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Globalização, Modernidade e Direito
Teresinha Quadros
Mestre em Administração, Socióloga,
Professora de Sociologia e Pesquisadora da UNIFACS
Este texto pretende pontuar, de forma despretenciosa, alguns aspectos referentes ao
processo de globalização, tendo como parâmetro as características inerentes à idéia de
Modernidade, visando subsidiar a reflexão sobre os desafios e limites postos ao “Direito
Moderno” na contemporaneidade.
A Modernidade e a implantação de uma nova ordem
A sociedade Moderna, cujo início foi marcado, principalmente, por três eventos da
Europa dos séculos XVIII e XIX - Reforma Protestante; idéias e ideais Iluministas e
Revolução Francesa.- colocou em curso uma experiência nova para a humanidade que
envolveu a redefinição de parâmetros que referenciam as condutas sociais e individuais
como tempo, espaço e bases materiais que asseguram a sobrevivência e reprodução social.
A partir do desenvolvimento científico e tecnológico, propiciado pelos processos
concomitantes de diferenciação/ autonomização/ racionalização das diversas dimensões da
existência humana (ética, estética, religiosa, moral, política, econômica etc.), a idéia de
progresso técnico e econômico passa a diagnosticar o grau de desenvolvimento de um
povo, agora estruturado social, política e economicamente a partir da noção de nação e
mercado e do conjunto de instituições que lhes são correspondentes.
Sobre a hegemonia burguesa e a lógica da acumulação, se consolida um novo contexto
ético-filosófico, pautado em uma nova materialização técnico-produtiva e uma nova
estrutura político- institucional, que conduz a um novo tipo de estatuto jurídico,
caracterizado pelo seu caráter abstrato, genérico, institucional e pelo centralismo estatal.
A Modernidade, na forma em que se operou no Ocidente, trouxe em seu bojo infinitas
promessas e possibilidades de libertação individual e coletiva, na
medida em que a
transcendência
e libertação do homem de laços de controle de caráter meramente
tradicional, religioso, familiar ou comunitários - típicos de períodos históricos anteriores -,
passa a favorecer o pleno desenvolvimento individual a partir das idéias de autonomia,
liberdade democracia e progresso. No entanto, segundo alguns autores, teria sofrido um
desvio histórico, decorrente da subordinação da experiência humana a uma única dimensão
da sua existência: diferentemente do que teria acontecido na Idade Média, com a
subordinação absoluta ao domínio religioso, a Modernidade seria marcada, em seu
desenvolvimento histórico, por uma subordinação à dimensão econômica e respectivo
predomínio da lógica racional/instrumental.
Segundo Habermas ( 1995), a trajetória da Modernidade sofre um desvio na medida em
que promove o desacoplamento do mundo sistêmico (da reprodução material e do trabalho:
economia e política) do mundo vivido (interações, vivências partilhadas, reprodução
simbólica, etc.). Para Boaventura S. Santos (2000), O projeto da modernidade sofre uma
distorção quando sua trajetória se enreda no desenvolvimento do capitalismo. Segundo este,
a ciência moderna (razão) teve papel central nesse processo pois,
da forma que se
processou, se transformou em força produtiva e em instrumento regulador hegemônico que
absorveu em si o potencial emancