido como Al–©assan Ibn Suwār. Suas traduções foram feitas, em sua maioria, do siríaco para o árabe e compreendem alguns tratados de lógica de Aristóteles e Os Meteorológicos. Escreveu obras médicas, e alguns tratados filosóficos. Um dos trabalhos mais interessantes denomina-se O Acordo das opiniões dos filósofos 86 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho e dos cristãos no qual procura, obviamente, harmonizar a razão filosófica com a fé religiosa. Nesse rol de tradutores, destaca-se, também, Ibn Nā‘ima al-©imÆ÷ (m.835) que traduziu partes da Física de Aristóteles mas teve fundamental importância na formação do pensamento filosófico árabo-islâmico por ter traduzido a obra apócrifa Teologia de Aristóteles que era, na verdade uma paráfrase das Eneadas de Plotino e que foi fundamental para todo o desenvolvimento da falsafa. 4.4 De Aristóteles a ArisÐýÐālis O eixo principal sobre o qual orbitaram os principais temas da falsafa iniciou-se com a introdução dos temas trazidos por Aristóteles. A sua imagem no mundo muçulmano medieval é a do “Filósofo” por excelência em relação ao qual todo pensamento se define: tanto o filosófico puro como o científico e mesmo o religioso. Não obstante o rigor com que foram feitas as traduções dos textos do mestre grego, a questão dos apócrifos, isto é, os textos atribuídos equivocadamente a Aristóteles, fizeram com que, na verdade, ArisÐýÐālis não fosse o mesmo Aristóteles que conhecemos hoje. Essa diferença deveu-se, em grande parte, à Teologia de Aristóteles. Os extratos parafraseados de autor desconhecido baseado nas Enéadas de Plotino trouxeram uma doutrina que o próprio Aristóteles não enunciou em nenhuma de suas obras. O Aristóteles árabe – ArisÐýÐālis – é, na verdade, um Aristóteles neoplatonizado. Esssa característica fez com que houvesse uma singular e preciosa conversão das doutrinas de Aristóteles e de Plotino – conseqüentemente algumas de Platão – que pareceriam, à primeira vista, incompatíveis entre si. Curiosamente, o que poderia parecer um equívoco histórico da entrada dos elementos neoplatônicos sob o nome de Aristóteles, acabou se conformando num dos pilares centrais da construção do sistema de Al-Fārāb÷ e de Ibn S÷nā. Pareceria ingênuo pensar que as idéias contidas na Teologia de Aristóteles só foram aceitas pelos árabes porque estavam sob a denominação do Estagirita. Isso pode levar a um erro de perspectiva. O mais sensato é entender que os elementos neoplatônicos só penetraram no sistema de Al-Fārāb÷ e de Ibn S÷nā pelo próprio conteúdo das teses ali apresentadas, as quais, em muitos casos, foram ferramentas utilíssimas para harmonizar e justificar posições. Além do que, para dizer o mínimo, a filosofia de Plotino, pela sua própria força seria suficiente para explicar a adoção de tais teses. Em reforço a essa perspectiva vale lembrar que o próprio Ibn 87 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho S÷nā, ao comentar a Teologia de Aristóteles, colocou em dúvida que a autoria fosse mesmo de Aristóteles mas nem por isso deixou de adotar as idéias ali estavam contidas. De todo modo, vale lembrar que parece não haver dúvida que os árabes conheceram as grandes idéias e os grandes sistemas dos filósofos gregos em suas teses fundamentais, mas a atribuição nominal a cada um ficou comprometida, não por causa das traduções dos textos que foram rigorosas, mas por causa dos apócrifos que transformaram a fisionomia original de Aristóteles, de Platão e de Plotino. A esse respeito é pertinente se entender que a recepção da filosofia dos antigos foi, para os primeiros pensadores muçulmanos, um conjunto de sabedoria antiga sob diversos nomes. Pode-se pensar que, a certa altura, o valor intrínseco de cada documento e de cada texto fosse critério suficiente para ser ou não incorporado. Para Ibn S÷nā, por exemplo, nenhum autor foi tido como uma autoridade absoluta. Ele próprio discordou e criticou Aristóteles. De todo modo, apesar dos elementos neoplatônicos, Aristóteles foi o nome sob o qual figurou grande parte das obras e dos comentários feitos pelos falāsifa. Ressalte-se ainda que o pensamento de Aristóteles influenciou, também, poetas, filólogos, gramáticos e juristas árabes. As obras de Aristóteles foram traduzidas integralmente: ou diretamente do grego ou por intermédio do siríaco. Todas essas traduções árabes chegaram ate nós. Por sua fidelidade, em alguns casos, chegaram mesmo a ser mais exatas do que as traduções modernas. Isso se explicou tanto pelo fato de que muitos manuscritos gregos eram mais antigos e melhores do que muitos manuscritos que chegaram até nós, como pelo fato de os tradutores se valerem de comentários de Alexandre de Afrodísias, Simplício e Themistus – dentre outros –, textos que, por vezes, se perderam em grego e só foram conservados em traduções árabes. O interesse pelas traduções das obras de Aristóteles sucedeu as traduções de ordem prática como, por exemplo, os textos médicos e astronômicos realizados no primeiro período. Isso se deveu ao início do interesse pela especulação filosófica, que se verificou durante o período Abássida, e que, ao menos em parte, pode ser computada por causa de uma pura curiosidade científica, pelo amor da ciência desinteressado, elevando o valor da empreitada do califa Al-Ma‘mýn, em vistas de seus predecessores que tiveram maior interesse pelas ciências práticas: medicina, astronomia e matemáticas. Pode se entender que o movimento do corpus aristotélico, a partir das traduções de seus textos para o árabe teve três momentos distintos. No primeiro momento, sua filosofia foi recepcionada; no segundo, iniciaram-se algumas reações 88 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho contra suas teses, principalmente por parte dos teólogos islâmicos e, no terceiro momento, houve uma contra-reação em defesa da filosofia aristotélica, na tentativa de reforma da falsafa. Na curva ascendente das traduções, da recepção e da internalização, a filosofia de Al-Kind÷, os sistemas de Al-Fārāb÷ e de Ibn S÷nā foram os maiores representantes. A reação dos teólogos coincidiu com uma certa paralisação da influência do pensamento grego e teve na controversa figura de Al-¦azāl÷ um bom exemplo disso. O momento crítico foi realizado por Ibn Ru¹d na tentativa de restabelecer as bases propriamente aristotélicas confrontando-as com os elementos neoplatônicos. O primeiro período, considerado como a recepção propriamente dita de Aristóteles, foi realizado pelos próprios tradutores que acabaram escrevendo uma série de comentários às obras do mestre grego. O termo dessa primeira etapa da recepção de Aristóteles teve como símbolo a presença de Al-Kind÷. O primeiro filósofo árabe e muçulmano que entrou em contato com as idéias de Aristóteles. Apesar de Al-Kind÷ não ter se aprofundado nas temáticas aristotélicas e, muitas vezes, transparecer uma certa superficialidade em suas abordagens em vista da maior profundidade encontrada no Estagirita, seu mérito foi, entre outros, ter preparado o terreno para Aristóteles. Mantendo-se próximo aos tradutores, Al-Kind÷ além de influenciar o califa AlMu‘ta½im para que houvesse prosseguimento nas traduções, encorajou-os e contribuiu na revisão e na correção do texto árabe, criando e adaptando termos que eram inexistentes para a nova língua da filosofia. O segundo momento foi marcado pelo pensamento de Al-Fārāb÷ e de Ibn S÷nā em que houve um aprofundamento significativo no entendimento das próprias teorias aristotélicas e uma fusão mais elaborada com os elementos do neoplatonismo. Al-Fārāb÷ escreveu uma série de comentários às obras de Aristóteles seguindo a tradição dos comentaristas gregos que o precederam. Infelizmente a maioria desses comentários se perdeu. No entanto, nesse período, Aristóteles já estava inteiramente integrado no cenário da filosofia entre os árabes. “Com a obra de Al-Fārāb÷ e o trabalho desses tradutores-comentadores, a obra inteira de Aristóteles se encontra integralmente traduzida e parcialmente comentada ou anotada, ao final do IV séc. da Hégira (X d.C. ). A autoridade de Aristóteles está, pois, solidamente estabelecida.”93 No entanto, o pensamento de Al-Fārāb÷ ficou mais conhecido por seu lado 93 BADAWI, La transmission, op. cit. p. 81. 89 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho neoplatonizante do que propriamente aristotélico. Suas idéias o fizeram tentar uma aproximação, ou antes, uma harmonização de Platão com Aristóteles. A Teologia de Aristóteles foi uma das pontes que tornou isso possível. Encerrando o segundo período há a figura marcante de Ibn S÷nā, foco de irradiação de toda filosofia muçulmana posterior. Em seu caso destacou-se o traço pessoal de uma extrema versatilidade em várias áreas do conhecimento, uma gama variada de temas e as múltiplas formas como os tratou. Essa característica ímpar fez com que os pensadores que o sucederam e os analistas atuais valorizassem, ora um ora outro, aspecto de sua obra, sob leituras, muitas vezes, redutoras do conjunto da obra. Isso também se ve no aristotelismo em Ibn S÷nā. Pelo fato de ele, nessa miríade de temas e estilos, ter escrito alguns textos em linguagem simbólica que ficaram conhecidos como os “tratados místicos”, alguns autores entenderam que a base de sua filosofia teria um sentido mais místico ou esotérico, embora representem o mínimo de sua obra. Na maioria de seus escritos Ibn S÷nā permaneceu inteiramente aristotélico, exceto, nos vôos místicos dos últimos capítulos do kitāb al- í¹ārāt wal-tanb÷hāt I¹arat e em algumas páginas isoladas de seus pequenos tratados nos quais ele se deixa levar por inspirações esotéricas. Esse aspecto foi, exageradamente, acentuado pelos místicos persas posteriores, como Mulla Sadra e Ibn Baqir. Contudo, o criterioso exame lógico que acompanha sua obra pode ser entendido, em última análise, como a base de seu pensamento que, apesar da presença do neoplatonismo, possui uma matriz aristotélica na condução e desenvolvimento das teses ali contidas. O terceiro período seguiu-se à sistematização de Ibn S÷nā, refere-se ao Ocidente muçulmano e se deu na Espanha primeiramente por Ibn Bājja que analisou e parafraseou algumas obras de Aristóteles e, por isso, teve o mérito de ser o precursor dos estudos filosóficos na Espanha muçulmana. No entanto, o ponto alto do aristotelismo árabe se encontra na figura de Ibn Ru¹d que foi o comentador por excelência da obra de Aristóteles tendo recebido, por justiça, o título na Idade Media latina de “O Comentador”.O trabalho de Ibn Ru¹d objetivou resgatar o pensamento do que ele considerava ser o mais puramente aristotélico procurando afastar as influências de outra ordem que existiram em seus antecessores. Para isso comentou, parafraseou ou resumiu quase a totalidade das obras de Aristóteles servindo-se de várias traduções em árabe – corrigindo-as – e dos comentários consagrados de Alexandre de Afrodísia, Temisthus, Filoponos dentre outros. Ibn Ru¹d ao mesmo tempo que era admirador fervoroso do Primeiro Mestre, foi um crítico bastante sensato e lúcido. O ápice, 90 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho portanto, do aristotelismo entre os árabes foi marcado pela atenção e cuidado que a obra de Aristóteles recebeu de Ibn Ru¹d. “A partir de então esses dois nomes: Aristóteles e Ibn Ru¹d estarão, inseparavelmente ligados. Nenhum outro filósofo teve esta grande chance de ter tido um comentador de suas obras tão fervoroso, inteligente e perseverante. Mesmo sua monumental obra original: Tahāfut at-Tahāfut, a refutação do livro de Al-¦azāl÷ contra os filósofos é uma defesa vitoriosa da filosofia de Aristóteles.” 94 Alguns títulos das obras que foram traduzidas de autoria do próprio Aristóteles ou obras apócrifas a ele atribuídas – seguidas pelos nome dos principais tradutores – são os seguintes: As Categorias / ©unayn bin Is¬aq ; Primeiros analiticos / Tutār÷ ; Segundos analiticos / Ibn Yýnis ; Tópicos/ Abu ‘Utmān al-Dima¹qu÷ ; Refutações Sofisticas / Ya¬ya bin ‘Adiy ; Retórica ; Poética/ Ibn Yýnis ; Física/ ©unayn bin Is¬aq ; De Caelo ; Geração e Corrupção / ©unayn bin Is¬aq ; Meteorológicos/ Yahia bin al-Bitr÷q ; De Anima / ©unayn bin Is¬aq ; De sensu et sensato ; Sobre os Animais: Yahia bin al-Bitr÷q ; Metafísica ; Ética a Nicômaco/ Is¬aq bin ©unayn. Alguns títulos dos textos apócrifos são: Tratado sobre a economia, As questões, O Bem Puro, Das causas das propriedades dos Elementos, De Plantis, Teologia de Aristóteles, Secretum Secretorum, Sobre a Justiça, O Livro das Pedras, O Livro do Espelho, Istimachus (magia e talismãs), O Tesouro, Epístola sobre a magia, O livro de Hermes, Definição das Naturezas, Epístola de Aristóteles a Alexandre sobre a Política, Tratado de Aristóteles sobre a Economia, Sentencas e Máximas atribuidas a Aristóteles, As Virtudes da Alma. 4.5 De Platão a AflaÐýn O nome de Platão é praticamente sinônimo de filosofia e seria estranho se a falsafa nada devesse às idéias do mestre de Aristóteles. Essa presença, praticamente obrigatória quando se diz filosofia, é, certamente, verificada ao entrarmos em contato com muitas teses dos falāsifa. No entanto, curiosamente, isto se deve muito mais à influência dos textos platônicos e neoplatônicos do que propriamente a uma exegese direta dos textos de Platão pelos filósofos árabes, do mesmo modo como foi feito em relação a Aristóteles. Por alguma razão, os escritos de Platão não chamaram 94 Ibid, p. 87. 91 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho tanta a atenção dos filósofos, o que acarretou uma grande diferença entre o interesse direto pelas suas obras em vistas das obras do Estagirita. Badawi se refere a esse fato, dizendo que “contrariamente ao destino das obras de Aristóteles, o das obras de Platão no mundo árabe foi medíocre (!). Com certeza, conhecia-se bem sua vida, seu papel na história da filosofia grega, até mesmo estendendo-se longamente sobre detalhes de sua vida (...) mas o que é realmente estranho é que nenhuma de suas obras autênticas nos tenha chegado em uma tradução árabe.” 95 Afinal, à primeira vista, o pensamento de Platão poderia parecer ter maior afinidade com os orientais do que os tratados de Aristóteles. As razões que levaram a isso permanecem no campo da especulação. Uma das hipóteses é a de que o estilo de diálogo adotado por Platão não teria encontrado eco entre os árabes, apesar – e talvez por isso mesmo – da cultura árabe possuir um perfil semelhante através de um sem número de histórias, contos e lendas. Outra hipótese é a de que teria havido poucas traduções das obras de Platão em comparação às de Aristóteles, o que parece não se confirmar na medida em que inicialmente os diálogos de Platão começaram a ser traduzidos –inclusive alguns deles pelo próprio ©unayn – mas depois pararam bruscamente. As razões apontadas para isso seriam as de que os diálogos não teriam tido tanta aceitação junto aos leitores e estudiosos e, por isso, a necessidade de continuar a tradução das outras obras de Platão não se fazia sentir. A terceira hipótese centra-se no que poderia parecer um tom pouco científico existente em algumas obras de Platão através de seus mitos, seu método dialético e algumas explicações físicas pueris. Esse espírito encontrado em algumas obras de Platão teria contrastado com o espírito mais rigoroso encontrado nas obras dos grandes astrônomos, médicos e matemáticos como Ptolomeu, Galeno e Euclides. O mesmo espírito – que poder-se-ia designar à época como mais “científico” –, dominou também, mais propriamente, o pensamento de Aristóteles com seu método rigoroso, seu conhecimento seguro e apoiado sobre os fatos reais e as observações devidamente controladas. Em algumas dessas hipóteses, talvez esteja o real motivo que levou as obras originais de Platão a ter tido menos aceitação entre os árabes. Ao mesmo tempo, foram inúmeros os textos apócrifos traduzidos sob o seu nome. Os títulos das obras do próprio Platão encontram-se principalmente documentadas nas listas fornecidas pelos biógrafos Ibn an-Nad÷m e al-QifÐ÷ das quais 95 Ibid, p. 35. 92 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho destacamos A República, As Leis, Carmide, Alcebíades I e II (sobre o Belo), Eutidemo, Gorgias, Hipias, Ion, Protágoras, Euthyphron, Criton, Phedon, Teeteto, Cratilo, Sofista, Timeu, Parmenides, Fedro e Menon. As obras de Platão também são citadas por outros autores que delas tinham conhecimento. No caso da República, por exemplo, sabe-se através de Ibn Ru¹d que existiu uma tradução em árabe que ele mesmo parafraseou. A paráfrase elaborada por Ibn Ru¹d chegou até nós conservada por uma tradução em hebraico. “De todo modo, nenhuma tradução desses diálogos nos chegou ainda. O número de passagens autênticas citadas pelos diferentes autores é bastante incipiente; elas não cobririam sequer uma dezena de páginas.”96 Por outro lado, o número de obras apócrifas atribuídas a Platão é imenso, ultrapassando em muito o número das obras atribuídas a seu discípulo Aristóteles, e podem ser divididas em obras políticas, morais, de magia e de química. Algumas delas são as seguintes: Os Testamentos Gregos – inspirado na República e talvez composto por A¬mad Ibn Yýsuf ; Platônica – compilação de sentenças políticas e morais; Epístola de Platão, o Divino – para refutar aqueles que dizem que o homem desaparece depois de sua morte; Epístola de Platão, o Divino, a Timeu, o Sábio; Reprovação da alma; atribuído apenas em um manuscrito à Platão e nos outros a Hermes; Sentenças Morais; Sentenças morais dos filósofos conhecidos por sua sabedoria e por sua ciência; Testamento de Platão para a educação dos jovens; Palavras de Platão; Testamento de Platão a Aristóteles; Liber Quartus – Um curioso livro de Alquimia, talvez escrito por um judeu, que menciona nomes e personagens puramente imaginários em forma de aforismos “se as coisas são de uma mesma espécie, elas podem ser reconduzidas a uma só coisa.”97 ; Tratado dos princípios e dos meios de controle em alquimia; Receitas para compor ungüentos mágicos; O Livro das sete idéias e seus mistérios; Tabela sobre os elementos ; Diálogos de Platão; coleção de sentenças morais que começa com o seguinte pensamento: “Platão, o filósofo diz: aquele que busca a sabedoria pelo caminho adequado a atinge. A maior parte dos que a buscam cometem um erro buscando-a por um outro caminho, de modo que eles não podem atingi-la e, assim, a negam, o que os leva à ignorância. Pois aquele 96 97 Ibid, p. 37. Ibid, p. 43 93 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho que ignora a imagem da sabedoria, ignora a si mesmo, e aquele que ignora a si mesmo será ainda mais ignorante de outrem.” O “Platão Árabe” foi editado em 1974 por Badawi com uma seleção dos apócrifos a ele atribuídos intitulado Aflatun fi al-Islam (Platon en pays d'Islam) publicado numa segunda edição em Beirute em 1980.98 4.6 De Plotino a AfluÐ÷n – o “mestre grego” Pode se dizer que a falsafa esteve apoiada em duas colunas de sustentação, uma aristotélica e a outra, plotiniana. Entretanto, a influência de Plotino não se fez de forma direta como se deu com Aristóteles mas, curiosamente, suas idéias foram veiculadas sob a autoria de outros filósofos, o que fez com que estranho fosse o destino de Plotino no mundo árabe. Como vimos, a chamada Teologia de Aristóteles foi o maior exemplo disto. Algumas partes da obra de Plotino, quando traduzidas, apareceram, na maioria das vezes, sob o nome de Alexandre de Afrodísias, Aristóteles ou sob o qualificativo de Á³\³½À«[ q„«[ / Al-¹ai¬ Al-yýnān÷, isto é, “o mestre grego”. Além de sua vida e de sua personalidade terem ficado sem referências claras, também não se conheceu dele nenhum livro. Resumiu-se de suas Enéadas – com paráfrases e alterações na ordem – as três últimas: IV-V-VI resultando no apócrifo Teologia de Aristóteles. A importância das teses plotinianas da emanação contidas na Teologia, – que foram a pedra angular da cosmologia de Al-Fārāb÷ e de Ibn S÷nā – contrastou enormemente com o fato de sequer Plotino ter sido conhecido pelo seu verdadeiro nome. Raramente aparece em algumas listas de filósofos gregos, de modo fortuito como, por exemplo, na lista fornecida pelo biógrafo Ibn an-Nad÷m em que o máximo que se encontra é o nome de ´½¬Ÿ / flut÷nus mas sem nenhuma indicação auxiliar que o ligasse verdadeiramente às suas teses. Em meio a essa mais obscura situação, ainda assim, sua influência no mundo muçulmano foi, em alguns casos, mais abrangente do que a de Aristóteles pois, se estendeu às tendências esotéricas e gnósticas que se espalharam pelo mundo islâmico. Badawi refere-se a isso destacando que a filosofia de Plotino “se infiltrou nas 98 Ibid, p. 45 94 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho consciências dos pensadores muçulmanos de uma maneira mais profunda que a doutrina aristotélica.” 99 No ano de 1955, todos os textos de Plotino traduzidos para o árabe foram editados por Badawi sob o título de Plotinus apud árabes, Cairo, contendo: a chamada Teologia de Aristóteles editada segundo 9 manuscritos; uma Epístola sobre a Ciência Divina (atribuído a Al-Fārāb÷) ; alguns fragmentos ; resumoparáfrase da Teologia de Aristóteles feita por Yýsuf al-Baædād÷. A questão da autenticidade da Teologia, mesmo tendo sido posta em dúvida pelos pensadores árabes como Al-Rāz÷ e Ibn S÷nā, ainda assim, foi tão decisiva quanto a Metafísica de Aristóteles e foi de grande serventia enquanto procurou harmonizar a filosofia com o dogma e a filosofia nela mesma. A Teologia, nesse caso, pareceu um verdadeiro dom. Al-Š÷rāz÷, de maneira explícita, atribuiu a Teologia a Platão e não a Aristóteles, notando que o espírito dessa obra se alinhava mais com os platônicos. De todo modo, na Teologia, a doutrina da emanação que serviu de base para quase todo o pensamento filosófico árabe, é inteiramente exposta e discutida. Acredita-se que, originalmente, a Teologia tenha sido escrita na língua grega e chegou até nós conservada em árabe segundo duas redações distintas. Em relação às Enéadas de Plotino, a Teologia aparece como uma seleção de passagens extraídas da primeira, parafraseadas e organizadas em outra ordem. Quanto à sua autoria, não se chegou até agora a uma resposta conclusiva. A abertura do texto indica ter sido uma paráfrase feita por Porfírio, discípulo de Plotino. Em sua introdução, Rubio refere-se ao fato do seguinte modo: “Vimos antes que as passagens da Teologia tomadas das três últimas Enéadas não são traduções literais mas ‘paráfrases’, o que nos inclina a crer que o autor imediato da Teologia é Porfírio, o discípulo de Plotino e editor das Enéadas.”100 Quanto ao fato de ter sido erroneamente atribuída a Aristóteles, pode se especular que, talvez, essa obra estivesse catalogada juntamente com outros manuscritos de obras de Aristóteles e foi tomada como uma delas. Uma outra hipótese é a de que pelo fato de Plotino ter sido conhecido entre os árabes como “o mestre grego”, e dado o grande prestígio de Aristóteles junto aos árabes, é possível que alguém, diante de uma obra atribuída ao “mestre grego” – Plotino – tenha pensado tratar-se de Aristóteles e tenha substituído definitivamente um nome pelo outro. Não se descarta o fato, também, de que essa atribuição tenha sido feita no momento mesmo da 99 Ibid, p. 47 PSEUDO-ARISTÓTELES, Teología, op.cit., p. 22 100 95 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho tradução, resutando que desde o princípio, Aristóteles tenha aparecido entre os filósofos árabes com rosto platônico. Chegou-se mesmo a supor que a Teologia seria uma das últimas obras escritas pelo Estagirita e que o perfil platônico que lá se encontrava retrataria uma volta de Aristóteles ao platonismo no final de sua vida. A abertura da Teologia se apresenta do seguinte modo: “Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso ! Glória a Deus, Senhor dos Mundos e Bençãos a Mý¬ammad e à sua Família ! Tratado Primeiro Do livro de Aristóteles, o Filósofo, chamado em grego Teologia, que é a doutrina sobre a Divindade; paráfrase de Porfírio de Tiro, traduzido para o árabe por ‘Abd Allā Ibn Nā‘ima de Emesa e corrigido por Abý Yýsuf Ya‘qýb Ibn Ishāq Al-Kind÷! Deus tenha misericórdia dele!, para A¬mad Ibn al-Mu‘ta½im biL-Lāh.”101 No Prólogo, o autor da Teologia explicita qual é o seu objetivo com as seguintes palavras: “Assim, nosso objetivo neste livro é a doutrina primeira a respeito da Divindade, a explicação a seu respeito, que Ela é a causa primeira, que a eternidade e o tempo estão submetidos a Ela, que Ela é a causa das causas, instauradora delas segundo um modo particular de instauração, que a potência iluminativa deriva Dela sobre a Inteligência e Dela por meio da Inteligência sobre a Alma universal das esferas, da Inteligência por meio da Alma sobre a Natureza e da Alma por meio da Natureza sobre as coisas geráveis e corruptíveis, que esta ação vem da Inteligência sem movimento e que o movimento de todas as coisas vem dela e por seu canal – ou causa – e que as coisas que se movem até ela mediante um modo de desejo ou nostalgia. Em seguida a isso mencionaremos o mundo inteligível, descreveremos seu esplendor, nobreza e beleza, recordaremos as formas divinas, belas, excelentes, esplendorosas que existem nele, e que dele vem o ornamento de todas as coisas e sua beleza e que todas as coisas sensíveis se assemelham àquelas formas, mas as coisas sensíveis (ý) não pemitem narrar sua verdadeira maneira de ser.”102 No Tratado Primeiro, o autor da Teologia se refere diretamente à imortalidade da alma: “Dado que já ficou claro que é verdade que a alma não é corpo, que não morre nem se corrompe nem fenece, mas que é persistente, 101 102 Ibid, p.47. A®mad era um dos filhos do califa Al-Mu‘tassim que reinou entre 833 e 842 d.C. Ibid, p.51s. Cf. também FAHKRY p.44. 96 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho perpétua, queremos investigar também a seu respeito como se separou do mundo inteligível, desceu a este mundo sensível, corporal, e chegou a estar nesse corpo grosseiro, que está submetido à geração e à corrupção.”103 Essas poucas palavras já prenunciam todo o desenvolvimento da teoria platônica das idéias e da teoria do Uno e da processão das hipóstases de Plotino que perpassam toda a Teologia. No desenvolvimento de suas doutrinas, o autor invoca a autoridade de Heráclito, Empédocles, Pitágoras e Platão, atribuindo a este último a descrição do corpo como sendo uma cela na qual, a alma, temporariamente, estaria aprisionada. O autor afirma, ainda, que Platão teve o mérito de introduzir a distinção entre as entidades sensíveis e inteligíveis e de imputar às últimas o caráter de permanência e de imutabilidade, e às primeiras o de fluxo perpétuo. No Tratado I, são estudadas detidamente as relações da alma com o inteligível. Nos Tratados II e III examina-se a alma em três questões principais: que no mundo inteligível a alma possui o conhecimento de todas as coisas de modo permanente, imutável e perfeito e não tem nenhuma necessidade do tipo de conhecimento adquirido no mundo sensível. Afirma-se a alma como una e indivisível sendo que sua divisibilidade lhe é atribuída por acidente. Devido à união com o corpo, ela se divide em potência animal, apetitiva, irascível e cognitiva, segundo a parte do corpo na qual reside. O autor critica, ainda, a teoria da alma como harmonia do corpo, os materialistas e corporalistas. Para o autor da Teologia, a alma é a causa dessa harmonia, uma substância distinta do corpo e independente deste, cumprindo nele o papel de guardiã e de governante. Estuda-se, também, a concepção da alma como enteléquia do corpo fazendo-se uma distinção entre a enteléquia passiva em que a forma natural está ligada indissoluvelmente ao composto e a enteléquia ativa, ou seja, o princípio ou a causa da atualidade própria do corpo. Esse último seria , pois, o caso da alma. Ao longo dos dez Tratados, o autor desenvolve uma série de temas dos quais destacamos os seguintes: as recordações da alma, suas relações com o corpo e como ela opera através de suas diversas faculdades; explicação da substancialidade da alma com a conseguinte refutação dos corporalistas; a contemplação do mundo inteligível; a descida da alma ao mundo sensível; as perfeições da obra do Criador; doutrina a respeito das estrelas e suas influências no mundo inferior; sobre a nobreza 103 Ibid, p.65. 97 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho da alma e seu retorno ao mundo superior; a emanação dos seres a partir do Uno e como a Alma entra na matéria e na Natureza, o lugar da alma entre o mundo sensível e inteligível; a respeito do ato e da potência; sobre a imortalidade da alma racional; como do Uno procede a multiplicidade; o retorno da alma à sua origem. Juntamente com a Teologia, boa parte das teses neoplatônicas circularam também através de uma obra atribuída ao neoplatônico Proclus sob o nome de Liber de Causis. Este se compunha de 32 proposições que expunham de modo mais sucinto do que a Teologia a teoria da processão das hipóstases. Não se sabe bem em que data essa obra foi traduzida para a língua árabe mas é certo que no séc. X d.C. / V H. já circulava entre os filósofos. Estas duas obras – A Teologia e o Liber de Causis – foram as duas vias mais intensas pelas quais o neoplatonismo penetrou no mundo árabe para formar a falsafa. Nessas duas obras de perfil neoplatônico encontram-se a transcendência absoluta do Princípio Primeiro ou Deus, a processão ou emanação das coisas a partir d’Ele; o papel do Intelecto como instrumento de Deus na criação e fonte de iluminação e conhecimento para o espírito humano, e a posição da alma enquanto ligação entre o mundo inteligível e o mundo sensível. 4.7 Outras presenças Outros autores traduzidos para a língua árabe foram Alexandre de Afrodísia, Temistius, João Filoponos, Porfírio, Amonios filho de Hermias, Nicolaus, Olimpiodoro de Alexandria, Jamblico, Galeno, Simplicius, Sirianus e Plutarco dentre outros. Destaque-se, também, os tratados estóicos que tiveram papel importante para os falāsifa. Ao lado da influência grega, é inegável a influência indiana e persa, particularmente em relação à medicina, astronomia e à política por meio de contatos que já se davam desde o séc. VIII d.C. / II H. Uma das primeiras obras traduzidas para a língua árabe, foi o Siddhanta – um tratado astronômico indiano que cumpriu um papel importante no desenvolvimento da astronomia islâmica. A literatura indiana também parece ter tido boa recepção entre os árabes. No séc. VIII d.C. já circulava uma obra denominada Crenças Religiosas dos Indianos, além de outras obras de natureza moral e religiosas. Quanto à influência da filosofia indiana, propriamente dita, parece que não houve um aporte tão significativo. “Se nos voltarmos aos elementos mais filosóficos do pensamento indiano que teriam influenciado os Árabes, somos 98 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho imediatamente surpreendidos pela sua relativa raridade, ou sua insignificância, quando os comparamos à rica corrente de idéias que vieram da Grécia.” 104 Do mesmo modo a influência de algumas correntes de pensamento persas antes do Islām sobre o pensamento filosófico entre os árabes foi igualmente restrita e consistiu principalmente em um certo número de obras de tradições morais ou aforísticas. No domínio especulativo, a influência persa se deu quase exclusivamente a partir do dualismo dos maniqueus aplicados a questões religiosas e filosóficas. Apesar de o maniqueísmo ter encontrado algum eco entre alguns autores árabes, muitas polêmicas contribuíram para a terminar com essa tendência. Uma última palavra sobre o conjunto do saber antigo que constituiu o material básico sobre o qual operaram os falāsifa deve considerar que, se por um lado, os apócrifos pareceriam comprometer o desenvolvimento dessa nova etapa da filosofia, por outro lado, é bom lembrar que mesmo os textos atribuídos corretamente aos seus autores foram lidos, quase sempre, em vistas da construção de um novo sistema filosófico. Desse modo, a atribuição dos apócrifos permitiu que os falāsifa estivessem diante de um conjunto de doutrinas vistas sob um ponto de vista bastante original, resultando em sistemas e abordagens que mesclaram de modo harmônico teses que a nós poderiam parecer excludentes. Al-Fārāb÷, ao considerar que o saber havia se iniciado nas terras da Mesopotâmia, se transladado aos egípcios, depois aos gregos e, por fim aos árabes, colocava-os como herdeiros legítimos e continuadores dessa tradição. Isso também é verificado pelas palavras de Al-Kind÷ que, entendendo que o papel do sábio é, mais do que tudo a busca pela verdade, agradeceu os seus antecessores e, como que tomandolhes o bastão, conclamou os sábios a fazerem a filosofia “falar em árabe”. A isso somese o fato de que o momento efervescente de uma cultura nascente, lhe conferiu força para entender a si mesmo como a “continuadora da verdade”, inclinando os sábios a considerarem o acolhimento das obras antigas como um conjunto herdado. Assim, a leitura dos textos se fez em vistas de dar continuidade ao que fora anteriormente conquistado. Nesse quadro, o foco esteve mais sobre a “verdade” do que sobre os autores que a pronunciaram. Tais peculiaridades distinguiram a falsafa de todas as tradições anteriores, assim também como de tudo o que viria a ser realizado posteriormente. 104 FAKHRY, op. cit, p.55 99 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho 5. A FALSAFA E OS FAL¶SIFA 5.1 Al –Kind÷ , o anfitrião O primeiro filósofo árabe foi Al-Kind÷ (796/873d.C. - 185/260H.), nascido na cidade de Koufa – próxima a Bagdá –, onde seu pai foi governador. De família aristocrática árabe da tribo de Kindah, Al-Kind÷ esteve sob a protecão dos califas Al-Ma’mýn e Al-Mu‘ta½im tendo sido preceptor de A¬mad, filho deste último. Completou sua formação em Bagdá após ter tido sua primeira educação numa cidade próxima, Basra. Contemporâneo do célebre Hunayn, foi o primeiro filósofo verdadeiramente de origem árabe e que se expressou nessa língua e, por isso, foi chamado de o “filósofo dos árabes”. Al-Kind÷ diferiu dos tradutores cristãos por dois aspectos principais: sua religião e o seu desconhecimento da língua siríaca e da língua grega. Mesmo não tendo conhecido outra língua além do árabe, Al-Kind÷ esteve envolvido com as traduções procurando retocá-las, na medida em que seguiu corrigindo e adaptando o vocabulário árabe às obras traduzidas como foi o caso, por exemplo, da Teologia de Aristóteles. Destacou-se na matemática e na lógica, disciplinas que o guiaram em sua busca da verdade pela filosofia. Os princípios metodológicos de clareza e esquematicidade aos quais se propôs revelam uma clara consciência de que sem as matemáticas e sem a lógica não seria possível atingir a ciência. “Ainda que fosse somente por essa consciência metodológica haveria que se situar Al-Kind÷ junto aos grande filósofos muçulmanos.”105 Os títulos de suas obras,106 chegam a 241 em que se destacam temas sobre filosofia geral, lógica, música, astrologia, geometria, astronomia, medicina e psicologia. Al-Kind÷ teve numerosos alunos e um círculo que deu continuidade aos seus estudos. Não obstante ter sido acusado, algumas vezes, de pouca contribuição original, há uma concordância geral de que Al-Kind÷ teve o mérito de introduzir Aristóteles no ambiente intelectual do Islām pregando uma exegese filosófica do Alcorão. Essa posição, semelhante a dos partidários da aplicação do procedimento racional ao texto revelado, aproximou Al-Kind÷ dos mu’tazilitas. É possível situá-lo na passagem da teologia para a filosofia, em posição de cobrir o espaço que se verificava 105105 106 GUERRERO, R. Obras Filosóficas de Al-Kindi. op.cit., p.41. BADAWI, op. cit., pp. 387-393. 100 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho entre a razão e o dogma, guiado pelo sentimento de um acordo fundamental entre a busca da filosofia e a revelação profética. No amplo horizonte da busca do saber, AlKind÷ incitou a busca da verdade onde ela estivesse, mesmo nos sábios de outras nações e de outras línguas, adaptando-a a seu tempo e a expressando em árabe. Entendia que a verdade deveria ser acolhida qual fosse sua fonte pois nada deveria ser mais caro ao pesquisador da verdade do que a verdade em si mesma.. Apresentou, também, uma visão de crescimento histórico do saber, reconhecendo o papel cumulativo do trabalho das subseqüentes gerações. Em sua Epístola sobre a filosofia primeira, Al-Kind÷ procurou aliar a filosofia aos princípios do Islām não vendo na noção filosófica de Deus, Uno, Verdadeiro e Criador nenhuma contradição com os princípios do Alcorão. Desse modo, defendeu a tese da criação do mundo ex nihilo, isto é, a partir do nada. Em sua doutrina não se encontra um sistema cosmológico das processões plotinianas tão sistematizado como em Al-Fārāb÷ e Ibn S÷nā do Uno ao mundo sublunar. Para AlKind÷, tais processões encontram-se inevitavelmente sob a dependência do ato divino, livre. Além disso, afirmou a ressurreição dos corpos, a possibilidade de milagres, a validade da revelação profética, a criação e a destruição do mundo por Deus. Para justificar suas teses, defendeu a finitude do tempo e do movimento como uma prova do começo do mundo no tempo. Tal começo, seria uma constatação da existência de um Deus criador. Deus e mundo configurados em dual realidade permitiram, pois, a distinção entre entidades materiais e imateriais correspondentes à dupla divisão da filosofia: a física sendo a ciência do móvel ou dos objetos criados por Deus, e a metafísica sendo a ciência do imóvel ou das coisas divinas. Nessa configuração, em muitas de suas obras, transpareceu o sistema platônico entendido segundo a divisão mais radical entre o mundo sensível e o mundo inteligível. A Idade Média ocidental pouco conheceu de sua obra. Uma delas foi o De Intellectu, curta epístola em que Al-Kind÷, ao discorrer sobre o tema segundo Platão e Aristóteles, distinguiu quatro níveis do intelecto. Essa distinção foi importante para a sequência da falsafa, pois Al-Kind÷ já assinalava o intelecto sempre em ato como uma inteligência distinta da alma. Desde o início o pensamento árabe apontou, sob a influência de Alexandre de Afrodísia, que havia apenas uma inteligência agente separada para todos os homens e que cada indivíduo teria apenas como seu um intelecto em potencial. 101 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho No alvorecer da filosofia entre os árabes, Al-Kind÷ procurou, também, estabelecer a significação dos termos filosóficos como é o caso da obra intitulada Epístola da Definições: um curto glossário de conceitos filosóficos no qual encontramos 104 termos explicados por Al-Kind÷ de modo bastante breve. Apesar de não ser um glossário completo, indicou a preocupação inicial de se familiarizar com os termos que ingressavam no universo filosófico dos árabes. Deve se levar em conta que, no período inicial da falsafa, muitos termos filosóficos que provinham da filosofia grega eram estranhos ao mundo árabe e estavam sendo adaptados para o novo idioma e ainda precisavam ser fixados em seu significado mais técnico. Se, por um lado, AlKind÷ foi um entusiasta da filosofia, por outro lado foi também um homem religioso. Mais do que isso, foi o anfitrião de uma religião nascente que se defrontava com um modo de pensar estrangeiro. Sua tendência, pois, foi a de harmonizar as duas manifestações: a filosofia e a religião. A intenção de concordar essas duas realidades, muitas vezes, comprometeu o significado que ele imprimiu aos termos filosóficos, em vista do sentido original da língua grega. Não se pode atestar com certeza em que medida a Epístola das Definições foi realmente escrita pelo próprio Al-Kind÷. Talvez possa ter sido uma compilação ou uma tradução do grego que circulava na época. Pode tratar-se, ainda, de uma adoção de definições por parte de Al-Kind÷ para formular um novo glossário. De todo modo, ela nos dá uma idéia sobre os primeiros movimentos da recepção do pensamento grego no mundo árabe. O primeiro termo que se encontra na Epístola das Definições é a “causa primeira”, definida como a criadora e a agente, aquela que aperfeiçoa o todo sendo imóvel. O termo “eterno” complementa a idéia de “causa primeira” e é definido como aquilo que não foi não-ser e não tem necessidade de outro para subsistir. Implícito está, pois, que aquilo que não necessita de outro para subsistir, não tem causa e é, portanto, eterno. Outro termo correlato é “criar”: esse, que tem mais familiaridade com a religião revelada do que propriamente com a filosofia grega, é definido por Al-Kind÷ como sendo o ato de fazer com que algo apareça a partir do nada. Esse modo de entender as relações entre Deus e o mundo é completada com o item “Questão sobre o Criador”. Neste, Al-Kind÷ inicia perguntando-se a respeito do modo como Deus está neste mundo. Sua resposta é de que o Criador está no mundo assim como a alma está no corpo. Do mesmo modo como nenhuma parte do corpo pode subsistir sem a intervenção da alma, assim também a ordem do mundo visível se realiza necessariamente pela mediação e direção do mundo invisível. E, do mesmo modo 102 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho como a alma pode ser conhecida pelos efeitos que ela produz no corpo, assim também o mundo invisível pode ser conhecido por meio da organização e dos efeitos que dele procedem em relação ao mundo visível. Em suas linhas mestras, o sistema de Al-Kind÷ se ampara nessas primeiras definições para estabelecer, por um lado, o mundo não-eterno e, por outro, Deus-eterno como o seu Criador. Deus é, pois, aquele que não tem causa e, por isso, é eterno. O mundo, por sua vez, é causado e é uma criação Sua. Deus, transcendendo a Sua criação, é entendido, pois, segundo o dogma da trilogia da revelação das escrituras sagradas judaico-cristã-islâmica. Aparecem, também, alguns termos filosóficos mais próprios às doutrinas aristotélicas como, por exemplo, os conceitos de “matéria”, “forma”, “ato”, “potência” e “substância”. Quanto a este último – “substância” – define-se como aquilo que subsiste por si mesmo ou, dito de outro modo, aquilo que sustenta os acidentes sem alterar a sua própria essência; enfim, aquilo que recebe atributos e não se atribui a nada assim como pode ser entendido, também e num outro sentido, como aquilo que não é suscetível nem da geração e nem da corrupção. Alguns outros conceitos das categorias estabelecidas por Aristóteles também estão presentes tais como a “quantidade”, a “qualidade” e a “relação”. O “lugar” é entendido como o limite de um corpo ou, então, o encontro de dois horizontes sendo um, o que envolve e, o outro, o que é envolvido. Outros termos pertencem ao estudo da Física são o “calor”, o “frio”, o “seco” e o “úmido”, definidos de modo bastante sucinto. Com mais extensão encontramos a teoria das quatro causas indicada no verbete “as causas naturais”. Al-Kind÷ segue as quatro causas conhecidas no sistema aristotélico: a “causa material” que é aquilo do que algo é; a “causa formal” que é aquilo pelo que uma coisa é o que é; a “causa eficiente” como sendo o princípio do movimento de algo e, por fim, a “causa final” como sendo a razão pela qual o agente faz o que faz. Uma tríade importante de termos –“necessário”, “possível” e “impossível” –, que será bem desenvolvida por Al-Fārāb÷ e por Ibn S÷nā em suas respectivas metafísicas encontram-se definidas de modo suscinto na Epístola: “necessário” é o que está sempre em ato; “possível” é aquilo que uma vez está em potência e outra vez está em ato; e o “impossível” é aquilo que nunca está nem em ato e nem em potência. Encontram-se, também, outros termos referentes ao estudo da alma. O próprio termo “alma” apresenta-se segundo três explicações: a perfeição de um corpo 103 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho natural, dotado de órgãos que é suscetível à vida; a perfeição primeira de um corpo natural que tem a vida em potência; ou uma substância intelectual que se move por si mesma sendo um número harmônico. Como se pode verificar, as duas primeiras definições praticamente reproduzem a idéia de alma segundo a doutrina aristotélica enquanto a terceira definição se aproxima da inspiração pitagórica. Outros termos referentes à alma humana também são apresentados: o “intelecto”, entendido como uma substância simples capaz de apreender as coisas em sua realidade e a “sensação”, definida como uma faculdade da alma que apreende as coisas sensíveis, ou melhor, a forma das coisas dotadas de matéria em sua própria materialidade. Nesse caso a faculdade da sensibilidade só pode operar em contato direto com um determinado objeto: o olho só é capaz de ver se estiver diante de algo, assim como o ouvido só é capaz de ouvir mediante um ruído de algo. Num grau mais abstrato, Al-Kind÷ seguindo Aristóteles, define a “imaginação” como sendo a “fantasia”, faculdade própria da alma que apreende e mantém presente as formas sensíveis na ausência da matéria, ou seja, depois que as coisas sensíveis já não estiverem mais presentes aos sentidos externos. Ainda no âmbito da alma humana encontramos a definição da “vontade” como sendo uma faculdade pela qual tendemos a uma coisa e não a outra. A “ira” é definida como a efervescência do sangue do coração e o “ressentimento” é entendido como a permanência da ira por um tempo indeterminado. O “riso”, por outro lado, é visto como um ato natural da alma, sendo entendido como o equilíbrio do sangue do coração pela felicidade e expansão da alma até o surgimento do gozo. Um outro item que se refere à alma é a exposição sobre as “virtudes humanas’ cuja elaboração contem elementos platônicos, aristotélicos e estóicos. Essas virtudes são descritas como disposições humanas naturais dignas de elogio. Al-Kind÷ as divide em três: sabedoria, fortaleza e temperança. A sabedoria é uma virtude própria da faculdade racional sendo o conhecimento das coisas universais em sua realidade mas não apenas isso: é, também, saber usar essas realidades. A fortaleza é descrita como a virtude da faculdade de vencer desprezando mesmo a morte quando é preciso fazer o que deve ser feito ou afastar o que deve ser afastado. A temperança consiste no cuidado com o corpo e sua conservação com constante observância. Cada uma das três virtudes possui dois extremos sendo que a perda do equilíbrio é um vício, um por excesso e outro por falta. Por exemplo, no caso da fortaleza, o seu excesso seria a violência e sua falta, seria a covardia. O conjunto equilibrado das virtudes resulta na equidade da alma. O 104 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho equilíbrio natural das virtudes da alma pode ser obtido pela filosofia e pelo hábito, pois a verdadeira virtude humana está naquilo em que acostumamos a nossa alma. O verbete “amor” é definido como a causa da reunião das coisas. Essa “reunião” é definida como aquilo que é causado de modo natural pelo amor. O “amado”, por sua vez, é aquilo que é buscado pela alma. No que diz respeito a “paixão”, Al-Kind÷ define o termo como sendo “excesso de amor”. Tais definições lembram conceitos desenvolvidos por Empédocles – filósofo pré-socrático – que ao explicar o movimento do cosmos entendeu haver duas forças responsáveis por isso: uma força de reunião e uma força de separação. As duas, atuando sobre os quatro elemento do cosmos – ar, terra, fogo e água – ora compondo-os e ora descompondo-os, criaria o movimento do cosmos. Outro conjunto de termos que se encontra na Epístola referem-se aos elementos da linguagem e do discurso filosófico tais como “verdade”, “mentira” e “incerteza” . A “verdade” é entendida como o discurso que afirma o que é e nega o que não é; a “mentira”, contrariamente, é definida como um discurso que afirma o que não é e nega o que é; e a “incerteza” seria o estado em que algo se mantém na alma entre sua afirmação e sua negação, sem que haja uma inclinação conclusiva a nenhum dos dois lados. Já a “certeza” é a permanência da compreensão com a estabilidade do juízo pela demonstração. Acresce-se, ainda, o termo “absurdo”, entendido como sendo a reunião de duas coisas contraditórias em uma certa coisa ao mesmo tempo e o termo “dúvida”, que é definido pela ação de deter-se no limite dos dois extremos da opinião, em atitude de suspeição diante dela. Com relação ao “parecer”, este é colocado por AlKind÷ como sendo um tipo de juízo que se emite a partir da aparência e de explicações sem provas nem demonstração de uma coisa e não propriamente de sua realidade. Por fim, há o termo “opinião”, – que se manifesta ao se escrever ou ao se falar – e é entendido como uma certa estabilidade do parecer na alma mas que pode desaparecer. Contrariamente, o “conhecimento” é uma opinião que não desaparece. Todos esses exemplos podem até mesmo parecer pueris diante do desenvolvimento dado por alguns filósofos gregos – notadamente por Platão e Aristóteles. Entretanto, esse início tateante num labirinto de novos termos, novas propostas e de suas intrínsecas relações foi se complexificando na medida que a falsafa foi se desenvolvendo e introjetando os conceitos da filosofia grega, incorporando-os à realidade do mundo islâmico. 105 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Encontra-se nos falāsifa posteriores –notadamente Al-Fārāb÷, Ibn S÷nā e Ibn Ru¹d – maior completude e profundidade. Mas, voltemos a mais algumas definições. “Filosofia”é um dos termos mais explicados na Epístola. Al-Kind÷ enumera cinco proposições distintas a esse respeito. Primeiramente, o termo “filosofia”é explicado segundo a etimologia original da palavra grega, entendida, pois, como o “amor à sabedoria”. No entanto, Al-Kind÷, também, evoca aqueles que a chamaram de a “arte das artes” ou “a sabedoria das sabedorias”. Segundo ele, em sua essência, a filosofia também pode ser entendida como uma ação que se assemelha à ação do Deus Altíssimo visto que isso é possível ao homem que busca se aperfeiçoar em suas virtudes. Ora, mas como deve o homem aperfeiçoar as virtudes de sua alma ? A terceira explicação indica que isso pode ser conseguido se a filosofia for entendida como uma preocupação pela morte, segundo o que dizem alguns. Nesse caso, não refere-se à morte natural –na qual a alma deixa o corpo –, mas a morte das paixões. Essa mortificação é um dos caminhos para se chegar à virtude, na medida em que se busca alcançar o prazer que se encontra no mundo das essências intelectuais em oposição ao mundo dos prazeres sensíveis. Essa direção da alma pode ser conseguida pelo hábito que o homem desenvolve em sua conduta, visto que a alma tem a predisposição para atuar em dois níveis distintos: um nível sensível e um nível intelectual. Quando a alma está ocupada com os prazeres sensíveis, ela abandona, por conseqüência, o uso do intelecto e não alcança sua verdadeira perfeição. Uma outra definição do termo “filosofia” tendendo a uma inspiração socrática entende-a como o conhecimento que o homem tem de si mesmo. Al-Kind÷ sublinha que essa expressão é de grande profundidade e possui uma nobre finalidade, exemplificando esse caso do seguinte modo: “visto que as coisas são corpos e nãocorpos; que os corpos são substâncias ou acidentes; que o homem é corpo, alma e acidentes; e que a alma é substância e não corpo, então, se o homem conhece a si mesmo, conhece o corpo com seus acidentes, o acidente primeiro e a substância que não é corpo. Ora, se ele conhece tudo isso, então conhece tudo. Por essa razão os filósofos chamaram o homem de microcosmos.”107 Al-Kind÷ parece preferir entender a filosofia como o conhecimento das coisas eternas e universais, de seu ser, de sua essência e de suas causas na medida do possível ao homem. Quanto à posição que o homem ocupa em sua condição de possibilidade, os últimos três itens da Epístola 107 – GUERRERO, op.cit., p.21. 106 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho definidos de modo sintético – fornecem uma boa imagem da posição intermediária do homem no cosmos. Vejamos as definições: -“a humanidade: a vida, a razão e a morte; - o angélico: a vida e a razão; - a animalidade: a vida e a morte.”108 E, para encerrar essa seleção de termos da Epístola das Definições, fiquemos com esta interessante definição da palavra “amigo”: “um homem que é tu mesmo e, no entanto, é distinto de ti.” 109 Em inúmeras passagens de sua obra, Al-Kind÷ mostrou-se um entusiasta da busca pelo saber através de palavras que soam como um constante convite a nos colocar em contato com a filosofia como uma das vias pelas quais o nosso espírito pode atingir a perfeição. Num tom otimista em relação ao verdadeiro conhecimento, Al-Kind÷ deixa transparecer certo desdém em relação às vicissitudes da vida ao mesmo tempo em que evoca o saber que vem do alto como um consolo em vista da nossa miséria existencial finita. Poderíamos nos perguntar como seria possível nos entusiasmarmos com uma vida que nos mostra a morte como fim? Como poderia haver alegria, se tudo perdemos ? Como seria possível nos conduzirmos pelo caminho reto se nossa conduta aparentemente não altera em nada o nosso destino? Algumas dessas reflexões são feitas por Al-Kind÷ em sua Epístola sobre a Ética ou A Arte da Consolação. Entremeada de temas estóicos e neoplatônicos, A Arte da Consolação foi escrita num estilo garboso. É digno de nota o fato de Al-Kind÷ ter escrito uma epístola a respeito da questão ética, visto que dificilmente esse tema é assim encontrado em autores islâmicos. A razão se deve, em parte, ao fato de que o Alcorão é ao mesmo tempo um livro religioso e ético, pois designa o modo de conduta do crente sendo reforçado pelas narrativas da tradição atribuídas a Mu¬ammad. Frise-se que esse conjunto formou o paradigma ético acabado desde o início do Islām. Nessa epístola, Al-Kind÷ recolhe uma série de idéias provenientes dos gregos e as mescla com temas religiosos. No entanto, não procura, como lhe é costumeiro, harmonizar essas idéias. Os assuntos tratados são sobrepostos de tal modo que podem indicar que essa epístola talvez tenha sido uma coletânea de fontes gregas que Al-Kind÷ elaborou à sua maneira. 108 109 Ibid, p.24. Ibid, p.19, v.56. 107 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho “Que Deus te proteja, caro irmão, de todo tropeço, te guarde de todo o mal e te dê exito através dos caminhos que levam à sua satisfação e à sua abundante recompensa!”110 Assim é iniciada a Arte da Consolação, cujo objetivo é fornecer algumas indicações para combater a tristeza e manter a altivez da alma em toda a sua virtude. Segundo AlKind÷, devemos entender que a tristeza é uma dor da alma que tem causas que podem ser conhecidas e entendidas. Tanto o seu conhecimento como o seu entendimento podem ser reduzidos às causas provenientes ou pela perda de coisas que se ama ou pela impossibilidade de se conseguir as coisas que se anseia. Ora, desde que estamos à mercê de um mundo onde reina a geração e a corrupção das coisas, não é possível que alguem obtenha tudo o que deseja e muito menos que esteja a salvo de perder as coisas que ama. Por essa razão, admitamos, pois, que a estabilidade e a permanência faltam neste mundo e só são encontradas no mundo do intelecto que, inclusive, podemos contemplar. Desse modo, se não queremos perder nada do que amamos e nem deixar de obter o que desejamos, devemos nos voltar ao mundo do intelecto e fazer com que as coisas que amamos ou desejamos sejam dele provenientes. Se isso fizermos, estaremos certos de que nada nos escapará de conseguir e nada do que consigamos nos será levado visto que as coisas que alcançamos no intelecto permanecem firmes e sem alterações, ao passo de que aquilo que nos toca no mundo sensível é passageiro para todos os homens e ninguém pode deter sua corrupção e nem preservar tais coisas para sempre. No mundo, coisas que foram suaves transformam-se em coisas ásperas, perturbadoras depois de terem sido tranqüilas, e se mostram em retrocesso depois de terem parecido um avanço. Mas isso tudo nada mais é do que a Natureza em sua própria natureza. Ora, se quisermos, então, que coisas que se corrompem não se corrompam, que coisas que avançam e retrocedem apenas avancem e que aquilo que não cessa de se transformar torne-se estável, então estaríamos querendo da natureza o que não é próprio da natureza e “quem quer o que não está na natureza quer o que não existe. Quem quer o que não existe, está necessitado das coisas que anseia e aquele que necessita das coisas pelas quais anseia é um indigente.”111 Aquele que deseja as coisas que são passageiras pode ser considerado um homem infeliz, ao passo que aquele cuja 110 111 Ibid, p.156. Ibid,p.157. 108 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho vontade se cumpre é um homem feliz. Aspirar a felicidade e nos guardarmos de sermos desgraçados é possível na medida em que fazemos com que nossa vontade e aquilo que desejamos estejam além daquilo que nos chega pelo mundo sensível, mutante e instável e, também, que não nos entristeçamos com aquilo que nos escapa do mundo sensível. Conduzir-se assim é ter as qualidades dos reis excelsos e não da gente baixa e ávida pelo que não permanece. Os reis não vão com avidez ao encontro daquilo que lhes chega e tampouco saem para acompanhar aquilo que se vai mas, ao contrário, gozam daquilo que lhes chega de maneira desapegada assim como se desapegam daquilo que se vai. Em todas as circunstâncias é mais sensato pensarmos que “se não existe o que queremos, devemos querer o que existe e não preferir a persistência da tristeza no lugar da persistência da alegria. A quem se entristece com a perda das coisas que se perdem assim como com a necessidade das coisas que se necessita, a este jamais desaparecerá a tristeza, porque, em todas as situações da vida, perderá objetos amados e se lhe escapará aquilo que busca.” 112 Visto que a alegria e a tristeza não podem coexistir no mesmo instante na alma, devemos fazer com que nossas alma estejam satisfeitas em todas as circunstâncias, mediante uma condução correta que proporcionamos a ela. O que é detestável e o que é amável sensivelmente não o é por natureza mas é algo que provem do costume e do uso. Al-Kind÷ exemplifica isso lembrando que vemos homens viciados em jogos de azar, beberrões e ladrões que, pelo hábito, se alegram com suas atitudes reprováveis. Em nossa senda devemos conduzir nossa alma aos costumes excelentes e acostumá-la a isso até que forjemos um caráter que torne a vida agradável durante o tempo de nossa existência. Além disso, devemos levar em consideração que aquilo que nos origina a tristeza ou é uma ação nossa ou é uma ação de outro. Ora, no caso de sermos nós próprios o agente daquela ação que nos entristece, então desde que paremos de fazer tal ação, não mais nos entristeceremos. Se, por outro lado, a ação provem de um outro, pode estar em nossas mãos afastá-la, e é o que devemos fazer quando é esse o caso. Mas se, de outro modo, não depende de nós afastar tal ação, não devemos nos entristecer antecipadamente pois talvez antes que aconteça aquilo que nos entristeça, tal ação seja afastada por um motivo que não depende de nós e essa hipotética tristeza jamais nos atingirá. De todo modo, não devemos nos entristecer pois “quem entristece 112 Ibid, p.157. 109 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho sua alma, a maltrata e quem a maltrata é um ignorante, injusto até não mais poder, porque causou um dano à sua alma. Se houvesse feito isso com outro, seria ignorante e injusto, mas ao fazê-lo consigo mesmo o é ainda mais, e não deveríamos estar contentes em sermos os mais ignorantes, os mais grosseiros e os mais injustos.”113 Porém, como não podemos nos manter totalmente isentos de estarmos tristes e como está na natureza tropeçarmos na tristeza, devemos ao menos ter cuidado em reduzir o tempo em que ela dura em nós. Um dos meios para isso é lembrarmos de nossas tristezas passadas e como elas se foram, ou então lembrarmos das tristezas e consolações que vimos nos outros e isso, para nós, será um consolo. Lembremo-nos que muito daquilo que desejamos também outros o desejaram sem conseguir obter, assim como muito do que perdemos outros, também, perderam e quantos deles podemos ver hoje que não se entristecem mais com seus infortúnios mas, ao contrário, podem viver com alegria. Não nos entristeçamos, pois. Aqueles que perderam um filho ou que não o tem, encontram muitas outras pessoas em situação semelhante. Em todos os casos há os que estão tristes ou que não estão mais tristes. O mesmo se dá com a riqueza e tudo o mais que toca o mundo sensível. “Conseqüentemente, a tristeza é algo que depende apenas da vontade humana, não é necessária por natureza, já que encontramos, por exemplo, um homem de quem foi-lhe tirada uma posse e está triste, enquanto muitos que não tem essa posse não estão tristes. Portanto, essa tristeza sobre si mesmo só se deve a um ato voluntário com relação àquilo que foi tirado ou que não se pôde conseguir.”114 Al-Kind÷ alerta para o fato de que se não queremos que nos aflijam as desgraças, o que queremos é, em última análise, não existir pois essa é a condição dos seres gerados e corruptíveis. Se queremos algo distinto do que é a natureza, estamos querendo o impossível. Ao Criador pertence o que possuímos e, por isso, Ele pode retirar o que nos dera a qualquer momento, às vezes, até mesmo, pelas mãos de nossos inimigos. Quando alguem recebe um empréstimo e pensa que aquilo é seu, não está sendo agradecido, pois o mínimo que deve fazer é devolver o que foi emprestado quando isso for pedido de volta. Por isso, aquele que está triste por ter de devolver o que lhe foi emprestado está sendo pouco agradecido. Se formos sabedores disso, então, deveríamos considerar motivo de vergonha quando nos apoiamos em desculpas 113 114 Ibid,p.160 Ibid, p.162. 110 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho infantis dizendo: “estamos tristes porque aquele que nos emprestou algo recuperou seu empréstimo pelas mãos de nossos inimigos.”115 Voltando-nos a nós mesmos, ainda que desejemos que nada nos seja retirado ou que não alcancemos o que queremos, podemos dizer: “ainda que nos arrebate o menor e o menos valioso, nos fica o mais excelente e abundante enquanto permaneçam nossas almas.”116 Para reforçar a idéia do desapego em relação às coisas que não permanecem, Al-Kind÷ refere-se a uma passagem – atribuída a Sócrates, o “cínico” – 117 em que alguém teria perguntado a ele: “Por que não estás triste?” ao que teria respondido o filósofo: “Porque não possuo nada cuja perda possa me entristecer.”118 Al-Kind÷, também, observa que o homem, à exceção das outras criaturas, apesar de possuir discernimento, quer possuir muitas coisas das quais não tem necessidade nem para a sua subsistência e nem para o bem estar de sua vida. Por essa razão, diz-se que aquele que se ocupa em aumentar as coisas que lhe são externas mancha seu viver com a vida passageira, são muitas suas enfermidades e não desaparecem suas dores. Em seguida, Al-Kind÷ expõe uma metáfora da vida como sendo uma travessia de barco que todos fazemos. Essa metáfora, de inspiração estóica119, aparece nas palavras de Al-Kind÷ a partir da afirmação de que a vida se assemelha àquele barco que reuniu muitas pessoas para atravessarem o mar, a fim de se instalarem numa terra distante. Durante a viagem, o capitão do barco levou todos a um porto seguro para solucionarem alguns problemas para, em seguida, continuarem a viagem. Nessa parada ocorreu que alguns passageiros desceram do barco, resolveram aqueles assuntos necessários e voltaram ao barco sem que tivessem desviado sua atenção com nada além da resolução daqueles assuntos. Esses passageiros ao voltarem ao barco que estava vazio, escolheram os melhores lugares para seguir viagem. Entretanto, ocorreu que outros passageiros, ao descerem à terra, detiveram-se a contemplar os prados, as flores, as árvores, os pássaros e as pedras. Ao voltarem estavam um pouco atrasados e ocuparam lugares mais apertados no barco, visto que os outros haviam se lhes antecipado. Houve, ainda, o caso de outros passageiros que foram além da contemplação das coisas que havia naquele lugar e passaram a recolher pedras, 115 Ibid, p.163. Ibid,p.164. 117 Muitos doxógrafos árabes atribuiram muitas passagens de Diógenes, o “cinico” erroneamente a Sócrates. 118 GUERRERO, op.cit, p.164. 119 Ibid, p.154, explicando que esse tema aparece em autores da antiguidade mas que Al-Kindi deve ter se inspirado em Epiteto. 116 111 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho conchas, flores e outras coisas que julgaram dever levar consigo na viagem de volta a sua pátria. Estes, além de ocupar lugares mais apertados e desconfortáveis, tiveram de se apinhar com as coisas desnecessárias que traziam consigo. Pior do que isso, tinham, ainda, que cuidar dessas coisas a maior parte do tempo, ficando tristes quando algumas delas se perdiam. O caso mais extremo foi, porém, o dos passageiros que se embrenharam nas matas que havia naquele lugar esquecendo-se completamente do barco e da pátria a que se dirigiam. Na mata cerrada, correram grandes perigos, fosse pelos ataques de animais, de armadilhas da floresta ou das doenças que podiam contrair. Quando chegou a hora de continuarem a viagem, o capitão chamou a todos para a partida do barco: alguns ainda foram capazes de escutá-lo e entraram no barco, mas traziam muitas moléstias e ferimentos, terminando por ficarem nos lugares mais incômodos do barco amontoados uns sobre os outros em péssimas condições; para aqueles outros, que se embrenharam profundamente nos bosques, a voz do capitão sequer foi ouvida e o barco partiu sem eles. Alguns foram mortos pelas feras, outros pelas doenças tendo permanecido separados de sua pátria e, por isso, causaram muita tristeza para aqueles que seguiram viagem. Aos que estavam no barco carregados com o peso das coisas que recolheram ocorreu que não tardou para as conchas começassem a exalar um odor fétido, as flores murchassem e as pedras perdessem seu colorido, e eles foram obrigados a jogar tudo ao mar para livrarem-se do estorvo daquilo que lhes tirava a liberdade. No fim, ficaram de mãos vazias. Muitos desses adquiriram doenças devido aos odores daquelas coisas, mas, mesmo assim, debilitados, seguiram viagem. Outros acabaram morrendo assim como muitos daqueles que haviam se embrenhado nos bosques. Dentre aqueles os que somente se demoraram a contemplar as coisas daquela terra ocorreu somente que não conseguiram os lugares mais amplos e cômodos do barco mas seguiram sua viagem com tranqüilidade. Quanto aos que voltaram ao barco sem entreterem-se com nada das coisas que chegavam aos seus sentidos, exceto a visão que contemplaram seus olhos, ao sair do barco, ocuparam os lugares mais amplos e mais confortáveis e chegaram comodamente à sua pátria. Essa narrativa, mostrando várias maneiras pelas quais o homem poderia transpor sua viagem, constituiu-se num “exemplo de nossa passagem por este mundo em direção ao mundo verdadeiro.”120 Se realmente houvesse um motivo para nos 120 Ibid, p.168. 112 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho entristecermos este deveria ser o da separação de nosso verdadeiro lugar, e de nossa verdadeira pátria onde não há carências e nem desgraças, nem perdas e nem coisas inalcançáveis. Por isso só devemos nos entristecer por estarmos privados de motivos que nos entristeçam, pois isto é próprio da razão, enquanto que nos entristecermos por ter motivos que nos entristeçam, isto é próprio da ignorância. Na senda da vida, mesmo que pensássemos que a morte seria um mal tão grande capaz de nos entristecer, ainda assim, Al-Kind÷ procura mostrar que isto não é uma verdade. A primeira premissa é de que não devemos detestar o que não é um mal, mas apenas o que é um mal. E enganam-se os que pensam que a morte é, em si, um mal pois o que é um mal, na morte, é apenas o medo da morte.121 A morte, em si mesma, nada mais é do que a perfeição e o acabamento da nossa natureza. Na medida em que a definição de homem é: ser vivo, racional e mortal, logo, se não houvesse a morte não haveria homem, porque se não é mortal, não é homem. Assim, seria um absurdo que aquilo que somos fosse um mal mas, ao contrário, o mal é somente querermos ser o que não somos. Por isso não é um mal, a morte. E se o que muitos pensam ser o maior dos males não o é , menos ainda será um mal aquilo que está abaixo da morte. O homem não deve entender a morte como um fim mas como uma transformação própria da natureza. Um exemplo usado por Al-Kind÷ consiste no seguinte: imaginemos que o alimento fosse dotado de razão e, estando no fígado, fosse obrigado a sair dali. Ora, isso, certamente, lhe custaria muito, mesmo que fosse para o aperfeiçoamento de seu ser. Suponhamos, então, que esse mesmo alimento fosse transportado para os testículos e, convertido em sêmen, fosse levado ao útero. Isso talvez o pusesse triste. Muito mais triste, porém, seria para ele se tivesse que voltar aos lugares anteriores e aos estados anteriores. O mesmo aconteceria quando esse sêmen, já desenvolvido, chegasse a este nosso mundo: inicialmente se entristeceria, mas depois não quereria trocar isso que vive pelo seu retorno ao útero. Do mesmo modo, estando neste mundo, vive a angústia de ter de abandoná-lo. Se apenas nos voltarmos as coisas deste mundo e nos apegarmos em demasia às coisas dos sentidos, entenderemos que a morte seria um mal. Participar das possessões sensíveis deste mundo não é um mal . Um mal é nos enraizarmos nelas e nos entristecermos, na medida em que elas se tornam aflições que introduzimos em nossa alma. Devemos ter em conta que, muitas vezes, ao não possuirmos os bens 121 Ibn Sina escreveu uma espístola que trata do tema da cura do medo da morte. 113 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho exteriores que possuem os reis, também não possuímos aquilo que acompanha tais posses tais como a cólera e a concupiscência que são fontes de males e dores da alma. Afinal, pior do que a enfermidade do corpo é a enfermidade da alma. Desse modo, Al-Kind÷ encerra a Arte da Consolação desejando que esses conselhos sejam um exemplo firme a seguir para que nos salvemos dos males da tristeza e possamos chegar à pátria mais excelente, à morada da permanência e ao lugar dos piedosos: “Que Deus te conceda a felicidade perfeita em tuas duas moradas, te favoreça sobremaneira em ambas, te coloque entre os bem guiados, os que gozam dos frutos da razão e te afaste da infâmia e da baixeza da ignorância! Que Deus te de com suficiência um grande lote deste e do outro mundo com que possas chegar a um descanso perfeito e a uma vida excelente.”122 Se nessa exposição, não vemos aparecer com evidência os conceitos religiosos como substrato da reflexão sobre a ética e o modo de conduta do homem ao longo de sua vida, já em sua metafísica, os elementos religiosos são contemplados pela argumentação filosófica. O resultado disso é que Al-Kind÷ procura atingir o seu objetivo maior de concordar sua crença religiosa com a filosofia. Em sua epístola Sobre a Filosofia Primeira, inicialmente Al-Kind÷ faz um longo louvor à filosofia de um modo geral, e à Filosofia Primeira em particular, pois esta se ocupa do estudo da causa primeira que é Deus. Assim, entende Al-Kind÷ que o filósofo mais nobre e perfeito deve ser o homem que é versado nesse tema que é, em suma, o mais nobre conhecimento. Na abertura dessa obra, Al-Kind÷ mostra a gratidão aos que o precederam em outras línguas colocando-se como um elemento de ininterrupta continuação da busca pela verdade. “Grande deve ser, pois, nosso agradecimento àqueles que trouxeram um pouco da verdade, tanto mais àqueles que nos trouxeram muito da verdade, visto que nos fizeram participantes dos frutos de seus pensamentos e nos facilitaram o caminho para as verdadeiras questões obscuras, ao mesmo tempo em que nos beneficiaram com as premissas que nivelaram, para nós, o caminho da verdade. Se não houvessem já existido tais princípios verdadeiros com os quais nos educamos para as conclusões de nossos problemas desconhecidos, eles não se reuniriam para nós, nem mesmo com uma intensa 122 GUERRERO, op.cit., p.171. 114 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho investigação durante toda a nossa vida. Isso só foi reunido nas épocas passadas –era após era- até esta nossa época, com uma investigação intensa, com assídua e infatigável tenacidade (...) Não devemos nos avergonhar, pois, de achar bela a verdade e de adquiri-la de onde quer que venha, ainda que seja de povos e de raças distintas e distantes de nós pois não existe nada mais caro do que a verdade para quem busca a verdade. Nao há que se menosprezar a verdade, nem há que se humilhar aquele que dela fala e nem quem a traz consigo. Nada se tornou desprezível pela verdade; ao contrário, pela verdade tudo se enobrece.” 123 Com esse espírito de continuidade da busca pelo saber, aliado à tentativa de harmonizar dogma e argumentação, o conhecimento metafísico ganha importância nas teses de Al-Kind÷. Avançando no tema, nosso autor entende que, enquanto a metafísica é o estudo do conhecimento das causas, deve, portanto estudar as quatro causas enumeradas por Aristóteles: material, formal, eficiente e final. Mas, ainda que inspirado na teoria das quatro causas do Estagirita, Al-Kind÷ não as segue à risca, adaptando-as para atingir seus próprios objetivos. O mundo não é eterno mas criado e a eternidade é um conceito predicado apenas a Deus, Uno, Verdadeiro, Eterno, Princípio Primeiro de todas as coisas. Deus é entendido como aquele de quem não se pode conceber como tendo uma causa de seu ser distinta de si mesmo. O Ser Eterno é imutável e indestrutível visto que não possui em si mesmo nenhuma contrariedade própria do mundo da geração e da corrupção. Na medida em que é por si, não cessa jamais, não se transforma em um ser mais perfeito e nem em um ser menos perfeito; estabilizado na mais permanente excelência, jamais se altera. Esse Ser Eterno não é um corpo, pois se o fosse sua pluralidade deveria se constituir num infinito em ato. Procedendo pela redução ao absurdo, Al-Kind÷ procura demonstrar, que a proposição de que um corpo poderia ser eternamente infinito é insustentável. Do mesmo modo, procura mostrar que o tempo não pode ser infinito. Sua insistência quanto a finitude do universo, do tempo e do movimento leva a considerar que essas realidades foram, portanto, criadas por Deus a partir do nada. Pelo mesmo motivo admite-se a possibilidade da destruição do mundo pela ordem de Deus. Por essa razão, Al-Kind÷ entende ser necessário proceder a demonstrações da impossibilidade de séries infinitas em ato e, a partir da demonstração da 123 Ibid, p.47s. 115 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho impossibilidade, nem o tempo e nem o movimento poderem ser infinitos, Al-Kind÷ entende que isso consiste numa prova efetiva do começo do mundo em algum determinado instante. Ora, se isso é certo, certo também é que, demonstrada a obra, forçosamente esteja demonstrada a existência de um autor. Tendo um começo, entende-se que, necessariamente, o mundo deve ter sido engendrado e, como o que é engendrado só pode sê-lo por um gerador, logo, este mundo foi criado, do nada, por Deus. Enquanto autor e criador do mundo, o principal atributo de Deus é sua unicidade, a qual é referendada insistentemente pelas palavras do Alcorão em toda sua extensão. Nele não existe a pluralidade da composição: é simples e não possui nem matéria e nem forma. Ele é o não causado, é causa de si mesmo e causa de todas as causas. Ora, “enquanto é causa de todas as coisas, o existente primeiro deve ser superior a todo o resto e não ter analogia com nada do que é criado”. 124 Assim, a cosmovisão de Al-Kind÷ estabelece, por um lado, o mundo, com seus atributos: criado, finito, múltiplo e não eterno e, de outro lado, Deus: Criador, Infinito, Uno e Eterno. Al-Kind÷ reconhece uma gradação de causas que procede desde Deus em ordem decrescente até chegar ao mundo sublunar, isto é, abaixo da esfera da Lua. A esfera das estrelas fixas, assim como o Sol e a Lua são fatores causais para que haja vida no mundo sublunar pois, apesar de Deus ser a causa eficiente remota, sem a causalidade eficiente próxima , a potência não passaria ao ato neste mundo sublunar. Quanto ao estudo sobre a alma, os escritos de Al-Kind÷ permitem dizer que sua matriz é um platonismo acrescido de algumas teses aristotélicas. Entendendo que ambas as teorias devem coincidir, ele procura harmonizá-las. Em sua Epístola sobre o Sonho e a Visão, Al-Kind÷, apesar de usar algumas categorias aristotélicas, deixa transparecer sua visão platônica estabelecendo hierarquicamente a apreensão das formas pelos sentidos e o papel da imaginação e da concentração. No Discurso sobre a Alma, Al-Kind÷ acolhe uma visão estritamente platônica, ao afirmar a existência de dois mundos, o inteligível e o sensível. Não obstante algumas passagens do texto serem enigmáticas, Al-Kind÷ afirma a alma humana como proveniente do mundo divino superior e incorpóreo. Assemelhando-se a ele, a alma deve procurar o seu retorno na medida em que se desata dos grilhões do corpo sensível em direção ao mundo inteligível, sua verdadeira morada. O Discurso 124 FAHKRY, op. cit,p. 101. 116 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho sobre a Alma inicia-se com a afirmação de que a obra é um resumo sobre o tema a partir “do livro de Aristóteles, de Platão e do restante dos filósofos”125. Porém, pelo desenvolvimento do texto, é possível verificar que Al-Kind÷ não se baseou no De Anima de Aristóteles mas talvez nas primeiras obras do Estagirita de traços platônicos mais marcantes como, por exemplo, o Eudemo, obra mais característica do período platônico de Aristóteles. A Abertura do Discurso sobre a Alma se dá com as seguintes palavras: “Que Deus te guie retamente para alcançar a verdade e te ajude a obter suas coisas inacessíveis! Que Deus Altíssimo te faça feliz por obedecer-lo.”126 Em seguida, AlKind÷ resume as principais idéias sobre a alma. Para ele, a alma é uma substância simples detentora de nobreza e perfeição, da mais alta dignidade. “Sua substância procede do Criador do mesmo modo que a luz do sol procede do sol.”127 Sua substância, sendo divina e espiritual, indica a sua nobreza em oposição às paixões e à ira que sobrevém ao corpo segundo os impulsos da faculdade irascível. Quando a alma, que procede do Criador, se separa do corpo, conhece tudo o que há no universo, nada se lhe oculta. Isso, segundo ele, teria sido o que Platão quis dizer ao mencionar os antigos e virtuosos filósofos que, depois de se liberarem no mundo terreno e das coisas sensíveis, pela especulação e investigação revelou-se o conhecimento do que estava oculto aos homens, descobrindo, assim, os mistérios da criação. Seguindo por essa via platônica, Al-Kind÷ entende que a alma atinge seu objetivo de assemelhar-se ao Criador enquanto não se entrega aos prazeres sensíveis de modo integral, pois o virtuoso é aquele em quem prevalece a faculdade intelectual da alma, pois esta se aproxima das qualidades do Criador tais como a sabedoria, o poder, a justiça, o bem, o belo e a verdade. Ao homem é possível assim conduzir-se, dentro de sua capacidade pois, ainda que limitado, pode participar dessas virtudes pois a faculdade intelectual de sua alma possui, “um poder semelhante ao Seu poder.”128 Categoricamente, diz Al-Kind÷: “segundo a opinião de Platão e da maioria dos filósofos, a alma é eterna depois da morte sendo que sua substância igual a do Criador.”129 Separada do corpo, pode conhecer as coisas tal qual as conhece o Criador, mas num grau menor já que recebe a luz Dele. Quando nossas almas estiverem 125 GUERRERO, op.cit., p.134. Ibid, p.134 127 Ibid, p.134 128 Ibid, p.135 129 Ibid, p.135 126 117 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho separadas e adaptadas ao mundo da eternidade, verão, então, pela luz do Criador tudo manifesto. Citando Pitágoras130, Al-Kind÷ entende que à medida em que a alma, ainda que estando unida ao corpo, abandona as paixões e se purifica das impurezas e se volta ao estudo detido para o conhecimento das coisas, ela realiza um polimento em si mesma , o que permite que a luz do Criador faça que se manifestem nela as formas de todas as coisas, assim como um espelho polido manifesta as imagens das coisas sensíveis. O limite da pureza que uma determinada alma pode atingir fará com que ela espelhe e reflita de maneira mais perfeita as formas do mundo superior pois, nesse caso, o Criador derrama sobre ela Sua luz e Sua piedade. Nesse estado, a alma goza de um prazer eterno, incomparavelmente superior a todos os prazeres sensíveis pois estes não são tão nobres quanto os prazeres espirituais. “O desgraçado, o cego e o ignorante são os que se contentam com os prazeres dos sentidos, fazendo deles seu objetivo e seu fim último.”131 Segundo Al-Kind÷, é preciso saber que estamos nesta vida como se estivéssemos passando por uma ponte, numa passagem em que a morada estável que esperamos é o mundo superior e nobre. Nesse lugar nossas almas estariam, depois da morte, próximas ao Criador, a quem veríamos com uma visão intelectual e não sensível. Esse lugar, a morada das almas intelectivas, é o mundo da divindade, onde está a luz do Criador, atrás das esferas por onde se movem os astros. As almas separadas não possuem todas o mesmo destino pois a ascensão das almas a esse lugar depende de sua pureza. Em etapas sucessivas de ascensão purificadora, algumas almas chegam até a esfera da Lua, depois se elevam até a esfera de Mercúrio e assim seguem sucessivamente elevando-se às esferas dos astros superiores, permanecendo em cada uma dessas esferas por algum tempo. Quando as almas estão totalmente desprendidas de suas ligações com o mundo da matéria e do sensível, quando não possuem mais as imagens e a as coisas próprias aos sentidos, então essas almas se elevam finalmente ao mundo do intelecto, atravessam todas as esferas e permanecem no lugar mais nobre onde nada se oculta e onde a luz do Criador manifesta as coisas que são verdadeiras. “Todas as coisas lhes são claras e evidentes, e o Criador lhes confia assuntos do governo do mundo, cuja ação e tarefa lhes proporcionará prazer. Pela minha vida! Platão descreveu, resumiu e reuniu nessas poucas palavras, muitas idéias.!” 132 130 O nome “Pitágoras” aparece de modo confuso no manuscrito Cf. GUERRERO, op.cit., p. 136,n. 6. GUERRERO, op.cit., p.137 132 Ibid, p.137 131 118 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho A ascensão da alma só é conseguida pelo seu aperfeiçoamento a partir do isolamento de suas impurezas. Al-Kind÷ nota ser estranho que o homem descuide de sua alma e a afaste de seu Criador pois a nobreza é o estado que lhe pertence e o que a faz assemelhar-se ao poder de Deus Altíssimo e a Seu estado, quando separado do corpo. Diga aos que choram –diz ele- que devem chorar e aumentar seu pranto por quem descuida de sua alma e se excede em entregar-se aos prazeres vis, baixos, depreciáveis e falsos, que os fazem adquirir o mal e os inclinam a assemelharem-se às bestas; por quem deixa de meditar sobre a nobreza da alma e a quem deixa de dedicarse a “purificar sua alma na medida do possível. A purificação verdadeira é a da alma e não a do corpo. (ý) Oh! homem ignorante! Não sabes que tua permanência neste mundo é como um relâmpago e que logo chegarás ao mundo verdadeiro e permanecerás nele eternamente?”133 Após essa exortação, Al-Kind÷ finaliza o Discurso sobre a Alma sinalizando de modo abrupto que resumira o que os filósofos haviam dito: “a alma é uma substância simples. Compreenda o que te escrevi sobre isso. Sê feliz por isso. Que Deus Altíssimo te faça feliz no teu mundo terreno e em tua vida futura.!”134 No conjunto de escritos sobre temas referentes à alma humana, destacase, também, o estudo Sobre o Intelecto que inaugurou uma série de outros tratados e estudos a esse respeito pelos sucessores de Al-Kind÷. A base dessa obra é a tradição iniciada por Aristóteles em seu De Anima. Não é demais adiantar que a questão do intelecto, na falsafa, foi uma das vigas mais importantes na construção da cosmologia e da epistemologia. Em linhas modestas, esse pequeno tratado de Al-Kind÷ foi traduzido no Ocidente medieval no séc. XII d.C. e esteve presente na recepção de Aristóteles pelo Ocidente. O estudo Sobre o Intelecto propõe uma divisão do intelecto que, embora, não se apresente de maneira muito detalhada, já indica o modo pelo qual esse tema foi compreendido pelos falāsifa. Deve-se ter em conta que em todo o desenvolvimento das teses de Al-Kind÷, que a concordância que ele pretendeu entre as teses platônicas e as aristotélicas são orquestradas pela presença do neoplatonismo que operou uma aproximação entre ambas. Do mesmo modo como a Epístola sobre a Alma, o estudo Sobre o Intelecto foi escrito com o objetivo de informar, resumidamente, o que disseram os antigos gregos a respeito do intelecto. Al-Kind÷ considera que “os mais dignos de 133 134 Ibid, p.138 Ibid, p.139 119 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho elogios dentre eles são Aristóteles e seu mestre, o sábio Platão.” 135O início do tratado já mostra que o resumo proposto por Al-Kind÷ não é fiel a nenhuma das teses propriamente dos filósofos gregos em sua totalidade. Trata-se de uma sobreposição de alguns elementos aristotélicos. Assim o lemos : “E posto que o essencial do que disse Platão a esse respeito é o mesmo que manifestou seu discípulo Aristóteles, então, a modo de informação, diremos sobre isso o que se segue.” Seguindo, pois, o que ele acredita ser a tese de Aristóteles em concordância com Platão, Al-Kind÷ classifica o intelecto segundo quatro classes: o intelecto sempre em ato, o intelecto em potência, o intelecto que passa da potência ao ato e o intelecto que se chama demonstrativo136. Em outras palavras, trata-se de: o intelecto agente, o intelecto passivo, o intelecto em hábito e o intelecto manifesto. A apreensão das formas pode se dar segundo os sentidos ou segundo o intelecto. Quando a alma apreende as formas inteligíveis, ela se se identifica com essas formas inteligíveis que estavam potencialmente nela e o intelecto passa da potência ao ato. “Quando está na alma, ela e a alma são uma só coisa (ý) da mesma maneira que a faculdade que sente tampouco é algo distinto da alma como os membros no corpo, mas que ela é a alma e a alma é a que sente.”137As formas inteligíveis cumprem o papel de causa eficiente nesse processo mas, tais inteligíveis, em si mesmos são idênticos ao intelecto ativo. “Assim, tudo o que está em potência só passa ao ato por outro, que é algo em ato. Assim, pois, a alma é inteligente em potência e é a que se converte em inteligente em ato pelo intelecto primeiro , ao entrar em contato com ele.”138 As formas em ato no intelecto agente não são uma mesma coisa com a alma mas a forma inteligível quando apreendida pela alma faz com que esta forma inteligível e a alma se tornem uma só coisa. Al-Kind÷ parece, pois, entender desde o início que o intelecto agente está separado do homem e assim, separado, será um dos pilares que inspirou os sistemas posteriores na questão da transcendência do intelecto agente. Na medida em que a alma é atualizada por essas formas que lhe chegam do intelecto agente, a aquisição é nomeada intelecto adquirido. Adquiridas, as formas podem ser evocadas quando a alma quiser delas dispor e esse é o intelecto em hábito. 135 Ibid, p.150 A tradução deste último termo é discutível e pode ser encontrada também como “manifesto”, “emergente”, ou “segundo”. Cf. FAHKRY,op. cit. p. 110 e GUERRERO, op.cit. p. 150. 137 Ibid, p.150 138 Ibid, p.151 136 120 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Pode se entender que o intelecto demonstrativo pudesse ser propriamente o exercício do intelecto em hábito. Muitas outras contribuições trouxe Al-Kind÷ ao universo filosófico dos árabes. Mesmo que, em muitos casos, tenha realizado um trabalho mais de compilação de reunião de idéias consagradas, deve-se lembrar que esse papel foi o que o momento histórico do Islām permitia que fosse realizado por não terem tido, os árabes, uma tradição filosófica, até então. Se, recepcionar foi a missão de Al-Kind÷ ele a realizou em toda sua plenitude, incitando os homens de seu tempo a buscar a sabedoria, ou seja, a filosofar. 5.2 Al-Fārāb÷ , o inventor. Por volta de um ano antes da morte de Al-Kind÷, nasceu Abý Na½r Mu¬ammad Ibn Mu¬ammad Ibn Tarjān Ibn Ūzalag Al-Fārāb÷ (872/950d.C.259/339H) próximo à cidade de Fārāb na Transoxiana, região da Ásia Central, atual Uzbequistão. Os detalhes de sua vida são poucos conhecidos. Parece que seu pai era um oficial do exército de origem turca ou, talvez, persa. Tudo indica que sua língua materna tenha sido o turco e não o persa, o que leva a crer que ele, provavelmente, descendia dos primeiros. Sabe-se, também, que, ainda jovem, transferiu-se para Bagdá onde passou a maior parte de sua vida. Nessa cidade Al-Fārāb÷ teria aprendido a língua árabe tendo como primeiro preceptor o cristão nestoriano Ibn Haylān. Depois, AlFārāb÷ estudou lógica, gramática, filosofia, música, matemática e todas as ciências da época. Quanto às línguas, além do árabe, do persa e do turco parece que conhecia outras [talvez não as 70 (!) que a lenda lhe atribuiu]. De todo modo, Al-Fārāb÷ encarnou a figura do grande sábio. “Esse grande filósofo era um espírito profundamente religioso e místico. Vivia na maior simplicidade e portava a vestimenta dos sufis.”139 Apesar de ter escrito sobre temas políticos, tudo indica que não ocupou cargos administrativos. Músico admirável, esteve no Cairo e, também, em Alepo sob a proteção do príncipe Saif al-Dawlah um incentivador das artes e das letras daquele tempo. Nos últimos anos de sua vida, encontramos Al-Fārāb÷ em Damasco, na Síria, tendo por ofício ser guardião de um jardim. “Ao mesmo tempo ele prosseguia os seus estudos de filosofia. Ele foi bastante pobre, lendo à noite sob a luz de sua lamparina de 139 CORBIN, Histoire de la Philosophie islamique, op. cit., p. 226. 121 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho guardião.”140 Em Damasco esteve em convívio com outros homens de letras e lá permaneceu até sua morte quando tinha por volta de 80 anos. Uma anedota muito conhecida, assim contou a fama de Al-Fārāb÷ como poliglota e como excelente músico: quando nosso filósofo foi apresentado ao príncipe Saif al-Dawlah, este se admirou pelo fato de um homem vestido com roupas tão pobres e com modos tão curiosos ser capaz de compreender as ordens que ele –o príncipedava aos seus escravos numa língua que ninguém era capaz de compreender. - Conheces bem essa língua ? perguntou-lhe o príncipe. - Sim, conheço bem não só esta mas outras setenta línguas! Admirado, o príncipe permitiu que Al-Fārāb÷ se sentasse entre os sábios que lá estavam presentes e, então, o nosso filósofo passou a conversar com eles sobre todas as ciências. - Quer beber algo ? perguntou o príncipe. - Não. Respondeu Al-Fārāb÷ - Quer, então, comer algo ? novamente perguntou o príncipe. - Não. Respondeu Al-Fārāb÷ - Quer ouvir uma boa música ? - Sim. Concordou o filósofo. O príncipe mandou, então, chamar os músicos da corte, todos muito hábeis na execução de seus instrumentos. A cada apresentação, como era esperado, todos se admiravam de suas habilidades mas ao final de cada uma delas, Al-Fārāb÷ constrangia todos ao fazer um sinal de reprovação com a cabeça e dizendo: - Você tocou muito mal! Curioso e indignado, Saif al-Dawlah perguntou a Al-Fārāb÷ se ele, por acaso, conhecia alguma coisa da arte da música. O nosso filósofo, então, tirou de um saco que trazia consigo um instrumento de cordas e começou a tocar. Todos se admiraram e se alegraram muito com a música que ele tocava. Mas Al-Fārāb÷ subitamente parou de tocar, esperou que todos se recompusessem e começou uma nova música: todos se puseram a chorar compulsivamente. Novamente, Al-Fārāb÷ interrompeu a música e, assim que os ouvintes se recompuseram, ele iniciou outra: dessa vez, todos caíram num sono profundo, até mesmo os guardas e o porteiro do 140 BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, op. cit.,p. 480. 122 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho palácio. Al-Fārāb÷, então, nos seus trajes humildes, silenciosamente levantou-se e foi embora ... Al-Fārāb÷ promoveu um salto na falsafa. Foi o principal responsável pelas teorias mais originais e criativas entre os árabes. Além disso foi um lógico eminente conhecido por uma série de comentários à obra de Aristóteles. Em seu Tratado sobre o Intelecto propôs uma epistemologia segundo uma divisão do intelecto que influenciou não só a falsafa mas também foi uma das obras mais conhecidas no Ocidente medieval latino. Ao lado de seu perfil lógico, não deixou de permear uma grande espiritualidade em suas teses. Com Al-Fārāb÷, a falsafa amadureceu numa “visão de mundo em que o real e o divino se conjugam, na qual o peripatetismo e o neoplatonismo se encontram e na qual o sistema edificado pela razão encontra seu coroamento numa visão mística.” 141 Além da profundidade em suas teses, vale observar que ele conheceu em detalhes o nascimento da filosofia na Grécia, sua evolução e a transmissão desses conhecimentos através de outros centros de estudos. Al-Fārāb÷ esteve imbuído do espírito da história da filosofia . Num pequeno tratado, ainda conservado, ele traçou um itinerário da história da filosofia desde seu nascimento na Grécia, passando pelos mestres que sucederam Platão e Aristóteles, apontando a transmissão dos conhecimento através de Roma e de Alexandria, comentando a posição do cristianismo frente a filosofia; sublinhando a transmissão dos saberes para Antióquia na Síria; reconhecendo o papel dos cristãos na transmissão da filosofia aos árabes e, finalmente, citando os principais pensadores que o antecederam num passado próximo. Essa postura de visão universal e impregnada de história da filosofia explicou, em parte, porque Al-Fārāb÷ entendia ser ele, também, um continuador da herança dos saberes de sua época. Se com Al-Kind÷ a falsafa se iniciou, com Al-Fārāb÷ ela ganhou contornos mais definidos, e a ele se devem os principais pilares que a sustentaram dali em diante. O chamado Magister Secundus – sendo Aristóteles, o Magister Primus –, num período em que a assimilação da filosofia já era uma realidade no mundo árabe medieval, encontrou um momento mais favorável para desenvolver suas teses com maior profundidade, criatividade e originalidade. Sua obra é bastante vasta e passa em revista toda a gama das ciências então conhecidas. Badawi142 apresenta mais de 120 títulos: 25 tratados de lógica, 18 141 142 Ibid., p. 575. Ibid., pp. 485-496. 123 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho comentários à obra de Aristóteles, 12 títulos a respeito da filosofia de Platão e de Aristóteles, 15 títulos de metafísica, 6 de ética e política, 7 sobre música, e outros sobre assuntos diversos. A ele se deve a primeira teorização da música árabe, especialmente no Kitāb al-mus÷qā al-kab÷r no qual desenvolve suas teses a partir das fontes dos Pitagóricos, de Platão e de Aristóteles. Uma nota bastante característica em suas teses foi a tentativa constante de harmonizar as principais correntes de pensamento que chegaram até ele. Uma de suas obras denomina-se O Livro da Concordância entre as Idéias dos dois Sábios: Platão – o Divino – e Aristóteles. Em seu comentário a respeito dessa obra, Gilson sublinha que “apenas esse título mostra bastante bem quão inexato é sustentar que a filosofia árabe não fez mais que prolongar a de Aristóteles.”143 Nessa obra – única do gênero naquele tempo – Al-Fārāb÷ transcreveu passagens dos dois autores que seriam, aparentemente, contraditórias e procurou explicá-las mostrando sua concordância. Os trechos principais são extraídos de textos como o Fédon, Político, República, Timeu e a Carta VII de Platão; da Metafísica, Primeiros e Segundos Analíticos, De Anima, Ética a Nicômaco e a Teologia de Aristóteles. Na variedade dos temas apresentados, destacam-se os que são concernentes à lógica, teoria do conhecimento, metafísica e filosofia prática. Sem dúvida, um dos pontos altos do tratado foi a tentativa de harmonização entre a teoria das idéias de Platão com as teses de Aristóteles. A obra que serviu de guia para essa harmonização foi a própria Teologia de Aristóteles pois Al-Fārāb÷, ao mesmo tempo que interpretou Platão segundo a doutrina neoplatônica, tomou por aristotélicas o mesmo neoplatonismo presente na Teologia, fato que possibilitou uma leitura de aproximação entre os dois filósofos gregos. Além da concordância no âmbito da própria filosofia, Al-Fārāb÷ buscou harmonizar a filosofia com a religião profética do Islām. Não obstante, sua doutrina chocou-se em muitos aspectos com os dogmas religiosos. Na doutrina de Al-Fārāb÷, a presença do neoplatonismo na metafísica aristotélica assumiu um caráter de uma verdadeira teoria cosmológica da emanação resultando num sistema metafísico de grande complexidade que se opôs à doutrina criacionista de Al-Kind÷. O harmônico sistema proposto por Al-Fārāb÷ buscou interligar as diversas áreas do conhecimento e se desenvolveu em vistas de uma unidade que pudesse responder em uníssono às questões do homem e do mundo. Disso resultou, por exemplo, que os temas éticos e 143 GILSON, A Filosofia na Idade Média, op.cit.,p. 427. 124 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho políticos se desenvolvessem como um prolongamento explícito da metafísica. É por essa razão que em uma de suas obras, denominada Livro das Opiniões dos Habitantes da Cidade Ideal 144 , Al-Fārāb÷ não iniciou pelas questões ético-políticas ou pelas relações do homem com o estado mas pela exposição do existente primeiro – que guarda semelhanças com o Uno de Plotino –, explicando seus atributos e o modo pelo qual a partir d’Ele derivou a aparente multiplicidade das coisas existentes no mundo. Numa formulação bastante original, de um ponto de vista islâmico heterodoxo, a metafísica da criação fez com que a unidade absoluta do existente primeiro emanasse de si a multiplicidade dos seres mantendo-se, ainda assim, dentro dos limites da própria unidade e respeitando o axioma segundo o qual “do uno só procede o uno” (Ex uno non fit nisi unum ), aliando as esferas planetárias para compor uma cosmologia que foi utilizada, também, posteriormente por Ibn S÷nā. Dessa estrutura hierárquica da qual procedem todos os entes, nosso filósofo extraiu suas teses éticas e políticas em perfeita harmonia com todo o sistema. Al-Fārāb÷ foi o primeiro a tratar com detimento sobre o tema político no Islām145, marcado pela leitura da República de Platão e pela ausência da tradução da Política de Aristóteles. Em linhas gerais, sua filosofia política acompanhou a solução platônica do rei-filósofo apresentada na República, mas adaptou-a para ser uma solução ao problema, particularmente islâmico, das qualidades que deveria possuir o califa como o guia político e espiritual do Islām. Ao se procurar uma aproximação com o momento histórico-político em que Al-Fārāb÷ vivia, é possível notar amplamente que a cidade ideal, apesar da notável inspiração platônica, se adequa às aspirações filosóficas de um pensador imerso na religião islâmica. O sábio-profeta, guia da cidade perfeita, deve ter atingido o grau supremo da felicidade humana que consiste em se unir à inteligência agente sendo, assim, tocado pela revelação profética e por toda a inspiração. Tal identificação só foi possível porque, nesse caso, o arcanjo Gabriel foi identificado com a inteligência agente: o anjo do conhecimento e o anjo da revelação se harmonizam, pois, perfeitamente, numa filosofia profética. Corbin comentando esse aspecto da “política” de Al-Fārāb÷ diz: “inversamente ao sábio de Platão que deve descer da contemplação dos inteligíveis para se ocupar das questões públicas, o sábio de Al144 »¬Œ\«[ »´¿v°«[ −·[ Æ[y[ ]\c§ ( Kit¡b ‘ar¡’ ’ahl ’al-mad≈na al-f¡∞ila ). Acompanhamos Badawi que opta por traduzir o termo “ fa∞≈la ” por “ideal” e não por “virtuosa” entendendo-se que “ al-mad≈na al- fa∞≈la ” exprime a excelência, o mais alto grau, ou seja, o que é ideal não estando, pois, limitado ao conceito de virtude. Cf. BADAWI, op. cit., p. 558 n.3 145 Ao menos mais 6 obras segundo Hernandez. 125 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Fārāb÷ deve se unir aos seres espirituais; sua função principal é de levar o cidadão em direção a esse objetivo, porque dessa união depende a felicidade absoluta. (ý) o ‘príncipe’, ao qual Al-Fārāb÷ confere todas as virtudes humanas e filosóficas, é um Platão revestido do manto do profeta Mu¬ammad”. 146 A presença das teses de Al-Fārāb÷ foi abrangente e em várias direções, tendo marcado profundamente muitos pensadores que o sucederam não somente no Oriente mas também no Ocidente medieval. No campo da metafísica, inspirado na observação lógica de Aristóteles de que a noção de que uma coisa é, não inclui o fato de que a coisa, seja, Al-Fārāb÷ estabeleceu um importante marco da história da filosofia ressaltando a distinção entre a noção de essência e de existência. Na medida em que os seres naturais são contingentes, não sendo essencialmente ligados à existência, logo, podem possuí-la ou perdê-la. Os seres existentes devem, pois, ter passado a existir segundo alguma causa que tenha, por essência, sua própria existência e, por isso mesmo, não há como deixar de existir, em outras palavras: Deus. Segundo essa abordagem, a existência não é algo se incluiria necessariamente nela; a essência não incluiria a existência atual; e seria, pois, um acidente da essência. No ser necessário por si, a existência acompanharia sua essência enquanto no ser possível a existência se agregaria a sua essência pelo ato criador, tratando-se de algo possível por si e necessário por outro. Enquanto os seres são de duas classes – possíveis e necessários – ainda que sejam possíveis, se os supusermos como não existentes, não segue-se daí nenhum absurdo e chegam a ser necessários por outro. Desse modo, a existência de algo não seria um caráter constitutivo, mas apenas um acidente. Para se incluir a essência sob a existência foi preciso aguardar as críticas de Ibn Ru¹d. Há inúmeras outras teses que fizeram de Al-Fārāb÷ um dos elos na cadeia de transmissão do saber que ele, assim como Al-Kind÷, também pregou. Atesta Gilson: “Impressionante pelo vigor de seu pensamento e pela força de expressão, a obra de Al-Fārāb÷ merece ser estudada por si mesma.” 147 No Livro das Opiniões dos Habitantes da Cidade Ideal,148 Al-Fārāb÷ seguiu um trajeto que estabelece as causas do existente primeiro, o surgimento e a multiplicidade dos seres, as características dos corpos celestes, as categorias 146 CORBIN, Histoire de la Philosophie islamique, op.cit.,p.231. GILSON, A Filosofia na Idade Média,op.cit., p.430. 148 Em linhas gerais, para um acompanhamento do desenvolvimento do texto, damos a referência da tradução francesa cotejado com passagens de Badawi e citamos em árabe somente algumas passagens que envolvem termos que implicam alguns esclarecimentos. 147 126 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho aristotélicas de matéria e a forma, a alma humana e suas potências, as qualidades do chefe da cidade e, por fim, as características da cidade ideal e de seus habitantes. “O existente primeiro é a causa primeira da existência de todos os 149 seres.” Com esta frase de abertura, Al-Fārāb÷ inicia sua trajetória. O existente primeiro é puro, sem qualquer tipo de imperfeição. Sua existência é a melhor e a mais antiga de todas. Estando no mais alto grau de perfeição e no mais alto grau de acabamento, nada pode alterar sua substância pois a mudança proveniente da oposição e da contrariedade só se encontram abaixo da esfera da lua.150 O existente primeiro é eterno, sua existência é permanente por sua substância e por sua essência e, em sua eternidade, não necessita de nada mais do que sua própria substância para prolongar sua existência. O existente primeiro está isento de toda matéria, de todo substrato e, do mesmo modo, isento de forma pois se o existente primeiro tivesse uma forma, teria matéria e seria, portanto, constituído de duas partes e a sua existência teria uma causa pois cada uma das suas partes seria a causa da existência do seu composto mas, como o existente primeiro é a causa primeira, nesse caso, a composição de forma e matéria não pode ocorrer. O primeiro também não possui nem propósito e nem objetivo determinado para ser pois, se assim fosse, sua existência seria determinada por algum fim e este fim seria uma causa anterior à sua existência e, nesse caso, o primeiro não seria a causa primeira. Ao existente primeiro nada pode ser associado e seu modo de ser é único e difere de todos os outros seres engendrados. Ele é o único que é uno em si mesmo e possui o seu próprio ser. Da mesma maneira que ao existente primeiro nada se associa, assim também nada pode a ele se opor pois se a ele houvesse uma oposição, tal existência oposta seria tão existente quanto a sua e uma das duas deveria ser destruída, pois assim operam os opostos. Para que houvesse a anulação de um dos dois opostos seria necessário haver um substrato comum que os recebesse, “um lugar comum que os recebesse quando se encontrassem, afim de permitir o encontro onde 149 “ \¸¬¨ a[u½j½¯«[ zÎ\ u½j½« ª¼×[ `_«[ ½· ª¼×[ u½j½°«[ ” ALFARABI, »¬Œ\«[ »´¿v°«[ −·[ Æ[y[ ]\c§ (Kit¡b ‘ar¡’ ’ahl ’al-mad≈na Cf. al-f¡∞ila), Beirute, 1996, p.37. Cf. Al-FARABI, Traité des Opinions des Habitants de la Cité Idéale. Paris: J.Vrin, 1990, p.43 e BADAWI, op.cit., p.535. Não nos cabe, aqui, adentrar às dificuldades que o termo ( ﻭﺠﻭﺩ wuj…d ) adquire ao longo do texto árabe assim também como os seus termos derivados, para expressarem, na língua árabe, a noção de ser, existência, ente, existente e demais termos relacionados, indicando para tal ISKANDAR, Avicena, op. cit. pp.227-245. 150 O mundo sublunar, o mundo em que vivemos. 127 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho eles se destruiriam um ao outro.” 151 Ora, esse lugar deveria ser um substrato, um sujeito de inerência ou um gênero, isto é, algo que não fosse os dois mas que lhes permitisse relação e esse algo seria, então, anteriormente existente a cada um deles. Por isso não é possível considerar que haja um ser no mesmo grau que o existente primeiro, pois os opostos estariam no mesmo grau de existência. O primeiro é, pois, único por sua existência. “Ele é único sob esse aspecto.”152 Além disso, o existente primeiro é indivisível em sua substância e não é suscetível de definição. A existência do primeiro é distinta da existência dos outros seres pela sua unicidade, pois sua essência é ele próprio. “Sua unidade é sua própria essência”153 . Na medida em que o existente primeiro não tem matéria e, de modo algum pode estar associado à matéria, ele é essencialmente inteligência em ato “pois o que impede a forma de ser inteligência e de inteligir em ato é a matéria na qual a coisa existe. Ora, desde que a coisa exista sem o subsídio da matéria, ela é, em sua substância, inteligência em ato. Este é o caso do primeiro. Ele é, pois, inteligência em ato.”154 Ele é também inteligível por sua substância pois, sendo inteligência, para conhecer ele não tem necessidade de uma essência diferente da sua e, nesse caso, sua própria substância lhe basta para conhecer e para ser conhecido. Sendo inteligência, necessariamente ele intelige sa essência, sendo que a essência pela qual ele intelige é a mesma que é inteligida. Desse modo, a um só e mesmo tempo “ele é inteligência, ele é inteligível e ele é inteligente e tudo isso é uma única essência e uma única substância indivisível.”155 Assim sendo, o existente primeiro tem ciência perfeita de si mesmo e como “a ciência, por excelência é a ciência permanente que não desaparece – e essa é a 151 Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.47s. ¶x· µ¯ vn[¼ \Œ¿[ ½¸Ÿ ” Cf. ALFARABI, »¬Œ\«[ »´¿v°«[ −·[ Æ[y[ ]\c§ 152 “ »¸k«[ (Kit¡b ‘ar¡’ ’ahl ’al-mad≈na al-f¡∞ila) op.cit. p. 43 Cf. também Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.48 153 BADAWI, op.cit., p.537. 154 AL-FARABI, em BADAWI, op. cit., p. 537. “ −˜«\^ Cf . −¤— ²w[ ½¸Ÿ ” ALFARABI, »¬Œ\«[ »´¿v°«[ −·[ Æ[y[ ]\c§ (Kit¡b ‘ar¡’ ’ahl ’al-mad≈na al-f¡∞ila), op.cit., p. 46. O termo árabe para intelecto e inteligência é o mesmo: ‘ ( عق[لaql ) .Traduzimos por “inteligência” quando este termo se refere às dez inteligências separadas da matéria e por “intelecto” somente quando se refere ao homem. 155 “ ±¤´° z› vo[¼ z·½k¼ ºvo[¼ a[w \¸¬¨ Á· !−¤\— ¹³[¼ ª¼£˜¯ ¹³[¼ −£— ¹³\Ÿ ” AL-FARABI, »¬Œ\«[ »´¿v°«[ −·[ p. 47. Cf. também Traité, op.cit.,p.50. Æ[y[ ]\c§ (Kit¡b ‘ar¡’ ’ahl ’al-mad≈na al-f¡∞ila) op.cit., 128 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho ciência que o primeiro tem de sua essência –”156 logo, ao existente primeiro também chamamos “sábio” pois a sabedoria consiste em que a inteligência conheça as coisas mais excelentes do modo mais excelente. Ora, na medida em que o existente primeiro intelige sua essência e a conhece, ele conhece a melhor das coisas e, por isso, possui a ciência mais excelente da mais excelente das coisas. Por isso é, a um só tempo, sábio e sabedoria. O existente primeiro também é verdadeiro. “O verdadeiro acompanha o ser e a verdade acompanha o ser, pois a verdade de uma coisa é ser aquilo que ela propriamente é.”157 Assim, o existente primeiro é, também, verdadeiro e verdade. O existente primeiro também é vivo e vida em sua essência indivisível. Afinal, se dizemos de nós mesmos que somos vivos enquanto apreendemos as coisas pelas sensações e pelo nosso intelecto, quanto mais pode-se dizer do existente primeiro pois ele apreende o mais eminente inteligível do modo mais eminente pela mais eminente inteligência que é ele próprio e, por isso, é uma inteligência viva e é a própria “vida”. Além disso, o existente primeiro é grande, majestoso e glorioso em sua essência indivisível do modo mais excelente, pois, isso é a sua própria substância assim como sua beleza, seu ornato e seu esplendor são, também, os maiores. Quanto a nós, pelo fato de estarmos ligados à matéria, temos dificuldades de imaginar o seu ser e de inteligi-lo. Isso é análogo ao que ocorre com a luz que, quanto mais intensa, mais torna visíveis as cores mas, por outro lado, quanto mais forte estiver na direção dos nossos olhos mais dificulta nossa visão. Isso não acontece pelo fato de que a luz se esconda ou diminua mas, por sua própria natureza. A luz, em sua perfeição enquanto luz, ofusca e embaça a nossa vista. Por isso, a nossa dificuldade em inteligir e em apreender o existente primeiro deve-se à insuficiência de nossas faculdades intelectuais e imaginativas. Devemos levar em conta que estamos distanciados do existente primeiro pois, enquanto ele é uma substância imaterial que é puramente inteligência, forçosamente nós, que estamos envolvidos pela matéria, temos as nossas substâncias distantes da sua substância. Mas, à medida em que nossas substâncias se voltam para a inteligibilidade do existente primeiro, mais a nossa imaginação d'ele se torna precisa, perfeita e verdadeira. Assim, quanto mais nos despojamos das ligações com a matéria, mais perfeita se torna a inteligibilidade d’ele e a imagem d'ele em nós. 156 157 Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.51. AL-FARABI, al-mad≈na al-f¡∞ila em BADAWI, op. cit., p. 537. 129 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Em todo o seu esplendor, majestade e beleza que conhece de si mesmo, o existente primeiro também experimenta, por essa razão, o maior e o mais profundo prazer. Conhecemos todas essas qualidades somente por analogia e por uma apreensão ínfima quando experimentamos, por exemplo, a apreensão da beleza e do prazer. Mas nossa experiência é muito pequena perto do esplendor do existente primeiro. Aliás, como poderia haver uma relação de igualdade entre o que é uma parte ínfima e o que é sem limite no tempo ou fora do tempo?, entre o que e tão imperfeito e o que é a extrema perfeição? Ora, aquele que tem prazer por si mesmo, se alegra, se ama e se torna apaixonado de si mesmo. Assim, o primeiro se ama, se quer e se maravilha de si de uma maneira correspondente à sua grandeza, do modo mais excelente. No existente primeiro, o ato e o objeto de Seu amor são o mesmo, o ato de seu maravilhamento é o próprio objeto de sua admiração e o ato e o objeto de seu prazer convergem. Nele coincidem o amor, o amante e o amado. “Ele é o primeiro amado, o primeiro amoroso.”158 Por tudo isso que ele é, e por tudo isso que ele envolve em seu esplendor o existente primeiro transborda, jorra, emana e faz 159 , proceder de si, todos os seres. “O primeiro é aquele de quem tudo vem a ser”160. Desde que o primeiro tem a existência que lhe é própria, segue-se necessariamente que, a partir dele, procedem todos os seres cada um segundo o seu ser, cuja existência não depende da vontade do homem ou de sua escolha. Alguns nos são conhecidos pelos sentidos e outros pela demonstração. A existência dos seres a partir do primeiro se faz por emanação de Sua existência à medida que ele dá a existência às outras coisas de modo que toda existência emana necessariamente de sua existência. Mas, observa Al-Fārāb÷, essa existência que vem do primeiro não é a causa ou o fim de Sua existência no sentido de que ele tivesse por fim dar existência a um outro porque, se assim fosse, a Sua existência estaria determinada por uma razão que o precederia e, nesse caso, ele não seria mais o primeiro. Do mesmo modo, a existência que procede d’ele não lhe 158 Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.56 159 Os termos mais frequentes usados por Al-Farabi para designar esse movimento são: ÀŸ / fay∞ y¼vˆ / Ÿu∞…r k_³[ / inbajasa. Cf. BADAWI, op.cit., pp. 540-543. 160 “ vj¼ ¹´— Âw«[ ½· ª¼×[¼ ” Cf AL-FARABI, »¬Œ\«[ »´¿v°«[ −·[ Æ[y[ ]\c§ (Kit¡b ‘ar¡’ ’ahl ’al-mad≈na al-f¡∞ila) op.cit., p.55. Badawi entende como “ O Primeiro é aquele de quem procede o ser.” Cf. p.538. 130 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho acrescenta nenhuma perfeição porque ele é o ser mais perfeito e, se assim não fosse, ele também não seria o primeiro. Nada há, portanto, que opreceda em sua emanação: nem um ser, nem uma razão para ser, nem uma essência anterior, nenhuma causa, nada enfim pois “todas essas considerações são impossíveis no primeiro, pois isso seria uma afronta à sua primazia e à sua eternidade.”161 Tudo emana do existente primeiro pela mesma e única substância que é a sua pois ele não opera como nós que temos as coisas separadas para produzirmos algo como, por exemplo, nossa razão, de um lado e a arte da escrita, por outro. No existente primeiro, o conhecimento de si mesmo e a emanação dos seres é um só e mesmo ato e tudo procede de “uma só essência e uma só substância ao mesmo tempo que constitui seu ser e de onde deriva todo outro ser.”162 A emanação segue uma hierarquia que se inicia pelo ser mais próximo e mais perfeito em relação ao existente primeiro e segue em escala descendente até o ser menos perfeito. Tudo isso provém do existente primeiro e sua substância permanece a mesma sem sofrer qualquer alteração. Seguem-se assim, pois, os seres cada um segundo sua perfeição começando pelo mais perfeito, depois, aquele que é um pouco menos perfeito, depois, os seres que são menos perfeitos se sucedem até o ser que, abaixo dele não pode haver nenhuma existência. “Então os seres se detém na existência.”163 Vale notar que a emanação proposta por Al-Fārāb÷ se dá no interior do existente primeiro e não como algo que se produz fora dele. “A substância do primeiro permanece sempre a mesma quando os seres emanam de um modo hierarquizado cada um segundo o seu grau. Uns com os outros os seres se unem, se aliam e se ordenam de modo que a multiplicidade se torna, assim, uma só coisa”164. Vejamos como Al-Fārāb÷ descreve esse processo. “Do primeiro procede o ser do segundo que também é uma substância absolutamente incopórea e que não está em uma matéria. Ele intelige sua essência e intelige o primeiro e, isso que ele intelige de sua essência não é outra coisa que sua essência. Enquanto ele intelige algo do primeiro resulta necessariamente dele o ser de um terceiro. Enquanto ele é constituído substancialmente em sua essência própria 161 Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.57. AL-FARABI, al-mad≈na al-f¡∞ila em BADAWI, op. cit., p. 539. Em seu comentário Hernandez observa que “deste modo tudo quanto existe se produz necessariamente a partir do único ser necessário, dotado da liberdade absoluta, não condicionada por nada, que atua como vontade pura; mas como é ao mesmo tempo a mais alta inteligência sua vontade é, também a bondade pura. Portanto, sendo Deus o bem absoluto, tudo quanto procede de Deus é bom; e enquanto Deus é beleza pura, é belo.” Cf. HERNANDEZ , op. cit., p. 194. 163 Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.59. 164 Ibid., p.59. 162 131 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho resulta necessariamente dele o ser do primeiro céu. Do mesmo modo o ser do terceiro não está em uma matéria (...)”165 e, assim por diante, Al-Fārāb÷ continua sua descrição cosmológica que alia o princípio de emanação plotiniano ao sistema geocêntrico de Ptolomeu. O processo repete seguidamente o esquema precedente: cada nova inteligência conhece sua própria essência166 e conhece algo do Primeiro resultando, em cada etapa, uma nova inteligência, uma esfera correspondente a cada um dos planetas e uma alma que move essa esfera. Tal processo, seguindo em fases sucessivas, emana ou “cria” dez inteligências sucessivas que correspondem as seguintes esferas dos planetas com suas respectivas almas que as movem: segunda inteligência: primeiro céu; terceira inteligência: esfera das estrelas fixas; quarta inteligência: esfera de Saturno; quinta inteligência: esfera de Júpiter; sexta inteligência: esfera de Marte; sétima inteligência: esfera do Sol; oitava inteligência: esfera de Vênus; nona inteligência: esfera de Mercúrio; décima inteligência: esfera da Lua. décima primeira: mundo sublunar. A emanação segue ritmada até a décima inteligência e é descrita como uma superposição incorpórea de cada uma delas em sequência necessária compondo um sistema de esferas desde o Existente primeiro até a esfera da Lua tendo a Terra como centro. “As coisas separadas [as inteligências] que seguem-se ao Primeiro são em número de dez. Os corpos celestes em seu conjunto são em número de nove sendo que o total resulta em dezenove.”167 A mudança e a interrupção desse processo se dá com o surgimento da matéria e a explosão de almas humanas que se segue à esfera da Lua gerando uma descontinuidade no modo pelo qual se dá o processo de emanação da décima inteligência. O ser do décimo também é uma inteligência que não está associada à matéria e, do mesmo modo que as outras inteligências, intelige sua 165 Ibid.,p.61. “Cada um dos dez primeiros seres intelige sua essência e intelige o Primeiro.” Cf. AL-FARABI, Traité, op. cit. p. 67 Como o Primeiro é superior ao segundo quando este-o segundo- intelige o Primeiro obtem uma felicidade maior do que quando intelige a si mesmo.O mesmo se dá com o prazer e com o seu maravilhamento que experimenta pois a perfeição, a beleza e o esplendor do primeiro são insuperáveis. 167 Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.66. 166 132 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho essência e intelige o Primeiro e, enquanto é constituída substancialmente em sua essência própria resulta necessariamente o ser da esfera da Lua e, enquanto intelige algo do Primeiro disso resulta necessariamente o ser de um décimo-primeiro sendo que este também é uma inteligência incorpórea que intelige sua essência e intelige o Primeiro “mas nesse ponto – diz Al-Fārāb÷ – se encerra a espécie de ser que, para existir desse modo, não tem necessidade de matéria e de substrato. Esses são os seres separados que são substancialmente inteligências e inteligíveis e na esfera da Lua se encerra o ser dos corpos celestes os quais, por sua natureza, se movem circularmente.”168 Nessa formulação bastante original, a metafísica da criação faz a unidade absoluta do Primeiro emanar de si a multiplicidade dos seres mantendo-se, ainda assim, dentro dos limites de sua própria unidade. A emanação das inteligências cósmicas com suas respectivas almas e esferas, iniciando-se por um princípio metafísico do existente primeiro, termina por ser coerente com o plano físico, encontrando ressonância no sistema geocêntrico de Ptolomeu enquanto as esferas das inteligências cósmicas possuem correspondência com as órbitas planetárias. Abaixo da esfera da Lua está o mundo em que vivemos – o mundo sublunar – onde, a matéria emanada por essa última inteligência, engendra os seres ligados à matéria e, portanto, sujeitos à geração à corrupção. Mas por que é possível para Al-Fārāb÷ afirmar que a décima inteligência emana a matéria e intelectos individualizados e não mais emana outra inteligência cósmica separada da matéria? Uma das respostas pode ser: ora, porque isto é o observável.(!) Os seres existentes abaixo da esfera da Lua se distinguem dos corpos celestes pois, estes últimos possuíram, desde o início, uma eminente perfeição em suas substâncias isentas de matéria enquanto os sublunares, emanados a partir da décima primeira inteligência formaram-se a partir da composição de matéria e forma. Emanada a matéria prima como o substrato mais distante do existente primeiro, a partir desse ponto, o processo se inverte: os seres se constituem a partir dos seres de maior imperfeição de modo ascendente até os seres de maior perfeição. Assim, cada um dos seres constituídos a partir da décima inteligência localizada na esfera da Lua, compõe-se de duas coisas: “uma é do mesmo grau que a 168 Ibid.,p.62. 133 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho madeira da cama e a outra como o aspecto da cama.”169 A primeira é a matéria e a segunda é a forma. Todos os seres sublunares são a partir dessas duas coisas: a matéria com o fim de dar uma constituição à forma. Por esse motivo, toda e qualquer espécie se torna substância em ato somente quando sua forma é realizada pois, enquanto a matéria dessa espécie existe sem sua forma, esta espécie só existe em potência do mesmo modo que “enquanto a madeira que servirá para a cama não estiver na forma da cama, é apenas uma cama em potência. A cama é em ato quando sua forma se realiza em sua matéria.”170 Em linhas gerais, o arco dos seres sublunares tem em sua base os quatro elementos que compões todos os corpos naturais: o fogo, o ar, a água, e a terra assim como os que se lhes pertencem como o vapor, a chama e outros do mesmo gênero. A matéria dessas formas é comum sendo matéria para elas e para o conjunto dos corpos sub-celestes pois todos os corpos sub-celestes são feitos dos quatro elementos. A base de todos esses seres é a matéria-prima que se substansifica pela forma e se eleva pouco a pouco até a forma que os torna seres em ato. No caso dos seres celestes estes se classificam começando pelo mais eminente e depois os menos perfeitos e, assim sucessivamente resultando no existente primeiro como o mais eminente. A Ele seguiram-se as outras inteligências destituídas de matéria sendo que dentre os seres celestes o melhor é o primeiro céu. A classificação dos seres sublunares, ao contrário, começa pelos menos perfeitos, depois aqueles que são mais e mais perfeitos até o mais perfeito que não possui nada acima dele. O ser mais deficitário é a própria matéria-prima que é comum a todos; acima dela vêm os quatro elementos e, a esses, seguem-se os minerais tal como as pedras e os outros corpos do mesmo gênero; em seguida aparecem os vegetais, os animais não racionais e, por fim, o homem, ao qual, no mundo sublunar, “nada é superior.”171 Nesse sentido, podemos considerar que a partir da décima inteligência, o processo de emanação atinge o seu limite e se inverte tendo a matéria prima como o limite inferior mais extremo. Aquilo que dela releva já seria um movimento de retorno do qual, o homem, seria uma das etapas. Aliás, no mundo sublunar dos compostos de matéria e forma, o homem seria o limite conhecido do 169 Ibid.,p.64. Ibid.,p.64. 171 Ibid.,p.66. 170 134 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho retorno. O homem é o ser mais próximo da inteligência separada e pura da esfera da Lua que também é, por conseguinte, a mais próxima dele. A partir da matéria-prima que é comum a todos os seres sublunares e do surgimento dos quatro elementos e daquilo que é do mesmo gênero e que a eles se assemelham – como, por exemplo, no caso do ar são os vapores, as nuvens, os ventos, e tudo o que se produz na atmosfera e, de modo análogo ocorre com a terra, com a água e com o fogo –, se produz nos elementos e naqueles de mesmo gênero, forças pelas quais eles se movem por si mesmos. Em seguida, os corpos celestes agem sobre eles fazendo com que uns ajam sobre os outros. “Da totalidade dessas ações resultam numerosos modos de misturas e de combinações” 172 e disso resulta a existência do conjunto de corpos do mundo sublunar. Deve-se levar em conta que todas essas ações misturadoras de procedências diversas resultam em novas misturas de níveis de complexificação cada vez maior que as distanciam cada vez mais dos elementos e da matéria-prima. Os minerais resultam da mistura mais próxima dos elementos. Por sua vez, os vegetais resultam de uma mistura mais complexa e, conseqüentemente, mais distanciada dos elementos estando, pois, os vegetais, num grau mais elevado do que os minerais. Acima dessa mistura encontra-se uma outra que resulta no animal não racional que é, por sua vez, uma mistura ainda mais complexa que a dos vegetais. E é o homem que resulta da última e mais complexa mistura. Em todos esses seres, cada um segundo sua espécie, se produz certas faculdades que lhe são próprias como, por exemplo, a faculdade da nutrição, do movimento e da sensação. No homem, a primeira faculdade constituída – nos diz Al-Fārāb÷ – é a faculdade pela qual ele se nutre: a faculdade nutritiva. Em seguida se-lhe constituem os sentidos externos: o tato, pelo qual percebe o frio e o calor e, depois, os outros sentidos, isto é, o paladar, o olfato, a audição e a visão que são as faculdades pelas quais o homem sente os sabores, os odores, os sons e as cores respectivamente. Seguese a essas, a faculdade do apetite que aproxima ou afasta o homem daquilo que ele deseja ou não deseja. Em seguida, Al-Fārāb÷ classifica a faculdade imaginativa que conserva na alma as formas das coisas quando essas desapareceram dos sentidos, sendo a responsável por combinar as imagens umas com as outras e, por fim, o intelecto que é a faculdade pela qual o homem pode inteligir os inteligíveis, “distinguir entre o bonito e o feio, realizar as artes e as ciências.”173 Al-Fārāb÷ apresenta três níveis de 172 173 Ibid, p.75 Ibid.,p.81. 135 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho apreensão do conhecimento: “pela faculdade racional, pela faculdade. imaginativa e também pela sensitiva”174. Note-se que Al-Fārāb÷ não indica nenhuma diferença nas faculdades sensitivas, imaginativa ou racional entre o homem e a mulher. Todas essas faculdades, com exceção do intelecto que não está impresso na matéria, possuem um determinado órgão que exerce primeriamente a função dessa faculdade e outros órgãos auxiliares que a ajudam na execução dos seus objetivos. Assim, por exemplo, a faculdade nutritiva possui seu orgão principal – a boca – que é auxiliada por outras faculdades auxiliares espalhadas por outros órgãos como o fígado e o estômago. Do mesmo modo, todas as outras faculdades descritas, exceto o intelecto, possuem seus órgãos próprios, porém o princípio de todas as faculdades tem como sede um só órgão: o coração175. O coração é o orgão principal que não pode ser dominado por nenhum outro orgão do corpo. O cérebro também é um órgão diretor, mas sua direção não é primeira pois, apesar do cérebro comandar outros órgãos e ser servido por eles, o cérebro serve ao coração e é dirigido pelas intenções deste. O coração “é como o chefe da casa do homem”176; ele serve o homem e é servido pelos outros membros da casa. O cérebro, vindo depois do coração, atua como se fosse um delegado do primeiro, substituindo-o naquilo que este não pode realizar, poupando-o de parte do serviço. Depois do cérebro vem o fígado, depois o baço e os orgãos genitais, os últimos a entrarem em atividade. Não é sem razão que o centro das operações reside no órgão do coração como o órgão chefe de toda a complexa estrutura do organismo humano. É a partir da analogia com as funções do corpo –e mais precisamente com o reconhecimento do coração como o órgão principal- que Al-Fārāb÷ estrutura suas idéias a respeito da cidade ideal. Quanto ao intelecto, que é a faculdade pela qual o homem possui o entendimento das coisas, Al-Fārāb÷ a considera como uma certa disposição preparada para receber as impressões dos inteligíveis. Para que o intelecto passe da potência ao ato, isto é, para que o homem compreenda e intelija, há a necessidade de algo que já esteja em ato e que seja responsável por esta passagem. Nesse caso, é preciso um 174 175 Ibid.,p.83. Al-F¡r¡b≈ localiza a faculdade imaginativa também no coração. y[u `o\ˆ −g¯ ©«w¼ ” Cf. AL-FARABI, »¬Œ\«[ »´¿v°«[ −·[ Æ[y[ ]\c§ 176 “ ²\³×[ (Kit¡b ‘ar¡’ ’ahl ’al-mad≈na al-f¡∞ila) op.cit., p.93. 136 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho intelecto que esteja sempre em ato. Esse agente que opera a passagem do intelecto em potência para o intelecto em ato só pode ser uma certa essência cuja substância é uma inteligência em ato separada da matéria que opera no intelecto humano de modo semelhante à ação da luz do sol em relação à nossa visão. É pela luz do sol que a visão se torna visão em ato estando, antes disso, apenas em potência. O mesmo – diz AlFārāb÷ – , ocorre com a potência intelectiva no homem e, por isso “ chamou-se inteligência agente. Seu grau no grupo das inteligências separadas que estão abaixo da Causa Primeira é o décimo.”177 Pelo aperfeiçoamento constante do homem através do entendimento crescente que ele tem pelo seu intelecto, esse homem é naturalmente levado à meditação e à reflexão. Mas sendo o homem, o grau mais complexo da composição de matéria e forma do mundo sublunar e constituído, pois, das faculdades mais complexas, a título de quê e com qual finalidade operariam todas as faculdades humanas? A resposta de Al-Fārāb÷ é: a busca da felicidade. “Além da felicidade não há nada maior que o ser humano possa 178 obter.” As belas e boas ações, mais do que serem um bem em si mesmas, o são na medida em que conduzem à felicidade. A esse movimento crescente de aperfeiçoamento da alma humana corresponde um grau de felicidade que o acompanha e é esta a finalidade maior pela qual todas as faculdades do homem operam servindo umas às outras. O limite máximo da felicidade a que pode chegar o homem é, pois, aquele estado no qual a sua alma humana chega à sua extrema perfeição existencial, de modo que não haja mais necessidade de matéria para subsistir e, desse modo, ela se assemelha e se encontra unida às inteligências separadas. A sociedade exerce um papel importante na busca de cada ser humano em direção à felicidade. O modo de organização da cidade pode ajudar ou não nesse caminho. Segundo Al-Fārāb÷, deve-se partir do modelo ideal como o mais alto paradigma a indicar o melhor caminho, mas, também, ser capaz de adaptar quando não for possível que se encontre as condições adequadas para o modelo ideal. Primeiramente deve se levar em conta que é da natureza do homem necessitar de muitas coisas para subsistir. Ele tem, por exemplo, necessidade de um conjunto de pessoas que faça cada uma das coisas da qual necessita. Cada uma dessas pessoas também se encontra na mesma situação preenchendo um ao outro o que é necessário para a mútua subsistência. É impossível ao ser humano obter a eminência de 177 178 Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.92. Ibid.,p.94. 137 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho sua perfeição sem o concurso de vários indivíduos, pois, é somente através do trabalho conjunto que reúne tudo o que cada um tem de necessidade que isso se torna possível. Por essa razão os indivíduos multiplicam-se, estabelecem-se na parte habitável da terra e estabelecem as suas assembléias. Para Al-Fārāb÷, a organização da cidade ideal deve assemelhar-se ao corpo humano em sua totalidade, cujos órgãos ajudam-se mutuamente para realizar o acabamento da vida do organismo e conservá-lo. E, do mesmo modo que ocorre com o corpo, vários e diferentes são os órgãos mas um só é o órgão chefe: o coração. No corpo humano é a partir dele que os outros órgãos são hierarquizados. Cada um, por sua natureza, tem uma potência para realizar suas ações próprias em conformidade com o seu propósito. Assim é a cidade. Suas partes são múltiplas, diferentes entre si e hierarquizadas segundo suas disposições próprias devendo haver um ser humano que é o chefe. Assim como no corpo humano o coração é o principal orgão e, por natureza, o mais completo e o mais são, “do mesmo modo o chefe da cidade é o mais completo de todas as partes da cidade.”179 Abaixo dele, deve haver homens que ele dirige e estes, por sua vez, dirigem outros homens. Estabelece-se, assim, uma hierarquia descendente para que todos atuem voluntariamente na cidade em conformidade com a direção do chefe. Por outro lado, do mesmo modo como é o coração que socorre todo e qualquer órgão que venha a ser prejudicado, assim, também, o chefe da cidade ideal deve correr em socorro de qualquer parte da cidade que se deteriore. Mas a questão principal é: quem deve ser o chefe? A resposta de AlFārāb÷ inclina-se novamente para as aptidões naturais e procede segundo as qualidades máximas próprias dos profetas. “O chefe da cidade não pode ser qualquer ser humano pois a direção supõe duas condições: uma delas é que ele seja preparado por natureza e por aptidão e, a segunda, é que ele tenha uma disposição e um hábito voluntário.”180 Sua faculdade imaginativa deve atingir o extremo acabamento, podendo receber no estado de vigília ou no sono, por parte da inteligência agente, os próprios acontecimentos ou, então, os símbolos desses acontecimentos. Seu intelecto deve ser receptivo aos inteligíveis afim de que ele possua um perfeito entendimento das coisas de modo que nada se lhe oculte. Em outras palavras, o chefe deve ser aquele que possua um contato mais próximo com a inteligência agente. 179 180 Ibid.,p.105. Ibid.,p.106. 138 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Se essas aptidões se encontrarem em um só homem – a excelência nos dois aspectos de sua faculdade racional (teórica e prática) e de sua faculdade imaginativa – , esse homem estará no grau daqueles a quem são dadas as revelações: Deus – Grande e Majestoso – lhe revelará por intermédio da inteligência agente pois, aquilo que emana de Deus sobre a inteligência agente, emana desta sobre o intelecto desse homem e, depois, sobre sua faculdade imaginativa. Pelo que emana das inteligências separadas para o seu intelecto, este homem se torna um sábio e um filósofo e, em razão do que emana sobre sua imaginação, ele se torna um profeta, anunciador daquilo que virá e conhecedor dos acontecimentos atuais particulares. Esse ser humano está na mais alta escala da humanidade pois nele está realizado o mais perfeito acabamento da natureza humana, o ponto mais elevado a que podem chegar as faculdades humanas. Isso implica, pois, que este homem é o que atingiu o mais alto grau da felicidade que se pode almejar pois sua alma está unida constantemente à inteligência agente. Ora, sendo ele conhecedor dos caminhos e dos atos pelos quais o homem eleva-se na busca da felicidade, e sendo esse o objetivo maior, por natureza, de todo ser humano, é necessário que ele seja o condutor da cidade ideal indicando os caminhos para que cada um de seus habitantes se dirijam efetivamente ao alvo mais alto da vida humana. Para cumprir seu destino ele deve possuir a capacidade verbal para descrever com eloqüência as metáforas provenientes de sua imaginação e, assim, ser capaz de guiar os outros em direção à felicidade. Além disso é preciso que ele tenha um bom equilíbrio corporal para poder realizar com sucesso as tarefas particulares. Esse chefe, assim, não é dominado por nenhum outro e por nada que não seja a verdade. “Ele é o “imam” e o primeiro mestre da cidade ideal. Ele é o mestre da nação ideal e de todo território habitável sobre a terra.”181 Depois dessa descrição do dirigente da cidade, Al-Fārāb÷ enumera doze condições necessárias para que tal homem seja reconhecido. Aponta, também, quais os caminhos alternativos que se deve tomar quando isso não acontecer, o que, por sinal, é o mais frequente. Assim diz Al-Fārāb÷: “mas um tal lugar só pode ser ocupado por aquele que possuir doze qualidades inatas”182: 1- possuir os órgãos e as faculdades compatíveis com os atos que deve realizar; 2- possuir uma boa compreensão de seu interlocutor; 181 182 Ibid.,p.109. Ibid.,p.109. 139 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho 3- ter ótima memória; 4- ser perspicaz; 5- ser eloqüente e um bom orador; 6- amar a instrução e o aperfeiçoamento de seus conhecimentos constantemente; 7- não ter nenhuma avidez por bebida, por comida ou por prazeres carnais;. 8- amar a verdade e o verdadeiro e odiar a mentira e os mentirosos; 9-ser generoso e de alma nobre, distante das baixezas; 10- desprezar o ouro e a prata e que todos os bens da terra sejam pouca coisa para ele; 11-amar naturalmente a justiça e os justos e odiar a injustiça e a tirania; 12- ter uma vontade firme, ser decidido e audacioso para empreender sem medo o que julga dever cumprir. A partir do estabelecimento dessas doze qualidades, Al-Fārāb÷, reconhece que todas elas reunidas num mesmo indivíduo é coisa difícil mas não impossível pois, de tempos em tempos, tais homens surgem. No entanto, como é rara essa situação, Al-Fārāb÷ entende que “se pode encontrar na cidade ideal um homem de idade adulta que possua as seis primeiras condições ou cinco dentre as doze – sem incluir as qualidades da imaginação – então, esse homem pode ser considerado como o chefe”183 Porém se, mesmo assim, não existir tal homem, a cidade deve se regular a partir das leis e das tradições estabelecidas pelo primeiro chefe e por aqueles que o sucederão no comando da cidade. Nesse caso, aquele que vier a suceder ao primeiro chefe, deve possuir as seguintes seis qualidades: 1- ser um sábio; 2- ser um conhecedor das leis, da cultura e dos costumes estabelecidos pelos primeiros mestres da cidade; 3- ser sutil e perspicaz e seguir o exemplo dos que o antecederam na dedução de leis necessárias que fossem inexistentes até aquele momento; 4- possuir excelente capacidade de reflexão, de dedução e de visão de futuro; 5- ser ótimo orador; 6- ter saúde corporal equilibrada compatível com suas funções, inclusive para realizar operações de guerra. 183 Ibid.,p.110. 140 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Bem, mas se, mesmo assim, ainda não for possível encontrar tal homem que reúna essas condições “mas que se encontre dois, um possuindo a sabedoria e o outro as demais condições, então, os dois serão os chefes da cidade.”184 Se, ainda assim isso não for possível, pode haver o caso em que tais qualidades encontrem-se repartidas em um grupo de indivíduos: que um possua a sabedoria e cada um dos outros possua uma das outras condições. Se isso ocorrer e os indivíduos estiverem de acordo entre si, então, todos serão considerados eminentes chefes da cidade. (!). A preeminência, porém, é para a sabedoria, pois se esta não tomar parte no governo da cidade, mesmo que as outras condições permaneçam, a cidade permanecerá sem chefe e aquele que exercerá as funções de chefe não será um verdadeiro chefe. Essa cidade, se não conseguir encontrar um sábio que se associe ao governo, estará destinada à ruína, fato que não tardará. Al-Fārāb÷ enumera e descreve algumas cidades que se distanciam do paradigma da cidade ideal. Nesses desvios, os habitantes sequer desconfiam qual é o objetivo maior da vida humana e o maior bem que o homem possui, isto é, a felicidade. Por essa razão tais cidades se caracterizam pela busca de outros bens que não levam seus habitantes à felicidade buscando riquezas e fortuna; honrarias e vaidade; cidades que valorizam as disputas com outras; cidades que falseiam a felicidade. A felicidade, pois, sendo o paradigma da cidade, somente o é por ser, antes, o paradigma da própria vida do homem. A visão de um mundo futuro que guia Al-Fārāb÷ nessa obra encontra no destino da alma humana uma de suas raízes. Os homens que compõem as gerações que passam, organizados em suas cidades, não devem perder de vista o destino último ao qual se dirige o homem. Quando uma geração passa, -diz Al-Fārāb÷ - os corpos dos indivíduos se destroem mas as almas, liberadas da matéria, permanecem e se encontram com outras almas segundo o mesmo grau de felicidade em que ambas estejam pois as almas se reúnem com suas semelhantes seja em espécie, seja em profundidade intelectual ou seja em qualidade segundo suas semelhanças. Como as almas não são corpos, o encontro entre elas não é da mesma natureza do encontro entre os corpos. A reunião das almas não ocupa espaço. Nesse encontro, aumenta o prazer de cada uma delas a cada vez que outra se lhes reúne. O aumento do prazer vivido pelas almas ao reencontrarem-se é semelhante ao aumento da capacidade da arte de escrever para o escritor que persevera muito 184 Ibid.,p.111. 141 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho tempo na sua arte pois, ao mesmo tempo em que, nele, todas as suas capacidades e ações convergem, aumentando o prazer, também a sua escrita se intensifica e se aperfeiçoa em força e em elegância. No caso das almas, como elas se sucedem sem fim, a potência e o prazer em cada uma delas aumenta de um modo indefinido e infindável e tal é o caso das almas a cada geração que passa. Não é sem motivo, pois, que os habitantes da cidade ideal devem conhecer, antes de tudo, as questões fundamentais às quais o homem está ligado, em uma palavra: devem filosofar. Al-Fārāb÷ indica algumas coisas comuns que todos deveriam saber: o conhecimento da Causa Primeira e de suas qualidades; o conhecimento das inteligências separadas da matéria e suas respectivas descrições até a inteligência agente e suas respectivas ações e, por fim as substâncias dos corpos celestes. Depois disso é necessário conhecer as disposições dos corpos naturais segundo a geração e a corrupção que, apesar disso, não indicam que eles venham à existência sem precisão, perfeição, justiça e sabedoria. Em seguida é preciso conhecer a natureza do homem e as faculdades de sua alma, como age sobre elas a inteligência agente iluminando o homem em sua busca do entendimento. Depois disso,conhecer o que é a revelação e a sucessão dos mestres e dos chefes da cidade. Conhecer também no que consiste a cidade ideal e discerni-la das cidades perversas. Saber também que a felicidade é a direção que nossa alma seguirá nesta e na outra vida. O engendramento dos seres por meio da combinação dos quatro elementos tendo partido das combinações mais simples, e seguido por combinações que se complexificaram engendrando os minerais, as plantas, os animais, emergiu na combinação final, o homem, que ocupa o cume dessa espiral ascendente. Todos estão submetidos à causa suprema que é Deus, o existente primeiro. A finalidade do homem é unir-se, pelo intelecto e pelo amor, à inteligência agente separada que é a fonte de todo o conhecimento inteligível para o mundo em que vivemos. Ao localizar a inteligência agente separada na esfera da Lua, Al-Fārāb÷ permite um entrelaçamento de suas epistemologia, cosmologia e metafísica, apontando a felicidade como alvo final através da união do intelecto humano com a inteligência agente, meta última de todo ser humano. Os reflexos de tais concepções igualmente se entrelaçam com o campo ético-político mas, o que poderia ser chamado de “política” em Al-Fārāb÷ tem muito pouco do que se entenderia como um programa político. O próprio autor não foi alguém que se interessou pelos negócios públicos e a sua política pregada para a cidade 142 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho terrestre, inseparável da cosmologia se apresenta mais como uma justificação amplamente argumentada da felicidade como o objetivo primeiro e último da vida humana. Assim, a cidade terrestre não tem um fim em si mesmo que não seja o de ser um caminho para a felicidade suprema. Nesse sentido universal, a cidade ideal se estende por toda a terra habitada pelos homens. 5.3 Ibn S÷nā, o sistematizador Aproximadamente após trinta anos da morte de Al-Fārāb÷, nasceu Abu ‘Ali Al-©ussayn Ibn ‘Abd Allāh Ibn Al-©asan Ibn ‘Ali Ibn S÷nā no ano de 980 d.C/ 370 H. próximo a Bukhara, na região do Kurassan185. Ibn S÷nā ficou conhecido no Ocidente como Avicena. Talvez mais do que nenhum outro, esse filósofo teve o perfil do homem universal medieval versado em todos os saberes. Com Ibn S÷nā chega-se não só ao apogeu da falsafa como também a um dos zênites da história da humanidade. Seu nome ultrapassando, assim, os limites da própria falsafa, foi colocado ao lado dos maiores nomes da história. Três aspectos levaram a esse quadro: o primeiro foi por Ibn S÷nā ter recolhido grande parte das ciências e da filosofia de sua época; o segundo, por ter sistematizado e reelaborado esse conjunto, resultando numa abordagem própria e renovadora; e o terceiro diz respeito a sua presença marcante nos destinos da filosofia e das ciências posteriores. Ibn S÷nā esteve presente de modo decisivo tanto nos caminhos do pensamento islâmico como nos caminhos do pensamento dos medievais do Ocidente latino os quais, por sua vez, fizeram ecoar muitas teses avicenianas até o interior da modernidade. Por essa razão, o seu lugar na história da filosofia é impar. Para que ocupasse esse lugar de destaque, bastaria apontar o papel de sistematização e de confluência que ele operou em sua obra a partir de toda tradição anterior das ciências, da medicina e da filosofia. Mas, na medida em que reuniu a essa tradição anterior uma série de novos elementos vindos de suas próprias reflexões, de suas experiências e de sua prática médica, a sua importância foi muito além dessa síntese de grande envergadura dos conhecimentos dos que o antecederam. Ibn S÷nā tornou-se um novo ponto de partida e uma nova referência de grande parte de toda a tradição que lhe foi posterior tanto no Oriente como no Ocidente. Nesse sentido, a sua obra é o que 185 Região da antiga Pérsia, atual Uzbequistão. 143 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho poderíamos chamar de um carrefour, um ponto de encontro onde, por um lado, muito do que havia sido desenvolvido antes tendeu a encontrar um lugar seguro e, por outro lado, o lugar de onde muito do que veio a se criar depois dele teve suas obras como ponto de partida. Gênio precoce que aliava um esforço sem limites para aprender tudo o que lhe caía às mãos, Ibn S÷nā foi um auto-didata na maior parte de sua vida e abarcou os principais conhecimentos de sua época. Ao mesmo tempo, tornou-se um dos mais notáveis médicos que se teve notícia e ocupou cargos administrativos junto aos soberanos de seu tempo sem deixar de escrever, simultaneamente, muitas páginas por dia. Seria um engano imaginar que nosso filósofo, em seu mergulho ao conhecimento e ao estudo, fosse uma figura recolhida que passou a vida em taciturnas práticas ascéticas. Ao contrário, a vida de Ibn S÷nā foi um brinde à própria vida: mulheres, vinho e música foram ingredientes que o acompanharam por todo o tempo. Uma vida vivida intensamente em uma completa agitação, em meio aos afazeres junto aos príncipes, à medicina e à composição de suas obras. Como disse Guerrero, “desse poeta, músico, filósofo, médico, matemático e, inclusive gramático, que foi Abu ‘Ali Ibn S÷nā se poderia esperar tudo: desde sofrer perseguição e ser encarcerado até ser chegado ao vinho por ser este um poderoso reconstituinte das forças corpóreas e intelectuais.”186 Muitos escritos e histórias fabulosas foram atribuídas ao sábio Ibn S÷nā mas, por sorte, boa parte de sua vida nos é conhecida – e repetidamente citada – devido a uma curta autobiografia que foi posteriormente completada pelo seu mais fiel discípulo chamado Al-Jýzjān÷. Vejamos alguns dos principais acontecimentos que nos são conhecidos mas, antes disso, tenhamos em mente uma breve cronologia de sua vida segundo uma divisão de seis principais períodos que permitem reconstruir, em parte, seu trajeto e as datas de suas principais composições. A divisão é a seguinte: I¹ Período: estada em Bukhara II¹ Período: viagens III¹ Período: estada em Jurjān IV¹ Período: estada em Al-Ray V¹ Período: estada em Hamadan VI¹ Período: estada em Isfahan 186 GUERRERO, Avicena , op. cit., p. 21. 144 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Seu pai era originário de Balkh mas, antes mesmo do nascimento de Ibn S÷nā, já havia se transportado para a cidade de Kharmaithan, na província de Bukhara, onde se casou e passou a ocupar alguns cargos administrativos na região. Foi nessa cidade que nasceu Ibn S÷nā e, depois, seu irmão. Aos dez anos já sabia o Alcorão de cor “de modo que era objeto de imensa admiração.”187 Ainda jovem, foi iniciado nos estudos de filosofia, jurisprudência, lógica, matemática, geometria e física sob a orientação de um mestre local chamado Al-Nat÷l÷. Ibn S÷nā relata que estudou por si mesmo os Elementos de Euclides e o Almagesto de Ptolomeu e que era capaz de resolver todas as questões referentes a estas ciências sem que Al-Nat÷l÷ o pudesse mais acompanhar. Então, Ibn S÷nā passou a se aprofundar no conhecimento da fisica e da metafísica e assim – nos diz – “as portas da ciência começaram a se abrir para mim.”188 Enquanto isso, decidiu também aprender a arte da medicina pois não a considerou muito difícil e passou a ler todos os livros referentes a essa arte que lhe chegavam às mãos. Em pouco tempo, os médicos da região vieram aprender medicina com o jovem Ibn S÷nā que tinha, nessa época, apenas dezesseis anos. Durante aproximadamente um ano e meio, dedicou-se incansavelmente, dia e noite, ao estudo da lógica e das outras partes da filosofia. De sua própria pena sabemos que através da construção de silogismos, nosso filósofo conseguia avançar no conhecimento procurando respostas a todo o tipo de questão que se-lhe apresentava. Além disso, sua autobiografia também testemunha sua piedade: “todas as vezes que um problema me embaraçava, e que eu não podia encontrar o termo médio de um silogismo, me retirava à mesquita, orando, e invocava o Criador de Tudo até que ele me revelasse a solução daquele fato difícil e obscuro.”189 Em outras vezes, enquanto estudava até tarde da noite, Ibn S÷nā confessa que acabava caindo em sono profundo mas continuava de tal modo envolvido com as questões que estava estudando que muitas soluções lhe chegavam através de sonhos. Com tal persistência, aliada à excelente memória e inteligência, Ibn S÷nā tornou-se mestre incontestável em lógica, física e matemática antes mesmo dos vinte anos. O seu contato com a metafísica também é frequentemente citado pelo modo curioso pelo qual se desenrolou. Ele próprio narra que, nessa época, lhe chegou às mãos o livro da Metafisca de Aristóteles sobre o qual, imediatamente, se debruçou 187 IBN SINA, Autobiografia, tradução em BADAWI, op. cit., p. 596. BADAWI, op. cit., p. 597. 189 Ibid., p. 597. 188 145 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho em leituras mas estas se mostravam infrutíferas: “eu reli o livro da Metafísica por quarenta vezes de modo que o aprendi de cor. Porém não podia compreender o que havia em seu interior e nem o intuito de seu autor.”190 Ocorreu porém, que no dia seguinte, estando num mercado de livros, um vendedor lhe ofereceu insistentemente um livro de Al-Fārāb÷ intitulado Do Propósito do Livro da Metafísica . Ibn S÷nā acabou comprando-o por uma ninharia e levou-o para casa afoito em conhecer o seu conteúdo. Rapidamente leu o livro do velho Al-Fārāb÷ e teve imediatamente a perfeita compreensão dos objetivos de Aristóteles. Em sinal de agradecimento ao Deus Altíssimo, Ibn S÷nā saiu às ruas para distribuir esmolas aos pobres. Essa curiosa passagem fez pensar que as dificuldades a que se referiu Ibn S÷nā poderiam ser devido ao próprio vocabulário filosófico na metafísica que consistiu um obstáculo a ser superado pela língua árabe que teve que adequar e, até mesmo, inventar termos que ainda não existiam para poder expressar os novos conceitos provindos da filosofia grega. Muitos dos novos termos e das adaptações da língua árabe, Al-Fārāb÷, havia explicado em algumas de suas obras como nessa que foi citada por Ibn S÷nā. Ainda durante o primeiro período, o príncipe de Bukhara, Nu¬ Ibn Man½ýr, foi acometido de uma doença que embaraçou os médicos que o acompanhavam. Por não poderem curá-lo, Ibn S÷nā, já renomado nessa época, juntouse a eles e ajudou na cura de Man½ýr passando, dali em diante, a prestar seus serviços ao príncipe. Não tardou muito para que Ibn S÷nā passasse também a freqüentar a imensa biblioteca de Nu¬ Ibn Man½ýr a qual abrigava várias salas, cada uma acolhendo um determinado assunto. Lá, Ibn S÷nā relata que leu o catálogo dos livros dos antigos referente à filosofia e às ciências gregas e passou a estudar todas as obras que lhe interessaram, amadurecendo sobremaneira seus conhecimentos. Nessa época, Ibn S÷nā, contava somente dezoito anos. Três anos mais tarde Ibn S÷nā começou a escrever seus primeiros tratados atendendo a pedidos dos que os cercavam. Os temas desses primeiros escritos eram variados e se compunham de resumos explicativos a respeito das ciências em geral, comentários a alguns livros de filosofia e alguns escritos sobre moral. Porém, nessa mesma época houve um acontecimento que alterou os rumos de sua vida: Ibn S÷nā perdeu seu pai e seguiu, então, em pequenas viagens através de cidades próximas 190 Ibid., p. 598. 146 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho se estabelecendo, ao final desse período, na cidade de Jurjān onde conheceu AlJýzjān÷, seu discípulo e biógrafo. 191 Em Jurjān, um amante das ciências e da filosofia, chamado Al-Širāz÷, adquiriu para Ibn S÷nā uma casa ao lado da sua e lá, o mestre passou a compor outras obras. Desse período destacam-se alguns escritos sobre lógica, um resumo do Almagesto e o início de sua grande enciclopédia médica, o Canon de Medicina. Antes de se fixar de modo mais permanente em Hamadan, Ibn S÷nā passou, ainda, de Jurjān a uma outra cidade próxima chamada Al-Ray onde ficou a serviço de uma senhora e de seu filho Majd Al-Dawlah que, acometido por uma profunda melancolia, foi curado de modo prodigioso por Ibn S÷nā. Em seguida, Ibn S÷nā se transferiu para Hamadan e ocupou o cargo de vizir junto ao príncipe Šams Al-Dawlah. Nesse período, Al-Jýzjān÷ lhe pediu que compusesse alguns comentários sobre as obras de Aristóteles mas Ibn S÷nā se recusou e preferiu escrever um obra própria de grande envergadura, expondo de modo sistemático os principais conhecimentos científicos e filosóficos de seu tempo aliados às sua idéias e às suas experiências pessoais. Essa composição é sua obra Al-Šifā` / A Cura dividida em quatro partes: Lógica, Matemática, Física e Metafísica. Nesse tempo Ibn S÷nā acumulava as funções de vizir ao mesmo tempo em que escrevia aproximadamente cinquenta páginas por dia sem consultar nenhum livro, conforme nos relata Al-Jýzjān÷: “Ele havia escrito o primeiro livro do Canon, e todas as noites seus discípulos se reuniam em sua casa. Alternávamos na leitura: enquanto eu lia a Al-Šifā`, algum outro lia o Canon. Quando terminávamos, diferentes classes de cantores se faziam presentes e a sessão de bebidas com seus utensílios era preparada da qual participávamos. A instrução tinha lugar à noite, devido à escassez de tempo livre durante o dia por causa do serviço do mestre ao príncipe.” 192 Com a morte de Šams Al-Dawlah, seu filho Tāj Al-Mulk assumiu o poder em Hamadan. Nessa época Ibn S÷nā escreveu ao príncipe de Isfahan ‘Alā’ Al-Dawlah com o intuito de prestar-lhe serviços mas quando Tāj Al-Mulk soube dessa correspondência, mandou prender (!) Ibn S÷nā que acabou permanecendo no cárcere 191 Até este ponto, todas as informações foram fornecidas pelo próprio Ibn Sina. O que vem a seguir foi relatado pelo próprio Al-J…zj¡n≈. 192 GOHLMAN, W. E. The life of Ibn Sina. New York: State university of New York press, 1974, pp. 55 - 56. 147 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho por aproximadamente quatro meses. Mesmo na prisão, Ibn S÷nā compôs o tratado Hayy Ibn Yaqzān escrito em linguagem simbólica. Libertado da prisão, Ibn S÷nā seguiu para Isfahan sendo bem recebido pelo príncipe ‘Alā’ Al-Dawlah com quem havia se correspondido anteriormente. Na nova corte, Ibn S÷nā tornou-se um sábio respeitado, afirmando-se como um mestre incontestável em todas as ciências. Nesse período, ele terminou sua obra maior Al-Šifā`, compôs a Al-Najāt / A Salvação e também o Dāne¹ Nama / O Livro das Ciências – uma das poucas obras que escreveu em persa e não em árabe – Al-Juzjani relata que “o mestre era forte em todas suas faculdades, sendo a sexual a mais vigorosa e dominante de suas faculdades concupiscíveis, e ele a exercia frequentemente”.193 Durante uma viagem em companhia do príncipe, Ibn S÷nā foi acometido por fortes cólicas que o obrigaram a voltar para Isfahan para tentar um auto tratamento. Numa nova viagem com o príncipe, Ibn S÷nā sofreu novamente fortes dores que o obrigaram a voltar definitivamente a Isfahan. Nos relata Al-Jýzjān÷ que, depois de tentar um novo auto tratamento, o mestre acabou por se render dizendo “o governador que governa o meu corpo, já é incapaz de governar e agora o tratamento não beneficia mais”194. Ibn S÷nā ainda permaneceu assim doente por mais alguns dias mas não teve mais forças para resistir e acabou falecendo. Tinha, então, 58 anos de idade. Sua tumba se encontra em Hamadan. Numa vida bastante agitada, vivida plenamente, dado à bebida, ao amor e à música, ele não poupou suas forças e alcançou uma envergadura filosófica e científica de grande excelência. A extensão de sua obra e a longevidade de sua influência tanto na história do pensamento do Oriente como do Ocidente leva qualquer menção de poucas páginas ao inteiro fracasso. No entanto, apenas a título de ilustração, algumas indicações podemos fornecer. Na arte médica, Ibn S÷nā figurou entre os maiores médicos da história da medicina, pertencendo à tradição herdada dos gregos através dos árabes pela qual foram difundidas muitas teorias de Hipócrates e de Galeno. Sua obra Al-Qanýn fi alTib / Cânon da Medicina, uma síntese dos conhecimentos médicos de sua época e de suas próprias experiências, foi adotada nas universidades européias até o séc. XVI d.C., – portanto, por mais de quinhentos anos após sua morte – como texto de base para o ensino médico. 193 194 Ibid., p. 82s. Ibid., p. 89. 148 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Na área da filosofia suas principais fontes foram as obras de Aristóteles e as teses de Al-Fārāb÷. Deste herdou principalmente a doutrina cosmológica com a vasta descrição metafísica e sistemática do mundo, a hierarquia das inteligências e a emanação das esferas do Ser Necessário até o mundo sublunar, ligando o pensamento plotiniano da emanação à doutrina aristotélica do intelecto. A excelência simultânea nas duas áreas do conhecimento, isto é, medicina e filosofia, é um guia importante quando se quer compreender as relações que Ibn S÷nā estabeleceu entre as teorias médicas e as filosóficas. Devido a extensão de sua obra, geralmente, os estudos a esse respeito ora privilegiam seu aspecto médico e científico, ora seu aspecto lógico e filosófico, ora seu aspeto poético e simbólico e ora seu aspecto religioso. No entanto, Ibn S÷nā possui uma integração de todos esses elementos não só em sua obra, regida de modo harmônico, mas também em sua própria vida temperada de plurais facetas. Seu sistema e suas grandes teses são repetidamente expostas em várias obras e variam em extensão, desenvolvimento e posição mas não parecem apresentar alterações radicais ao longo de sua vida. Sua obra é bastante extensa. Na autobiografia de Ibn S÷nā, Al-Jýzjān÷ cita 45 títulos, mas depois da morte do mestre a lista foi crescendo até chegar a 276 títulos no catálogo de Anawati195. Nessa última classificação figuram uma grande gama de assuntos tais como filosofia geral em 24 títulos; física em 26 títulos; 33 sobre psicologia; 43 títulos de medicina; lógica em 22 títulos; 15 sobre matemática, música e astronomia; 32 sobre metafísica; 32 tratados alegóricos; 11 títulos sobre moral, economia e política; 6 títulos sobre a exegese do Alcorão; 22 cartas pessoais e 3 títulos sobre lingüística. Dentre todas elas, a Al-Šifā`, escrita em árabe, é a mais completa obra de Ibn S÷nā. Segundo a divisão de sua vida nos seis grandes períodos citados anteriormente, essa obra estaria situada nos dois últimos períodos, isto é, nas suas estadas em Hamadan e posteriormente em Isfahan. “A obra, iniciada em Hamadan, foi terminada 10 anos depois em Isfahan, quando Ibn Sina tinha 50 anos.”196 Portanto, esta seria uma das obras da sua maturidade. De caráter enciclopédico, a Al-Šifā` apresenta-se como um conjunto ordenado que agrupa grande parte das ciências 195 ANAWATI , op. cit., pp. 407-440. Alguns títulos talvez possam se referir à uma mesma obra.Cf. GUERRERO, Avicena , op. cit., p. 21 196 MADKUR, I. B. “ Al-Shifa - O universo em um livro.” Revista O Correio da Unesco. Rio de Janeiro: ano 8, nº12, 1980, p. 22. 149 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho conhecidas em seu tempo e não se assemelhando em nada a um comentário aos antigos, mas sim uma nova síntese, na qual Ibn S÷nā introduz suas próprias pesquisas e hipóteses pessoais. A envergadura dessa obra, com tal soma de assuntos filosóficos, permitiu que Madkur afirmasse que “não encontramos nenhum livro de filosofia que se assemelhe a ela”197 . Poucos livros exerceram em determinado período da história uma influência tão grande quanto a Al-Šifā`, um marco da história da ciência e da filosofia em que há um certo afunilamento, uma reunião, na qual tudo o que fôra produzido nesse âmbito tende a repousar, como síntese dentro de seus limites e, por outro lado, muito do que veio a ser realizado depois, parte, também, dessa síntese, então realizada. “Nessa obra-prima de Avicena aparece o duplo aspecto da personalidade do autor: influência recebida e reação pessoal; simples assimilação e contribuição original.”198 No prólogo, o filósofo declara a intenção de reunir os conhecimentos essenciais da filosofia e das ciências da época: “Nosso objetivo neste livro – esperamos que nos seja concedido tempo suficiente para terminá-lo e que a ajuda de Deus nos acompanhe para compô-lo – é registrar nele a quintessência dos fundamentos que verificamos nas ciências filosóficas atribuídas aos antigos, fundadas na especulação ordenada e comprovada, e os fundamentos descobertos pelas inteligências que se ajudam entre si para perceber a verdade (...)Procurei registrar nele uma grande parte da arte [da filosofia]. (...) Esforcei-me em ser muito breve e me esquivar absolutamente das repetições. (...) Nos livros dos antigos não se encontra nada que não tenhamos levado em conta e não tenhamos incorporado neste nosso livro. Se não se encontrar no lugar em que usualmente os estabelecemos, será encontrado em outro lugar que me pareceu mais conveniente.” 199 Ibn S÷nā, mantendo um perfil aristotélico, divide as ciências em teórica e prática. A ciência teórica se subdivide em três níveis – superior, média e inferior –. A superior é a filosofia primeira, ciência divina ou metafísica. A média é o saber matemático: aritmética, geometria, astronomia, ótica e música teórica. A terceira é a física ou ciência da natureza. A ciência prática compreende a ética e a política. Na Al-Šifa’ 197 Ibid., p.22. Ibid, p. 28. 199 Al Shifa, Lógica, 1, Introdução, ed. árabe, pp. 9-10 in GUERRERO, R. R. Avicena Madrid: Ediciones del Orto. 1994, pp.53-54. Há também uma tradução deste trecho in MADKUR, I. B. “ Al-Shifa - O universo em um livro.” Revista O Correio da Unesco. Rio de Janeiro: ano 8, nº12, 1980, p. 22. 198 150 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho assim encontramos essa divisão a partir das quatro partes: Lógica; Física; Matemática e Metafísica: A Lógica está disposta em nove livros: 1) Isagoge, 6) Dialética, 2) Categorias, 7) Sofística, 3) Perihermeneas, 8) Retórica 4) Primeiros Analíticos, 9) Poética, 5) Segundos Analíticos, A Física se dispõe em oito livros: 1) A Física propriamente dita, 5) Os Meteoros 2) O Céu e o Mundo, 6) A Alma 3) A Geração e a Corrupção, 4) As Ações e Paixões, 7) As Plantas 8) Os Animais A Matemática é disposta em quatro livros: 1) Geometria, 2) Aritmética, 3) Música, 4) Astronomia. E, finalmente a Metafísica que se apresenta em dez livros. Uma das discussões que dividiu – e ainda divide (!) – estudiosos de Ibn S÷nā refere-se a uma possível doutrina esotérica e mística de nosso filósofo que se oporia ao conteúdo da Al-Šifa’ e de outras obras escritas ao estilo dos peripatéticos. A quantidade e diversidade dos temas que expõe em seus livros, os escritos em linguagem simbólica e algumas de suas próprias afirmações contribuíram para isso e, como há obras tanto no estilo peripatéticos como no estilo simbólico, impor-se-iam, assim, muitas dificuldades para se expor seu verdadeiro pensamento. No próprio prólogo da Al-Šifa’ Ibn S÷nā declarou: “Além desses dois livros tenho outro.(...) é o meu livro sobre A Filosofia Oriental. Por outro lado este outro livro (Al-Šifa’) é mais detalhado e está mais de acordo com os companheiros peripatéticos. Quem quiser a verdade sem rodeios deverá se dirigir àquele outro livro ( A Filosofia Oriental); quem quiser a verdade de maneira que se 151 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho produza uma certa satisfação aos companheiros(...) não necessita do outro livro, então que se dirija a este (Al- Šifa’)”200. Essa declaração suscitou uma série de problemas. O primeiro deles é que o título da obra que poderia ser lido tanto como “filosofia oriental” como “filosofia iluminativa”. Não é demais lembrar que na língua árabe as vogais breves não são expressas por meio de letras do alfabeto, mas por meio de sinais diacríticos que geralmente não são anotados na escrita. No caso em questão, a grafia ¢z„° ( m¹rq ) pode ser vocalizada de duas formas distintas: ¢z„° / ma¹riq que significa “oriente” ou ¢z„° / mu¹riq que significa “iluminado”201. A segunda leitura poderia indicar um caráter místico em suas doutrinas. O segundo problema é que a obra a que Ibn S÷nā se refere, isto é, A Filosofia Oriental foi, em sua maior parte, perdida. Só chegou até nós uma pequena parte da lógica. No entanto os fragmentos que chegaram da chamada Filosofia Oriental , intitulados como Lógica dos Orientais não confirmaram uma doutrina esotérica. A Filosofia Oriental é um tratado completo de filosofia em três partes: Lógica, Física e Metafísica que segue o mesmo plano das obras anteriores não se tratando, pois, nem de mística e nem de filosofia esotérica. Uma leitura dos fragmentos mostra, também, que não há sentido em supor que houvesse nesse tratado uma “filosofia oriental” original de Ibn S÷nā que fora perdida e que se oporia a todo o desenvolvimento da filosofia peripatética encontrada em suas outras obras. No prólogo da Al-Šifa’,o que esteja indicado, talvez, seja apenas uma distinção quanto ao modo com que apresenta sua doutrina: ou ao modo comum dos peripatéticos ou de um modo pessoal sem a preocupação com o método anterior. Por outro lado, os defensores da tese de uma doutrina esotérica em Ibn S÷nā entenderam, ainda, que esta não deveria ser procurada especificamente na obra denominada Filosofia Oriental mas que a sua “filosofia oriental” estaria dispersa ao longo dos escritos de linguagem simbólica. No entanto, Badawi lembra que o próprio 200 GUERRERO, R.R. Avicena. Madrid: Ediciones del Orto, 1994, p.55. Para um aprofundamento da discussão do caráter destas duas obras que dividiu boa parte dos estudiosos, remetemos a GOICHON, A. M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médievale. Paris: Librarie d'Amérique et d'Orient. Paris, 1940, pp. 1-53; CORBIN, H. Histoire de la philosophie islamique. Paris: Gallimard,1986, Cap. V, item 4-Avicenne et le avicennisme-, pp. 238-247; e BADAWI, A. Histoire de la Philosophie en Islam. Paris: J.Vrin, 1972, p. 609-610. 201 Badawi refere-se ao “magistral artigo de Nallino”que demonstra definitivamente que o título deve ser lido como filosofia “oriental”e não “iluminativa” . 152 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Ibn S÷nā se quando refere à “filosofia oriental”, está sempre se referindo a um livro e que, quando divide os filósofos em orientais e ocidentais entende que os primeiros são os peripatéticos de Bagdá e os segundos os comentadores gregos de Aristóteles e nada além disso. Como bem observou Guerrero, deve se levar em conta que o pensamento de Ibn S÷nā se assentou sobre dois pilares: um proveniente da Grécia e outro da tradição da antiga Pérsia. “ O dinamismo interno de seu pensamento, o esforço que o levou a construir seu sistema, foi o resultado de uma constante e contínua preocupação por um conhecimento intelectual, intuitivo e experimental ao mesmo tempo.”202 Permitindo-se usar uma dupla linguagem seus escritos visariam, assim, atingir leitores de culturas e de entendimento diferenciados. Tal perfil eclético explicaria os textos que escapam à linguagem filosófica e que poderiam, erroneamente, levar a crer tratar-se de doutrina esotérica. Conhecendo-se sua exposição lógica e filosófica verifica-se que “ainda que lidos em chave mística e simbólica, como relatos visionários, tais textos apenas expõem sua doutrina em outro estilo literário.”203 Os textos escritos em linguagem simbólica parecem se diferenciar apenas no tipo de linguagem, configurando-se em belas metáforas que, por sua vez, podem ser reconduzidas às demonstrações lógicas que se encontram nas obras de caráter científico e filosófico. Essa possibilidade dificultou, portanto, que a abordagem de um caráter puramente místico em Ibn S÷nā fizesse sentido. Dupla linguagem não significa dupla doutrina. Mesmo quando ele se refere a um tipo de ascese, esta só pode ser entendida a rigor como uma ascese da parte mais nobre da alma: o intelecto. Nesse sentido, o máximo que se poderia conceder seria entendê-la como uma razão mística ou uma mística racional.204 “Avicena não foi um místico, nem um esotérico que escreveu em linguagem cifrada para iniciados. Só se preocupou pelas mesmas questões que ocuparam os demais filósofos.”205 As primeiras traduções, de partes de sua obra foram feitas para o latim, entre os séculos XII e XIII d.C./ VI e VII H. notadamente na Espanha, que teve na cidade de Toledo um importante centro. Essas traduções representaram muito pouco do total de sua obra, o que fez o Ocidente medieval latino conhecer apenas uma pequena parte da Al-Šifa’. Não obstante algumas dificuldades de identificação dos 202 GUERRERO, op. cit., p. 23. Ibid., p. 23 204 BADAWI, op. cit., p. 662. 205 Ibid 24. 203 153 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho tradutores e até mesmo da qualidade das primeiras traduções de sua obra, estas foram suficientes para despertar o espírito dos ocidentais medievais para novas considerações de toda ordem, tornando-as referência, praticamente, presente em todas as formulações medievais posteriores. Ibn S÷nā, ao mesmo tempo, trouxe a ciência dos antigos de maneira reformulada e mais completa através de suas próprias contribuições. Sua filosofia, conhecida principalmente pela Metafísica, os tratados Do Céu, Dos Animais, Sobre a Geração e a Corrupção, Da Alma, além de fragmentos de lógica e das ciências naturais (Física), foi um grupo de escritos que, nas palavras de Goichon, se comportou como o “primeiro conjunto de doutrinas verdadeiramente constituído que chegava ao ocidente”206. No Ÿ´«[ ]\c¨ / Kitāb al-Nafs /O Livro da Alma (Livro VI da parte da Física da Al-Šifā'), nosso filósofo desenvolve sua doutrina que, iniciada pelos princípios aristotélicos na afirmação da alma como uma forma do corpo, termina por se aproximar de certa inspiração neoplatônica de perfil espiritualista. Ao longo desse tratado, Ibn S÷nā classificou e estudou as faculdades anímicas e, a partir dessas relações, procurou explicar inúmeras afecções da alma como, por exemplo, a melancolia, a tristeza, a alegria, a raiva entre outras; temática estudada, hoje em dia, pela psicologia moderna. Em razão desse amplo desenvolvimento, algumas vezes encontramos referências a Ibn S÷nā quanto à sua “psicologia” e particularmente a esse tratado, que ficou conhecido como “A Psicologia de Avicena”. O Livro da Alma foi importante na história do pensamento não só pelo seu próprio conteúdo mas também porque apresentava, pela primeira vez, uma síntese do De Anima de Aristóteles, tendo causado grande impacto sobre a teologia cristã medieval. Muitos nomes da escolástica universitária cristã tais como Alberto Magno, Rogério Bacon, Tomás de Aquino e Duns Scot procuram referências nas obras de Ibn S÷nā, o citam frequentemente e, em muitos casos, apóiam-se nele. A guisa de resumo e, sem entrar em detalhes em cada um dos temas que compõe sua filosofia, pode-se dizer que as contribuições de Ibn S÷nā estenderam-se praticamente a todos os ramos da filosofia desde a lógica até a metafísica. Em linhas gerais, Ibn S÷nā se amparou em muitas das teses estabelecidas por Al-Fārāb÷. Este foi o caso de sua visão cosmológica que seguiu o ritmo das emanações das dez inteligências a partir da distinção entre o ser necessário por si e o ser necessário por outro. A lógica ocupou um lugar central no desenvolvimento de seu pensamento. A esta dedicou 206 GOICHON, La philosophie d’Avicenne, op. cit., p. 90. 154 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho quase a metade de sua obra Al-Šifā'. Na metafísica, considerou o ser enquanto ser o objeto próprio dessa ciência e elaborou sua doutrina a partir do estabelecimento da distinção entre ser necessário por si, ser possível por si e necessário por outro. Nesse sentido a metafísica de Ibn S÷nā adquiriu um sentido “onto-teo-lógico”. Nela encontram-se quatro vias que indicariam a existência de Deus. Também a ele se deveu um aprofundamento significativo na distinção entre essência e existência e na preeminência da primeira noção. Na doutrina dos universais distinguiu três modos: sua existência nas coisas particulares, no intelecto e em si mesma a que chamou de natureza comum. Além disso, Ibn S÷nā criticou e refutou a doutrina das idéias segundo os platônicos. Todos esses – e muitos outros temas – formaram um conjunto harmônico e vigoroso em suas obras. Limitemo-nos à algumas palavras a respeito de um dos pontos altos de seu pensamento referente à sua psicologia, ou seja, seu estudo sobre a alma. De modo bastante original sua doutrina a esse respeito não se confunde com nenhuma outra praticada por seus predecessores fossem árabes ou gregos. Suas idéias a respeito da alma no Kitāb al-Nafs / O Livro da Alma não obstante ser construída a partir dos elementos aristotélicos e neoplatônicos, apresentaram traços originais que a destacaram sobremaneira de outras teorias do mesmo período, procurando manter-se em perfeita harmonia com a cosmologia herdada de Al-Fārāb÷ e com suas experiências médicas que se apresentam como sustentáculos empíricos às suas teses. A constatação da existência da alma é a primeira coisa de que se ocupa Ibn S÷nā indicando que sua existência pode ser constatada através da observação dos corpos que não são apenas sólidos, mas que são organismos que possuem sensibilidade, movimento, crescimento, nutrição e outras atividades que fazem daquele corpo um ser vivo e não um sólido sem vida. Na medida em que há corpos que não são dotados dessa características anímicas, forçosamente o corpo enquanto tal, não pode ser o princípio de tais movimentos, restando, então, que devam existir princípios além da própria corporeidade que sejam os responsáveis por tais movimentos. É justamente isso, que é o princípio do qual procedem essas ações espontâneas, que chamamos alma. Sendo assim, na medida em que é certo que a alma faz parte do composto do ser vivo, Ibn S÷nā aplica as categorias aristotélicas de ato e potência para definir como ela participa dessa constituição. Se a alma fosse uma potência como a 155 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho matéria corpórea, deveria haver algum ato que realizasse o acabamento daquele determinado corpo nesta ou naquela espécie. Ora, mas como é a própria alma que realiza esse acabamento na matéria ela é, pois, o ato que faz com que determinada matéria seja um vegetal um animal ou, então, um homem. A atualização e o acabamento que a alma confere à matéria permite, pois, que ela seja definida como uma forma em relação àquela determinada matéria que ela toma por receptáculo passando a constituir as suas próprias faculdades pelas quais opera e dirige o ser vivo para cumprir os atos referentes à vida. Mesmo que, por vezes, haja referência ao termo “alma” no sentido do conjunto das faculdades que ela forma no corpo – tais como as ações de crescimento, geração e nutrição, movimento, sensibilidade e intelecção – sua melhor denominação é ser uma “perfeição”. E, mesmo quando há referência ao termo “alma” no sentido de que ela é uma forma – relativamente à matéria que ela tomou por receptáculo, sendo que, desse modo, o composto matéria e forma se torna uma substância 207 vegetal ou animal – , ainda assim é preferível para Ibn S÷nā que chamemos a alma de “perfeição”. O termo “perfeição”, denota que a alma realiza na matéria o acabamento do gênero pela atualização da espécie através dos seres particulares. Assim, quando se diz “perfeição” estão incluídas as duas idéias, isto é, “forma” e “faculdade”. Porém, não obstante o fato de chamá-la de perfeição ser o mais apropriado, ainda é preciso verificar que o sentido de “perfeição” pode ser entendido em dois níveis: no primeiro refere-se ao acabamento realizado na matéria e, no segundo, refere-se ao exercício das próprias faculdades. Portanto, a alma, em vista da atualização da espécie é uma perfeição primeira; tratando-se do exercício, das paixões e ações vindas da espécie dessa coisa, é uma perfeição segunda. Ora, mas como a perfeição segunda não pode existir sem a primeira, pode-se afirmar, finalmente, que o que mais caracteriza a alma, – visto ser a definição mais geral que abarca todas as outras – é ser perfeição primeira: “a alma que encontramos é, então, perfeição primeira de um corpo natural, provido de órgãos, que pode realizar os atos da vida.” 208 Essa definição aproxima-se bastante da definição dada por Aristóteles no De anima em que afirma a alma como a forma de um corpo natural tendo a vida em potência, e também como enteléquia primeira de um corpo natural organizado.209 207 Trata-se do συνολον de Aristóteles. Cf. Bakós n. 2. IBN SINA, Kit¡b al-Nafs, trad. J.Bakós. Praga: Académie Tchecoslovaque des Sciences, 1956, p. 10. 209 ARISTÓTELES De anima II 412 a 20 e II 412b5. 208 156 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Porém, a matéria que a alma toma por receptáculo não é um estado qualquer da matéria mas somente quando esta se apresenta segundo uma determinada mistura dos elementos da natureza adequada para que a alma nela se manifeste. Isso não deve ser tomado no sentido de que essa mistura resultasse num corpo que fosse a causa da alma, mas é a própria alma que, a partir de tal mistura passa a formar o corpo com os seus órgãos e suas faculdades para executar os atos da vida. Nessa medida, não é o corpo com seu equipamento que é simplesmente forjado por si mesmo e entregue à alma sem que essa intervenha em sua constituição, pois a alma não organiza algo que lhe fôra dado com uma certa organização precedente. A alma vem ao ser simultaneamente com a mistura adequada dos elementos. A alma vem ao ser juntamente com a mistura que lhe é adequada e passa a formar o organismo corporal que só é o que é graças à alma e, se ele é equipado para servir de instrumento no exercício das atividades da vida, ele também o deve à alma. Por isso, pode-se dizer que a alma constitui o seu próprio sujeito de inerência em ato e, por essa razão, é a perfeição de um sujeito que é constituído por ela. Do contrário, deveria ter havido uma outra perfeição primeira que o tivesse atualizado, o que não pode ser, pois isso foi realizado justamente por ela. Se assim não fosse, a alma sobreviria a um sujeito já formado e ela só poderia ser uma propriedade acidental. A alma para Ibn S÷nā não é, pois, um acidente do corpo mas é uma substância que vem à existência juntamente com a matéria que lhe é adequada. Uma boa imagem disso, usada por Ibn S÷nā é o conceito da alma como artesã, pois ela, ao realizar na mistura que ela tomou por receptáculo, a confecção de todos os seus elementos vitais, é a artesã da espécie, atualizando o gênero naquela matéria específica, tornando-a animada: “Logo, a alma é então a perfeição de um sujeito de inerência, e esse sujeito subsiste pela perfeição. A alma é, além disso a que aperfeiçoa a espécie, ela é a artesã desta.”210 Assim, Ibn S÷nā procura ultrapassar a definição da alma como forma do corpo, faculdade ou perfeição e a define como uma substância que se manifesta segundo faculdade, forma e perfeição: “a alma é uma perfeição como substância e não inere.”211 Desse modo, a alma, emergindo no ser juntamente com o corpo, não morre com a morte desse porque, sendo uma substância simples e imaterial não está sujeita à 210 IBN SINA, Kit¡b al-Nafs ,trad. Bakós, op. cit.,p. 23. ®|¬ «¼ z·½j«\§ ª\¯§ ²w[ Ÿ´«\Ÿ Cf. RAHMAN: I,3,32. Em BAKÓS: I, 3, 23, “ Donc l’ame est perfection comme substance, non comme accident.” 211 157 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho corrupção como o corpo. Em outras palavras, a alma não precede o corpo mas desde que vem à existência juntamente com ele, jamais cessa, mesmo quando do desaparecimento deste. Do mesmo modo que não foi gerada pelo corpo, não perece quando este se corrompe. Ibn S÷nā crê poder demonstrar a substancialidade da alma também pelo que se passa com o ser vivo quando de sua morte: se a alma se separa do corpo na hora da morte, este não permanece mais da mesma espécie, revestindo-se de uma outra forma; ora, se a alma não interviesse na organização do corpo, não haveria razão para que essa estrutura se perdesse depois da morte; não tendo sido produzida pela alma, ela poderia se manter mesmo ao se separar dela, mas isto não ocorre justamente porque “ a matéria animada só é o que é por uma mistura própria e por uma disposição própria, sendo que a matéria só resta existente em ato nessa mistura própria enquanto a alma permanece nela, pois é a alma que a coloca nessa mistura.” 212 A divisão proposta por Ibn S÷nā quanto à alma e suas faculdades acompanha Aristóteles na clássica divisão segundo as espécies vegetal, animal e humana. Em sentido absoluto as faculdades da alma podem ser estabelecidas segundo as três espécies, havendo também o caso de ser possível utilizar-se os termos por analogia. No primeiro caso está a alma vegetal, definida como perfeição primeira de um corpo natural munido de órgãos, enquanto nasce, cresce e se nutre; referindo-se, portanto somente ao próprio vegetal. No segundo caso encontra-se a alma animal, definida como perfeição primeira de um corpo natural munido de órgãos, enquanto apreende as coisas particulares e se move voluntariamente; referindo-se, portanto, somente ao animal em sentido próprio. O terceiro caso é o da alma humana, definida como perfeição primeira de um corpo natural munido de órgãos, enquanto se lhe atribui a execução dos atos que se fazem por escolha refletida e por invenção efetuada com discernimento, e também enquanto apreende as coisas universais. Em sentido analógico pode se fazer referência às funções vegetativas da alma do animal, e às funções vegetativas e animativas da alma do homem. Segundo essa divisão, verifiquemos a classificação das faculdades da alma. A alma vegetal possui três faculdades: a nutritiva, a do crescimento e a da geração. A primeira delas é responsável pela assimilação de corpos distintos daquele no qual ela está transformando-o em algo semelhante ao seu próprio corpo. A segunda faculdade, isto é a do crescimento, aproveitando a transformação efetuada 212 IBN SINA, Kit¡b al-Nafs ,trad. Bakós, op. cit., p. 20. 158 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho pela nutritiva faz o corpo crescer proporcionalmente em altura, largura e profundidade. A terceira, e última faculdade da alma vegetal, é a responsável pela geração, e age tomando uma parte potencialmente semelhante ao corpo no qual está proporcionando através de uma mistura adequada um outro corpo semelhante, em ato, ao seu. No caso da alma animal, Ibn S÷nā estabelece uma ramificação básica em duas faculdades: a motora e a perceptiva. A faculdade motora é entendida segundo duas categorias: a pura excitação ao movimento pelo desejo e pelo apetite e o movimento efetivo realizado pelo corpo. A faculdade do desejo enquanto pura excitação opera segundo duas direções básicas, isto é, ou de aproximação em direção ao que foi desejado como útil ou necessário e, nesse caso, chama-se faculdade concupiscível ou, então, de desejo de afastamento e fuga em direção contrária ao que foi considerado prejudicial e, nesse caso, chama-se faculdade irascível. Essas duas faculdades motoras, enquanto pura excitação, têm apenas a função de estimar o que se lhe apresenta, funcionando por atração e repulsa, excitando os músculos e os tendões para que efetivamente ajam segundo o conjunto anatômico apropriado e terminem por concretizar o que foi desejado. No caso da aproximação, provinda da excitação da concupiscível, pode haver, por exemplo, contração de músculos, puxamento de tendões e de ligamentos dos membros na direção do princípio ou do objetivo em questão. No caso de afastamento, provindo da irascível, os músculos podem se relaxar e os nervos se esticar em comprimento, colocando os tendões e os ligamentos em oposição à direção do princípio em questão. O segundo grupo de faculdades da alma animal refere-se à percepção e é dividida por Ibn S÷nā em duas categorias: os sentidos externos e o sentidos internos. Os sentidos externos são os cinco tradicionalmente conhecidos: a visão – localizada no nervo213 ótico que é a faculdade responsável pela percepção das formas impressas no humor cristalino que provém das imagens dos corpos coloridos; a audição – faculdade estabelecida nos nervos dispersos na superficie do canal auditivo que percebe uma forma qualquer que chegue à rede nervosa através da agitação do ar chegando ao canal auditivo onde as ondas desse movimento relativo ao nervo se tocam e, então, escuta-se; o olfato – faculdade estabelecida nas duas protuberâncias da parte anterior do cérebro que tem por função perceber os odores que se encontram misturados ao ar; o paladar – faculdade estabelecida no nervo estendido sobre o corpo da língua que percebe os 213 Note-se que todas as localizações nervosas das faculdades não se encontram em Aristóteles, visto que ele não tinha conhecimento algum da existência dos nervos. (Cf. Bakós n.183). 159 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho gostos dissolvidos dos corpos quando estão contíguos à língua e, por fim, o sentido do tato, que é uma faculdade estabelecida nos nervos da pele e da carne de todo o corpo, tendo por função perceber tudo o que toca o corpo. No caso dos sentidos internos, vale destacar o amplo desenvolvimento que Ibn S÷nā dedica a este grupo de faculdades que está a meio caminho entre a sensação e a intelecção. Essas faculdades – em número de cinco – são as responsáveis por realizar um processo de abstração que é mais perfeito do que o dos sentidos externos mas ainda imperfeito em vistas daquele realizado pelo intelecto. Primeiramente, deve se ter em mente uma distinção fundamental para se entender o funcionamento dos sentidos internos. Essa distinção se refere ao que Ibn S÷nā chamou de apreensão das formas e apreensão das idéias: 214 “quanto às faculdades que percebem interiormente, algumas são faculdades que percebem as formas das coisas sensíveis, e outras percebem as idéias das coisas sensíveis.” 215 A diferença entre esses dois modos de percepção é que a percepção da forma é realizada em conjunto com algum dos sentidos externos enquanto a percepção da idéia, diferentemente, é realizada de modo imediato pelo sentido interno. O exemplo clássico usado por Ibn S÷nā foi repetido incansavelmente pelos pensadores do Ocidente latino medieval e consiste no seguinte: a ovelha percebe a “forma” do lobo, isto é, sua configuração, seu aspecto e sua cor; com certeza o sentido interno da ovelha também percebe essa forma do lobo, mas, primeiramente, ela é percebida somente pelo seu sentido externo. Por outro lado, a “idéia” é a coisa que a alma percebe do sensível sem que o sentido externo a tenha percebido anteriormente. Por exemplo: a ovelha percebe no lobo a idéia de inimigo ou a idéia que torna necessário o medo e a fuga para longe dele sem que o sentido externo perceba isso de modo algum; logo, isso que o sentido externo capta primeiramente e, depois o sentido interno percebe, chama-se propriamente de forma; e isso que a faculdade interna percebe à exclusão dos sentidos externos, chamase idéia. Os sentidos internos ou faculdades perceptivas internas são em número de cinco: o sentido comum, a formativa, a imaginativa, a estimativa e a memória.216 Um dos exemplos que Ibn S÷nā se utiliza para mostrar a necessidade de haver uma 214 215 Å´˜¯ /ma’ana e ºy½ˆ / sura IBN SINA, Kit¡b al-Nafs ,trad. Bakós, op. cit.,p.30. Ibn Sina usa mais de um nome para definir cada um dos sentidos internos. Cf. ATTIE, Os Sentidos op. cit., anexo. Note-se que, apesar de Ibn Sina utilizar os mesmos nomes que se encontram em outros autores, notadamente em Aristóteles, as funções não são as mesmas. 216 160 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho instância interna distinta dos sentidos externos consiste na percepção de uma gota de chuva que cai. Ora, uma gota que cai, naturalmente é percebida por nós como se descrevesse uma linha reta mas, nesse caso, os sentidos externos não podem nos fornecer a percepção de uma linha reta pois eles percebem apenas o que é dado num determinado instante. Quando o sentido externo apreende a gota de chuva a cada instante, segundo a posição que ela ocupa, não pode apreender a continuidade entre uma posição e as posições anteriores. Para que tal percepção ocorra, isto é, para poder apreendê-la como uma linha reta é necessário a conservação das posições anteriores no momento da apreensão da posição atual, o que requer necessariamente a intervenção dos sentidos internos. Os cinco sentidos internos são localizados por Ibn S÷nā nas câmaras cerebrais e possuem funções distintas. O primeiro deles é o sentido comum que está localizado no primeiro ventrículo do cérebro e funciona como um receptáculo geral para as formas que chegam indistintamente através dos cinco sentidos externos. Seu papel, dentre outros, é o de receber as formas provindas da realidade externa para dentro do cérebro. Em seguida está a faculdade formativa que também se localiza na extremidade do ventrículo anterior do cérebro e opera em conjunto com o sentido comum enquanto tem por função conservar o que este recebeu dos cinco sentidos particulares. Tais formas permanecem no cérebro após o distanciamento das coisas sensíveis. Assim, se estabelece a continuidade entre a realidade externa e a realidade interna: num primeiro estágio, os sentidos externos apreendem os sensíveis particulares – isto é, a visão apreende a cor; a audição o som; etc. – num segundo estágio essas formas são recebidas no cérebro, pelo sentido comum; depois, são estabilizadas pela faculdade formativa que as mantém fixadas no interior do primeiro ventrículo cerebral. Em sua natureza, o sentido comum possui certa maleabilidade para receber as formas e atua como a água que é capaz de receber um determinado traçado mas não é capaz de conservá-lo. Por isso, a conservação é feita num segundo estágio de recepção. Ora, mas como é da nossa natureza compor formas que estão estabilizadas com outras, é preciso que haja uma faculdade que realize essa função. Essa é, pois, a faculdade imaginativa que está estabelecida no ventrículo médio do cérebro perto do lóbulo médio do cerebelo entre ambos os hemisférios tendo por função unir e separar à vontade as formas que estão estabilizadas na formativa. Assim, somos capazes de compor novas formas que necessariamente não existem na realidade externa. Desse modo se estabelece, além da continuidade das formas da realidade 161 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho exterior para a interior, também a criação de novas formas interiores através da composição da imaginativa. No caso do homem, em vista da conjugação que essa faculdade pode ter com a razão, ela é denominada cogitativa e é a responsável pela união e separação das formas que possibilitam a cogitação. Mas, como Ibn S÷nā havia alertado, há percepções que não são propriamente “formas” das coisas mas são “idéias” das coisas – como no caso da ovelha que percebe o perigo que o lobo significa – Para isso é necessário uma outra instância que perceba essas idéias não sensíveis presentes nas coisas sensíveis particulares. Essa é a faculdade estimativa, que se localiza na extremidade do ventrículo médio do cérebro. Por último, funcionando como um depósito para as idéias apreendidas pela estimativa, encontramos a memória que se localiza no ventrículo posterior do cérebro. A sua relação com a estimativa é do mesmo tipo da relação da formativa com o sentido comum pois a memória e a formativa são depósitos, isto é, faculdades de conservação enquanto a estimativa e o sentido comum são faculdades de recepção, sendo que a imaginativa é responsável pela composição das formas. No caso das idéias que estão na memória, estas também podem ser combinadas. Entretanto isso não é feito pela imaginativa pois esta não tem acesso às idéias mas somente às formas. A composição das idéias é realizada pela própria estimativa que tem acesso ao depósito das idéias e atua como se fosse a própria imaginativa para operar as funções de união e separação das idéias. No animal, a estimativa opera como se fosse uma inteligência animal. De todo modo, a articulação e a dinâmica dos sentidos internos a partir desse estabelecimento primário de suas funções ganha dimensões bastante complexas na medida em que umas se combinam com outras e, assim, Ibn S÷nā crê poder explicar o funcionamento de inúmeras afecções da alma como, por exemplo, a tristeza, a ira e outras do mesmo tipo. No caso da alma humana, Ibn S÷nā utiliza-se de uma alegoria para indicar que é possível ao homem constatar a existência de sua própria alma. Essa via de indicação ficou conhecida como a alegoria do “homem suspenso no espaço”. 217 Nela, Ibn S÷nā propõe que concebêssemos um homem que houvesse sido criado de uma só vez em toda sua perfeição. No entanto, embora criado perfeito, este homem teria sua vista velada e estaria totalmente privado de seus sentidos, de modo que nada pudesse sentir. Ele estaria caindo de cima abaixo num vácuo absoluto de maneira que 217 Esta alegoria também é referida “cogito” de Ibn Sina, no qual o homem, sem a intermediação do corpo, se percebe existente e pensante. 162 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho sequer o ar o poderia tocar. Além disso, os seus membros estariam separados e não poderiam se encontrar . Ora, nessas circunstâncias em que nenhuma realidade externa lhe fosse percebida, pergunta-se Ibn S÷nā: seria possível que tal homem afirmasse sua existência, apesar de não poder afirmar a existência de nenhum de seus membros, nem suas entranhas, nem seu cérebro e seu coração, e nenhuma das realidades exteriores ? A resposta dada por Ibn S÷nā, é positiva pois, mesmo destituído da apreensão de sua realidade corporal e das realidades exteriores a ele, ainda assim, tal homem, de modo imediato, seria capaz de afirmar-se como existente justamente pela existência da alma nele. Para Ibn S÷nā isso se apresenta como uma evidência e, tal evidência de si mesmo, alcançada de modo intuitivo e imediato, dispensa nosso filósofo de uma argumentação exaustiva pois, por si só, ela é suficiente para que todo e qualquer homem possa constatar a existência de sua própria alma. Vejamos como Ibn S÷nā termina esta alegoria, chamando a atenção para tal evidência: ¬— ¹« »Àˆ\r \·u½k¼ a_f[ Ác«[ a[x«[ ²w\Ÿ Sendo assim, a essência cuja existência ±« Ác«[ ¹Î\Œ—[¼ ¹°j z› ¹´˜^ ½· \¸´[ foi constatada possui uma propriedade na medida em que ele [esse homem] é Ŭ— ¹_c´ ²[ «[ −_ ¹« ¹_´c°«[ [w\Ÿ G a_g distinto de seu corpo e de seus membros ¹³[¼ ±kz› −^ ±j«[ z› \Ï„ Ÿ´«[ u½k¼ que não eram constatados. Desse modo, ¹´— Ø·[w ²\§ ²[¼ ¹« z˜„c° ¹^ āy\— aquele que afirma, possui um meio para o afirmar, em virtude da existência da alma, ! ¶\ˆ— –z£¿ ²[ i\co como algo distinto do corpo, ou melhor, não-corpo. Assim, esse homem conhece isso e o percebe, e se ele disso se esqueceu, seria necessário adverti-lo. 218 Uma das melhores imagens da alma humana que nos fornece Ibn S÷nā é a de que ela possui duas faces: “a nossa alma possui duas faces: uma face voltada para o corpo (...) e uma face voltada para os princípios supremos.”219 Seguindo essas duas direções, Ibn S÷nā distingue as faculdades da alma humana em “faculdade que age e faculdade que 218 IBN SINA, Kit¡b al-Nafs, edição do texto árabe por RAHMAN, F. Avicenna’s De Anima, Being the Psycological part of Kitab Al-Shifa. London: Oxford University Press, 1960. RAHMAN: I,1,16 / BAKÓS: I,1,13. A sentença final “ ¶\ˆ— –z£¿ ²[ i\co ” significa literalmente “seria necessário bater nele com uma bengala (!)”. 219 »À«\˜«[ Âu\_°«[ Å«[ ¹j¼¼ !!! ²v^«[ Å«[ ¹k¼ G µ¸k¼ \´° Ÿ´¬« ²\¨Ÿ Cf. RAHMAN: I,5, 47 IBN SINA, Kit¡b al-Nafs ,trad. Bakós, op. cit.,p.33. 163 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho conhece sendo que cada uma das duas faculdades chama-se intelecto por homonímia ou equivocidade.” 220 Assim, temos duas faculdades: o intelecto prático e o intelecto teórico. Sendo uma substância simples e una, mas que se relaciona com duas realidades distintas – uma que está acima e outra abaixo dela –, a alma humana possui estas duas faculdades que tornam possível a conexão entre ela e cada um dos dois lados. Pelo lado inferior “nascem os hábitos morais e do lado superior nascem as ciências”.221 Acompanhando essa imagem, vejamos como Ibn S÷nā nos informa do papel da filosofia: “A filosofia tem como fim informar acerca das verdades de todas as coisas na medida do possível ao homem. As coisas existentes, por sua vez, ou existem sem depender de nossa vontade ou, então, existem por nossa vontade e atividade. Ao conhecimento das coisas que pertencem à primeira divisão chama-se filosofia teórica; ao conhecimento das coisas que pertencem à segunda divisão chama-se filosofia prática. O fim da filosofia teórica é aperfeiçoar a alma pelo conhecer; o fim da filosofia prática é aperfeiçoar a alma, não pelo simples conhecer, mas por conhecer o que há de ser feito e fazê-lo. Assim, o fim da teórica é a aquisição de uma opinião que não é prática, ao passo que o fim da prática é conhecer uma opinião que é prática.” Na direção e comando do corpo está o intelecto prático que dirige o homem nos seus atos particulares tais como as ações morais e políticas, a criação das artes e outras ações realizadas em sociedade. Na outra direção, o intelecto teórico busca a aquisição do conhecimento e das verdades supremas. Se, por um lado, o intelecto prático deve se guiar pelo intelecto teórico, por outro lado, ele deve dirigir todas as outras faculdades da alma e não se deixar dirigir por elas pois, se isso acontecer, corre-se o risco de se criar hábitos morais vis por uma inversão na hierarquia das faculdades. Assim, o intelecto prático governa o corpo mas não o faz de modo totalmente independente do intelecto teórico pois este, em conexão com o lado superior e sob os influxos da 220 I, 5, 31. Também podem ser chamadas de faculdade prática e faculdade especulativa, ou ainda, intelecto prático e intelecto teórico. Em Aristóteles são o intelecto teórico e o intelecto prático. O fim do intelecto prático é a ação, dirigida ao bem prático e o contingente; enquanto o fim do intelecto teórico é o necessário, isto é, o verdadeiro e o falso. O verdadeiro sendo absoluto, o bem relativo. (Cf. Bakós n.210) . Note-se, ainda, que sendo faculdades da alma humana, não há uma localização fisica. Deve se ter em mente que Ibn Sina acompanha em linhas gerais a divisão estabelecida por Al-Farabi mas não totalmente. 221 IBN SINA, Kit¡b al-Nafs ,trad. Bakós, op. cit.,p.33. 164 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho inteligência agente (ª\˜«[ −¤˜«[), recebe e adquire constantemente o efeito disso que está acima dele para que a ação humana se guie pela verdade, em vista do bem. Focalizando as primeiras definições a respeito do intelecto teóorico – no Kitāb al-Nafs –, Ibn S÷nā o define como “ uma faculdade que tem a função de receber a impressão das formas universais abstraídas da matéria.”222 O intelecto teórico possui diversas relações com essas formas na medida em que passa da potência ao ato. Segundo esses dois extremos – potência e ato –, Ibn S÷nā estabelece uma gradação no interior do intelecto humano para representar os diferentes níveis em que se dá a apreensão dos inteligíveis desde o seu grau mais comum – encontrado em todos os homens –, até o seu mais alto grau – o limite do entendimento humano –, encontrado em alguns poucos homens. Os graus são os seguintes: intelecto material, intelecto em hábito, intelecto em ato, intelecto adquirido e, por fim intelecto sagrado. Inicialmente, Ibn S÷nā distingue níveis de potencialidade para, em seguida, relacioná-los com os distintos graus do intelecto. A potência no seu sentido mais radical deve ser entendida como uma aptidão total e absoluta da qual não é possível que algo resulte em ato como, por exemplo, a potência de escrever que há numa criança de pouca idade. Num segundo sentido já nuançado, a potência pode ser entendida de maneira mais desenvolvida como, por exemplo, quando a criança já se inicia nas letras e já conhece a pena e o tinteiro. Num terceiro sentido, a potência pode ser entendida como uma aquisição já completa que pode ser usada a qualquer instante sem que haja a necessidade de uma nova aquisição bastando que se decida a agir ou não como, por exemplo, a potência do escriba perfeito na arte, quando se decide ou não a escrever. Tais níveis de potência, Ibn S÷nā denomina: potência material; potência possível e perfeição da potência. Esses três níveis de potencialidade, assim estabelecidos, indicam os graus com que o intelecto apreende os inteligíveis distinguindo-se, inicialmente, três níveis na intelecção, como se fossem três intelectos ou três faculdades intelectivas, ou ainda graus diferenciados de apreensão por parte do intelecto teórico. No primeiro caso, “o intelecto se encontra frente aos inteligíveis em um estado de potencialidade absoluta”. 223 Esse é o intelecto material (Á³×½À·«[ −£˜«[) e seu nome se deve justamente pela semelhança que guarda com a 222 223 RAHMAN I, 5, 48. GUERRERO, R. R. Avicena. Madrid: Ed. del Orto, 1994, p. 46. 165 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho matéria prima que não possui por si uma forma, mas é sujeito de inerência para toda forma. Na medida em que esse nível do intelecto ainda nada recebeu da perfeição que existe em relação a ele, mantém-se em potência absoluta, é individualizado e pertence a cada um dos membros da espécie humana. No segundo grau, ocorre que no intelecto material já estão presentes os primeiros inteligíveis, isto é, os primeiros princípios como, por exemplo, que o todo é maior que a parte, que duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si, dos quais e pelos quais se chega aos inteligíveis segundos. Esse segundo grau se chama intelecto em hábito ( »¨¬°«\^ −£˜«[ ), e pode se dizer em ato em relação ao primeiro. No terceiro caso, a relação se dá conforme o que se chamou de perfeição da potência sendo que os inteligíveis segundos estão em ato como se estivessem armazenados e, quando quiser, o intelecto considera novamente essas formas. Esse grau se denomina intelecto em ato (−˜Ÿ«\^ −£˜«[). Em sentido restrito esses são os três graus do intelecto teórico e, de certo modo, talvez bastasse, no estabelecimento dos meios pelos quais se dá o processo de apreensão dos inteligíveis abstraídos da matéria, esse itinerário ritmado através dos três graus do intelecto humano assim definidos: material; em hábito; em ato. Entretanto, Ibn S÷nā apresenta mais dois graus que devem ser entendidos em sua relação com a inteligência agente. São eles: o intelecto adquirido (u\Ÿc¯«[ −£˜«[) e o intelecto sagrado (Áv£«[ −£˜«[). Antes de mais nada, deve se ter em mente que, no processo de passagem da potência ao ato, é preciso que haja um intelecto sempre em ato que opere essa passagem. Ibn S÷nā, – seguindo Al-Fārāb÷ – também entende que esse intelecto sempre em ato que opera a passagem da potência ao ato no intelecto humano é uma das inteligências separadas, – mais precisamente a décima inteligência pura e separada da matéria – que ilumina o intelecto humano para que este consiga a abstração destituída de todo laço material. Vejamos uma das passagens a esse respeito: “Às vezes a relação é uma relação do que está em ato absoluto. Isso consiste em que a forma inteligível está presente no intelecto enquanto este o considera em ato; então ele conhece em ato e sabe que o conhece em ato. O que veio então ao ato nele chama-se intelecto adquirido; e ele só se chama intelecto adquirido porque nos será claro 166 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho em breve que o intelecto em potência só passa ao ato por causa de uma inteligência que está sempre em ato, e quando o intelecto em potência se une por um certo modo de junção a esta inteligência que está em ato, uma espécie das formas que são adquiridas do exterior se imprime nele. Esses são ainda os graus das faculdades que se chamam intelectos especulativos e, no intelecto adquirido está completado o gênero animal e a espécie humana que pertence a ele; e aí a inteligência humana já está assimilada aos princípios primeiros de toda existência.” 224 Assim, o intelecto adquirido pode ser entendido, num primeiro sentido do seguinte modo: “toda vez que ele quiser, ele pode se conectar à inteligência agente por um modo de conexão na qual é concebido nele esse inteligível, sem que este inteligível esteja presente em seu espírito e seja sempre concebido em ato em seu intelecto, não como este inteligível era antes da instrução.” 225 Ou seja, atualizado um inteligível, a alma como se soubesse a via pela qual pode acessá-lo na inteligência agente novamente tal inteligível, o faz. Isso não significa que a alma o deva conhecer novamente mas sim que o pode acessar novamente, pois tal inteligível em ato já fora adquirido. Assim sendo, o que fora atualizado e fora denominado, a princípio, de intelecto em ato, só o é em relação ao primeiro aprendizado, mas não o é em vistas do uso deste inteligível. Sendo assim, o que se chamou de intelecto em ato tornar-se-ia intelecto em potência em vista da atualização que faz do uso do inteligível sempre em ato que está na inteligência agente. É por isso que nos diz Ibn S÷nā: “este modo de intelecto está em ato por uma atualização, mas ele é a potência que vem ao ato na alma para que a alma conheça por si o que quer conhecer, pois quando a alma quer, ela é conectada – à inteligência agente – e nela desborda a forma inteligível; e essa forma é, na verdade, o intelecto adquirido, enquanto que essa potência é o intelecto em ato em nós enquanto ele tem a conhecer. E quanto ao intelecto adquirido, ele é o intelecto em ato enquanto é uma perfeição.”226 O intelecto adquirido pode ser entendido no sentido de que o conhecimento consiste na atualização provocada por uma forma inteligível vinda do exterior e dele deve se entender o próprio inteligível, atuado e infundido pela 224 IBN SINA, Kit¡b al-Nafs ,trad. Bakós, op. cit.,p.I, 5, 34. Ibid, V, 6, 247. 226 Ibid, V, 6, 247 – 248. 225 167 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho inteligência agente.227 Assim, a diferença que se estabelece entre o intelecto em ato em nós e o intelecto adquirido, é que este último é a perfeição da conexão entre o intelecto em ato e a inteligência agente. Assim, “enquanto o intelecto em ato é uma faculdade, o intelecto adquirido é uma perfeição”.228 Esta perfeição significa que a atualização dos inteligíveis no homem é, de certo modo, sempre potência pois só pode ser assegurada pelo desbordar constante da luz da inteligência agente no intelecto do homem para que este seja capaz de atingir a abstração última e perfeita dos inteligíveis sem nenhuma ligação com a matéria. Não é demais lembrar que Ibn S÷nā estabelece quatro graus de abstração: pelos sentidos externos, pela faculdade formativa, pela estimativa e pelo intelecto. No último caso, o homem não tem condições de realizar isoladamente o processo de abstração absoluta a não ser pelo desbordar da luz da inteligência agente que lhe é externa e está localizada na esfera da Lua. O grau do intelecto adquirido sublinha a dependência da esfera sublunar à esfera lunar ao mesmo tempo que liga a o homem ao cosmos – que tem a inteligência como princípio – de modo inequívoco, através de sua mais alta faculdade: o intelecto. De certo modo, a condição de atualização dos inteligíveis na alma do homem já estava garantida no estabelecimento do último nível de seu intelecto – o intelecto em ato –, mas o intelecto adquirido sublinha a intervenção inexorável da iluminação da inteligência agente nesse processo de apreensão. Por isso, a cada vez que o inteligível, já conhecido, ressurge na alma, ocorre essa conexão da forma sempre em ato da inteligência agente com o intelecto humano. Numa metáfora poderíamos dizer que estaríamos diante da própria visão do toque de luz da forma inteligível sempre em ato da inteligência agente com o intelecto humano que, tocado, passa ao ato e conhece, então, tal inteligível. Como disse Gardet, “ é o intelecto humano que totalmente iluminado pela inteligência agente, separada, torna-se espelho perfeito das formas inteligíveis.”229 Com certeza não se trata de uma volta ao conhecido no sentido da reminiscência mas, com mais propriedade, trata-se de um retorno ao princípio conhecido. Nesse sentido, pode se entender que o intelecto adquirido, em última análise, é comum a todos os homens pela própria realização da intelecção. No entanto, 227 GARDET, L. La pensée religieuse d’Avicenne. Paris: Vrin, 1951, p. 115: “Para Ibn S≈n¡, ao contrário de Al-F¡r¡b≈, (…) o intelecto adquirido não é o intelecto humano enquanto potência atualizada, mas é recebido por este último.” 228 GOICHON, A.M. Introduction a Avicenne – son épître des définitions. Paris: Desclée, 1933. p. 46. 229 GARDET, op. cit. p. 115 168 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho ao se afirmar que “é comum a todos os homens” com isto não se afirma que o grau em que ele se dá seja o mesmo para todos os homens. Por exemplo: nos homens comuns, o aprendizado é um meio para a apreensão dos inteligíveis e, portanto, para a atualização do intelecto. Ibn S÷nā observa que no exercício do aprendizado há distintos graus de aptidão entre os alunos: uns são mais rápidos na apreensão do conhecimento, enquanto outros são mais lentos. Essa aptidão – chamada por Ibn S÷nā de “intuição intelectual” (vo/ ¬ads) 230 – não sendo observada de modo equânime em todos os homens, é passível de ser classificada segundo sua variação, podendo ser mais ou menos ativa. Desse modo, admitindo-se que a variação dos graus da aptidão para a recepção dos inteligíveis tem sua causa na variação da intensidade da intuição intelectual, não é difícil perceber que Ibn S÷nā não encontra nenhum obstáculo para afirmar que tal aptidão levada a um grau extremo, torna o homem que a possui, um homem com qualidades bastante distintas das qualidades do homem comum. Dessa maneira, abre-se a possibilidade de haver uma conexão entre o intelecto humano e a inteligência agente sem que o aprendizado ou outro meio utilizado pelo homem comum seja o meio com que tal homem se conecte com as formas inteligíveis. Resume Ibn S÷nā: “ Essa aptidão aumenta, às vezes, num certo homem de modo que, para se conectar à inteligência agente, ele não tem necessidade de muitas coisas, nem de educação, nem de ensinamento; ao contrário, ele é forte na aptidão. É por essa razão que a segunda aptidão vem ao ato nele, melhor, como se ele conhecesse toda coisa por si mesmo. E esse é o mais alto dos graus desta aptidão. E essa disposição da inteligência material deve ser chamada inteligência sagrada, mas essa disposição é do gênero da inteligência hábito, salvo que a inteligência sagrada é muito elevada. Ela não é disso que todos os homens possuem em comum.” 231 230 GOICHON, A.M., Lexique de la langue philosophique d’Ibn Sina. Paris: Desclée, 1938 pp. 65 – 66, o termo vn ®ads é definido como “intuição intelectual” – em oposição à “intuição sensível” – . A ®ads é entendida como um tipo de lampejo de compreensão que se produz no espírito, em que se descobre subitamente uma verdade até então não percebida. Este caráter repentino da ®ads não exclui um certo tipo de movimento para atingir o termo médio quando o problema é colocado ou para se atingir o termo maior quando o termo médio é obtido. No entanto, não se trata do movimento progressivo mais próprio da cogitação que caberia melhor ao termo ºz¨Ÿ /fikra (idéia - reflexão) que é um movimento deliberado de busca. 231 RAHMAN V, 6, 248. 169 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Assim, o intelecto sagrado se apresenta não como um intelecto no mesmo sentido da tríplice classificação inicial – material, em hábito e em ato – mas como um grau extremo de conexão, aliás, o mais alto grau possível no processo de apreensão das formas inteligíveis pelo homem, formas já presentes na inteligência agente. Neste sentido também o intelecto sagrado se dá segundo as mesmas condições do intelecto adquirido, sendo apenas de maior alcance. Em certo sentido, os dois se aproximam bastante e Goichon232, ao analisar a hierarquia das faculdades apresentadas por Ibn S÷nā, chegou mesmo a identificá-los como sinônimos. No intelecto sagrado deve-se ter em conta que seu modo de apreensão difere do aprendizado convencional porque é atualizado de modo imediato, isto é, sem ensinamento ou paulatino aperfeiçoamento do entendimento. Por outro lado, a apreensão pelo intelecto sagrado continua mediada pela intuição intelectual e pelo silogismo. A referência a esse tipo de conhecimento imediato deve ser entendido no sentido de que ele se dá sem a mediação da instrução convencional de transmissão dos termos da proposição através de um mestre ou de um aprendizado comum mas, o processo permanece mediato enquanto se realiza, necessariamente, através dos elementos do silogismo por meio da intuição intelectual. Nesse processo, a inteligência agente pode infundir tanto o termo médio que movimenta o silogismo permitindo a conclusão, ou então, infundir a própria conclusão. Numa primeira afirmação, Ibn S÷nā faz uma distinção entre dois modos de apreensão das formas inteligíveis ao dizer que o termo médio pode vir de dois modos à alma: ou pela intuição intelectual – em que a alma descobre por si mesma o meio termo – ou pelo ensinamento. Ora, mas não são também os princípios do ensinamento intuições intelectuais descobertas pelos mestres dessas intuições intelectuais? Portanto, todo o conhecimento só pode se dar por meio da intuição intelectual, seja ela mais lenta ou mais rápida, seja ela já conhecida por alguns ou não. No que tange ao Kitāb Al-Nafs parece bastante clara a distância de um sistema de iluminação mística em Ibn S÷nā, a não ser que o entendamos como uma espécie de iluminação racional que opera por silogismos. Nessa medida, todo conhecimento das formas inteligíveis, inclusive o do intelecto sagrado, é intuição 232 GOICHON, op. cit. p.45 “ A hierarquia das forças compreende 26 graus, desde a mais alta forma da inteligência até as qualidades dos corpos simples. O intelecto adquirido ou intelecto sagrado é servido por todas as outras; abaixo dela vem o intelecto em ato, servido pelo intelecto em hábito, servido, ele mesmo, pelo intelecto em potência (…) em homens raros, enfim, cuja preparação chega à perfeição, o intelecto adquirido merece ser chamado sagrado.” 170 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho intelectual através do silogismo. Em suma, podemos entender o intelecto sagrado como um largo espectro do intelecto adquirido mas, pela sua intensidade que não se encontra no homem comum, Ibn S÷nā o nomeia intelecto sagrado. Não se trata de haver modificação da qualidade entre os dois, mas de intensidade. Não sendo comum a todos os homens, o intelecto sagrado, é característico apenas dos que possuem raras qualidades na alma. Estas, por sua vez, são refletidas em sua conduta. Os atos desse homem são guiados por essa régia conexão e sua faculdade prática, recebendo esses influxos, é dirigida por tais princípios e não o guiam as faculdades hierarquicamente mais baixas da alma, como por exemplo, os sentidos externos, os sentidos internos, as faculdades motoras, os desejos e as faculdades vegetais. O contato desse homem de alma nobre com a inteligência agente é mais intenso e mais constante, sem que com isso transgrida qualquer premissa do entendimento natural da faculdade teórica da alma racional. Na medida em que todo o entendimento somente é possível pela cadeia do silogismo, Ibn S÷nā ao salvaguardar tais princípios e não pedindo jamais que os abandonemos para entendermos os fatos surpreendentes realizados por alguns homens, fundamenta logicamente a possibilidade de haver tal caso: µ¯ ‰s„ ²½¨¿ ²[ [wÉ ²½¨¿Ÿ Æ\Ÿˆ«[ ºv„^ Ÿ´«[ v¿Ì¯ \´«[ Å«É »À¬£˜«[ Âu\_°«\^ ª\ˆb×[ ºv„¼ \¸« ×½_£ Å´—[ G \~vn −˜c„¿ ²[ ÆÁ„ −§ ÁŸ ª\˜Ÿ«[ −£˜«[ µ¯ −£˜«[ ÁŸ Ác«[ y½ˆ«[ ¹ÀŸ ±bzb¼ µ¯ \_¿z£ \¯É¼ »˜Ÿu \¯É ª\˜Ÿ«[ `Àbzc^ −^ \¿vÀ¬£b × \¯\by[ »˜Ÿu (...) Å‘½«[ u¼vo«[ Ŭ— −°c„¿ Ŭ—Ç −^ º½_´«[ µ¯ ]z‹ [x·¼ ¶x· Á°b ²[ Å«¼Ù[¼ G º½_´«[ ½£ Ŭ—Ç Á·¼ G »Àv£ º½£ º½£«[ . »À³\³Û[ ½£«[ `b[z¯ Ocorre, então, dentre os homens um indivíduo com a alma fortificada por uma grande pureza e pela estreita junção com os princípios intelectuais, até que se inflame de uma intuição intelectual, quero dizer, recebendo os princípios intelectuais da inteligência agente em todas as coisas, e que nele se imprimem as formas que estão na inteligência agente, seja de um só golpe, seja quase de um só golpe, não de uma maneira figurativa, mas sim seguindo uma ordenação que inclui os termos médios (...) e isso é um tipo de profecia, ou melhor, a mais alta das faculdades da profecia. E esta faculdade é a mais digna de ser chamada faculdade sagrada, e ela é o mais alto grau das faculdades humanas. 233 233 RAHMAN, V, 6, 250. A referência final de que isto é “um modo” de profecia nos leva a perguntar quais seriam, então, os outros. A título de indicação deveríamos nos remeter aos capítulos precedentes do Kitab al-Nafs em que encontramos mais dois modos de profecias ligados a duas outras faculdades da 171 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho 5.4 Al ¦azāl÷, o batedor Quando, no período medieval, alguns escritos de Al-¦azāl÷ foram traduzidos do árabe para o latim, os ocidentais o aclamaram como um filósofo partidário de Ibn S÷nā e de Al-Fārāb÷.. Contrariamente, na história do pensamento islâmico, Al-¦azāl÷ foi considerado o inimigo mais fervoroso da falsafa e um dos mais importantes teólogos do islamismo. Não bastasse isso, pelas suas práticas ascéticas, Al¦azāl÷ aproximou-se dos sufis e muitos viram-no, ao final da sua vida, como um místico. Esta trípice modulação explica o porquê é comum os livros o classificarem como um importante “filósofo, teólogo e místico.” Quais as razões dessas controvérsias? Afinal, em que medida a razão, o dogma e a meditação forjaram o pensamento dessa personalidade tão polêmica da história do pensamento no Islām ? Antes de tudo, porém, importa registrar que existem muitas razões para Al-¦azāl÷ não figurar entre os filósofos, principalmente porque ele não foi um filósofo – no sentido estrito do termo – e condenou as principais teses metafísicas de Al-Fārāb÷ e de Ibn S÷nā. Mas, por outro lado, existem também inúmeras razões para que ele figure entre os filósofos, quanto mais num trabalho que se propõe a ser uma introdução à falsafa. Uma da razões é a de que Al-¦azāl÷ utilizou em algumas de suas obras, os métodos e os princípios da filosofia, ainda que fosse para criticá-la. Por esse motivo importa sublinhar suas relações no que concerne à falsafa. Afinal, “o maior personagem na história da reação islâmica ao neoplatonismo é Al-¦azāl÷: jurista, teólogo, filósofo e místico.(!)”234 Como bem assinalou Hernandez, até aquele momento “a falsafa realizara uma interpretação peculiar da sabedoria alcorânica e que, de certo modo, representava uma substituição da teologia do kalām por uma cosmovisão peripatética alma: a faculdade imaginativa e a faculdade motora. O modo de profecia associado à faculdade motora permite, por exemplo, que o homem fortificado nesta faculdade interfira na matéria e na ordem da natureza. Quanto à profecia ligada à faculdade imaginativa destacamos que, sem ela, os profetas não poderiam, por exemplo, criar alegorias que mostram de uma maneira simbólica as verdades intelectuais que podem lhe chegar pelo intelecto sagrado. Os três modos de profecia não são excludentes e podem atuar em conjunto num mesmo homem, inserindo-se em três níveis: o sensível, o imaginativo e o intelectual 234234 FAHKRY, Histoire de la philosiohie islamique, op.cit., p. 241. 172 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho neoplatonizada”235 que suscitou uma reação antifilosófica do kalām através de Al¦azāl÷. Imbuído pela convicção de que homens de reta moral poderiam levar de novo à restauração da fé, Al-¦azāl÷ dedicou sua vida e sua obra a revivificar o Islām por meio do crescimento da experiência religiosa de todos os crentes. Isso não poderia ser realizado somente pelo kalām e por seus meios, já que não se tratava somente de debater verdades mas, também, de realizar uma verdadeira transformação de vida que fizesse viver os princípios teológicos na alma dos crentes. Outro fator que deve ser levado em conta nesse período é que o cenário político do séc.XI d.C./VH. no Islām sofrera profundas mudanças desde os tempos de ouro do califado Abássida. Desde a chegada dos turcos seljúcidas ao poder em 1055 d.C., a era Abássida já havia entrado em decadência e, apesar do califado continuar existindo, na prática, o poder estava, de fato, nas mãos do sultão turco. O ensino havia adquirido um outro impulso pelo surgimento das “madrasas”, isto é, escolas que se assemelhavam ao que viriam a ser as universidades ocidentais. Nesse cenário, a teologia ganhou mais força, assim como os sufis. De Libera, assim resumiu esse cenário de reação teológica: “após diversos séculos de filosofismo teológico, os adversários da falsafa atacam em todas as frentes. Apoiado pelo poder seljúcida, o rearmamento intelectual sunita vê os ataques de Al-¦azāl÷ e de Sarrastani concentrarem-se naquele que é, ao mesmo tempo, o doutor dos “filósofos” e de numerosos xiitas: Avicena.”236 É nesse quadro exterior de reação antifilosófica e, interior, de busca da verdade que Al-¦azāl÷ entrou em contato com diversas vias de conhecimento de sua época. Apesar de ter deixado muitos escritos, uma das dificuldades para traçar em detalhes todo o pensamento de Al-¦azāl÷ derivou do fato da atribuição equivocada de muitas dessas obras a ele. “Bouyges em seu Essai de Chronologie (ý) lista 404 títulos”237, mas muitos eram apenas títulos compilados de listas dos quais não havia nenhum manuscrito; outros eram os mesmos escritos sob títulos diferentes. Somou-se a isso a questão de se estabelecer com certeza a autenticidade de todos os escritos, assunto que apresenta, ainda, muitas lacunas. Um dos métodos mais seguros que tem guiado as pesquisas atuais para superar essa dificuldade tem sido a tentativa de 235 HERNANDEZ, Historia del pensamiento en el mundo islamico op. cit.,p.275. DE LIBERA, A Filosofia Medieval op. cit., p. 124. 237 THE ENCYCLOPAEDIA OF ISLAM, op. cit., p. 1039. 236 173 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho matrizar o pensamento de Al-¦azāl÷ somente a partir das obras principais que estejam sob indubitável autenticidade. A sua principal e maior obra – tanto em volume como em importância – denomina-se ’I¬yā’ ‘ulým al-d÷n / Revificação das Ciências da Religião em quatro volumes que tratam dos cultos religiosos, dos costumes sociais, dos vícios e das virtudes do crente para o caminho da salvação. Nessa obra de teologia e moral, Al¦azāl÷, procurou submeter a uma larga revisão a atitude religiosa e buscar o sentido mais elevado que possa fazer penetrar a fé, em seu sentido maior, no coração dos crentes. É um dos livros mais notáveis do Islām. Quanto à sua vida, esta nos é conhecida, em boa parte, através de uma obra autobiográfica intitulada O Salvador do Erro ªØ‹«[ µ¯ x¤´°«[/ Al-Munqid min Al-Åalāl. Nessa autobiografia, escrita a poucos anos de sua morte, Al-¦azāl÷ nos conta boa parte de seu trajeto e de suas experiências em busca da verdade. Essa obra faz mergulhar nos problemas intelectuais e espirituais contra os quais ele lutou durante quase toda a sua vida. Segundo o seu próprio relato pode-se identificar quatro principais períodos em sua vida: um primeiro período de estudos em sua cidade natal; um segundo período como professor em Bagdá; um terceiro período de viagens; e o último período no qual retornou à sua cidade natal. Vejamos isso com mais detalhes. Abý ©āmid Mu¬ammad Ibn Mu¬ammad Al-Æýs÷ Al-¦azāl÷ nasceu em 1059 d.C./ 450 H. na cidade de Æýs, situada na região do Korassan, ao noroeste da Pérsia. Ainda jovem perdeu o pai que, antes de morrer, confiara a tutela dos dois filhos a um sábio sufi. Ainda jovem, Al-¦azāl÷ seguiu para Nay¹ābýr, um centro intelectual importante da região nesse período e recebeu a primeira formação nas ciências tradicionais islâmicas: Alcorão, Tradições, Comentários, Direito Islâmico e as ciências auxiliares como a Gramática e a Lexografia. Além disso, Al-¦azāl÷ teve a oportunidade de estudar com o teólogo de maior prestígio daquela época: Al-Juwajni (m.1086) Com a morte do mestre, Al-¦azāl÷ deixou a cidade quando tinha por volta de 28 anos. O segundo período importante de sua vida iniciou-se com a transferência para a cidade de Bagdá. Tendo conhecido o vizir Ni¥ām al-Mulk, fundador da universidade de Bagdá, Al-¦azāl÷ foi nomeado professor em 1091d.C./ 484H. quando tinha por volta de 31 anos. Nessa época, já era um dos mais proeminentes homens em Bagdá e, por quatro anos proferiu conferências para uma 174 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho audiência de mais de trezentos alunos. Enquanto isso, se dedicava ao estudo dos livros de filosofia. A esse tempo escreveu contra os filósofos, Maqā½id al-falāsifa / As intenções dos filósofos e o Tahāfut al-falāsifa / A Autodestruição dos Filósofos. Após aproximadamente quatro anos ensinando na escola de Bagdá, Al¦azāl÷, iniciou um terceiro momento que foi decisivo em sua vida. Buscando uma certeza interior que fosse inabalável à sua alma, entrou em profunda crise chegando a abandonar a profissão e a família. Em 1095 d.C./ 488 H., aos 36 anos de idade, partiu em busca da certeza que lhe fosse a garantia da verdade e sobre a qual pudesse testemunhar o verdadeiro conhecimento. Durante dez anos, vestido do hábito dos sufis, ele peregrinou, solitário, através do mundo muçulmano.. Apesar de o próprio Al-¦azāl÷ explicitar que razões pessoais o motivaram a sair de Bagdá, parecem ter existido motivos políticos, que igualmente teriam pesado em sua decisão. De todo modo, durante esse decênio, Al-¦azāl÷ viajou para Damasco, Jerusalém, Alexandria, Cairo, Meca e Medina. O período de peregrinação e isolamento dedicado à meditação e às práticas espirituais dos sufis se encerrou por volta de 1105 d.C./ 498H. quando Al¦azāl÷ tinha por volta de 46 anos de idade. O último período de sua vida durou pouco mais de 6 anos. Neste, Al¦azāl÷, depois de ter superado muitas de suas dúvidas, retornou à sua cidade natal, ensinando alguns anos mais em Nay¹ābýr. Foi nesse último espaço de tempo que compôs sua obra autobiografica Al-Munqid min Al-∞alāl / O Salvador do Erro quando tinha por volta de 50 anos. Al-¦azāl÷ morreu em 1111 d.C./ 505H. deixando gravadas em sua busca pela verdade, passagens como esta: “O verdadeiro conhecimento é aquele pelo qual a coisa conhecida se descobre completamente diante do espírito, de modo que nenhuma dúvida subsista a seu respeito e que nenhum erro a possa obscurecer. É o grau no qual o coração não saberia admitir e nem mesmo supor a dúvida. Todo saber que não comporta esse grau de certeza é um saber incompleto, passível de erro.” 238 Enquanto ensinava em Bagdá, Al-¦azāl÷ escreveu a obra Maqā½id al-falāsifa / As intenções dos filósofos, na qual se propôs a expor as idéias dos filósofos, principalmente, de Ibn S÷nā e de Al-Fārāb÷, com o intuito de refutá-las numa obra posterior. As intenções dos filósofos foi a principal responsável pela confusão que se deu no Ocidente medieval latino quando Al-¦azāl÷ foi classificado como um filósofo 238 CORBIN , Histoire de la philosphie islamique, op.cit., p.256 175 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho árabe juntamente com Al-Fārāb÷, Al-Kind÷ e Ibn S÷nā. O motivo da confusão foi bastante simples: a obra em questão foi traduzida do árabe para o latim sem o respectivo prólogo no qual Al-¦azāl÷ explicava justamente o seu objetivo de apresentar as idéias filosóficas com a maior clareza possível para criticá-las depois. Sem esse alerta, os leitores foram levados a concluir que Al-¦azāl÷ seria partidário, e não crítico, das idéias filosóficas que expunha. Fahkry observa que “esta exposição das doutrinas do neoplatonismo árabe é tão habilmente escrita que um leitor negligente concluiria que se trata da obra de um neoplatônico clássico, tal como concluíram os doutores escolásticos do séc.XIII d.C.” 239. Vale observar também que a fidelidade é tal, que são poucas as diferenças entre essa obra de Al-¦azāl÷ e o Livro das Ciências / Danesh Nama de Ibn S÷nā. A segunda obra que completava, em parte, a crítica de Al-¦azāl÷ aos filósofos denominou-se Tahāfut al-falāsifa / A Autodestruição dos Filósofos, na qual são enumeradas vinte teses que, segundo ele, mostrariam as contradições em que estariam imersos os que professavam as teses dos filósofos. O termo aŸdŸ\¸b/ tahāfut, aliás, apresentou algumas dificuldades de tradução mas, em linhas gerais, pode ser entendido como precipitação ou ruína, no sentido daquilo que tomba por sua própria inconsistência. Por essa razão, às vezes encontramos o termo traduzido por “incoerência”, apesar de este conceito não ser adequado pois, não contempla de maneira explícita a noção de ruína que está presente no termo tahāfut. Dos vinte pontos que Al-¦azāl÷ considerou como falsos na doutrina dos filósofos, três se destacam por irem diretamente contra as afirmações do Alcorão, o que o leva a condenar os filósofos por impiedade. Os três pontos em questão são os seguintes: a afirmação, por parte dos filósofos, da eternidade do mundo, do não conhecimento por Deus dos particulares e da não–ressurreição dos corpos. Em seu fervoroso ataque, Al-¦azāl÷ negou a eternidade do mundo – assim como fizera AlKind÷ – e a processão plotiniana das inteligências. Também negou que a filosofia fosse capaz de demonstrar a unicidade e a incorporeidade divinas. O que chamou a atenção nessa crítica de Al-¦azāl÷ contra a filosofia foi foi o fato de ele ter adotado os próprios métodos da filosofia para atingir seu objetivo. Essa estratégia revelou a dificuldade inerente de se utilizar a lógica e a dialética racional com o intuito de demonstrar a insuficiência dos argumento 239 FAHKRY, Histoire de la philosiohie islamique,op. cit.,p.246. 176 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho filosóficos que se baseiam na lógica e na dialética racional.(!) O manifesto paradoxo em que se enredou Al-¦azāl÷ fez com que ele, em sua busca da verdade, nunca tenha sido tão filósofo quando ao combater os filósofos. Foi para mostrar tal contradição que Ibn Ru¹d escreveu, anos depois, uma obra em resposta ao Tahāfut de Al-¦azāl÷ que se intitulou Tahāfut al-Tahāfut, isto é, a Autodestruição da Autodetruição... (!) Na polêmica em torno do Tahāfut de Al-¦azāl÷, alguns autores julgaram que essa obra teria sido um golpe mortal à filosofia, naquela época. Essa opinião, no entanto, esteve longe de ser unânime. Segundo Corbin “pareceria ridículo dizer dessa crítica, como foi dito no século passado, que ela trouxe um golpe da qual ela [filosofia] não pode se recuperar no Oriente.”240 Certamente, Corbin se referiu à opiniões como a de Munk, quando este afirmou que Al-¦azāl÷ teria desferido “à filosofia um golpe da qual ela não pode mais se recuperar no Oriente, tendo sido na Espanha que ela atravessou ainda um século de glória e encontrou um ardente defensor no célebre Ibn Ru¹d.”241 Também contra essa visão de que a filosofia não teria mais continuado no Oriente, após a crítica de Al-¦azāl÷, Badawi argumentou para mostrar que todas as tentativas de Al-¦azāl÷ para se opor à filosofia aristotélica estiveram destinadas ao fracasso pois nem a Autodestruição dos Filósofos e nem os outros escritos polêmicos contra a filosofia teriam sido capazes de diminuir a força do pensamento aristotélico no mundo muçulmano, ao menos por mais de trezentos anos após a morte de Al-¦azāl÷. Para justificar essa posição, Badawi cita alguns grandes nomes no Oriente que se referem ao período que se estende três séculos depois de Al-¦azāl÷ como, por exemplo, Abý al-Barakāt e Fahkr al-Din al-Razi , e afirma – de modo contundente – que esse seria um exemplo “para refutar esta opinião estúpida e ridícula segundo a qual Al¦azāl÷ desferiu um golpe mortal na filosofia no Islām! Não sei qual imbecil emitiu pela primeira vez esta bobagem, repetida com estardalhaço pelos pretensos historiadores modernos e contemporâneos da filosofia muçulmana.”242 De todo modo, foi perceptível o esmorecimento da falsafa após Al¦azāl÷. Uma posição mais comedida, talvez possa ser encontrada em Watt que reconhece que “depois do criticismo dos filósofos não há mais grandes nomes no movimento filosófico no Islām oriental, mas não está claro o quanto do declínio da filosofia é devido ao criticismo de Al-¦azāl÷ e o quanto é devido a outras causas. Sua 240 CORBIN, Histoire de la philosiohie islamique,op.cit., p. 255. MUNK, S. Melanges de philosophie, op.cit.,p.382s. 242 BADAWI, Histoire de la philosophie en Islam op.cit., p.84. 241 177 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho continuidade no Islām ocidental, onde o Tahāfut também foi conhecido, sugere que outras causas também foram importantes.”243 Ao se acompanhar a trajetória pessoal de Al-¦azāl÷, pode-se verificar que a crítica endereçada aos filósofos não é toda a sua preocupação mas é, também, uma das estações de sua longa viagem em busca da verdade, como ele próprio relata no Al-Munqid min Al-∞alāl / O Salvador do Erro. Pelo seu caráter autobiográfico, essa obra foi, muitas vezes, chamada de uma versão árabe das Confissões de S. Agostinho. Escrita poucos anos antes de sua morte – no último período de sua estada em Nay¹ābýr – Al-¦azāl÷ passou em revista muitas de suas experiências com a verdade procurando-a nas opções que o meio cultural da época lhe oferecia. Afinal, nesse período tanto a filosofia quanto a teologia e a mística islâmicas já haviam se estruturado a ponto de oferecer um quadro mais aperfeiçoado e acabado a Al-¦azāl÷ e a seus contemporâneos. A verdade – diz Al-¦azāl÷ – tem que estar em algum desses grupos significativos culturalmente pois, do contrário “não haverá expectativa de se chegar a ela”.244 Isso explica, em parte, o porquê Al-¦azāl÷ criticou não só a falsafa, mas também outros sistemas que se propunham ser vias de acesso à verdade que se apresentavam em sua época. Mas passemos a verificar como o próprio Al-¦azāl÷ testemunha suas intenções ao longo de O Salvador do Erro. Em sua divisão mais geral, a obra constitui-se de uma breve introdução e um discurso sobre os procedimentos da sofistica. Al-¦azāl÷ estabelece diferentes classes de buscadores da verdade discorrendo sobre a filosofia e seus ramos tais como: lógica, metafísica, política e ética. Além disso analisa a teologia, a suposta infabilidade dos imans, os sufis, a profecia e, por fim, explica o motivo pelo qual retorna a ensinar no últimos anos de sua vida. Inicialmente, Al-¦azāl÷ alude ao fato de que a diversidade de religiões e seitas nos confundem entre o que é verdadeiro e o que não é verdadeiro, num cenário que “um mar insondável no qual naufraga a maioria e apenas poucos se salvam.”245 Ao longo de sua vida, confessa que o espírito da investigação e a sede por conhecer as verdadeiras naturezas das coisas sempre o acompanharam desde sua juventude e permaneciam presentes até aquele momento em que ele já passava dos cinquenta anos. Em todo o seu trajeto, percorrendo as mais variadas escolas e mestres, Al-¦azāl÷ diz de 243 THE ENCICLOPAEDIA OF ISLAM, op. cit., vol.II p.1041. ALGAZEL, Confesiones, Madrid: Alianza Editorial, 1989,p.38. 245 Ibid, p.28. 244 178 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho seu arrojo ao penetrar profundamente em cada uma das crenças e seitas que conheceu, “tratando de averiguar os segredos da doutrina de cada grupo para distinguir entre o veraz e o mendaz e entre aquele que segue a tradição ortodoxa e o herege que introduz novas doutrinas.” 246 Nesta passagem podemos ver como o próprio Al-¦azāl÷ definiu sua determinação: “Não deixei a nenhum esotérico antes de querer vislumbrar a sua doutrina, nem a um literato sem desejar conhecer o resultado de sua crença, nem a um filósofo antes de intentar saber o cume de sua filosofia, nem a um teólogo sem esforçar-me por examinar o limite máximo de sua teologia e de sua dialética, nem a um sufi sem antes estar ávido de conhecer o segredo do sufismo, nem a um piedoso sem observar o que resultava de seus atos de devoção, nem a um incrédulo negador de Deus sem espiar para além disso para me aperceber dos motivos de sua ousada postura.” 247 A partir disso, Al-¦azāl÷ declarou que passou a se guiar na direção de buscar primeiramente o conhecimento da verdadeira natureza das coisas. Mas para isso, entendeu que deveria buscar, antes de tudo, a verdadeira natureza do conhecimento, isto é, “ver no que este consiste”248. Como se antecipasse a dúvida cartesiana, a parcial conclusão de Al-¦azāl÷ sobre esta que deveria ser a pedra fundamental de seu caminho é a de que ele só poderia aceitar como verdadeiro um conhecimento que lhe fosse de tal modo evidente, que nenhuma dúvida pudesse derrubá-lo, pois o conhecimento certo só poderia ser aquele no qual o que é conhecido o é de tal modo que não deixaria lugar a nenhuma dúvida, nem ilusão e nem erro, e que a inteligência não pudesse sequer supor que aquilo não fosse verdadeiro. Tudo aquilo que não se pode conhecer desse modo e do qual não é possível ter esse mesmo tipo de certeza não pode fornecer garantia e tampouco segurança da verdade sendo, pois, um conhecimento incerto sobre o qual não seria possível se apoiar. A postura de Al-¦azāl÷, carregando em seu íntimo a dúvida a respeito do verdadeiro conhecimento das coisas, terminaria por arrastá-lo a uma crise profunda. Ora, mas quais seriam os tipos de conhecimentos que temos acesso e quais os que podemos considerar verdadeiros? Al-¦azāl÷ responde essa questão na segunda parte de O Salvador do Erro, instaurando uma dúvida metódica que guarda 246 Ibid, p.29. Ibid, p.29. 248 Ibid, p.30. 247 179 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho muita semelhança com as passagens em que Descartes trata de pôr em dúvida os meios de apreensão da realidade. Primeiramente, Al-¦azāl÷ parte da constatação de que aquilo que conhecemos ou nos chega através da apreensão dos sentidos ou através dos primeiros princípios que estão no intelecto. Logo, para se atingir um conhecimento certo dever-se-ia partir desses dois tipos de apreensão e investigar em que medida o verdadeiro conhecimento com eles se relaciona, aceitando-os como fontes de verdade desde que nos fosse evidente e seguro que esses tipos de conhecimento não fossem passíveis de erro. Nos diz Al-¦azāl÷: “imediatamente passei a dedicar uma grande atenção em considerar os dados sensíveis e os primeiros princípios e a ver se me era possível colocá-los em dúvida.”249 Assim, a primeira certeza que Al-¦azāl÷ descarta (!) é quanto à segurança e à verdade dos dados sensíveis, nos quais não se pode confiar totalmente. Afinal, como poderíamos confiar nos dados dos sentidos se a visão, que é o mais excelente dos órgãos dos sentidos, ao contemplar uma sombra qualquer vendo-a parada e imóvel, julga equivocadamente que não há naquela sombra nenhum movimento? No entanto, depois de algum tempo, quando voltamos a observar a mesma sombra, a vemos em outra posição e concluímos que, movendo-se pouco a pouco, houve um movimento imperceptível aos nossos sentidos, o que nos leva a concluir que a sombra nunca esteve em repouso apesar de nossa visão não ter sido capaz de apreender esse movimento. Engano semelhante ocorre quando vemos pequenas estrelas que pensamos ser “do tamanho de um dinar”250 enquanto, contrariamente, as demonstrações geométricas provam que elas são maiores do que a Terra. “Sobre estes e outros dados sensíveis e semelhantes, decide o árbitro do sentido, mas o árbitro da razão os declara falso e enganoso de um modo que não admite apelação.”251 Sendo certo, pois, que não podemos confiar totalmente nos dados sensíveis, podemos pensar que talvez esta confiança que buscamos deva ser possível somente quanto aos inteligíveis pois estes são da ordem dos primeiros princípios como, por exemplo, que “dez é mais do que três; que a afirmação e a negação não são possíveis sobre uma mesma coisa; e que tampouco pode algo ser ao mesmo tempo criado e eterno, existente e não existente, necessário e impossível.”252 Mas surge uma dificuldade: mesmo que confiássemos nos dados inteligíveis dos primeiros princípios, 249 Ibid, p.33. Ibid, p.33. 251 Ibid, p.33. 252 Ibid, p.33. 250 180 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho ainda assim a nossa certeza não poderia ser dada como uma certeza absoluta pois os próprios dados sensíveis objetariam quanto a essa nossa confiança, visto que não haveria garantias de que tal confiança depositada nos dados do intelecto e dos primeiros princípios não fossem semelhantes à garantia que julgavamos ter nos dados sensíveis, a qual se mostrou insustentável pelo juízo da razão. Da mesma maneira como o árbitro da razão invalidou o julgamento do árbitro do sentidos, o que nos garantiria que não haveria um outro árbitro superior ao árbitro da razão que invalidasse a nossa confiança nos dados dos primeiros princípios? Valendo-se do argumento segundo o qual a ausência de prova não é prova de ausência, Al-¦azāl÷ afirma: “que essa outra percepção além da razão não tenha aparecido não prova que seja impossível sua existência.” 253 Nosso pensador se põe ainda mais perplexo ao comparar os dados sensíveis e intelectuais com os dados que nos chegam através dos sonhos. É notório que ao sonharmos, muitas vezes, temos confiança e certeza absolutas naquilo que sonhamos como se fosse a própria realidade mas, abruptamente, acordamos e vemos que todas aquelas imagens e cenas não possuíam nenhum fundamento crível como o que temos no estado de vigília. Qual seria a garantia, também, que esse estado de vigília, no qual atestamos como absolutamente certos os dados que nos chegam pelos sentidos e pelo intelecto, não possa ser um estado sujeito a ser surpreendido por um outro estado que invalidasse nossas certezas, do mesmo modo que o estado de sonho é surpreendido e invalidado pelo estado de vigília? Se isso ocorresse e “se me sobreviesse esse estado, estaria certo de que tudo que concebi com minha razão seriam imaginações inúteis.”254 Sob esse verdadeiro desmoronamento das certezas, não surpreende que Al-¦azāl÷ entrasse em profunda crise. Sua dúvida, parecendo ter ultrapassado os limites, limitava-o e, nesse estado, perdera até mesmo a condição de raciocinar. Mas ele logo superaria a crise. Após chegar ao ápice da descrença, Al-¦azāl÷ nos relata: “agravou-se, pois, essa enfermidade, e passei cerca de dois meses em um estado de ceticismo, ainda que não professasse explicitamente tal doutrina, até que Deus me curou daquela enfermidade e recobrei a saúde e o equilíbrio voltando a aceitar os primeiros princípios na confiança de que estavam a salvo do erro e de que havia 253 254 Ibid, p.34. Ibid, p.34. 181 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho certeza neles.”255 Nota-se, pois, que a passagem ocorrida da dúvida demolidora de todas as certezas para a confiança nos dados dos primeiros princípios é realizada pela intervenção da luz divina que, em última análise, é a garantia da verdade dos dados inteligíveis. Vejamos como o próprio Al-¦azāl÷ nos relata esta passagem: “(...) este fato não foi fruto de um raciocínio ordenado nem de um discurso metódico mas de uma luz que Deus colocou em meu peito, luz que é a chave da maior parte dos conhecimentos. Aquele que crê que o desvelamento da verdade se realiza por meio de raciocínios bem dispostos, negligencia a imensa misericórdia divina.”256 Depois de ver restabelecida a sua confiança nos primeiros princípios sustentada em Deus como o mais extremo garante da verdade, Al-¦azāl÷ passa a verificar as diversas classes de pesquisadores e buscadores da verdade. “Quando Deus me curou com sua virtude e ampla generosidade vi que os que buscam a verdade podiam resumir-se em quatro grupos”257. Primeiramente, encontra-se o grupo dos teólogos que alegam ser homens de raciocínio independente e da especulação teórica. Em segundo lugar classificam-se os esotéricos, que se definem como o partidários dos ensinamentos do imam infalível, identificando neste o depositário da verdade. Em terceiro lugar, Al¦azāl÷ classifica os filósofos, que definem a si mesmos como aqueles que empregam o método da lógica e da demonstração. Por fim, encontram-se os sufis que pretendem ser os que se distinguem pela presença, visão e revelação divinas. Estabelecidas as quatro vias principais de busca da verdade se apresentavam à sua época, segundo ele – a teologia, o esoterismo, a filosofia e o sufismo –, sua intenção passa a ser, pois, a de investigar em que medida tais vias podem ser dignas de credibilidade e portadoras da verdade. Partindo do pressuposto de que a verdade deve estar presente em um destes quatro grupos, Al-¦azāl÷ se lança pelos caminhos de cada uma das quatro vias procurando chegar ao máximo dos ensinamentos de cada um dos grupos. Em seu percurso, ele inicia por analisar a teologia, em seguida a filosofia, os ensinamentos esotéricos dos que crêem na infalibilidade de um imam e, por último, pela senda dos sufis. Acompanhemo-lo, pois. Em relação à teologia, sua abordagem inicia-se com a seguinte afirmação: “tratava-se de uma ciência fiel ao seu objeto mas não ao meu”258. Em sua 255 Ibid, p.35. Ibid, p.36. 257 Ibid, p.38. 258 Ibid, p.39. 256 182 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho visão, o papel da teologia teria sido o de conservar e explicar a verdadeira mensagem da tradição ortodoxa e defendê-la das inovações trazidas pelos hereges. Segundo ele, depois de Deus ter revelado a verdade a seus servos, “logo Satanás infundiu nas sugestões dos hereges introdutores de novas doutrinas e coisas contrárias à tradição ortodoxa.” 259 Por essa razão, Deus teria suscitado o surgimento de grupo de teólogos para pôr a mostra as mentiras dos hereges. “Disto surgiu, pois, a ciência da teologia e seus representantes.”260 O papel dos teólogos teria sido, na maior parte do tempo, colocar em evidência as contradições dos adversários e reconduzir o entendimento dos fiéis à tradição ortodoxa e à interpretação correta da mensagem de Deus. Após a verdade ter sido expressa na letra do livro sagrado, a teologia teria emergido como uma forma de recondução para aqueles que perderam a simples adesão à revelação ou para aqueles que foram confundidos pelos grupos que se desviaram da verdade. Em si mesma, a teologia não pode ser maior que a própria revelação, mas é desta um instrumento de esclarecimento e, ma medida em que a teologia, surgira para ser um tipo de corretivo, não chegou, pois, a ser o fim último que Al-¦azāl÷ procurava. Apesar de “não censurar quem buscou a saúde recorrendo à teologia”261, ele mesmo confessa: “por tudo isso, no meu caso, a teologia não me foi suficiente, nem foi remédio para e enfermidade que me afligia.”262 Em seguida Al-¦azāl÷ passou a examinar a filosofia, isto é, a falsafa. Nosso autor está certo de que para identificar o erro de uma ciência é preciso conhecela profundamente. Isso explica porque “suas polêmicas contra os neoplatônicos árabes são, de longe, as mais sustentadas e as mais minuciosas.”263 Nos diz Al-¦azāl÷ que aprendeu a filosofia através dos livros, “sem recorrer a nenhum mestre”264. Seus estudos duraram aproximadamente dois anos durante os períodos livres em que ensinava em Bagdá. Depois de ter estudado os livros de filosofia durante esse período, Al-¦azāl÷ passou cerca de mais um ano meditando a respeito da filosofia, seus métodos, e refletindo sobre as ciências procurando explorar suas profundidades “até que pude ver – nos diz ele – sem nenhum gênero de dúvida, a mentira e o engano e o que tinham de verdade e falsidade.”265 259 Ibid, p.40. Ibid, p.40. 261 Ibid, p.41. 262 Ibid, p.40. 263 FAHKRY, Histoire de la philosiohie islamique,op. cit. p. 245. 264 ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.42. 265 Ibid, p.42. 260 183 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Apesar de fazer uma distinção geral dos filósofos em três grupos – os materialistas, os naturalistas e os teístas –, Al-¦azāl÷ considera-os todos infiéis e incrédulos em relação aos dogmas religiosos. Ao grupo dos que ele denomina de “materialistas” estão ligados todos os filósofos antigos que negaram a autoria de um Deus Criador do mundo. Esses, para explicar os fenômenos do mundo, sustentaram que o mundo é eterno, sendo dirigido apenas pelas leis da matéria. “Estes são os incrédulos”266 Os chamados “naturalistas”, por sua vez, são aqueles que se dedicaram a investigar a fundo as coisas da natureza e se maravilharam com elas. Dissecaram animais, estudaram plantas e, desse modo, puderam contemplar as maravilhas da criação e reconheceram que havia um Criador inteligente que as havia feito. Esses acreditaram que a distribuição dos humores tinha grande influência na subsistência das faculdades do animal e, erroneamente pensaram que também a faculdade inteligente do homem seria uma conseqüência da mistura dos elementos e, por isso, entenderam que, desaparecendo a mistura, desapareceria a alma humana. “Por essa razão chegaram a pensar que a alma morre e não volta à vida e, assim, negaram a outra vida e descartaram o céu, o inferno, a ressurreição e o juízo final, sem que houvesse, segundo eles, nem recompensa para a obediência e nem castigo para a desobediência.”267 Por terem acreditado que a vida do homem é limitada apenas ao tempo em que ele está ligado a este corpo, esses homens se entregaram às paixões baixas à maneira dos animais. Apelando, ainda para a religião, brame Al-¦azāl÷: “esses são também incrédulos porque o fundamento da fé é a fé em Deus e no último dia e eles negam o último dia, ainda que acreditem em Deus e em seus atributos.” 268 Já nos chamados “teístas” destacam-se os nomes de Sócrates, Platão e Aristóteles. Al-¦azāl÷ entende que Aristóteles refutou todos os filósofos anteriores mas não conseguiu se livrar totalmente das impiedades e heresias de suas teses. Se a esses, Al-¦azāl÷ entende que devam ser qualificados como infiéis, conseqüentemente, também, o são todos os filósofos islâmicos que os seguiram como Al-Fārāb÷. e Ibn Sina “e outros mais, ainda que nenhum filósofo islâmico tenha levado a cabo a transmissão da ciência aristotélica como esses dois homens.”269 266 Ibid, p.43. Ibid, p.44. 268 Ibid, p.44. 269 Ibid, p.45. 267 184 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho As críticas mais contundentes de Al-¦azāl÷ recaem principalmente sobre o último grupo, que concentra ao mesmo tempo, o nome de Aristóteles, Al-Fārāb÷. e Ibn S÷nā. Criticando, pois, o grupo de “filósofos teístas”, Al-¦azāl÷ entendeu que não seria necessário se importar com outros nomes de menor expressão dentro da filosofia. Em suas investidas, afirmou que toda a filosofia aristotélica transmitida por Ibn S÷nā e por Al-Fārāb÷ se resumia em três partes: uma que é infidelidade, outra que é heresia e uma última, que não se deve rechaçar. Não obstante ter analisado a matemática, lógica, física, metafísica, política e ética, em suma, as críticas de Al-¦azāl÷ centram-se mais propriamente nas teses metafísicas dos dois filósofos. Em linhas gerais, considera a Matemática e a Lógica inofensivas do ponto de vista religiosos sendo que a Física e a Metafísica “contém a maior parte das heresias e dos erros dos filósofos.”270 Certamente, Al-¦azāl÷ reconheceu o valor da matemática e da lógica e as viu como ciências neutras mas mesmo assim encontrou motivos para pregar prudência quanto à sua utilização. Primeiramente ele alerta para dois desvios que podem ser causados pela crença excessiva na matemática. O primeiro desvio é visto naqueles que se maravilham em demasia com a exatidão e a evidência dessa ciência, assim como pela clareza de suas demonstrações e transferem, erroneamente, esse mesmo maravilhamento para a filosofia como um todo, pensando que esta também seria tão certa quanto a primeira. O segundo desvio é observado nos homens que são crentes no Islām mas são ignorantes em relação às ciências e, negando-as todas, incluem a matemática mas, quando vêem a clareza desta ciência, passam a pensar que os princípios religiosos estão baseados em pouca clareza, passando até mesmo a odiar a religião. (!) Em seguida, mostrando o funcionamento básico da lógica, seu método e desenvolvimento a partir das premissas até a conclusão, e como se pode dar crédito às demonstrações pelo silogismo, Al-¦azāl÷ não se arriscou a negar sua validade mas alertou que pode haver um certo abuso dos que a valoram em demasia, negligenciando as questões religiosas. Em uma das passagens justifica: “que relação tem isso com os temas religiosos para ser negado e recusado? Sendo recusada não se produzirá outro resultado, entre os que cultivam a lógica, do que formar-se uma pobre opinião da capacidade mental daquele que nega, e ainda formar-se-á uma opinião pior de sua religião, que pretende se basear em semelhante recusa” 271 270 271 FAHKRY, Histoire de la philosiohie islamique,op.cit.,p.247. ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.49. 185 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Quanto à física, com exceção dos pontos indicados no Tahāfut, Al¦azāl÷ não vê motivos para reusá-la pois, esta, com muita propriedade, deve estudar o mundo celeste, os astros que nele existem e os corpos que estão no mundo como, por exemplo, a água, o ar, a terra e o fogo; os compostos, os animais, as plantas e os minerais. “Da mesma maneira que não é condição essencial da religião repulsar a medicina, tampouco o é de repulsar a física.272 No entanto, a condição para que estas ciências sejam admitidas é, naturalmente, que se reconheça que os estudos da física provém da Natureza e que a Natureza está submetida a Deus e não opera por si mesma, mas que em cada movimento não prescinde, em última análise, de Deus. Outra ciência abordada por Al-¦azāl÷ é a política à qual ele recruta apenas as obras que contêm máximas de conduta e, praticamente, não se opõe a elas, mas curiosamente não menciona o Tratado dos Habitantes da Cidade Ideal de AlFārāb÷. Do mesmo modo, não se opõe frontalmente às obras sobre ética, título sob o qual entende figurar as obras de aforismos morais. Admitindo que as máximas morais dos filósofos contêm muitas verdades, Al-¦azāl÷ apenas alerta que não se deve tomar posição radical em relação a isto em nenhum dos dois sentidos extremos, isto é, de recusa ou de aceitação total de tais máximas. Nesse caso, radicalizar resulta em dois erros: aceitando-as totalmente, pode se cair em contradição com a lei maior da revelação e recusando-as totalmente pode se privar de reconhecer algumas máximas verdadeiras. Na metafísica, por outro lado, Al-¦azāl÷ viu a maior parte dos erros dos filósofos, endereçando suas críticas aos dois maiores expoentes da falsafa: Ibn S÷nā e Al-Fārāb÷. A refutação mais sistemática, não obstante encontrar-se nos vinte pontos discordantes elencados no Tahāfut, é mencionada de modo resumido por Al-¦azāl÷. Das vinte teses defendidas na mesma obra contra os filósofos, dezessete resultam em heresia e três em infidelidade. Há três questões fundamentais sobre as quais os filósofos estão em desacordo com a religião. A primeira delas se refere à ressurreição dos corpos, visto que os filósofos entendem que a sobrevivência do corpo não é possível mas somente a da alma. O segundo ponto discordante refere-se ao fato de os filósofos afirmarem que Deus conhece apenas os universais e não os particulares. Para Al-¦azāl÷ essa é um impiedade manifesta, visto que o Alcorão afirma que “não Lhe passa despercebido nem o peso de um átomo nos céus ou na Terra.”273 O terceiro ponto 272 273 Ibid, p.50. Alcorão, 34,3. ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.52 186 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho de discordância refere-se ao fato de os filósofos defenderem a idéia da eternidade do mundo, enquanto a tradição da Profecia é unânime em pregar que o mundo é uma criação de Deus. Nesses três pontos a falsafa se desenhou em toda a sua originalidade, mostrando-se uma heresia religiosa já no Oriente, antes do Ocidente tê-lo feito. Mais explícita no Tahāfut, as posições de Al-¦azāl÷ contra os filósofos incluiram, entre outras, a crítica à falsafa por defender que Deus é um puro intelecto subordinando, assim, a ciência divina e suprimindo sua liberdade toda onipotente. Para Al-¦azāl÷ “Deus não é um ser essencialmente intelectual, mas uma vontade pura que opera do melhor modo que quer (...)”274 criando tudo o que existe por pura vontade e não por uma imposição de sua própria inteligibilidade como queriam Al-Fārāb÷. e Ibn S÷nā pois as coisas não são “nem necessárias e nem possíveis por si mesmas e o único que torna possíveis os seres é o puro ato da vontade divina ao criar livremente.”275 Essa crítica de Al-¦azāl÷ ao “Deus dos filósofos” se ateve, particularmente, ao sistema de Al-Fārāb÷. e de Ibn S÷nā que fizeram emanar de Deus necessariamente as diversas esferas que só se distinguem de Deus por diferenças de grau. Além disso, a prova da existência de Deus, segundo a tese dos filósofos aparece como resultante da interrupção da série de causas e efeitos encadeados que não poderia prolongar-se infinitamente mas, para Al-¦azāl÷, “esta é uma suposição absolutamente gratuita e não há razão alguma para excluir a série infinita ou a cadeia fechada de causas.”276 Destacada a vontade absoluta como a causa mais radical que determina o ato divino, este passa a ser considerado rigorosamente contingente, pois “Deus não realiza atos necessários enquanto não tem fins a cumprir, perigos a evitar e nem necessidade lógica para cumprir.”277 Duas outras questões emergem a partir disso: a primeira delas é que nada escapa ao poder de Deus que pode fazer tudo quanto queira “inclusive o mal, e se não o faz é por sua infinita bondade e misericórdia”278 e poderia ordenar também o impossível e o absurdo que seria, nesse caso, a lei. Assim entendido, o nosso mundo pode ser pensado como o melhor mundo possível pois, do contrário “seria duvidar da infinita misericórdia de Deus”279. 274 HERNANDEZ, Historia del pensamiento en el mundo islamico,op.cit.,p.280. Ibid, p.280. 276 Ibid, p.280. 277 Ibid, p.284. 278 Ibid, p.284. 279 Ibid, p.284. 275 187 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Quanto à teoria da emanação afirmada pelos falāsifa seguindo o princípio neoplatônico, Al-¦azāl÷ defendeu que não há nenhuma prova conclusiva de que a multiplicidade do mundo derive necessariamente da unidade de Deus. Também quanto à compreensão do destino da alma, os filósofos estariam em desacordo com a verdade revelada pois negaram a ressurreição da carne sem provar de modo algum que alma não é um mero acidente do corpo que, sem a intervenção de Deus, desapareceria com a dissolução deste. Para provar a imortalidade da alma, os filósofos aludiram ao fato de ser da natureza humana apreender os inteligíveis, o que explicaria a diferença da apreensão sempre dos particulares da alma animal. Porém, com isso nada provariam pois, para Al-¦azāl÷, “o conhecimento universal não conhece nada além do particular, pois os universais não são entes reais e só existem no entendimento que os apreende.”280 O único meio, pois de se aceitar a imortalidade da alma é aceitar que isto só pode se dar por uma livre disposição de Deus. Continuando em sua busca, Al-¦azāl÷, depois de reconhecer o valor da Teologia mas não encontrar nesta a resposta que procurava, também deixava para trás a Filsoofia depois de “ter condenado suas falsidades”281 e se dar conta que esta ciência não satisfazia seus propósitos. Após suas críticas à Filosofia, sentencia Al-¦azāl÷: “compreendi que a razão não bastava para conhecer todas as questões nem poderia descobrir a solução de todos os problemas.”282 Depois disso, nosso autor, passa a investigar aqueles que pregavam que a figura de um imam infalível era o meio pelo qual poder-se-ia entrar em contato com a verdade para verificar se essa posição seria merecedora de crédito. A resposta é negativa. Ao iniciar a discussão, Al-¦azāl÷ já indica que não aprova tal premissa, ao dizer que naquele tempo já “haviam aparecido os hereges partidários do ensinamento do imam”283 mas mesmo assim, inclinado por um impulso íntimo a conhecer suas teses, Al-¦azāl÷ viu esse impulso reforçado por uma ordem do próprio califa para que ele se aproximasse desse grupo e verificasse o que poderia haver de verdadeiro entre eles. Desse modo, Al-¦azāl÷ passou a recolher os escritos e os tratados dos partidários do imam infalível e, depois de organizá-los, leu-os e submeteu-os a provas rigorosas, procurando responder sistematicamente ponto a ponto cada uma das questões que encontrava em tais escritos. A discussão, transcorrendo a partir do fato de tal grupo 280 Ibid, p.281. ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.60. 282 Ibid, p.60. 283 Ibid, p.60. 281 188 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho afirmar a necessidade de se buscar um imam que fosse o depositário da verdade, recaiu sobre os argumentos internos do direito e da legislação islâmica. Para refutar os partidários dessa doutrina, Al-¦azāl÷ se ocupou do problema básico da lei e do direito islâmico. “Nosso mestre infalível – diz – é Mu¬ammad.”284 O tom da refutação de Al-¦azāl÷ a esse grupo é veemente: “o que aqui se pretende mostrar é que eles não tem nenhum remédio que os salve das trevas em que estão submersas suas opiniões.”285 Não há um só deles que consiga estabelecer uma prova para a designação da necessidade de um imam infalível e, quando perguntados sobre o que aprenderam desse imam, não conseguem apresentar nada além de problemas que sequer entenderam e muito menos que tenham conseguido solucionálos. Daqueles que se rogam possuir alguma ciência dentre eles, nada mais se vê do que a “raquítica filosofia de Pitágoras, que é um filósofo dos antigos, dos primeiros, e sua doutrina é a mais débil das doutrinas filosóficas.”286 Al-¦azāl÷ é contundente com aqueles que se rogam ser mestres e imans infalíveis acusando-os de sedutores da gente e do povo simples de curto entendimento. Quando a eles é pedido algum ensinamento –diz Al-¦azāl÷ –, calam diante do consulente dizendo que este deveria buscar o conhecimento por si mesmo. O certo é que esse suposto detentor da verdade, se tentasse algum ensinamento, encher-se-ia de vergonha porque “seria incapaz de solucionar o menor dos problemas, sequer seria capaz de compreendê-lo e muito menos, portanto de responder à sua pergunta”287 Al-¦azāl÷ os deixa: “esta é sua verdadeira situação, quando os conheceres, diminuirá tua consideração para com eles. De nosso lado, quando os conhecemos nos afastamos deles.”288 Por fim, Al-¦azāl÷ passou à análise do grupo dos sufis, o último grupo por ele indicado na divisão das classes dos buscadores da verdade. “Quando terminei com estas ciências –diz ele –, meu interesse se dirigiu ao caminho dos sufis e me dei conta de que seu caminho só se tornava perfeito com a teoria e com a prática.”289 Nesse grupo, Al-¦azāl÷ encontrou na prática meditativa a justificativa maior que o fez elegêlo como o que mais se acercou da verdade. Se, por um lado, Al-¦azāl÷ era um crente fervoroso que colocou a fé nas escrituras e nas palavras do profeta como condição de encontro com a verdade, por outro lado, elegeu a prática sufi como a que mais o 284 Ibid, p.63. Ibid, p.71. 286 Ibid, p.71. 287 Ibid, p.72. 288 Ibid, p.72. 289 Ibid, p.73. 285 189 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho aproximava da verdade contida nas escrituras e na profecia. Segundo ele, o verdadeiro objetivo sufi consistia em eliminar as dificuldades da alma purificando-a de más qualidades e de esvaziar o coração de tudo quanto não fosse Deus. Isso podia ser conseguido pela repetição ininterrupta do nome de Deus. Percebendo que a principal diferença, nesse caso, consistia fundamentalmente entre um conhecimento adquirido através do discurso ou através da razão e um conhecimento que se tem pela própria experiência, Al-¦azāl÷ se inclina a viver como um asceta e a experimentar os estados profundos da meditação. Nos diz ele: “igual é a diferença que existe entre que conheças a realidade, as condições e as causas do ascetismo e que o estado de tua alma seja o ascetismo e o desapego do mundo.”290 Assim, pois, vendo que os verdadeiros sufis eram homens que provavam os estados elevados da meditação e não eram do tipo dos homens de palavras, Al-¦azāl÷ se inclinou a levar a vida do asceta. Mantendo sua fé em Deus, na Profecia e no Ultimo Dia, – por nenhuma razão lógica mas por “indícios e experiências cujos detalhes particulares não se pode enumerar”291 – Al-¦azāl÷ entendeu que para desfrutar de tudo isso, o mais importante seria cortar os laços que uniam seu coração a este mundo, tirando-o da mansão do engano e levando-o à mansão da eternidade, dirigindo-se até Deus. Porém, ao olhar para sua própria vida, percebeu-se enredado por uma série de compromissos que o impediam de seguir essa via ao mesmo tempo em que via que o seu ensinamento em Bagdá não era mais uma profissão de fé e de exaltação de Deus mas uma busca vã de honrarias, de fama e de vaidade pessoal. Assolado por uma crise de decisão, ainda permaneceu inseguro por algum tempo sem saber discernir qual o caminho que Deus lhe preparava. Ao mesmo tempo em que ouvia uma voz que lhe dizia: “ponha-te a caminho, marcha! Te resta apenas um pouco de vida e tendes antes uma longa viagem. Se não te preparas agora para outra vida, quando o farás? Se não cortas agora essas amarras, quando as cortarás?”292, também ouvia Satanás, de outro lado tentando dissuadi-lo dizendo que que essa era uma situação passageira que logo passaria. Al¦azāl÷ permaneceu na dúvida por uns seis meses até que ocorreu um estranho fato que ele entendeu como um sinal de Deus: sua língua foi travada! 290 Ibid, p.74. Ibid,p.74. 292 Ibid, p.75. 291 190 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Al-¦azāl÷ não conseguia mais dar aulas. “Minha língua – nos diz ele – não acertava articular uma só palavra”.293 A travada de língua gerou uma tristeza em seu coração a tal ponto que resultou em alteração e problemas em sua digestão, passando a ter dificuldades para se alimentar e, assim, foi ficando cada vez mais fraco até que os médicos desistiram de tratá-lo, afirmando: “isto que ele tem é algo que se alojou no coração e passou aos humores. Não há como lhe dar um tratamento enquanto o mais íntimo de seu ser não se livre da pena que o aflige.”294 Esse foi o fato que fez com que Al-¦azāl÷ decidisse ir embora de Bagdá, deixando a universidade, os amigos, a família e tudo o mais para seguir viagem numa peregrinação que durou aproximadamente dez anos. Sua primeira parada foi na Síria, onde, permanecendo por dois anos, não teve “outra ocupação que não o retiro, a solidão, os exercícios piedosos e a vida ascética, tratando de elevar a alma, corrigir o caráter e purificar o coração recorrendo à menção do nome de Deus como havia aprendido nos livros dos sufis.”295 Na mesquita de Damasco, entrava e ficava só. “Foi nesse período que ele compôs seu obra maior, ’I¬yā’ ‘ulým al-d÷n / Revificação das Ciências da Religião, e realizou conferências sobre seu conteúdo para públicos seletos.”296. Em seguida foi a Jerusalém, a Meca e a Medina mantendo a mesma atitude de retiro e meditação. Assim ele nos narra estes tempos: “continuei assim pelo espaço de dez anos e, naqueles retiros, a mim revelaram-se coisas que não é possível compreender nem chegar a seu fundo.”297 Al¦azāl÷, mostrou sua preferência pela prática sufi dizendo que são eles em especial que “percorrem os caminhos de Deus” 298 tendo a melhor conduta, o caminho mais acertado e o caráter mais puro. Com o intuito de testemunhar sua experiência, Al-¦azāl÷ afirmou que o verdadeiro objetivo dos sufis consistia em purificar totalmente o coração de tudo o que não fosse Deus, consagrando-se em oração e submergindo totalmente o coração na menção do nome de Deus para que, ao final, isto resultasse na união e no aniquilamento total em Deus. Em seu comentário, Hernandez nos dá uma boa imagem dessa passagem ao dizer que quando se “aplica à compreensão da verdade revelada o esforço da razão iluminada pela fé, então aparece o mistério; e no santuário do coração 293 Ibid,p.76. Ibid,p.76. 295 Ibid, p.78. 296 THE ENCYCLOPAEDIA OF ISLAM.,op.cit.,p. 1039. 297 ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.79. 298 Ibid, p.79. 294 191 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho humano, purificado pelo seu próprio esforço espiritual e iluminado pela luz divina, se mostram as maravilhas de Deus e se goza a felicidade do espírito, antecipação daquilo que logo será a ciência direta de Deus e a felicidade eterna.”299 Al-¦azāl÷ atesta que experimentou um estado de meditação profunda mas a sua experiência mística deve ser tomada num sentido moderado. Afirmou que nesse estado, logo iniciaram-se revelações e visões nas quais se vêem os anjos e os profetas, escutam-se as suas vozes conseguindo-se, até mesmo, benefícios deles e “logo, seu estado ascende desde a contemplação de imagens e figuras até a uns graus inefáveis nos quais aquele que intenta expressar-los incorre em um erro crasso do qual não é possível guardar-se. Em uma palavra, se chega a uma cercania de Deus, que alguns representam como uma encarnação de Deus nele, outros como uma identificação com Deus e outro como uma união com Deus. Mas tudo isso é um erro (ý)”300. Al-¦azāl÷ nos remete a uma outra obra de sua pena intitulada Al-Maq½ad alAsnā / A Meta mais Elevada na qual esclarece esse erro que considera um dos abusos dos sufis. Mostrando que este caminho só é possível pela própria experiência, Al¦azāl÷ o diferencia radicalmente das outras proposições que havia vivido sublinhando que “a comprovação mediante a demonstração é uma ciência, o submergir-se no núcleo mais íntimo daquele estado é uma experiência e o aceitar de bom grado o que se transmite de boca em boca e da experiência vivida por outros é uma fé.”301 Não é sem razão, pois, que Al-¦azāl÷ depois de relatar sua experiência com a meditação e o retiro espiritual e de confirmar a possibilidade de se atingir estado elevados de comunhão com Deus, reconheceu a profecia como o lugar mais elevado ao qual o homem pode chegar. Curiosamente, esta é a mesma conclusão a que havia chegado Ibn S÷nā e, Al-¦azāl÷, mesmo criticando os filósofos acabou por estabelecer uma hierarquia de ascensão ao conhecimento semelhante àquela que encontramos em Ibn S÷nā que, no caso deste último, culmina com a aquisição do intelecto sagrado que é, em suma, o estado profético. Em sua classificação hierárquica, Al-¦azāl÷ entendeu – no O Salvador do Erro – que o homem recebe primeiramente o sentido do tato que forma o todo o seu corpo, depois recebe o sentido da visão com o qual vê as cores e as figuras, o sentido da audição e o do paladar.302 Depois, o homem recebe o discernimento para perceber aquilo que está além dos sentidos. Em seguida, recebe a 299 HERNANDEZ, Historia del pensamiento en el mundo islamico, op.cit., p.284. ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.80s. 301 Ibid, p.82. 302 Curiosamente não cita o olfato. Cf. ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.84. 300 192 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho razão pela qual percebe o necessário, o impossível e o possível. Por fim, Al-¦azāl÷ afirma ainda uma outra instância: “depois da razão há outra etapa na qual se abre outro olho com o qual se percebe o oculto, o que haverá no futuro e outras coisas.”303 Com essa última propriedade garante-se a verdade das profecias como, por exemplo, aquilo que chega a determinados homens através de seus sonhos em que podem ver o futuro com clareza ou revestidos de símbolos que procuram desvelar . Nos diz Al-¦azāl÷: “Assim como a razão é uma das etapas do homem na qual ele obtém um olho com o qual vê distintas classes de inteligíveis, dos quais estão privados os sentidos, também a profecia é o passo a uma etapa na qual se obtém um olho que é uma luz diante da qual aparecem as coisas ocultas, presentes, passadas e futuras e coisas que o intelecto não percebe .”304 Nesse ponto e, a partir dessas indicações, cabe salientar diferenças sensíveis em torno da teoria de Al-¦azāl÷ em vistas da teoria de Ibn S÷nā a respeito da profecia. Al-¦azāl÷, ao hierarquizar as potências da alma, enumera um tipo de apreensão além do intelecto que seria a responsável por apreender aquelas realidades últimas. No caso da teoria da iluminação de Ibn S÷nā essa faculdade nada mais é do que o próprio intelecto conectado de modo mais intenso com os inteligíveis. Não há pode haver o caso, segundo Ibn S÷nā, de que algo se manifestasse não pudesse ser inteligido. Mesmo que considerássemos o fato de os profetas não conseguirem, muitas vezes, comunicar por palavras aquilo que apreenderam, ainda assim a apreensão em si mesma é sempre inteligível. Na última parte de O Salvador do Erro, Al-¦azāl÷ depois de ter se retirado de Bagdá e peregrinado por dez anos pelas terras do Islām, recebeu uma ordem categórica do sultão Fajr al-Mulk para que voltasse: “assim, o sultão ordenou-me peremptoriamente que me dirigisse a Nay¹ābýr (...) a ordem era tão imperiosa que chegava aos maus modos se persistisse em desobedecê-la”.305 Entretanto, Al-¦azāl÷ ainda resistiu à ordem do sultão e, só depois de consultar outros sufis com quem convivia, entendeu que aquele era mesmo o caminho que Deus guardava para ele. Em tempo presente, depois de retornado à sua terra natal, nos confessa Al-¦azāl÷: “Assim, pois esta é atualmente a minha intenção, meu objetivo e meu desejo – Deus o sabe – e pretendo melhorar a mim mesmo e aos 303 ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.84. Ibid, p.86. 305 Ibid, p.98. 304 193 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho demais não sabendo se chegarei ao que pretendo ou se me verei impedido disto. De todo modo, creio com uma fé certa e por ter experimentado que não existe força nem poder a não ser em Deus, que não fui em quem se moveu de um lugar a outro, mas que foi Ele quem me moveu, e que não fui eu quem atuou mas que foi Ele quem me empregou como instrumento de sua atuação. Peço a Deus, em primeiro lugar, que melhore a mim e logo que, por meio de mim, melhore a outros; que me guie pela senda reta e que por meu intermédio guie a outros; que me mostre a verdade como verdadeira e me dê a segui-la firmemente e que me mostre a falsidade como falsa e me conceda apartar-me dela.”306 Esse não é o caso de tentarmos traçar a matriz do pensamento de Al-¦azāl÷ por todas as dificuldades que isso implica e que foram citadas no início deste capítulo. Porém, podemos apontar para algumas direções que o seu pensamento suscita. Uma delas, que parece ter se tornado o tecido de sua reflexão, resulta da própria trama que ele viveu a partir da travessia realizada através das três maiores tradições do pensamento de sua época – o kalām, a falsafa e o sufismo – Uma das matrizes de seu pensamento resultaria, nesse caso, da interpenetração das três tendências num certo equilíbrio em que excluem-se os reducionismos. Se, por um lado, – e em tese – essas três linhas de busca da verdade podem ser consideradas incompatíveis, por outro lado, não são impossíveis de coexistir num mesmo homem, como atesta o caso de Al-¦azāl÷. Fundamentado na fé inabalável da revelação, procurando excluir todos os exageros provenientes dos filósofos, dos místicos e, até mesmo, dos teólogos, procurou, assim, indicar o caminho até o justo meio onde, guardados os exageros, frutos do abandono da fé, a verdade resplandeceria. Assim entendida, a busca da verdade deveria acolher aquilo que cada via pudesse oferecer dentro de seus próprios limites. No Tahāfut Al-¦azāl÷ chegou a afirmar que a razão retamente utilizada permitiria concordar os caminhos da revelação e da razão mas o problema maior se daria quando o homem se entregava à pura especulação racional que não poderia, de maneira isolada, conduzi-lo à verdade. Apesar de a razão humana procurar explicar as intuições do coração, quando a abandonamos à própria força, ela nos conduz antes ao erro do que à verdade. 306 Ibid, p.100. 194 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho O conhecimento científico, por sua vez, conhece o funcionamento dos fenômenos mas não o porquê dos fenômenos e menos ainda pode conhecer a Deus, aquele que comanda todos os fenômenos. No conjunto dos saberes é preciso ter prudência pois “o valor da experiência é limitado e os argumentos filosóficos e teológicos apoiados na lógica conduzem a resultados contraditórios. Por outro lado, o abuso do testemunho da autoridade só serve para enganar os ignorantes.”307 Para o homem, resta como caminho para alcançar a verdade entrar dentro de si e meditando profundamente, entrar em seu próprio coração “no qual brilha entre cinzas uma faísca divina; essa luz interior é o único salvador do erro que pode o homem utilizar.”308 Todo o trajeto deve ter a fé como suma condutora pois, pressuposta a fé, então pode se confiar no esforço racional por ela iluminado. Nesse sentido, “a razão iluminada pela fé conduz à sabedoria.”309 A razão, assim iluminada, alcança um conhecimento que, de modo algum pode contradizer as verdades reveladas. Se ao homem simples, basta a fé no Alcorão, aos doutos e ilustrados cabe esquivarem-se dos obstáculos do caminho necessitando “uma serena luz interior que nada tem a ver com a embriaguez mística do sufismo popular, nem com as manifestações mais ou menos sublimadas do erotismo místico e da ginástica ascética.”310 Assim entendido, o pensamento de Al-¦azāl÷ indicaria o equilíbrio e a moderação com o objetivo de nos preservar do erro causado pelos excessos. Em suas múltiplas tarefas, Al-¦azāl÷ procurou reavivar o ânimo dos fiéis no Islām e, no campo da especulação teológica, os seus estudos sobre a falsafa levaram à incorporação de certos aspectos da filosofia, notadamente a lógica, para o interior da teologia islâmica. Na filosofia, suas duras críticas aos filósofos não negaram os princípios da razão mas alertaram sobre os abusos da razão pura sem a fé. Além disso, viveu juntamente com os sufis tendo adotado a prática da meditação deste mas não admitindo os exageros místicos praticados por muitos deles. Não surpreende, pois, que sua postura contemplasse o equilíbrio ético que deve prevalecer no homem para que se atinja a posição justa ou balança da moral, como a chama Al-¦azāl÷, que consiste em um sistema de equilíbrio entre o mundo espiritual e o mundo natural, limites da natureza humana. Tal equilíbrio não se poderia conseguir sem a ajuda de Deus. Foi por todos esses motivos e por muitos outros que deixamos de mencionar aqui que Al-¦azāl÷, 307 Ibid.,p. 100 HERNANDEZ, Historia del pensamiento en el mundo islamico, op.cit., 278. 309 Ibid, p. 281. 310 Ibid,p. 283. 308 195 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho entre os árabes, foi chamado de ®Ø×[ »ko / Hujja al-Islām, isto é, O Garante do Islām. 5.5 Ibn Ru¹d, o reformador Quando Ibn Ru¹d nasceu, três séculos já haviam se passado desde que Al-Kind÷ recepcionara a filosofia entre os árabes. Passando em revista todo o desenvolvimento das teses de seus predecessores, sob uma leitura rigorosa das obras de Aristóteles, Ibn Ru¹d tinha em mente recobrar a autêntica doutrina do pensador grego. Afinal, por volta do séc. XI d.C./V H., Ibn S÷nā – o mais oriental dos falāsifa – era uma referência obrigatória da filosofia grega na parte oriental do mundo muçulmano interpenetrando às teses de Aristóteles um caráter neoplatônico. A tarefa de procurar reconduzir o pensamento ao rigor da filosofia aristotélica, Ibn Ru¹d exerceu do ponto mais ocidental do mundo muçulmano: a Espanha. Não é demais lembrar que, até aquela data, a especulação filosófica se desenvolvera sobremaneira a partir da ascensão da dinastia Abássida – com capital em Bagdá – que impusera uma dura queda à dinastia Omíada – com capital em Damasco. Porém, à época dessa inversão de poder no mundo islâmico, os árabes já haviam tomado o sul da Espanha, região que passou a contar com muitos governadores sírios, que lá se estabeleceram e contribuíram para arabização de diversas províncias da região ibérica. Antes da queda dos Omíadas, a região de Al-Andaluz era, assim, dirigida por governadores dependentes de Damasco. Quando a dinastia Omíada foi derrotada pelos Abássidas, notadamente os sírios na Espanha “puderam oferecer um refúgio ao jovem ‘Abd Al-Ra¬mān, salvo do massacre de 750 d.C. Com o apoio dos sírios, ‘Abd Al-Ra¬mān conseguiu impor-se aos chefes locais e, em julho de 756 d.C., foi proclamado emir em Córdoba.”311 ‘Abd Al-Ra¬mān reinou até 788 d.C., ano de sua morte e, durante seu reinado, usou tanto o título de emir quanto o de rei mas não, ainda, o de califa, mantendo as aparências de reconhecimento ao califado de Bagdá. Porém, na prática, a Espanha muçulmana funcionava como uma região independente. A medida em que os califas do oriente passavam a enfrentar mais dificuldades, cada vez mais a independência do emirado ibérico Omíada se anunciava. Mesmo asssim, o 311 MANTRAN, op.cit., p 155s. 196 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho emirado estabelecido durou até 929 d.C. quando Abd Al-Ra¬mān III (912-961d.C.), proclamou-se califa, instaurando o califado Omíada na Espanha. Nesse período, sob o domínio dos Omíadas, Al-Andaluz conheceu seu apogeu e sob suas luzes se fez da Espanha o maior centro intelectual e artístico do Ocidente. Mesmo com toda instabilidade política, no campo religioso, ali conviveriam durante séculos, num clima de certa tolerância, muçulmanos, cristãos e judeus. Nessa época já se verificava uma atmosfera de grandeza política, econômica e intelectual na qual a filosofia não podia estar ausente. Esse ressurgimento do califado Omíada durou aproximadamente cem anos quando, em 1031 d.C, o último califa, Hisham III foi deposto. “Por volta de 1031 d.C., o califado Omíada desapareceu de maneira inglória.”312 Em seu lugar, a região se dividiu em pequenos estados independentes denominados de reinos de taifas. No séc XI d.C./V H., do norte da África, a dinastia dos Almorávidas, de origem berbere, ocupou o cenário da Espanha. No séc XII d.C./ VI H., um novo grupo de tribos berberes constituiu-se no núcleo da dinastia dos Almôadas. Nessa época, Al-Andaluz já não era mais uma primazia árabe mas turca pelo leste e berbere pelo oeste. “Uma grande revolução se operou no Magreb durante a juventude de Ibn Ru¹d: os Almôadas derrubaram a dinastia dos Almorávidas e se apossaram sucessivamente do noroeste da África e da Espanha muçulmana.”313 Foi nesse cenário que, com Ibn Bāja (Avempace), Ibn Æufayl e, finalmente, com Ibn Ru¹d, a falsafa inaugurou um novo perfil geográfico, não mais exclusivamente centrado em Bagdá ou em Hamadan, mas, também, na Europa – mais precisamente na Espanha. Apesar de ter havido um intenso intercâmbio entre as partes orientais e ocidentais do mundo islâmico, isso não significou que não houve rivalidade entre os dois cantos do império. Al-Andaluz, sempre que pode, rivalizou com os Abássidas tanto política como culturalmente. Fatores políticos e culturais não deixaram de estar presentes na postura adotada por Ibn Ru¹d frente aos seus antecessores do extremo oriente do império. Mas, antes dele, a Espanha muçulmana já deixara gravados dois nomes de importância: Ibn Bāja e Ibn Æufayl. O primeiro, nascido em Saragoza, esteve em Sevilha e Granada e morreu em Fez em 1138 d.C. Deixou alguns tratados que introduziram os aspectos mais próprios da filosofia no mundo árabe-espanhol. Ibn Bāja preparou o terreno para a exposição islâmica da doutrina aristotélica que chegaria ao apogeu com Ibn Ru¹d. 312 313 Ibid, p. 173. MUNK, Mélanges de Philosophie, op. cit., p.420. 197 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Ibn Æufayl, por sua vez, estudou medicina e filosofia em Córdoba e esteve sob a proteção do califa ’Abý Ya‘qýb Yýsuf – mecenas generoso das ciências e da filosofia. Foi médico da corte e tinha muito prestígio junto a ’Abý Ya‘qýb, tendo-lhe apresentado o próprio Ibn Ru¹d. Além de escritos sobre medicina, astronomia e filosofia, Ibn Æufayl deixou para a posteridade a obra ©ayy Ibn Yaqzān, título homônimo de uma obra de Ibn S÷nā que também, em linguagem simbólica, descrevia a viagem da alma em seu retorno ao mundo inteligível. É comum encontrarmos essa obra de Ibn Æufayl indicada como uma das possíveis fontes originárias do romance Robinson Crusoé – 1719 – de Daniel Defoe314. De todo modo, o apogeu da filosofia verificado em Al-Andaluz se deu com Ibn Ru¹d. Vejamos alguns dados sobre sua vida. Abý al-Wal÷d Mu¬ammad Ibn A¬mad Ibn Ru¹d (1126/1198 d.C 520/595 H.), conhecido no Ocidente como Averróis, nasceu em Córdoba. O mais ocidental dos falāsifa descendeu de uma longa linhagem de sábios e juristas eminentes. Seu avô fôra o mais ilustre juiz de seu tempo por toda Al-Andaluz sob o domínio dos Almorávidas e um dos personagens políticos mais importantes. O pai de Ibn Ru¹d também ocupou o cargo de juiz e, igualmente, foi uma figura ilustre. Ibn Ru¹d seguiu a mesma trajetória dos seus antepassados tendo se formado, inicialmente, nos estudos tradicionais a respeito do direito islâmico. Em seguida estudou medicina, astronomia, teologia, matemática e as outras ciências que compunham a base do conhecimento da época e, naturalmente, filosofia. Chegou-se a dizer que Ibn Bāja teria sido seu preceptor, mas essa hipótese foi descartada pois quando Ibn Bāja faleceu, Ibn Ru¹d era apenas um jovem de doze anos. Ibn Æufayl é indicado, geralmente, como um de seus amigos próximos e um de seus mestres, mas parece que Ibn Ru¹d não o conhecera muito antes de 1169 d.C. quando este o apresentou ao emir Abý Ya‘qýb Yýsuf, que tinha grande interesse pela filosofia e pela ciência. O próprio Ibn Ru¹d comentou a passagem da seguinte maneira: “Quando entrei na casa do emir315 dos crentes, o encontrei a sós com Ibn Æufayl. Este começou a tecer elogios a mim, a exaltar minha nobreza e a tradição de minha família e reuniu a isso, por sua bondade, elogios que eu estava longe de merecer. Após ter perguntado 314 FAHKRY, Histoire de la Philosophie Islamique, op. cit.,p. 291. A referência ao soberano às vezes é feita sob o título de “emir” que significa “príncipe”, ou ainda, “rei” ou até mesmo “califa”, se bem que esta última denominação se aplique mais propriamente aos soberanos que governaram durante o califado Omíada em Al-Andaluz. Às vezes aparece o termo “sultão” mas, apesar de ter sido usado por alguns príncipes muçulmanos, aplica-se mais propriamente aos soberanos do império turco. 315 198 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho o meu nome, o de meu pai e de minha família, o emir assim abriu a conversação: qual a opinião dos filósofos a respeito do céu? É uma substância eterna ou teve um começo ?!”316 Ibn Ru¹d, tomado de surpresa e por um certo temor por desconhecer as verdadeiras intenções do emir e por não saber o que Ibn Æufayl havia dito ao soberano a esse respeito, procurou desconversar e inventar um pretexto qualquer para se esquivar de assunto tão espinhoso. Enquanto procurava uma saída, o soberano, compreendendo a situação embaraçosa em que se encontrava Ibn Ru¹d, voltou-se a Ibn Æufayl e começou a discorrer sobre a questão da eternidade do mundo reportando-se à filosofia de Aristóteles, de Platão e de outros filósofos a esse respeito. Expunha com igual mestria, também, a argumentação dos teólogos muçulmanos contra os filósofos. Ibn Ru¹d, surpreso pela vasta erudição e pela excelente memória do emir em relação à filosofia, pôde ficar mais à vontade e expor também os seus conhecimento a respeito deste que seria um dos temas importantes de sua filosofia. Na verdade, o soberano e Ibn Æufayl já haviam combinado toda a cena e queriam apenas colocar o filósofo à prova. Ao se retirar, Ibn Ru¹d recebeu alguns presentes do emir e partiu. Numa outra passagem Ibn Ru¹d conta como foi que se aplicou aos comentários à obra de Aristóteles: um dia, Ibn Æufayl o chamou e lhe relatou que escutara o emir se lamentar por causa da obscuridade das obras de Aristóteles e de seus tradutores, dizendo que adoraria encontrar um homem que pudesse comentar esses livros e explicá-los de modo mais claro para torná-los mais acessíveis aos homens. Ibn Æufayl, já com idade avançada, insistiu para que Ibn Ru¹d tomasse para si esse trabalho, já que possuía grande aplicação nos estudos, clareza, lucidez e inteligência suficientes para tão importante tarefa. Pelas sua própria pena sabe-se que de 1169 à 1180 d.C. aproximadamente, Ibn Ru¹d já escrevera o Comentário sobre o Tratado dos Animais, Comentário Médio sobre a Física, Comentário sobre os Metereológicos, Comentário Médio sobre a Retórica, Comentário sobre a Metafísica – dentre outros referentes a Aristóteles – e uma paráfrase do Almagesto de Ptolomeu. Em 1182 d.C. o emir Yýsuf chamou Ibn Ru¹d ao Marrocos e o nomeou seu primeiro médico no lugar de Ibn Æufayl, conferindo-lhe também o cargo de “qāÅi al-quÅah” – juiz dos juízes – de Córdoba, cargo que fora ocupado por seu pai e também por seu avô. Nessa época, Ibn Ru¹d tinha por volta de 56 anos. Logo em 316 BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam op. cit., p. 738. 199 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho seguida, em 1184 d.C., o soberano veio a falecer e subiu ao poder seu filho AlManÆýr. De imediato nada mudou em relação à condição do nosso filósofo que foi mantido em suas funções e continuou sob a proteção do novo emir. Ao passar dos anos, Ibn Ru¹d ao mesmo tempo que se dedicava aos afazeres políticos, compunha seus trabalhos filosóficos. Suas posições na interpretação do Alcorão já criavam, naquela época, certas tensões com os doutores da lei. Desde que Al-Man½ýr subira ao trono, Ibn Ru¹d viveria mais 14 anos e entre eles se estabeleceu uma grande amizade: passavam horas discutindo sobre filosofia onde se ouvia Ibn Ru¹d chegando mesmo a dizer ao emir: tasma‘ yā a¬÷ – escuta meu irmãoý Até 1195 d.C. quando Al-Man½ýr se preparava para lutar contra Afonso VIII de Castela na batalha dos Alarcos, ainda se testemunhava o grande prestígio de Ibn Ru¹d junto ao soberano. Mas, logo em seguida, as pressões dos adversários do filósofo aumentaram levando-o à desgraça. Ele mesmo narra como, ao entrar numa mesquita de Córdoba com seu filho ‘Abd Allāh para a prece, viu a turba se dirigir contra eles e expulsá-los do templo. Seus discípulos abandonaram suas aulas temendo mesmo invocar sua autoridade. Recebendo injúrias e ataques dos teólogos radicais e da própria população, até mesmo Al-Man½ýr se viu obrigado a retirar-lhe a proteção antes confiada. “Ele foi acusado, assim como vários outros sábios da Espanha, de preconizar a filosofia e as ciências da antiguidade em detrimento da religião muçulmana.”317 As verdadeiras razões que desbancaram Ibn Ru¹d de sua posição ainda são tema de controvérsia. “Todos os historiadores muçulmanos se perderam em conjecturas para explicar as causas dessa desgraça.”318 Seus adversários acusaram-no de heresia, procurando em seus escritos passagens que pudessem indicar que ele se afastava dos preceitos do Alcorão. Sua atividade como qād÷ também gerou inimizades e os que discordavam de seus métodos na aplicação da lei islâmica passaram a persegui-lo. Numa assembléia de juristas, reunida por Al-Man½ýr, para analisar as posições de Ibn Ru¹d em relação à ortodoxia muçulmana, nosso filósofo foi condenado como um extraviado do bom caminho da religião. Parece que a perseguição a Ibn Ru¹d, deveu-se, em boa medida a questões internas de interpretação da lei muçulmana mais do que propriamente à sua 317 318 MUNK, Mélanges de Philosophie, op. cit., p. 425. BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, op.cit. p., 741. 200 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho dedicação à filosofia. Não é demais sublinhar que Al-Man½ýr 319 foi bem instruído e era um grande admirador de Aristóteles para ceder a uma campanha contra a filosofia mas, pressionado pelas circunstâncias, acabou ordenando que os livros de Ibn Ru¹d fossem queimados (!) Al-Man½ýr ordenou reprimir os que estivessem convencidos de estudar a filosofia grega, confiscar e jogar ao “fogo todos os livros de lógica e de filosofia que se pudesse encontrar nas livrarias e nos particulares.”320Como se tal não bastasse, talvez para acalmar os ânimos, Al-Man½ýr, ordenou ainda que Ibn Ru¹d fosse exilado em Lucena, pequena cidade ao sul de Córdoba, juntamente com outros estudantes de filosofia e ciências, ao mesmo tempo em que proibia o estudo sobre esses assuntos. O exílio durou pouco tempo pois os notáveis de Sevilha pleitearam a favor de Ibn Ru¹d. Quando Al-Man½ýr voltou ao Marrocos, perdoou-o e chamou-o para voltar aos seus serviços. Assim, Ibn Ru¹d seguiu para Marrocos mas, pouco tempo depois, veio a falecer por volta de 1198 d.C. com a idade de 72 anos sem voltar a ver a Espanha. Seus restos mortais, no entanto, foram transferidos para Córdoba três meses depois, onde foi enterrado no túmulo de sua família no cemitério de Ibn ‘Abbās. A produção de Ibn Ru¹d foi volumosa. Badawi apresenta uma lista de 92 títulos que pode ser dividida em seis grandes grupos temáticos: filosofia, teologia, direito, astronomia, gramática e medicina.321 Em filosofia destacam-se 32 comentários, em sua maior parte referentes à obra de Aristóteles, além de 29 títulos originais. Nove obras sobre teologia e jurisprudência; 3 sobre astronomia e 2 sobre gramática. Em medicina, listam-se 8 comentários – principalmente sobre Galeno – e 9 obras originais. “Ibn Ru¹d foi, incontestavelmente, um dos homens mais sábios no mundo muçulmano e um dos mais profundos comentadores das obras de Aristóteles. Ele possuía todas as ciências acessíveis, então aos árabes, e foi um dos escritores mais fecundos.”322 Como médico ficou conhecido principalmente por sua obra Kulliyyāt alÆib / Princípios Gerais de Medicina, um tratado de terapia geral que foi publicado em latim sob o título de Colliget. Seus conhecimentos astronômicos podem ser verificados num resumo do Almagesto, que ainda existe numa versão hebraica. Escreveu obras originais em filosofia das quais se destaca o Tahāfut al-Tahāfut / A Autodestruição da 319 Conhecido como “o emir dos crentes e o sultão das duas margens (a Africa do Norte e a AlAndaluz)” Cf. BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, op.cit., p.742. 320 MUNK, Mélanges de Philosophie, op. cit., p. 427 321 BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, pp. 743-761. Cf. também a lista de HERNANDEZ, op. cit., pp.236-239. 322 MUNK, Mélanges de Philosophie, op. cit., p. 429. 201 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Autodestruição como resposta ao Tahāfut al-Falāsifa/ A Autodestruição dos Filósofos de Al-¦azāl÷. Nesta obra, Ibn Ru¹d saiu em defesa da falsafa em vista dos ataques dos teólogos, principalmente de Al-µazāl≈ mas também criticou Al-Fārāb÷ e Ibn S÷nā por terem se desviado do aristotelismo.323 No Fa½l al-maqāl f÷mā a¹ari‘a wa al-¬ikma min al-it½āl / O Tratado Decisivo entre a Religião e a Filosofia, Ibn Ru¹d procurou demonstrar o acordo essencial entre a filosofia rigorosamente compreendida e a escritura corretamente interpretada. Incansável defensor da falsafa e da escritura, procurou mostrar que a lei religiosa não se opunha à filosofia nem vice-versa. Em vistas dos falāsifa orientais – Al-Fārāb÷ e Ibn S÷nā – , Ibn Ru¹d surpreende pela meticulosidade com que comenta os textos de Aristóteles. No Ocidente, a justo título, foi chamado de “O Comentador” por excelência. Na Idade Média – e mesmo na Renascença – repetiu-se o rifão: “a natureza interpretada por Aristóteles e Aristóteles interpretado por Averróis.”324 Ibn Ru¹d não conhecia a língua grega e nem a língua siríaca. Seus comentários se fizeram diretamente a partir das traduções árabes da obra de Aristóteles. Não parece ter havido, portanto, uma correção das traduções do grego ou do siríaco para o árabe pelo próprio Ibn Ru¹d. Ele comentou praticamente a totalidade das obras de Aristóteles (exceto A Política) e, em alguns casos, chegou a compor dois ou três comentários para a mesma obra como, por exemplo, no caso da Física. Os textos referentes aos comentários foram classificados em “grandes”, “médios” e “pequenos comentários” ou paráfrases. Nos grandes comentários, Ibn Ru¹d geralmente apresenta um parágrafo do texto guia e, em seguida, levanta os problemas filológicos, históricos e doutrinais que ali estão implicados desenvolvendo, assim, o próprio corpo do comentário. Incluem-se nessa categoria, por exemplo, os comentários à Metafísica, aos Segundos Analíticos, à Física e ao De Anima de Aristóteles. O comentário médio segue o mesmo modelo diferindo, apenas, pela menor extensão. Neste, Ibn Ru¹d geralmente começa pelo termo “qāl” (disse) e resume o restante do parágrafo reunindo a ele explicações, o que, por vezes, torna mais difícil saber o que é de Aristóteles e o que é propriamente de Ibn Ru¹d. Nessa categoria estão presentes, por exemplo, os comentários à Retórica, às Categorias, à Poética, às Refutações Sofísticas, à Ética à Nicômaco de Aristóteles – 323 Chama a atenção o fato de Ibn Ruºd não ter comentado a Teologia de Aristóteles e de, ao mesmo tempo, reclamar o aristotelismo puro. 324 BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, op. cit., p. 743. 202 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho entre outros – e à Isagoge de Porfírio. Quanto ao pequeno comentário ou paráfrase, este geralmente se caracterizou como um resumo paráfrasico ao texto de Aristóteles no qual Ibn Ru¹d inclui também suas próprias reflexões e opiniões de outros filósofos. Neste, Ibn Ru¹d não segue fielmente a estrutura do texto guia mas adota um itinerário próprio assemelhando-se ao método utilizado por Ibn S÷nā em algumas de suas obras. Nessa categoria encontram-se, por exemplo, paráfrase da Física, Metafísica, Poética de Aristóteles e da República de Platão. Na paráfrase da República de Platão, Ibn Ru¹d se refere à ausência de uma tradução da Política de Aristóteles que não havia, até aquele momento, chegado em Al-Andaluz e, por isso, – nos diz – comenta a República. Alude também ao fato de ter havido uma tradução árabe da Política no Oriente conforme o relato de Al-Fārāb÷. No entanto, não se sabe, até o momento, em que obra Al-Fārāb÷ teria feito tal referência e sequer houve alguma passagem de AlFārāb÷ que fizesse concluir que realmente a tradução da Política de Aristóteles existiu em árabe. No fim do comentário médio à Física ele nos diz: “Isso que escrevemos sobre esses temas, só o fizemos para fornecer a interpretação no sentido dos peripatéticos, a fim de facilitar a compreensão aos que desejam conhecer essas coisas. Nosso objetivo foi o mesmo que o de Abý ©āmid [Al-¦azāl÷] em seu livro Maqā½id, pois, quando não se aprofunda a opinião dos homens em sua origem, não se sabe reconhecer os erros que lhes são atribuídos, nem os distinguir disso que é verdadeiro.”325 É comum encontrarmos passagens em que Ibn Ru¹d mostra alta consideração e deferência pelo mestre grego. Em sua opinião, a doutrina do Estagirita era a soberana verdade e, assim, a considerou como o limite da especulação humana. As alusões de Ibn Ru¹d a Aristóteles não mediram palavras para colocar o mestre grego no mais alto grau da inteligência humana: “dirigimos louvores sem fim àquele que predestinou esse homem [Aristóteles] à perfeição e que o colocou no mais alto grau de excelência humana onde nenhum homem em nenhum século pôde chegar. É a ele que Deus aludiu quando disse: “tal superioridade Deus concede a quem Ele quer.”326 Em outra passagem – no prefácio de seu Comentário à Física –, a admiração por Aristóteles é igualmente insigne: 325 MUNK, Mélanges de Philosophie, op. cit., p.442. BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam , op. cit., p. 763. “Tal é a graça de Deus que a concede a quem Lhe apraz porque Deus é Agraciante por excelência.” Cf. ALCORÃO, LVII, 21. 326 203 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho “O autor desse livro é Aristóteles, filho de Nicômaco, o mais sábio dos gregos, que fundou e concluiu a lógica, a física e a metafísica. Digo que ele as fundou porque todas as obras que foram escritas antes dele sobre tais ciências sequer vale a pena que se diga algo sobre elas, sendo eclipsadas pelos seus próprios escritos. Digo que ele as terminou, porque nenhum daqueles que seguiram-se a ele até o nosso tempo, isto é, durante aproximadamente mil e quinhentos anos, nada puderam reunir aos seus escritos e nem mesmo encontrar algum erro de alguma importância. Ora, que tudo isso se encontre reunido em um só homem, é coisa estranha e miraculosa. Quem é assim privilegiado merece, antes, ser chamado divino, do que humano e, eis o porquê dos antigos o chamarem divino .”327 É, pois, segundo essa profunda e sincera admiração – mais do que as hipérboles do elogio oriental – que Ibn Ru¹d procurou restituir o que ele considerava ser o pensamento autêntico de Aristóteles. Nesse caso, não se trataria propriamente de modificar a filosofia do mestre grego e nem de introduzir inovações mas de procurar compreendê-la de modo rigoroso e sistemático. Porém, não obstante o rigor e a meticulosidade de Ibn Ru¹d o terem afastado de algumas teses de Al-Fārāb÷ e de Ibn S÷nā, ainda assim, o desenvolvimento de sua filosofia não foi totalmente ao encontro das doutrinas propriamente aristotélicas. Na medida em que havia na filosofia de Aristóteles uma grande quantidade de pontos obscuros sobre os quais os antigos comentadores não chegaram a um acordo ou calaram sobre a questão; enquanto procurava extrair o que supunha ser a verdadeira opinião de Aristóteles, Ibn Ru¹d chegou algumas vezes a estabelecer doutrinas que eram as suas próprias. Muito dessa originalidade é tributária da presença do neoplatonismo. Mas saber com extrema precisão em que medida o neoplatonismo esteve presente na visão de Ibn Ru¹d é uma questão que não encontra conformidade entre os pesquisadores na medida em que se procure focalizar uma ou outra área de seu pensamento. Muito da depuração dos elementos neoplatônicos em vista da teoria aristotélica pode ter na ausência de um comentário ou um tratamento que integrasse a chamada Teologia de Aristóteles no sistema aristotélico um elemento importante e esclarecedor. Ibn Ru¹d parece ter percebido que o sistema baseado sobre o princípio 327 Ibid, p. 762. 204 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho que do um só procede o um não poderia ter sido inspirado em Aristóteles e tampouco nos célebres peripatéticos antigos, mas em Porfírio de Tyr, o autor da Isagoge. “Observe-se que em nenhum lugar Ibn Ru¹d atribuiu a famosa Teologia a Aristóteles. Ele esteve firmemente convencido que esse livro não poderia jamais ser da pena do Estagirita.”328 Em largo espectro Ibn Ru¹d pôde distinguir com mais propriedade muitas doutrinas que se mesclaram ao aristotelismo mas, “a verdade é que resta neoplatonismo mesmo em Averróis e que, sabendo-o ou não, o Comentador procedeu de maneira mais original do que ele mesmo disse.”329 Se é demais nivelar de modo equivalente a presença do neoplatonismo por toda a falsafa e afirmar com Munk que “o caráter geral da doutrina de de Ibn Ru¹d é o mesmo que aquele que verificamos nos outros filósofos árabes”330 ainda assim é possível entender que, mesmo que tenha sido em menor grau, Ibn Ru¹d também viu as doutrinas de Aristóteles pelo prisma dos comentadores neoplatônicos e forneceu modificações significativas no sistema peripatético. Na defesa de Aristóteles, na crítica dura aos comentadores que o antecederam é possível encontrar elementos originais de sua filosofia no Tahāfut alTahāfut que, pela força de sua argumentação e pela riqueza de idéias constitui-se numa obra mestra. O Tahāfut al-Tahāfut, obra escrita provavelmente em 1180 d.C. refletiu um pensamento mais maduro do nosso filósofo, apresentando as linhas principais de suas convicções. Por um lado Ibn Ru¹d desenvolveu uma refutação sistemática da condenação da falsafa por Al-¦azāl÷ e, por outro lado, sustentou que Ibn S÷nā e AlFārāb÷, preocupados com o problema da harmonia, minimizaram as grandes diferenças entre Aristóteles e seu mestre Platão, particularmente na crítica a respeito da teoria das idéias. Do mesmo modo, toda a teoria da emanação que formou a pedra angular da cosmologia e da metafísica de Ibn S÷nā e de Al-Fārāb÷, foi apontada por Ibn Ru¹d como não aristotélica. A construção de um universo que desborda de modo múltiplo a partir do Uno conteria, segundo ele, diversos erros lógicos. “Averroes viu muito bem que interesses teológicos haviam favorecido essa mistura [neoplatonismo e aristotelismo]. Ele sabia que restaurar o aristotelismo autêntico era excluir da filosofia o que melhor nela se harmonizava com a religião.”331 328 Ibid, p. 814. GILSON, A Filosofia na Idade Média, op. cit., p. 445. 330 MUNK,. Mélanges de Philosophie, op.cit, p. 443. 331 GILSON, A Filosofia na Idade Média, op. cit. p. 444. 329 205 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Algumas das críticas de Ibn Ru¹d ao desvio da interpretação do que ele julgou ser correto na doutrina de Aristóteles – referidas mais propriamente a Ibn S÷nā – foram, por exemplo: a inclusão da prova da existência do Primeiro Motor na Metafísica e não na Física como fizera Aristóteles; a confusão entre o um transcendental com o um numérico; a consideração da existência como um acidente da essência; a influência das formas separadas sobre as coisas engendradas; a afirmação que do um só pode proceder o um e a referente crítica da teoria da emanação; falta de fundamentação entre a distinção de possível e necessário; e a afirmação de que os corpos celestes possuem a faculdade imaginativa. Nas críticas a Al-¦azāl÷, Ibn Ru¹d entendeu que a argumentação do primeiro não se encontrava numa linguagem rigorosamente filosófica pois os raciocínios dos quais ele se utilizou eram prováveis, dialéticos e retóricos mas não demonstrativos. Por exemplo, Al-¦azāl÷ teria se enganado em condenar os filósofos peripatéticos acusando-os de ter dito que Deus não conheceria os particulares. Ora, Al¦azāl÷ não entendera que o termo “conhecer”, nesse caso, só é usado por homonímia: o modo pelo qual Deus conhece não é o mesmo pelo qual nós conhecemos; o nosso “conhecer” se faz e se modifica; o de Deus é eterno. Como o verdadeiro discurso do filósofo só pode ser o demonstrativo, as reprovações de Ibn Ru¹d estenderam-se também aos filósofos muçulmanos que serviram-se, muitas vezes, de argumentos dialéticos e prováveis. “Os discursos demonstrativos estão nos livros dos antigos que escreveram acerca dessa ciência , particularmente nos livros do Filósofo Primeiro, não no que afirmaram a esse respeito Ibn Sina e outros que pertencem ao Islām.”332 Quanto à questão da criação ou da emanação Ibn Ru¹d criticou ambas as posições: a de Ibn S÷nā e de Al-Fārāb÷ quanto à emanação, por um lado e, a doutrina de Al-¦azāl÷ de uma criação a partir do nada, por outro lado. Em sua explicação, tanto os filósofos quanto os teólogos aceitaram que havia, nessa questão, basicamente três modos de ser: dois extremos e um intermediário. Um dos extremos seria entendido como sendo formado de matéria, foi causado e o tempo precedeu sua existência como, por exemplo, a água, a terra, o fogo, o ar, as plantas e os animais. Todos esses são “produzidos”. No outro extremo estaria um ser que não é causado e que o tempo não o precedeu sendo, pois, eterno. Este é Deus – Bendito e Altíssimo –, que deu existência a todas as coisas e as conserva. O ser intermediário seria o mundo em seu conjunto. Os 332 AVERROES, Tahafut cit in. GUERRERO, op. cit., p. 52. 206 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho teólogos afirmam que o mundo teve um começo e, portanto seu passado é finito, ao passo que alguns filósofos o afirmam infinito. “As duas partes divergem somente quanto ao tempo passado e à existência passada: os teólogos as vêem como finitas, e esta também é a doutrina de Platão e seus seguidores, ao passo que Aristóteles e sua escola as vêem como infinitas, assim como o futuro.”333 Ibn Ru¹d defendeu a tese da eternidade do mundo sem ver nisso qualquer discordância com a Revelação. A tese comumente defendida pelos teólogos era, como no caso de Al-¦azāl÷, de que o mundo teria sido criado por Deus a partir do nada. Isso signficava que a idade do mundo seria limitada no tempo o que, por sua vez, indicava que.um tempo infinito passado deveria ser visto como impossível. Ibn Ru¹d refuta, no Tahāfut , um a um os argumentos de Al-¦azāl÷. Partindo do conceito do caráter todo-poderoso de Deus, “se a vontade divina tivesse tido que esperar para criar no tempo, tal espera estaria condicionada por algo extrínseco e Deus estaria determinado em suas ações, o que é incompatível com o próprio conceito de divindade. Deus quis desde sempre o cosmos possível que é o que realmente existe.”334 Baseado na própria Revelação para defender sua posição, afirmou que “os teólogos (mutakallimýn) quando falam sobre o mundo não seguem o sentido literal da lei: a interpretam. Na Lei não se diz que Deus teria existido com o puro nada, em nenhum texto se encontra isto.”335 Ao contrário, há varias passagens no Alcorão que sugerem que “sua forma [do mundo] é produzida realmente e que a própria existência e o tempo perduram em vista dos dois extremos, isto é, ininterruptamente.”336 Desse modo, as próprias palavras: “Ele, Quem criou os céus e a terra em seis dias, e seu trono estava sobre a água.”337 implicariam, em sentido literal, que antes da existência do mundo existia outro ser: “o trono e a água, e um tempo antes desse tempo.”338 Do mesmo modo, Suas palavras “o dia em que a terra seja substituída por outra terra e os céus por outros céus”339 implicariam, também , em sentido literal que haveria uma segunda existência depois dessa. Ou, ainda, quando diz: “dirigiu-Se aos céus quando estes ainda eram fumaça”340 significaria que os céus teriam sido criados a partir de algo. Para Ibn Ru¹d, na medida em que uma série temporal passada infinita é possível, 333 AVERROES, Traité Decisif op. cit., p. 29. HERNANDEZ, Historia del pensamiento en el mundo islamico, op. cit.,p 201. 335 AVERROES, Traité Decisif op. cit., p. 31. 336 Ibid, op. cit., p. 30. / Cf. trad. GUERRERO, p. 91. 337 ALCORÃO, XI, 7. 338 AVERROES, Traité Decisif op. cit., p. 30. 339 ALCORÃO, XIV, 48. 340 ALCORÃO, XLI,11. 334 207 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho a idéia propriamente de criação deve ser corretamente compreendida, ou seja, sem a exigência de que um tempo vazio tenha precedido a realização atual do mundo. “O mundo pode ser eterno e Deus ser seu Autor; basta admitir que em nenhum momento o mundo exista por si mesmo sem que Deus o sustente e o faça existir. Mas Deus pode faze-lo existir de toda a eternidade.”341 A cosmovisão de Ibn Ru¹d é a de um universo fechado, esférico, formado por uma série de esferas concênctricas cujo centro é a terra, em torno da qual giram as órbitas celestes. Para explicar o movimento dos céus, Ibn Ru¹d, acompanhando os estudos astronômicos de seu tempo, seguiu a opinião mais corrente e estabeleceu 45 motores: 38 corresponderiam às esferas das estrelas fixas e dos planetas e sete aos movimentos diurnos de cada uma das esferas móveis. Os 38 estariam assim repartidos: 5 para cada um dos planetas superiores (Saturno, Júpiter e Marte), 5 para a Lua; 8 para Mercúrio; 7 para Vênus, um par o Sol e um para as estrelas fixas.342 Na medida em que os motores se hierarquizam, devem chegar a um primeiro motor separado, que é o princípio primeiro e último ao qual todos tendem. É o Primeiro Motor Imóvel, a Primeira Inteligência separada cuja unidade assegura a do universo e, por conseguinte, seu próprio ser. Mas, não obstante sua posição naturalista, Ibn Ru¹d afirmou que o Primeiro Motor Imóvel e eterno é Deus. As intrínsecas relações de Deus e do mundo podem ser ilustradas por essa passsagem corânica: “se no universo houvesse deuses além de Deus, os dois mundos (céu e terra) cessariam de existir.”343 Deus é a causa da existência da inteligência motriz da esfera dos fixos à qual seguem-se as outras esferas tendo, no centro do universo, os quatro elementos. Desde Al-Fārāb÷, a tese da inteligência das esferas interpostas entre o mundo sublunar e o Primeiro Motor – segundo a emanação que ligava, unificava e comunicava todas as partes do universo até o mundo sublunar – já estava estabelecida e cobria o abismo que separava a energia pura, ou Deus, da matéria primeira. Em boa parte, Ibn Ru¹d admitiu essa hipótese e concebeu o céu como um ser que não nasce e nem morre e cuja matéria própria é superior à das coisas sublunares, comunicando a estas o movimento que lhe vem da causa primeira e do desejo que o atrai em direção ao Primeiro Motor. As órbitas celestes seriam movidas pela atração que a Inteligência suprema exerce sobre elas, ou seja, o movimento seria determinado pela sua causa 341 CARRA DE VAUX, Les Penseurs de l’Islam, op. cit., p. 70s. HERNANDEZ, Historia del pensamiento en el mundo islamico, op. cit., p. 241, n. 44 comenta a ausência de um motor. 343 ALCORÃO, XXI, 22. 342 208 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho final. Assim, numa nova perspectiva, Ibn Ru¹d rejeitou que haveria uma causa primeira criadora a partir do nada como queriam os teólogos do Islām ao mesmo tempo em que afastou a idéia de pura emanação como queriam Al-Fārāb÷ e Ibn S÷nā mas apontou para uma simultaneidade de Deus e mundo num eterno começo. Outra questão importante desenvolvida por Ibn Ru¹d, – e não menos espinhosa – referiu-se ao intelecto. Os temas envolvidos nessa discussão ligam-se, principalmente, à questão da transcendência ou da imanência da inteligência humana. No processo de intelecção três perguntas podem surgir com mais força: o homem pensa por si mesmo; o pensamento no homem se dá pelo resultado do contato entre ele e uma inteligência que está fora dele ou é a própria inteligência, externa ao homem, que pensa nele? Seguindo Aristóteles, Ibn Ru¹d entendeu, assim como os seus antecessores peripatéticos que, para inteligir, o intelecto humano deve passar da potência ao ato e é preciso, para isso, que haja um intelecto sempre em ato – intelecto agente – que realize esse processo. Desde Al-Fārāb÷, o intelecto agente fôra estabelecido como uma inteligência cósmica na esfera da Lua sendo que, entretanto, ao homem ainda estava reservado um núcleo intelectivo que lhe era próprio e individual que assegurava o seu contato com as formas permanentes da inteligência agente resultando, consequentemente, na própria intelecção, isto é, no entendimento das coisas por parte do homem. Esse núcleo intelectivo no homem, inclusive, sobreviveria de modo individualizado após a morte do corpo como uma consciência individual, tanto para Al-Fārāb÷ como para Ibn S÷nā, a contemplar as formas permanentes da inteligência agente. A direção tomada por Ibn Ru¹d permitiu colocar em questão esse núcleo próprio ao homem, trazendo à discussão a possibilidade de se entender o processo de intelecção como um processo da própria inteligência agente que, momentaneamente, se daria de modo particularizado no homem. O contato da inteligência agente com nossa alma, sendo como uma luz que iluminaria os inteligíveis para nós, poderia ser interpretado, pois, como uma operação da própria inteligência agente particularizada num determinado indivíduo. Em última análise, não seria o homem a pensar mas seria sempre a própria inteligência a pensar, nele. O que sobreviveria, nesse caso, após a morte? Seguindo os ditames da razão, seria a própria inteligência agente que seria a única propriamente substancial e separada da matéria. A sobrevivência da humanidade só poderia ser entendida, pois, como a sobrevivência da espécie e não como a sobrevivência individual. 209 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho No Comentário Médio Sobre a Alma, Ibn Ru¹d – atribuindo tal interpretação à Alexandre de Afrodísias – falou diretamente sobre essa questão aludindo que é preciso, pois, que essa faculdade de intelecção que recebe a impressão das coisas inteligíveis seja inteiramente impassível e esteja absolutamente livre de toda mistura com a matéria. Com efeito, visto que essa faculdade que chama-se intelecto material pensa todas as coisas, é necessário que não seja misturada de modo algum ao sujeito no qual ela se encontra – como ocorre com as outras faculdades que estão ligadas à matéria. A sua natureza só pode ser de uma simples disposição: “quero dizer que o intelecto em potência é uma simples disposição e não algo no qual se encontra a disposição.”344 Uma passagem do Alcorão foi usada por Ibn Ru¹d para ilustrar essa idéia, quando Moisés pediu a Deus que se mostrasse: “Nunca poderás ver-Me mas olha em direção do monte e se ele permanecer em seu lugar, então me verás. E quando a Majestade de Deus resplandeceu sobre o monte, este se reduziu a pó, e Moisés tombou desmaiado.”345 Por analogia, o intelecto material no homem não teria, inicialmente, a possibilidade de perceber a inteligência agente. Para tal, deveria se tornar intelecto em ato – então, “tu me verás”. Mas, na verdade, nessa união seria apenas a inteligência agente que se perceberia particularizada momentaneamente em uma alma humana. A intelecção humana não seria, pois, a garantia da sobrevivência individual sendo possível que a união marcasse, em última análise, o esfacelamento do intelecto passivo assim como ocorreu com a montanha. Como bem assinalou Corbin, isso se colocaria muito distante do avicenismo, “no qual a garantia inalienável da individualidade espiritual está precisamente na consciência de si que é atingida pela união com a inteligência agente”346. Mas se a Revelação afirma a vida eterna, suas penas e recompensas, como conciliá-la com essa conclusão da razão? A primeira coisa a saber é se realmente essa seria a melhor interpretação da teoria do intelecto em Ibn Ru¹d. Mesmo que a resposta fosse afirmativa, valeria transpor a discussão para as relações entre a razão e a fé, e lembrar com Mehren que Ibn Ru¹d declarou, também, que há questões que devem ser colocadas em espera para serem bem entendidas “aguardando que um dia se encontrem a explicação racional e que, até o momento, rejeitar a exposição alcorânica 344 Tradução em MUNK, op. cit, p. 445. ALCORÃO, VII, 143. 346 CORBIN, Histoire de la Philosophie islamique, op. cit, p. 343. 345 210 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho ou dela duvidar, seria um ato sacrílego e blasfematório”347 pois a filosofia se apoia ao mesmo tempo sobre a razão e sobre a revelação divina. Valeria também, se observar a continuação da surata citada: “e quando [ Moisés] voltou a si, disse: Glorificado sejas! Volto a ti contrito e sou o primeiro dos crentes.” Em outras passagens, como na Paráfrase à Metafísica Ibn Ru¹d parece permanecer de acordo com Ibn S÷nā quanto à conexão do homem com o mundo das inteligências separadas e sua junção final com a inteligência agente, na esfera da Lua. Assim, o destino do homem seria uma certa beatitude intelectual em que estaria sublinhado mais o caráter da ciência do que o da contemplação como o elo que liga o homem ao céu e a Deus e o faz participar, até um certo ponto, da ciência superior, princípio da ordem universal. “É somente pela ciência e não por uma contemplação vazia que podemos chegar a apreender o ser.”348 Se no chamado “averroísmo” a tese da unidade do intelecto com a conseqüente negação da imortalidade da alma individual esteve presente, é preciso levar em conta que entre “Ibn Ru¹d e Averróis” pode haver muita distância. Afirmar categoricamente que essa seria sido a interpretação mais acertada de sua doutrina não é algo que possa ser assegurado com tanta certeza. “É verdade que Ibn Ru¹d professou que há um intelecto apenas comum a todos os homens? Renan foi o primeiro a se elevar contra essa atribuição a Ibn Ru¹d.” 349 Um outro tema que ocupou um lugar central em sua obra foi a relação entre a religião e a filosofia. O fundamento dessa discussão estava na crença da verdade em todas as suas manifestações. Incansável defensor da falsafa e do dogma, Ibn Ru¹d procurou mostrar que a lei religiosa não se opunha à filosofia e que a filosofia não se opunha ao dogma. Para ele, filosofia e revelação não teriam mais do que um único e mesmo fim, conhecer a verdade e atuar conforme ela. A concepção da filosofia como ciência demonstrativa, apresentar-se-ia como o saber racional e conceitual frente ao caráter simbólico e alegórico próprio da religião. No Fa½l al-maqāl / Tratado Decisivo sobre o Acordo da Religião e da Filosofia, Ibn Ru¹d iniciou afirmando que tencionava examinar, do ponto de vista da especulação religiosa, se o estudo da falsafa e das ciências lógicas deveria ser 347 MEHREN, cit em BADAWI, op. cit., p. 13. MUNK, Mélanges de Philosophie, op. cit., p. 444. 349 BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, op. cit., p 849. Para aprofundar essa questão, verificar as posições de Aristóteles, Tomás, Siger de Brabant apresentadas por Badawi, pp. 840-856. Assim como a pópria polêmica entre os analistas, inclusive Renan. 348 211 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho permitido ou não pela lei religiosa; se deveria ser recomendada seja a título meritório ou a título obrigatório. O filósofo entende que, visto que a falsafa não é nada além que a especulação sobre o universo e, na medida em que se conhece o Artífice pelo conhecimento da arte que dele procede e, quanto mais perfeito é o conhecimento de sua obra, mais é perfeito o conhecimento de seu Autor e, na medida em que a lei religiosa convida e incita à instrução a respeito das coisas do universo é, pois, evidente que o estudo da filosofia deveria ser, em vista da lei religiosa ou obrigatório ou meritório. A própria Lei divina contida no Alcorão convidaria, segundo ele, ao estudo e ao aprimoramento racional como “aparece claramente em mais de um verso do Livro de Deus – O Bendito, o Altíssimo! – ”350 Por exemplo, lê-se na surata 59 :“tirai ensinamento disso, oh! vós que sois dotados de visão!”351 Ou então: “Não tens refletido sobre o reino dos céus e da terra e sobre todas as coisas que Deus criou?”352 ; ou, ainda: “(ý) aqueles que refletem sobre a criação dos céus e da terra (ý)”353 Esses seriam alguns dentre inúmeros versos que mostrariam a obrigação da utilização da argumentação racional ou, ao menos, racional e religiosa ao mesmo tempo, exortando à reflexão sobre o universo. Sendo assim, na medida em que a própria Lei divina indicaria a aplicação da reflexão sobre o universo pela especulação racional e, como a reflexão consiste unicamente em tornar conhecido o que se desconhece e, como isso se faz pelo silogismo, haveria a obrigação de se aplicar o silogismo racional na especulação a respeito do universo. Nessa medida, “é evidente que tal modo de especulação, à qual a lei divina convida e incita, toma a forma mais perfeita quando ela se faz pela forma mais perfeita do silogismo que chama-se demonstração.”354 Ibn Ru¹d aludiu ao fato de que alguém poderia objetar que esse modo de especulação a respeito do silogismo racional fosse uma inovação ou mesmo uma heresia, visto que não existia nos primeiros tempos do Islām. Mas, na medida em que o silogismo jurídico usado na lei islâmica também foi posterior às primeiras interpretações do Alcorão e não foi considerado uma heresia, a mesma permissão deveria ser dada ao uso do silogismo racional. 350 AVERROÈS (IBN ROCHD), Traité Decisif - L’Accord de la Religion et de la Philosoohie trad. Léon Gauthier. Paris: ed. Sidbad , 1988, p. 12. 351 ALCORÃO, LIX, 2. AVERROES, Traité Decisif op. cit., p. 12, Cf. GUERRERO, p. 76. 352 AVERROES, Traité Decisif op. cit., p. 12, Alcorão, VII, 185. 353 Ibid , op. cit., p. 12 . 354 Ibid, op. cit., p. 13. 212 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Além disso, na medida em que a Lei divina incitaria ao conhecimento, pela demonstração, do Deus Altíssimo e dos entes cujos Ele é o Autor, seria preferível e mesmo necessário que aquele que assim quisesse proceder conhecesse, previamente, as diversas espécies de demonstração e suas condições, ou seja, seria preciso que se conhecesse no que especificamente o silogismo demonstrativo difere do silogismo dialético, do silogismo oratório e do silogismo sofístico. Seria obrigatório, pois, que antes de abordar a especulação, se tratasse, primeiramente, das coisas que se referem à especulação do mesmo modo, que antes de se fazer um certo trabalho, seus instrumentos devessem ser conhecidos. Assim dever-se-ia, pois, – na medida que é difícil e mesmo impossível que um homem, por si só, pudesse descobrir tudo o que fosse necessário nessa matéria – se aproveitar os estudos sobre esse tema feitos no passado, tenham eles sido elaborados pelos muçulmanos ou não. “Entendo como não sendo nossos correligionários, os antigos que especularam sobre essas questões antes do aparecimento do islamismo.”355 Desse modo, como os silogismos racionais foram estudados pelos antigos, Ibn Ru¹d exortou a que se estudasse sobre isso nos livros dos antigos com o intuito de verificar o que eles disseram. O que for certo e conforme a verdade, deveria ser aceito com alegria e reconhecimento; o que não for conforme a verdade, deveria simplesmente ser assinalado como algo que se deva abster. Ibn Ru¹d entendeu que o estudo dos livros dos antigos deveria ser fundamental visto que a intenção que comporta é justamente a mesma que a Lei Divina incita a conhecer. “E quem proíbe o estudo a qualquer um que esteja apto fazê-lo, isto é, a qualquer um que possua estas duas qualidades reunidas: em primeiro lugar a inteligência inata e, em segundo lugar, a retidão legal e a virtude moral, está fechando a porta pela qual a Lei Divina chama as pessoas ao conhecimento de Deus, isto é a porta da especulação que conduz ao Seu conhecimento, ao verdadeiro conhecimento. Isto seria o cúmulo da ignorância e do distanciamento de Deus Altíssimo”356 Dizer que a filosofia poderia resultar num mal não seria suficiente para mostrar que os que estejam preparados, dela possam obter ganhos pois o mal que poderia resultar acidentalmente dessa ciência ou arte, poderia resultar acidentalmente também de todas as outras ciências ou artes. 355 356 Ibid, op. cit., p. 15. Ibid, trad. Guerrero, p. 81. 213 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Em seguida, Ibn Ru¹d propôs que o acesso ao saber, não obstante dever ser assegurado para todos, deveria seguir conforme as características e os limites de cada um conforme as três classes que identificou entre os homens segundo sua suscetibilidade quanto à aceitação da verdade “pois as características dos homens se escalonam do ponto de vista do assentimento” 357 : alguns dão seu assentimento à demonstração; outros aos argumento dialéticos e outros aos argumentos oratórios. Essa divisão tríplice é ilustrada pelos três tipos de homem que existem diante da letra da escritura: a primeira – grande massa da população – é a dos que não a possuem o menor grau de abstração interpretativa deixando se levar apenas pela retórica; a segunda é constituída pelos homens dialéticos que trabalham com as hipóteses mas não chegam a uma conclusão sobre as questões; a terceira é a dos homens de julgamento correto, isto é, aptos na arte da filosofia. Assim, visto que a Lei Divina faz apelo aos homens segundo esses três graus, ela deve ser capaz, pois, de obter o assentimento geral de todos os homens a não ser – obviamente – daqueles que não a aceitam. Assim, encontram-se três ordens de abordagens: “no topo a filosofia que confere a ciência e a verdade absolutas; abaixo a teologia, domínio da interpretação dialética e do verossímil; no pé da escala, a religião e a fé, que devem ser cuidadosamente deixadas àqueles para quem são necessárias. Justapõem-se, assim, e hierarquizam-se três graus de intelecção de uma só e mesma verdade.”358 É isso que estaria expresso na frase do Altíssimo: “Chama-os ao caminho do teu Senhor com sabedoria e exortações benevolentes. Discute com eles do modo mais conveniente.”359 Ibn Ru¹d não viu como a especulação fundada sobre a demonstração poderia conduzir, de algum modo, à contradição dos ensinamentos dados pela Lei Divina “pois certamente a verdade não poderia ser contrária à verdade mas ela se acorda consigo mesma e testemunha em seu próprio favor.”360 É necessário que a crença, pela qual Deus caracteriza os sábios, seja produzida pela demonstração e, se ela é produzida pela demonstração, ela não pode vir sem a ciência da interpretação: pois Deus , Grande e Poderoso, fez saber que para essas passagens do Alcorão há uma interpretação que é a verdade, e a demonstração não possui outro sujeito que a verdade. 357 Ibid, op. cit., p. 20. GILSON, A Filosofia Medieval, op. cit. p. 443. 359 ALCORÃO XVI, 125 Guerrero, filosófico-sabedoria/ retórico-exortação/ dialético-discussão.p. 83 360 AVERROES, Traité Decisif op. cit., p. 20. 358 214 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Não é demais lembrar que, quanto à interpretação que deve ser dada às passagens do texto revelado, no caso dos muçulmanos isto implica não somente a compreensão dos caminhos da espiritualidade mas a própria legislação que estabelece as regras de conduta da comunidade. Sobre isso, diz Ibn Ru¹d, quando houver desacordo entre o sentido literal do texto revelado e a conclusão demonstrativa a partir do silogismo, um acordo deve ser buscado procurando-se utilizar um sentido figurado no texto. Quando o texto apresentar expressões que, tomadas no sentido literal se contradizem, deve-se buscar um conhecimento mais profundo, conciliando-as pela interpretação. Isso deve ser verificado a partir de uma outra distinção tradicional utilizada por Ibn Ru¹d. O texto revelado possui dois sentidos básicos: um sentido literal ou externo (¥āhir) e um sentido oculto ou interior (bāÐin). Dito de outro modo: um sentido exotérico e um sentido esotérico. “O exotérico são as figuras empregadas como símbolos das coisas significadas; e o esotérico são as coisas significadas, que só se revelam aos homens da demonstração.”361 O caráter exotérico seriam, assim, as figuras empregadas como símbolos dos inteligíveis A partir dessa distinção, deve-se ter em conta que o sentido oculto não deveria ser conhecido por quem não pertencer aos homens de ciência e quem não for capaz de compreendê-lo. Foi para chamar a atenção sobre isso e para que se refletisse a respeito dos limites de entendimento de cada um que ‘Ali Ibn Ab÷ Æālib362 teria dito: “Fale aos homens daquilo que conhecem. Quereis, acaso, que Deus e seu enviado sejam acusados de mentirosos?”363 Segundo Ibn Ru¹d, o conhecimento da existência de Deus, da missão dos profetas e da vida futura seria acessível a todos mas para que isso seja atingido seria preciso se respeitar as três vias de acesso a esse conhecimento: a via oratória, dialética ou demonstrativa. “Pois se é um homem de demonstração, uma via lhe é oferecida para conduzi-lo à aquiescência pela demonstração, se é um homem de dialética, pela dialética; e se é um homem de exortação, pelas exortações”364 na medida em que o objetivo da Lei divina não é outro que o de ensinar a verdadeira ciência e a verdadeira prática. A verdadeira ciência seria o conhecimento de Deus e de todas as coisas tais como são e a verdade prática consistiria nas boas ações do homem 361 Ibid, op. cit., p. 34. O quarto califa, primo e genro do Profeta. 363 AVERROES, Traité Decisif op. cit., p. 24. 364 Ibid, op. cit., p. 33. 362 215 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho fossem elas externas, como os atos corporais, fossem elas internas como a paciência e a gratidão. Ora, se o texto sagrado possui dois níveis de compreensão – o sentido literal e o oculto –, se o primeiro sentido é o que é apreendido pela massa, e o segundo sentido só é atingido pelos aptos ao filosofar que encontram o verdadeiro sentido da passagem em questão, logo, a segunda classe, dos dialéticos, não seria necessária nem no primeiro nem no terceiro caso. Essa classe Ibn Ru¹d identifica com as correntes de teólogos que crêem compreender, mas por estarem cegamente presos ao dogma, não apreendem o sentido correto só apreendido pela ciência demonstrativa e, por isso, segundo ele, teriam semeado o germe da discórdia no Islām. Divididas em duas classes: os ignorantes e os sábios, os que estão a meio caminham nada mais fariam do que confundir as coisas pois revelam parte da compreensão esotérica e divulgam conclusões da ciência. Por essa razão, segundo ele, nem os teólogos, nem os literatos, e nem mesmo os partidários do método esotérico são capazes de formular as interpretações justas que exige a fé verdadeira. Somente os filósofos são capazes disso. Assim, os dois níveis de linguagem do texto sagrado – exotérico e esotérico – devem atingir o assentimento segundo os três graus de argumentação – demonstrativa, dialética e oratória – e, por isso, a Lei divina, para ser acessível a todos os homens, conteria os três tipos de argumentação.Visto que a Lei divina tem como primeiro objetivo atingir o maior número de pessoas sem negligenciar, ao mesmo tempo, sua atenção aos espíritos de elite, os métodos que aparecem na lei religiosa seriam métodos de concepção e de assentimento comuns ao maior número de pessoas, isto é, símbolos e alegorias. Quando for o caso de haver interpretação, esta só poderia atingir a verdade pela demonstração através do silogismo. “São esses unicamente os métodos que se encontram no Livro Sagrado. Pois quando o examinamos, encontramos os três métodos: o método que existe para todos os homens, os métodos comuns para o ensinamento do maior número e o método reservado.”365 Expor determinadas coisas, notadamente interpretações demonstrativas que estão distantes do conhecimento comum, a quem não está apto leva ao erro tanto o que expõe quanto àquele que é exposto. Quando se retira o sentido exterior deve-se ser capaz de instalar, em seu lugar, o sentido da interpretação pois fazer ruir o sentido exterior num espírito que está apto apenas a conceber o sentido exterior é conduzi-lo 365 Ibid ,op. cit., p. 49. 216 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho ao erro. Este erro é apontado por Ibn Ru¹d nas obras dos teólogos justamente porque “as interpretações não devem ser expostas ao vulgar nem nos livros oratórios nem nos dialéticos, quero dizer nos livros onde as argumentações são desses dois gêneros como o fez Abý ©amid [Al-¦azāl÷].”366 Refletir corretamente sobre a revelação segundo os métodos da filosofia não conduziria, assim, à negação da revelação. Quando a conclusão do silogismo demonstrativo se acorda com a revelação não há problemas mas quando não se encontram em concordância trata-se apenas de um desacordo aparente, devido ao sentido literal e ao sentido oculto. Nessse caso o filósofo deve recorrer a hermenêutica segundo os princípios da demonstração. Desse modo, harmonizam-se duas abordagens de uma só e mesma verdade, desde que corretamente compreendidas: a filosofia e a religião, pois ambas têm a mesma finalidade para o homem: atingir a felicidade. Se a filosofia cumpre o papel de mestra de felicidade somente para uma parte dos homens suscetíveis à demonstração, as religiões têm em vista o ensinamento de todos os homens sem exceção. Assim elaboradas, as duas dimensões – razão e fé – se interpenetram no pensamento de Ibn Ru¹d. Afirmar sem reservas que ele professou um racionalismo sem limites ou um puro fideísmo faz parecer distante as sua intenções em contemplar essas duas realidades. As palavras de Renan sintetizam um pouco desse aspecto: “Ibn Ru¹d filosofa livremente, sem buscar se chocar com a teologia, mas, também, sem se incomodar em evitar o choque.”367 Segundo suas próprias palavras: “os que admitem que pode existir uma religião fundada somente sobre a razão devem reconhecer que ela é inferior às religiões tiradas ao mesmo tempo da razão e da revelação”368 Se por um lado, Ibn Ru¹d reconhece isso, não deixa, por outro, de tirar as conclusões racionais até às últimas conseqüências ao mesmo tempo em que “admite que há verdades que ultrapassam a razão, que tudo não se reduz ao inteligível, que a revelação ensina verdades que a razão não pode atingir; que a razão humana é incapaz de aprofundar e de discutir certas questões resolvidas pela revelação.”369 Isso não significaria, por outro lado, um acomodar-se na revelação mas que a busca pela demonstração deve ir ao encontro da própria revelação que sublinha: “os enviamos com as evidências e os 366 Ibid, op. cit., p. 44. RENAN, apud BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, p.788. 368 AVERROES, Tah¡fut apud BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, 785. 369 Ibid, p. 786. 367 217 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho livros. E a ti revelamos a mensagem para que esclareças os humanos, conforme o que foi revelado, a fim de que meditem.” 370 Os dois modos de apresentar a verdade – revelação e demonstração – não seriam, pois, contraditórios. O chamado “averroísmo latino” teria compreendido mal essa posição, atribuindo a Ibn Ru¹d a tese de que haveria duas verdades distintas: uma filosófica e uma religiosa. Equivocadamente acabou atribuindo-se a Ibn Ru¹d uma condenação de todas as religiões, quando o ataque se restringia mais a algumas correntes teológicas do Islām. Mas as injustiças parecem ter feito parte integrante de sua história pessoal e também da interpretação de suas teses. Como bem lembra De Libera: “nenhum filósofo terá sido menos compreendido nem mais caluniado do que Ibn Ru¹d. Entre os pensadores da terra do Islām nenhum terá tido mais influência sobre a cultura universal.”371 O destino das obras de Ibn Ru¹d foi curioso. A maioria dos originais árabes foram perdidos e foi sobretudo por traduções hebraicas e latinas que nos são conhecidos. Chegar até nós já foi suficientemente formidável pois suas obras ardiam nas chamas, por ordem de Al-Man½ýr, enquanto o filósofo ainda era vivo. Mesmo que grande parte dos originais de Ibn Ru¹d tenha sido destruída ainda em Córdoba, algumas cópias foram salvas e seguiram-se, a estas, as traduções hebraicas. Em AlAndaluz, havia muitos cristãos e judeus e sabe-se que, antes do fim do séc. XII d.C./VI H. suas obras eram lidas em árabe pelos judeus que inauguraram essa fase inicial de tradução para o hebraico. A “fase judaica foi a primeira na migração de Ibn Ru¹d em direção ao Ocidente. Em razão dos laços culturais estreitos entre judeus e cristãos, e do conhecimento corrente do hebraico na Europa ocidental (...) a tradução latina das obras árabes, frequentemente intermediadas pelo hebraico, tornou-se extremamente desenvolvidas no começo do séc. XII d.C. no qual já se encontram traduzidos, por exemplo, 15 comentários.”372 Munk frisa a importância dessa transmissão afirmando que “a obstinação com a qual os Almôadas perseguiram a filosofia e os filósofos não permitiu que cópias árabes dos escritos de Ibn Ru¹d se multiplicassem e elas foram a todo momento extremamente raras”373. Curioso também foi o destino de sua filosofia: Ibn Ru¹d não teve praticamente discípulos ou sucessores no mundo islâmico e nem sequer grandes 370 ALCORÃO XVI, 44. DE LIBERA, A Filosofia Medieval, op. cit, p. 164. 372 FAHKRY, Histoire de la Philosophie Islamique, op. cit., p. 301. 373 MUNK, Mélanges de Philosophie, op. cit., p. 439. 371 218 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho críticos. (!) A influência de seu trabalho se deu mais em vista da filosofia judaica e cristã do que propriamente no mundo árabe muçulmano. “No mundo árabe foi esquecido de imediato.”374 Do lado ocidental, ele encontrou, por exemplo, a companhia do judeu Maimônides e – nas disputas dos cristãos – Siger de Brabant, Alberto Magno e Tomás de Aquino. Ao mesmo tempo em que acreditou firmemente em Deus e em Seu Profeta Mu¬ammad, Ibn Ru¹d apontou rumos na filosofia e na ciência pelos quais os homens deveriam continuar em busca do saber. No Ocidente, muitas de suas idéias chegaram com vigor, anunciadoras de novos caminhos. 374 GUERRERO, Averroes ,op.cit., p.47. 219 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho 6– AS DUAS FACES DA FALSAFA 6.1 O pouso das águias Com a morte de Ibn Ru¹d algo se encerrou. Mas, precisamente, o que ? Esse é um tema que ainda está longe do consenso. Com a morte de Ibn Ru¹d morreu também a filosofia no mundo islâmico? Essa, por sinal, foi a idéia mais corrente que se tinha até há pouco. Muito das controvérsias a esse respeito são tributárias do sentido que se atribui ao que seja “filosofia”; outras pelo sentido que se dá ao termo “falsafa”. Não é demais lembrar que, no nosso caso, o termo “filosofia” é entendido em sentido estrito e não como sinônimo de pensamento e, no caso do termo “falsafa”, este é entendido não somente como a transcrição do termo “filosofia” mas também como o nome do período específico que comporta os filósofos helenizados circunscrito entre Al-Kind÷ e Ibn Ru¹d. Se tomarmos o termo “falsafa” simplesmente como a transcrição do termo “filosofia”, não seria nada razoável dizer que a falsafa terminou com a morte de Ibn Ru¹d pois isso seria afirmar que, depois dele, nenhum pensador islâmico teria adotado qualquer um dos princípios da filosofia, o que não é verdade. Mas quando tomamos o termo “falsafa” como um momento circunscrito da história da filosofia nada nos impede de afirmar que Ibn Ru¹d, foi o último grande nome e o selo de ouro do período clássico da filosofia entre os árabes. A curva ascendente da falsafa iniciada por Al-Kind÷, atingira o fim de um ciclo com o filósofo de Córdoba. Depois de ter sobrevoado os céus medievais do mundo árabe por mais de quatrocentos anos, deu-se como se o pássaro da filosofia pousasse. O Oriente tenderia a ficar com uma de suas asas e o Ocidente com a outra. Os dois mundos continuaram a meditar mas os caminhos do saber se fizeram por diferentes trilhas. Uma propensão mística e teológica se firmou, a partir de então, no Islām, enquanto a ciência e a filosofia ganharam novos rumos no Ocidente medieval latino. A falsafa já não seria mais a mesma, mas havia frutificado ao longo de quatro séculos inúmeras idéias que se fariam presentes nos dois lados do mundo. Sobre o meridiano dos caminhos do saber, a falsafa foi um momento de busca de integração do conhecimento que parecia não poder mais viver naquele momento da história. Os desafios da cultura e da religião saída do deserto da Arábia já eram, naqueles dias, outros que os da ciência e da filosofia. Como bem assinalou Rémi 220 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Brague “ninguém contestará que os muçulmanos continuaram a pensar depois de Averróis. Mas resta saber em que medida esse pensamento deve ser qualificado do nome de “filosofia”375. Os pensadores do Islām seguiram os seus caminhos de meditação, mas inclinaram-se menos à falsafa e mais a partir dos princípios da sabedoria divina –»À¸«[ »°¨o / ¬ikma ’ilahiyya – que poderia ser designada como uma “teosofia”; ou a partir dos princípios da experiência mística e da metafísica do sufismo; ou a partir da continuação da exegese teológica do kalām e das tendências político-religiosas dos doutores da lei islâmica. A filosofia minguou. Por outro – e de outro – lado, o Ocidente latino foi tocado por uma enxurrada de textos filosóficos que brotavam das mãos dos tradutores e inundaram os pensadores latinos com novas idéias e teses que, até então, desconheciam. De Ibn Ru¹d, Ibn S÷nā, Al-Fārāb÷ e Al-Kind÷ à Aristóteles, Platão e Plotino, o Ocidente passou em revista, a partir de então, a história da filosofia e seguiu, insistentemente, tirando as conclusões que o pensamento filosófico e científico impunha aos seus adeptos. Tais revoluções tiveram como cenário os séculos XII e XIII d.C./ VI e VII H. e a falsafa, em seu último ato, contribuiu para essa transmissão. 6.2 Caminhos para o “Oriente”. A história do pensamento no mundo islâmico não segue a mesma divisão da história da filosofia ocidental. Sua periodização interna invariavelmente cria polêmicas ao se adotar critérios diferentes para estabelecer períodos, escolas e tendências. Vejamos algumas opiniões a respeito. Em sua Histoire de la Philosophie en Islam, Badawi deixou clara sua posição ao encerrar de modo inconteste seu trabalho com o nome de Ibn Ru¹d como o último dentre os filósofos árabes do período clássico. Não obstante, ter havido alguns nomes posteriores tais como Abhari e Ibn Sabin, estes não alcançaram o grau de complexidade e importância dos seus antecessores. Fahkry, em sua A History os Islamic Philosophy, optou por uma divisão intercalada entre a mística, a filosofia e a teologia num movimento de reações mútuas cobrindo o período iniciado por volta do séc. XI d.C. / V H. até o séc. XIV d.C. / VIII H. Hernandez, por sua vez, dedicou todo o segundo volume de sua História del Pensamiento en el Mundo 375 BRAGUE, R. “Sens et Valeur de la Philosophia dans les trois cultures médiévales.” In Miscellanea Mediaevalia / Was ist Philosophie im Mittelalter ? Berlin: Walter de Gruyter, 1998, p. 236. 221 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Islâmico às correntes da Andaluzia, retomou o terceiro volume a partir de Ibn åaldýn no séc. XIV d.C./ VIII H., seguindo até os nossos dias. Em todos os casos aponta-se a morte de Ibn Ru¹d como um marco importante. Mas é propriamente Corbin em sua Histoire de la Philosophie Islamique, que sublinhou com mais intensidade esse marco ao adotar a seguinte divisão: “I- Das origens à morte de Averróis” e “II- Da morte de Averróis até os nossos dias”. Tal posição se justificaria entendendo-se que, apesar dos oito séculos que seguiram-se à morte de Ibn Ru¹d, não teria havido rupturas ou movimentos de impacto semelhantes ao que houve, por exemplo, com a entrada da própria falsafa no cenário oriental ou – em relação à filosofia ocidental – com o advento do cristianismo ou do Renascimento europeu. Assim, a morte do filósofo de Córdoba foi, por ele, considerada como um marco decisivo para a periodização da história da filosofia islâmica. Essa divisão refletiu com mais agudeza a importância do antes e depois de Ibn Ru¹d, marcando com mais ênfase as mudanças nas tendências do pensamento no mundo islâmico. Dentre as inúmeras correntes e pensadores que podem ser indicados – tais como a abordagem teológica de Fa¬r al-Din al-Rāzi (1149/1209 d.C) ou a contribuição que Ibn åaldýn (1332/1406 d.C.) legou em sua obra Os Prolegômenos, anunciando o caráter científico da história e da sociologia e outras figuras de caráter mais isolado –, duas chamam mais a atenção pelo maior caráter de continuidade e podem ser ilustradas por dois fatos próximos ao filósofo de Córdoba: Sohraward÷ morreu sete anos antes de que Ibn ‘Arab÷ assistisse aos funerais de Ibn Ru¹d. A esses dois nomes contemporâneos de Ibn Ru¹d – Sohraward÷ e Ibn ‘Arab÷ –, ligaram-se duas tendências de profunda influência nos caminhos do pensamento no mundo islâmico mantendo-se crescentes até os dias de hoje. Ao comentar os significados da morte de Ibn Ru¹d, Corbin aludiu ao fato de que “por muito tempo se considerou que seus funerais teriam sido igualmente os da filosofia islâmica. Tem-se razão, no sentido de que com ele se acabava esta fase da filosofia islâmica que se designou como “peripatetismo árabe”. Mas isso não é menos injusto pois se perdia de vista que, com a morte de Averróis começava algo de novo, alguma coisa que é simbolizada pelos nomes de Sohraward÷ e Mu¬yidd÷n Ibn ‘Arab÷.”376 Nessa sua afirmação duas coisas ficam claras: a primeira é a de que se, por um lado, o funeral de Ibn Ru¹d não 376 CORBIN, op. cit, p. 352. 222 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho significou o fim da filosofia islâmica, por outro lado, significou, sim, o fim do período clássico da filosofia no Islām; a segunda é a de que a sequência da filosofia islâmica encontrou duas de suas grandes direções durante o ocaso da falsafa. Em largo esboço, pode se dizer que a “teosofia das luzes” de Sohraward÷ e a “teosofia mística” de Ibn ‘Arab÷ sucederam o confronto entre o Kalām e a falsafa ditando duas grandes linhas das fontes de meditação no Islām. “A corrente proveniente de Sohraward÷ (’I¹rāq) é de tal originalidade que deu nascimento ao corrente adágio: o ’I¹rāq é em vista da filosofia o que o sufismo é em vista do kalām. Não cabe neste trabalho penetrar no universo de extrema riqueza e complexidade dessas duas correntes mas apenas permanecer nos limites de algumas linhas sumárias de caráter biográfico de seus autores. Sohraward÷, também chamado Šai¬ al-I¹rāq / o Mestre das Luzes, nasceu no Irã e morreu muito jovem com apenas 36 anos de idade. Seguindo-se a Ibn S÷nā, foi um dos exemplos da transferência das fontes da meditação do Islām ocidental para o Islām oriental sob os eflúvios dos pensadores iranianos a partir da retomada de suas tradições mais antigas, ou seja, de origem persa. Sua obra situou-se na encruzilhada dos caminhos entre o destino de Ibn Ru¹d no Ocidente e no de Ibn S÷nā no Oriente ou, ainda, entre o peripatetismo e a “filosofia das luzes”. Esta última assentou no Oriente, notadamente no Irã, novas rotas sobre as quais tantos pensadores e espiritualistas se engajaram até os nossos dias. Seguindo as indicações de caráter simbólico deixadas por seu conterrâneo Ibn S÷nā, Sohraward÷ acreditou poder reconduzir o projeto aviceniano de uma filosofia oriental como mostra sua obra ©ikma al-I¹rāq / A Sabedoria das Luzes. Desse modo, as noções colocadas por Ibn S÷nā nas poucas páginas que restaram de sua obra Filosofia Oriental e no caráter simbólico da obra ©ayy Ibn Yaq¥ān, nortearam o pensamento de Sohraward÷. A partir dessas indicações, o jovem pensador pretendeu dar seguimento ao que entendeu ter sido a intenção de Ibn S÷nā que, em sua opinião, não teria chegado ao fim de suas intenções por não ter apresentado os verdadeiros fundamentos da sabedoria própria do Oriente: os ensinamentos dos sábios da antiga Pérsia. Desse modo, com o intuito de revivificar os saberes de suas tradições mais remotas, muito antes do surgimento do Islām, em seu horizonte meditativo dominam as figuras de Hermes, Platão e Zaratustra. Nesse cenário, o termo “platônicos da Pérsia” designou essa escola cuja uma de suas características foi interpretar os arquétipos platônicos em termos da angeologia 223 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho zoroastriana. Aristóteles e outros filósofos, quando surgem, são nomes cujas próprias doutrinas já não são reconhecidas em sua totalidade. Outra linha importante determinou-se a partir da obra incomparável de Ibn ‘Arab÷ (1165- 1240 d.C / 569-638 H.). Nascido no sul da Espanha e contemporâneo de Ibn Ru¹d, Ibn ‘Arab÷ viajou por toda a Espanha, norte da África, pelas terras do Oriente Próximo e se instalou, por fim, em Damasco, na Síria, onde morreu por volta dos 75 anos de idade. Dentre os mais de 800 títulos a ele atribuídos, 400 parecem ser autênticos e chegaram até os nossos dias. Os adjetivos de Corbin, a seu respeito, mostram um pouco desse incomparável místico: “um dos maiores teósofos visionários de todos os tempos (ý)com essa obra, algo de novo e original começa (ý) a filosofia dos falāsifa, o kalām dos escolásticos, a ascese dos piedosos sufis primitivos, tudo isso é levado na torrente de uma metafísica especulativa e de uma potência visionária sem precedentes.” 377 Fahkry assinala a obra de Ibn ‘Arab÷ como tendo sido “a tentativa mais audaciosa e a mais radical para expressar a versão mística da realidade em termos neoplatônicos.”378 Ibn ‘Arab÷ recusou que a filosofia peripatética desenvolvida por Ibn Ru¹d fosse capaz de atingir o grau supremo do verdadeiro conhecimento. Mesmo assim, suas obras sobre a experiência mística revelam uma sistematização que só foi possível graças a uma certa adaptação dos elementos oriundos da filosofia aos quais Ibn ‘Arab÷ teve acesso. O conjunto de seus escritos se mostra como uma verdadeira enciclopédia mística, ascética, teológica, poética e literária; com temas de grande extensão e profundidade que marcaram praticamente todo o desenvolvimento da mística posterior no mundo islâmico. Desse modo, entendendo-se a morte de Ibn Ru¹d como uma ruptura da continuidade da filosofia – em sentido estrito – com o mundo islâmico duas grandes linhas de desenvolvimento ganharam terreno: a de Sohraward÷ e a de Ibn ‘Arab÷. Indicações como essas são fornecidas, também, por Corbin e Hernandez que parecem ser dois dos estudos mais autorizados para se ter uma idéia mais detalhada da continuidade do desenvolvimento do pensamento islâmico desde a morte de Ibn Ru¹d até os nossos dias. Apesar das dificuldades enfrentadas para se traçar um itinerário de quase oitocentos anos – do séc. XII d.C./ II H. até os dias de hoje – as duas obras se complementam: Corbin confere mais ênfase ao caráter místico das doutrinas e escolas que elenca ao passo que Hernandez o complementa com ótimas abordagens de caráter 377 378 CORBIN, op. cit, p. 402. FAHKRY, op. cit., p. 276. 224 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho político e religioso tais como a penetração do marxismo e de outras correntes de pensamento européias da modernidade que serviram de base na construção do pensamento político no mundo árabe. A obra Crítica da Razão Árabe de Mu¬ammad ‘Abd Al-Jabr÷ é uma obra contemporânea. Algumas posições desse pensador revelam em que medida alguns intelectuais muçulmanos se posicionam em relação à filosofia nos dias de hoje. A primeira delas é a de que muitos estão procurando voltar para sua própria história do pensamento pelas portas da filosofia. Não bastou que Ibn Ru¹d fosse esquecido. O ocidente o guardou e, há não muito tempo, foi apresentado novamente à sua própria história da filosofia. As críticas de Jabr÷ são contundentes. O Islām teria entrado nas trevas da filosofia por não seguir os caminhos antecipados por Ibn Ru¹d. Al-Jabr÷ critica o exagerado caminho místico proposto pelos seguidores de Ibn S÷nā e propõe uma retomada dos caminhos indicados pelo peripatetismo de Ibn Ru¹d como um novo renascimento da filosofia no mundo árabe. Os caminhos ainda parecem abertos. 6.3 Caminhos para o “Ocidente”. Mas alguém poderia perguntar: ora, mas que interesse teríamos nós, do Ocidente, com a influência da filosofia grega no mundo árabe? O que nos importa a falsafa quando, na verdade, deveríamos nos preocupar com a formação das bases do nosso próprio pensamento? Afinal, não podemos traçar a nossa história da filosofia ocidental sem falar na falsafa? A resposta é que os caminhos da filosofia no Ocidente, a partir do séc. XII d.C / VI H. foram também marcados pela presença da falsafa. Ela faz parte da nossa história, e não apenas da história do mundo árabe. É nessa medida, pois, que se destaca o papel da falsafa na formação do pensamento ocidental tanto na baixa Idade Média, quanto no impulso posterior do Renascimento pelo contato que se deu a partir do séc. XII d.C./IV H. entre o Ocidente medieval latino cristão com o Oriente medieval árabe muçulmano. Quer tenha sido através do contato das emergentes universidades da Europa com o pensamento dos árabes, quer tenha sido pelo estreito contato na Espanha moura ou quer tenha sido, em menor grau, pelo contato das cruzadas, os ocidentais foram marcados não só pelo refinamento das sedas e dos perfumes, mas também pelo refinamento do astrolábio, pelas técnicas de navegação, pela astronomia, pela medicina e, mais do que tudo, pela recepção da ciência e da filosofia provindas das obras gregas assim como das obras dos falāsifa. 225 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Afinal, fora entre os árabes que essas ciências haviam sido guardadas e desenvolvidas por mais de quatro séculos. A vida nova no campo da filosofia veio juntamente com as traduções de importantes obras escritas em árabe em muitos campos do conhecimento: matemática, astronomia, navegação, medicina e filosofia. Das ervas curativas ao vocabulário náutico de Portugal, a presença árabe foi duradoura: “nas artes náuticas, nas ciências astronômicas, nas ciências naturais e aplicadas, a ciência portuguesa tomou uma vasta porção da ciência árabe e sujeitou-a logo em seguida a um cotidiano experimentalismo.”379 Na medicina, o Canon de Medicina de Ibn S÷nā, traduzido para o latim, permaneceu como texto base do ensino médico nas universidades européias até, pelo menos, o século XVI d.C. Também foi natural que, na medida em que os textos árabes traziam a ciência dos antigos gregos, os pensadores do ocidente latino, paulatinamente, foram se desfazendo das interpretações e seguiram em direção às próprias fontes de Aristóteles, Platão, Galeno e outros. Mas, num primeiro momento, o que os ocidentais latinos conheceram foram as obras dos falāsifa. No campo da filosofia, não coube mais na roupa da história repetir que os falāsifa teriam sido para a história da filosofia ocidental, meramente, “comentadores árabes de Aristóteles”, em alguns casos suas teses foram tão duradouras como as do próprio Aristóteles entre os medievais do Ocidente. Foi nesse contexto que, pela dificuldade de pronúncia, Ibn S÷nā foi transformado em Avicena (trocando-se a letra “b” pela letra “v” como é comum em Portugal e Espanha) e Ibn Ru¹d ficou conhecido pelo seu nome latinizado de Averróis. Já foi dito que assim como modificaram seus nomes, em alguns casos, confundiram suas teses e fizeram crer que os falāsifa dissessem coisas que não haviam dito. Mas as falsas atribuições de textos, a compreensão equivocada de teses e de idéias, os manuscritos incompletos e faltantes eram moeda corrente e também fizeram parte da construção filosófica do ocidente latino naquela época. Em todo o conjunto de mudanças que se anunciou, a falsafa contribuiu para a recepção da filosofia grega ao ocidente. Impulsionados pelos novos desafios, na mesma época, a filosofia cristã procurou reformular muitas das bases que sustentavam suas teses e, para tal, valeu-se, em alguns casos, das doutrinas dos falāsifa . O final da Idade Média no ocidente, já nas raias da modernidade, escutou os fragmentos de idéias 379 PINHARANDA, op. cit., p. 288. 226 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho que deveriam circular na época e que, talvez, os próprios europeus sequer sabiam de onde provinham. Muitas destas eram tributárias de Ibn S÷nā, Ibn Ru¹d ou Al-Fārāb÷. Por vezes encontramos nos textos em árabe inspirações que pela semelhança, talvez tenham tocado indiretamente os nossos filósofos modernos. Como vimos, no Islām, após a morte de Ibn Ru¹d, a falsafa não se desenvolveu como antes o fizera. Deu-se como se a filosofia escrita em árabe houvesse cumprido uma nobre missão de guardar e desenvolver durante anos a filosofia e a ciência dos antigos enquanto o ocidente, à meia luz, se preparava para recebê-las. Durante a Idade Média ao longo de, pelo menos quatro séculos, a filosofia esteve em boas mãos; mais do que isso, esteve no coração, na palavra e no pensamento dos falāsifa que escreveram uma importante página da história da filosofia, em árabe. 6.4 Traduções para o latim A partir do séc. XII d.C./ VI H., o conjunto de obras traduzido para o latim pode ser denominado corpus greco-árabe, pois não se trata apenas de obras em árabe, à exclusão das gregas, e nem de conhecimentos a partir das obras gregas, à exclusão das obras em árabe. Apesar de as primeiras traduções terem sido feitas do árabe para o latim, estas foram seguidas simultaneamente pelas traduções a partir do grego. Um dos primeiros registros são traduções esporádicas do árabe para o latim de Adelardo de Bath (m.1142), de alguns títulos ligados às ciências da natureza. Dentre elas situam-se as Tabelas Astronômicas de Al-åawārizmi, uma obra de astrologia de Abu Ma‘¹ar, um tratado sobre os talismãs de Ibn Qurra e os Elementos de Euclides – todas diretamente do árabe. As condições das traduções eram precárias e difíceis. De todo modo Adelardo indicou qual o rumo que a história iria tomar. “Com ele começava uma identificação dos árabes com os ‘homens de razão’ que dominaria o pensamento cristão durante pelo menos dois séculos.380 O grande avanço no período de traduções ocorreu na cidade de Toledo381, na época do Bispo Raimundo, embora não se possa determinar, com muita clareza, qual teria sido a real intervenção dos arcebispos ou de outros personagens 380 DE LIBERA, op. cit., p. 346. Cf. o artigo de Danielle Jacquart, “ A escola de tradutores” em CARDILLAC, L. (org). Toledo, séculos XII-XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. pp. 155-167. 381 227 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho conhecidos no conjunto de traduções que teve Toledo como centro. O Bispo Raimundo é, geralmente, considerado um mecenas cuja intervenção foi decisiva para a elaboração de traduções do árabe para o latim e parece não ter havido, nesta época, uma “célebre escola dos tradutores de Toledo”. Na verdade, as circunstâncias da tradução também forma difíceis, resultando muito mais do fruto do trabalho de alguns homens obrando de maneira mais isolada do que se suporia haver numa escola sistemática de tradução. Muitas das traduções do árabe para o latim se deveram aos judeus bilíngües que viviam na Espanha e conheciam a língua árabe. Não é demais lembrar que o meio toledano, neste período, compunha-se de muçulmanos, judeus e cristãos arabizados, chamados “moçárabes”. Estes, às vezes, respondiam por dois nomes: um árabe e um latino. Em relação à falsafa, as traduções podem ser divididas em dois principais momentos: no primeiro prevalece a filosofia de Ibn S÷nā, no segundo traduzse Ibn Ru¹d. Do primeiro período de traduções três nomes se destacam: Gerardo de Cremona, Domingos Gundissalino e João de Espanha. Gerardo de Cremona (1114/1187 d.C.) traduziu mais de 70 obras. Dentre elas, o Canon de Medicina de Ibn S÷nā, o De Intellectu de Al-Kind÷ e talvez a obra homônima de Al-Fārāb÷ dentre outras. Ainda do árabe, traduziu os Segundos Analíticos, De Caelo et Mundo, De Generatione et Corruptione e parte dos Meteorológicos dentre outras. João de Espanha – ou Ibn Daýd / Avendauth / e outras mais de dez formas que podem se referir a esse mesmo personagem – trabalhou em conjunto com Gundissalino e traduziu, por exemplo, o Maqā½id al-Falāsifa de Al¦azāl÷. Em conjunto com Domingos Gundissalino – ou Domenico Gundissalvi – atribui-se-lhe a tradução da Metafísica de Ibn S÷nā382, partes da Lógica da Al-Šifā`, o Liber de scientiis, Fontes Quaestionum, De Intellectu, Liber exercitationis ad viam Felicitatis de Al-Fārāb÷, dentre outras. No caso de Ibn S÷nā, sua filosofia foi conhecida, fundamentalmente, pela Metafísica, os tratados Do Céu, Dos Animais, Sobre a Geração e a Corrupção e o Livro da Alma. Esse grupo de escritos, mesmo que fragmentários, era o “primeiro conjunto de doutrinas verdadeiramente constituído que chegava ao ocidente” 383 No caso do De anima, seu impacto foi verificado não só pelo 382 Para detalhes sobre as traduções para o latim da obra de Avicena vide D’ALVERNY, M.T. Avicenne en occident. Paris: J.Vrin, 1993. 383 GOICHON, A. M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médiévale. Paris: Librarie d'Amérique et d'Orient, 1940, p.90. 228 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho seu próprio conteúdo mas também porque apresentava, pela primeira vez, uma síntese do De Anima de Aristóteles.384 No caso da tradução do Kitāb al-Nafs / Livro da Alma de Ibn S÷nā, considerado o mais decisivo tratado de psicologia que penetrou no Ocidente naquela época, a principal fonte histórica que fornece preciosos elementos das condições em que se realizou esta tradução é a própria dedicatória385 que se encontra em mais de quarenta manuscritos386. Por ela sabemos como, quando e onde foi realizado este trabalho. A dedicatória se faz em nome de um arcebispo de Toledo de nome João: “ Johanni Reverentissimo Toletanae sedis Archiepiscopo et Hispaniarum Primati ” e fornece, em seguida, dados sobre algumas circunstâncias da tradução, seu método e seus tradutores mas, mesmo assim, os enigmas e as contradições que ela apresenta dividem as opiniões, deixando ainda muitas lacunas. De todo modo, pela menção do nome do arcebispo citado na dedicatória como “João” sucessor de Raimundo, é possível situar a elaboração da tradução do De Anima entre 1152 d.C., data da morte de Raimundo e 1166 d.C., data da morte de João. O método de tradução é relatado na própria dedicatória como um trabalho de equipe: “Eis, pois, este livro, traduzido do árabe conforme vossa orientação, eu dizendo cada palavra em língua vulgar387 e o arque diácono Domenico a transferindo e convertendo em latim.” No entanto, em que medida esta etapa oral era realizada, isso é algo que não se esclareceu e não se sabe se o tradutor arabofone conhecia ou não o latim e, se o tradutor latinista conhecia ou não o árabe. O que se confirma é que a tradução contém muitos equívocos. A confrontação entre o texto árabe e o latino mostra inúmeras distorções, dentre elas, confusões entre raízes árabes e erros de sintaxe, devido à estrutura maleável da língua árabe. O latinista da equipe é nomeado como Domenico embora nenhum dos manuscritos forneça o seu nome completo. Mesmo assim, seu nome é identificado com o de “Domenico Gundissalinus” ou “Domenico Gundissalvi”, de quem já falamos, e que faleceu em 1190 d.C. e que, na sua juventude entre 1152d.C. e 1160d.C., talvez pudesse ter realizado esse trabalho. Tal identificação , no entanto, não põe fim a uma série de questões que ainda permanecem sem resposta em torno do latinista da equipe. 384 Parece ter havido uma tradução de Nemésio (De #atura hominis) que também foi feita à mesma época. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.102. 385 O texto integral da dedicatória é reproduzido em VERBEKE. Introd. IV-V, pp.103-104. 386 O texto do De Anima de Ibn S≈n¡ nos é transmitido por 50 manuscritos: dezessete encontram-se na Itália (oito em Roma); treze na França (dez em Paris); seis na Inglaterra (três em Oxford); cinco na Alemanha; três na Bélgica; dois na Espanha (mas nenhum em Toledo); um em Leiden; um na Suíça; um na Suécia e um na Iugoslávia. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.105. 387 A língua vulgar era a língua românica. Cf. VERBEKE. Introd. I-III, p. 98. 229 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Depois do nome e dos títulos do arcebispo de Toledo, a dedicatória traz o nome do personagem que escreve a própria carta e que se identifica como o arabofone da equipe: “Avendauth Israelita Philosophus”.388 Há muitas hipóteses em torno de seu nome mas a verdade é que não se sabe ao certo quem era o sábio “Avendauth” de Toledo por volta de 1150 d.C.. Uma das hipóteses é que Avendauth seria “Abraham Ibn Daýd”, sábio judeu que viveu em Toledo nessa época e que era conhecido por um tratado filosófico escrito em árabe. No entanto, a afirmação de Verbeke mantém o tema na obscuridade: “Em torno da personalidade de Avendauth, o mistério permanece”.389 No segundo avanço das traduções, seguiram-se as obras de Ibn Ru¹d já, então, chamado “Averróis”. As traduções também iniciaram-se em Toledo e, dentre os tradutores estão Miguel Escoto, Armínio o Alemão, Guilherme de Luna e Pedro Gallego. As dificuldades no trabalho dos tradutores permaneceu e contribuiu para que Ibn Ru¹d fosse ainda menos compreendido e ainda mais distorcido. “ As traduções toledanas cuja influência imediata foi mais profunda foram as das obras originais dos próprios filósofos árabes e judeus” sendo que “esse conjunto de traduções exerceu sobre o pensamento do século seginte uma influência profunda, duradoura e relativamente homogênea.”390 Com esse primeiro conjunto de traduções, o ocidente latino recebeu Aristóteles pela lente neoplatônica dos falāsifa. Não obstante as inúmeras dificuldades de identificação dos tradutores e até mesmo os vários equívocos nas traduções dos falāsifa, estas foram suficientes para despertar o espírito dos ocidentais medievais para novas considerações de toda ordem. Muitas dessas obras tornaram-se referência presente em inúmeras formulações medievais posteriores. 6.5 A recepção dos árabes-filósofos Não obstante as transformações ocorridas no âmbito do pensamento filosófico e teológico do séc. XII d.C / VI H. no ocidente medieval latino terem sido um dos resultados da penetração conjunta da falsafa com os escritos de Aristóteles, a ênfase recaiu sobre as teses de Ibn S÷nā, melhor, o “Avicena” dos latinos: “os dois 388 Há alguns manuscritos que citam o nome de Gerardo de Cremona como o tradutor do De Anima. No entanto, esta atribuição parece ter pouca credibilidade pois na mesma época, Gerardo estava traduzindo o Canon de Ibn S≈n¡. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.102. 389 VERBEKE. Introd. IV-V, p.101. 390 GILSON, op. cit, p.466. 230 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho últimos terços do século XII d.C. avicenizaram-se”391. Mesmo assim, não se encontra uma corrente de pensadores exclusivamente “avicenianos” aos moldes dos que foram chamados “averroístas”. Nesse período encontra-se um sem número de teses de “Avicena”, em diversas e curiosas obras, combinadas com correntes de caráter platônico, com fragmentos do pensamento de Agostinho, Pseudo-Dionísio, Boécio, João Escoto Erígena e outros. Além das idéias próprias de Ibn S÷nā, no alforje das traduções seguiam-se obras apócrifas que a ele eram atribuídas. Um dos exemplos disso foi a obra anônima De fluxu entis na qual igualmente se encontram teses do falāsifa mescladas e harmonizadas a teses de Santo Agostinho e de outros pensadores cristãos. Até que as análise mais detidas revelassem questões que os cristãos teriam de ultrapassar, “Avicena” foi o livro de cabeceira de muitos pensadores cristãos do ocidente medieval latino. Assim, mesclada a outras fontes, a cosmologia e a teoria da alma de “Avicena”, inicialmente recebida como uma aliada do encontro místico pregado por algumas correntes do cristianismo, marcou presença em muitos escritos dos latinos desse período. Domenico Gundissalino traduziu o Kitāb al-Nafs / Livro da Alma de Ibn S÷nā que ficou conhecido no Ocidente como o “De Anima de Avicena”. A Gundissalino também se atribui a composição de De Anima próprio – uma compilação de extratos literais da tradução latina do De Anima de “Avicena” – ilustrando bem o que seria, a partir de então, a interpenetração do avicenismo com inúmeras doutrinas cristãs. Nessa obra, é possível identificar por quase todo o texto de Gundissalino a fonte árabe da qual o autor se utilizou. O peripatetismo da teoria da alma de “Avicena” ficava frente a frente com as doutrinas de perfil platônico de Boécio e Agostinho. O De anima de “Avicena”, conhecido antes do que o de Aristóteles fornecia uma organicidade entre a biologia, psicologia e a teologia, o que explicou seu sucesso. Não era um comentário, mas uma exposição sistemática e uma nova síntese que pensava o homem a partir do desenvolvimento das ciências, particularmente da medicina, fornecendo elementos que possibilitavam a articulação dos elementos fisiológicos tanto da anatomia do cérebro, da estrutura dos órgãos, das funções do coração e fígado, do papel do sistema nervoso e inúmeras outras características do homem visto como organismo corporal. Por outro lado, desenvolvia um aspecto mais 391 DE LIBERA , op. cit., p. 349. 231 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho espiritualista que o de Aristóteles e, por isso, foi inicialmente acolhido com simpatia pelo ocidente latino. Tanto a psicologia como a cosmologia de “Avicena” pareciam completar o que diziam os cristãos. Desse modo, muitas de suas teses funcionavam como amálgamas às doutrinas cristãs. Assim, por exemplo, era possível aproximar a iluminação divina na teoria de Agostinho com a iluminação da inteligência agente dos árabes. No século XII d.C. encontra-se essa mescla entre as doutrinas de Avicena com as de Santo Agostinho na corrente que se denominou “agostinismo avicenizante”. Essa situação de interpenetração, porém, não foi duradoura. Mas, enquanto isso, até que houvesse uma melhor compreensão de todo o conjunto de escritos que desaguava no mundo latino, muitos textos confusos e pouco filosóficos foram escritos. O excessivo número de “De Animas” existentes indica a efervescência nos espíritos nessa época. À medida em que a confusão na compreensão mais rigorosa das teses dos falāsifa diminuía, o pensamento cristão procurava recobrar o que lhe era próprio. Era preciso separar joio do trigo. A melhor imagem do que foi o inevitável conflito entre a falsafa e a teologia cristã que se produz no início do séc. XIII d.C., é a Universidade de Paris. A mais célebre das grandes universidades medievais, constituída em 1200 d.C. e sancionada em 1215 d.C., desde os primeiros anos de sua atividade recebia as obras de Aristóteles e dos falāsifa. Os mestres que lá ensinaram como, por exemplo, Guilherme de Auxerre (m.1237) e e Filipe de Greve (m. 1236) não ignoraram o papel que essa massa de novas idéias emergente cumpria. Aproximadamente na mesma época começaram a chegar progressivamente os escritos de Ibn Ru¹d, melhor, o “Averróis” latino. Rogério Bacon e Alberto Magno começaram a citá-lo entre 1240 d.C. e 1250 d.C. Nesse período tornou-se mais clara a impossibilidade de harmonizar as teses dos falāsifa com as doutrinas cristãs. “A grande época da teologia e da filosofia escolásticas começa então” e coincide com o trabalho dos pensadores cristãos de simultaneamente absorver e conter o fluxo dos escritos greco-árabe da filosofia. Até que esses escritos fossem devidamente analisados pela autoridade eclesiástica, permaneceram proibidos. Em 1210 d.C. foi proibido o ensino dos escritos de Aristóteles e de seus seguidores e tudo o que se referisse à filosofia natural sob pena de excomunhão. Os tratados de lógica eram aceitos, mas os de física e de metafísica representavam um perigo de todo, ainda, desconhecido. Em 1231 d.C., o papa Gregorio IX renovou a proibição mas os escritos de Aristóteles e dos falāsifa sobre 232 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho física e metafísica se infiltraram em todas as partes e ganharam terreno. Outra renovação da proibição foi feita em 1263 d.C. Enquanto a proibição, oficialmente, procurava conter o avanço do peripatetismo de Aristóteles e dos falāsifa, eram feitas simultaneamente traduções diretamente do grego como, por exemplo, as de Guilherme de Moerbecke (1215-1286). Assim, os mestres cristãos passaram a assimilar diretamente as doutrinas de Aristóteles procurando isolar as interpretações dos falāsifa. Quando o peripatetismo foi controlado pelo cristianismo, a proibição se converteu em seu oposto: em 1336 d.C. a autoridade eclesiástica tornou obrigatório o estudo de Aristóteles aos candidatos à licença em artes. O que veio a seguir foi o fortalecimento dos laços da cristandade com o peripatetismo aristotélico e não mais com o peripatetismo árabe. Os cristãos fizeram sua própria harmonia entre o aristotelismo e o dogma cristão, assim como se fizera anteriormente com o platonismo pela pena de Santo Agostinho. As diferentes reações e adaptações em vistas do peripatetismo pelos diversos meios filosóficos da época sintetizaram em que medida os escritos grecoarabes se infiltraram no desenvolvimento das teses dos pensadores cristãos desse período. As universidades já eram uma realidade européia e em Toulose e Oxford, simultaneamente também foram acolhidas as novas idéias. O impacto que esse conjunto de escritos causou sobre a teologia cristã foi extraordinário. Praticamente todos os nomes da escolástica universitária cristã se referem aos falāsifa e , quando deles discordam, dão-se ao trabalho de discutir detalhadamente suas teses. Ao aludir a reação da cristandade em vistas desse novo impulso, Gilson destacou quatro correntes principais no período: a primeira referiu-se ao agostinismo dos franciscanos do qual São Boaventura é o mais ilustre representante; a segunda foi a escola dominicana, coroada com a síntese aristotélica-cristã de São Tomás de Aquino; a terceira foi o averroísmo latino, na qual destaca-se Sigeer de Brabante que entendia a interpretação de “Averróis” sobre Aristóteles como a verdade e a quarta e última se deu na direção das ciências da natureza, antecipando o Renascimento em Oxford onde Rogério Bacon foi o principal representante. Nos quatro casos, a falsafa se faz presente: no primeiro, pelo seu caráter neoplatônico; no segundo, pelo seu perfil aristotélico; no terceiro, pelos seus diretos seguidores e no quarto, pelo seu aspecto científico. Se tomarmos o exemplo de Ibn S÷nā, é possível verificar que esses elementos ainda compunham um quadro orgânico e harmônico. O quadro proposto por Gilson ilustra a divisão das influências, a separação 233 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho dos domínios no que foi um novo desenvolvimento na história da filosofia. O desmembramento de um certo conjunto harmônico da falsafa já a descaracterizava, assim como ocorrera no Oriente. . 6.6 Maimônides e a falsafa: As teses dos falāsifa também estiveram presentes entre os judeus. Não é demais lembrar que desde os primeiros tempos do cristianismo, em Alexandria, Fílon, o judeu, já havia trabalhado no sentido de aproximar as escrituras judaicas da filosofia grega. A filosofia, portanto, já tivera contato com o monoteísmo judaico antes do surgimento do Islām. No entanto, vale ressaltar que as comunidades judaicas sempre estiveram em contato com os árabes desde o nascimento do Islām na península arábica, habitada por muitos judeus, até a época das traduções em Bagdá no séc. IX d.C., judeus acompanharam o movimento da translação dos centros de estudo. Com o grande impulso das traduções de Bagdá, os pensadores judeus tiveram novo estímulo para incorporar a filosofia grega em sua trajetória. “Foi por meio do, ou aliada ao trabalho dos pensadores muçulmanos, devido à falsafa , que os judeus tomaram ou retomaram gosto pela filosofia.”392 Os pensadores judeus que viviam em terras do Islām liam e escreviam em árabe. Isso era feito de dois modos; ou com a grafia própria da língua árabe ou, então, utilizando os caracteres hebraicos para escrever em árabe, isto é, transliteravam o árabe para o hebraico. As traduções do árabe para o hebraico datam apenas dos últimos tempos em que a falsafa começou a declinar nas terras do Islām. A filosofia escrita em hebraico se deu mais propriamente quando os judeus passaram a viver nos países dominados pela cristandade. Nesse sentido a falsafa entre os judeus foi um momento determinado de aculturação do judaísmo enquanto vivia nas terras do Islām. Enquanto a falsafa, entre os árabes diminue sua influência, alguns pensadores judeus acompanham o movimento de da filosofia para as terras da Espanha, primeiramente, sob o domínio árabe e, depois, sob o domínio do cristianismo e, finalmente acompanham a transmissão da filosofia para o mundo latino. No primeiro caso usaram a língua árabe, no segundo caso, o hebraico. Isaac Israeli (855/955 d.C.), contemporâneo de Al-Kind÷ ; Ibn Gabirol (1021/1051 d.C.) conhecido no ocidente 392 DELIBERA, op. cit., p. 196. 234 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho como Avicebron, Judas Halevi (1075/1141 d.C.) e sobretudo Maimônides (1135/1204 d.C.) fazem parte dessa constelação de autores judeus medievais marcados pela falsafa. Moisés ben Maymýn – Maimônides – era conterrâneo e contemporâneo de Ibn Ru¹d. Nasceu em Córdoba mas circulou por várias cidades até se estabelecer no Cairo, tornando-se médico da corte, usufruindo a proteção do vizir de Salāh al-Din – Saladino. No Egito escreveu várias obras das quais se destacou o Guia dos Perplexos . O próprio Maimônides testemunhou a chegada das obras de Ibn Ru¹d ao Cairo por volta de 1190 d.C. Apesar da estima por Ibn Ru¹d, ness época Maimônides já havia escrito sua filosofia na trilha e no debate com Al-Fārāb÷, Ibn S÷nā e Ibn Bājja. Sua estima por Aristóteles lembra os elogios de Ibn Ru¹d ao mestre grego como é possível verificar nesta carta que Maimônides endereçou a Samuel ben Tibon: “Tendes muito cuidado em só estudar as obras de Aristóteles acompanhadas de seus comentários: o de Alexandre de Afrodísia, o de Temístio ou o de Averróis. Os escritos do mestre de Aristóteles, Platão, são parábolas e difíceis de compreender, e não são necessários pois a obra de Aristóteles é suficiente; não é necessário, tampouco, levar em conta os ivros escritos por seus predecessores, pois seus intelecto é grau supremo do intelecto humano, excetuando os que receberam a inspiração divina.”393 A obra de Maimônides também foi traduzida para o latim e chegou juntamente com as obras dos falāsifa a estar presente nas teses dos pensadores cristãos do ocidente medieval latino como, por exemplo, em Tomás de Aquino e Alberto Magno. Muitas das teses de Maimônides se ampararam nos desenvolvimentos anteriores realizados por Ibn S÷nā e Ibn Ru¹d. Nesse sentido o pensamento de Maimônides, não obstante dirigirse mais propriamente às questões do judaísmo, trouxe em sua estrutura, muito da falsafa. 6.7 Santo Alberto e os medievais latinos No Ocidente, o século XII d.C. foi o século da escolástica latina e o século XIII d.C. ainda foi pleno de falsafa. Os textos de Platão conhecidos pelos medievais limitavam-se a fragmentos do Timeu, o Mênon e o Fédon. Ainda assim, a 393 Citado em DE LIBERA, op. cit., p. 217. 235 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho maioria das referências dos escolásticos latinos a essas obras eram de segunda mão. A grande difusão do platonismo terá de esperar ainda por volta de duzentos anos sendo mais intensa a partir do século XV d.C. Boa parte da obra de Aristóteles, inclusive os apócrifos, esteve disponível desde o final do séc. XII d.C. Antes disso, os tratados de Ibn S÷nā assim como os de Ibn Ru¹d, logo em seguida, haviam deixado suas marcas antecipadamente na interpretação da filosofia de Aristóteles. Na verdade, o aristotelismo não podia ser entendido em estado puro. Entre a sua neoplatonização pela lente aviceniana até a sua desplatonização, iniciada por Ibn Ru¹d e continuada por São Tomás de Aquino, “a história da formação do Aristóteles latinus é dominada por um jogo complicado de fatores perturbadores.”394 Os primeiros mestres das universidades emergentes da Europa tinham em suas múltiplas tarefas, uma que era prioritária: dialogar com o recém-chegado corpus filosófico greco-árabe e procurar adaptá-lo às necessidades da fé e do dogma cristão, afastando ao mesmo tempo, as tendências que se lhe opunham fossem elas oriundas dos gregos, dos árabes ou mesmo das próprias correntes de pensamento que se formavam dentro do cristianismo. Um desses casos foi o averroísmo contra quem lançou suas teses Tomás de Aquino. Averróis havia entrado de modo duplo no mundo latino sendo que se lhe atribuiram doutrinas que ele talvez nunca tenha professado. Da mortalidade individual da parte intelectual da alma, a defensor de duas verdades –uma da fé e uma da razãoeste “Averróis” só pode ser entendido em sua relação com o averroísmo. Mas, apesar disso, o averroísmo ganhou muitos adeptos no século XII d.C. como João de Jandun (m.1328), Boécio da Dácia (m.1260) e seu maior representante Siger de Brabante (1240/1284). O averroísmo seguiu ainda fazendo adeptos por Bolonha e em Pádua até o século XV d.C. nas raias do Renascimento. Alguns nomes são inseparáveis da escolástica no séc. XIII d.C.: São Boaventura (1217/1274) foi mestre da cátedra franciscana da Faculdade de Teologia de Paris. Se, por um lado combateu o averroísmo por defender a eternidade do mundo e a unicidade do intelecto, por outro lado, “a filosofia boaventuriana baseia-se na síntese da Avicena e de Dionísio.”395 Mas essa já é uma outra história. 394 395 DE LIBERA , op. cit., p. 359. DE LIBERA , op. cit., p. 403. 236 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho Em 1932, Pio XI tornou Alberto, Santo Alberto. Ele, portador do título de “Doutor Universal”, poderia ser chamado, na verdade, “doutor em ciências árabes”396 melhor, Santo Al-Berto. Ele foi o principal articulador, ou ao menos, compilador das doutrinas recém-chegadas, caracterizando-se pela sua ligação com as fontes árabes de “Avicena” a “Averróis”, passando por ©unayn Ibn Is¬āq e outros nomes da ciência árabe. Sua obra, muito vasta, permitiu identificar que a documentação árabe o acompanhou em todo o seu trajeto intelectual. Mas essa já é uma outra história. Tomás de Aquino (1225/ 1274) nasceu próximo a Nápoles. Enviado a Paris para terminar seus estudos, tornou-se o aluno preferido de Alberto Magno. Sua monumental síntese filosófica e teológica foi o coroamento de grande parte do processo que começara com as traduções esporádicas do corpus filosófico greco-árabe. Ora combatendo, ora adotando, ora transformando, em qualquer circunstância, a obra de Tomás denota a importância dos falāsifa no desenvolvimento de suas teses. Das vias de constatação de Deus até a estruturação de sua psicologia, quantas vezes se identifica as presenças de Ibn S÷nā e de Ibn Ru¹d. Mas isso já é uma outra história. Rogério Bacon, inglês, franciscano, nascido por volta de 1220 d.C. anunciou o caminho das ciências experimentais. Em sua Opus maius apoiou-se em muitas teses de Ibn S÷nā em referência ao estudo da luz e da visão. Sua classificação dos sentidos internos reproduz em detalhes a classificação de Ibn S÷nā. Na verdade é possível encontrar ilustrações das indicações fornecidas por Ibn S÷nā até por volta do séc. XVII d.C. Mas essa também já é uma outra história. Mas... será mesmo uma outra história?... 396 DE LIBERA, op. cit., p. 107. 237 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho 7 – À GUISA DE CONCLUSÃO Quando aquele senhor me perguntou qual a atualidade da falsafa fiquei desconcertado por um instante. Eu falava com um homem do nosso tempo. – Não é atual, respondi. Por que ? Porque é fundamental. Que atualidade há em perdermos o nosso precioso tempo voltando há mil anos atrás para ler o que disseram homens barbudos e de turbante numa língua estranha ? Nada atual. Me perguntou, então, qual era a utilidade. Ora, fui embora. Não é útil. A filosofia é o não-útil. E a história da filosofia é a história dos não–úteis inatuais. Agora, ao homem atual se lhe restar alguma pergunta fundamental, então pode encontrar em sua atualidade a companhia dos inatuais. As perguntas fundamentais acompanharam os falāsifa assim como acompanharam também outros pensadores de sua época e os mais antigos também. Aos inatuais não espanta poder circular pelas vielas da história em busca de momentos de lucidez. Pouco importa qual o traje que vestiam e se usavam ou não chapéu. Vale o que traziam dentro de suas cabeças, de seus corações e de seus atos. Pouco importa a religião ou o país. Aos inatuais o paradigma é outro. Pois se a filosofia é a busca do saber, então, a pátria dos filósofos é a sabedoria. É para lá que vão. O tempo dos sábios não se conta por datas, a língua dos sábios é a consciência, e sua religião, o entendimento e o bem. Recolher na história momentos de consciência é um patrimônio universal. Os inatuais estão sempre presentes. Talvez valha para um mundo que se embate com os diferentes, que esbarra no diverso e que se propõe global. A tolerância, na integração do mundo é axioma que deriva do conhecimento e do entendimento do outro, do diferente e diverso que, no fundo, toca algo que ultrapassa as diversidades. É de lá que ecoam as vozes da integração dos povos, sem que se percam suas particularidades. É de lá que se clama que cada um conheça a si mesmo para abraçar a humanidade inteira. Não é demais lembrar que a visão de mundo condiciona nossos atos. O mundo reflete seus cidadãos. A filosofia auxilia nessa construção e nesse encontro. Nos coloca frente a questões e a soluções que ampliam horizontes e nos fazem acompanhados por pensadores e pensadoras de todos os tempos. Ao entrarmos em contato com a cosmovisão dos falāsifa uma coisa é clara: a integração das coisas. Hoje em dia, isso ainda parece algo complicado. A fragmentação e o estilhaçamento da 238 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho cosmovisão dos nossos dias dificulta que possamos ter uma visão mais integrada da realidade. Mas alguém pode dizer que, talvez, a realidade não seja integrada. Essa é uma questão. Mas o refúgio da integração no interior de nós mesmos é o princípio de uma realidade sadia. Ibn S÷nā escreveu uma obra chamada A Cura, como vimos. Ibn S÷nā era médico. A Cura é uma obra de filosofia. Qual é, então a cura da filosofia? Essa obra é um conjunto de todas as ciências conhecidas da época. Ibn Sina realizou uma grande síntese. Será que ele colocou em sua obra tudo o que havia de conhecimentos em sua época? Não, é claro que não. Mas certamente colocou tudo ou quase tudo que ele sabia num conjunto ordenado segundo a sua própria organização. Essa lição me fica, sempre. A cura é a integração dos conhecimentos a partir de uma cosmovisão própria. Isso é sadio e filosófico. Quase tudo o que ele pensava em termos de ciência, hoje é obsoleto. Terra no centro do universo, teorias do pneuma, teoria da luz. Nada mais vale. É inatual. É fundamental. Ele pensou sobre isso. No limite de seu entendimento e dos recursos que possuía, elaborou sua síntese própria. Integrado, unificado em sua pluralidade. Se a cosmovisão do mundo é o retrato da alma do homem, cosmovisões integradas geram homens integrados. Por isso vale a pena ler os falāsifa . Eles respiram e transpiram integração do mundo, da alma e do homem. Para qualquer construção de si mesmo ý vale estar nas proximidades... vale escolher boas companhias... Aquece-te, pois, à luz dos sábios. 239 Falsafa, a Filosofia entre os Árabes Miguel Attie Filho BIBLIOGRAFIA: ANAWATI, G. C. Études de philosophie musulmane. Paris: J.Vrin, 1974. _______. “Essai de bibliographie avicennienne”. Revue Thomiste. Paris: vol. 51, pp. 407-440, 1951. AQUINO,T. Suma teológica, Rio Grande do Sul: Est. Sulina. UCS, 1980. ALI SHAH, S. Princípios gerais do sufismo. São Paulo: Attar, 1987. AL-FARABI »¬Œ\«[ »´¿v°«[ −·[ Æ[y[ ]\c§ / Kitāb ‘arā’ ’ahl ’al-mad÷na al-fāÅila.Beirute,1996. _________ Traité des opinions des habitants de la cité idéale. Paris: Vrin, 1990. ALGAZEL, Confesiones, Madrid: Alianza Editorial, 1989. 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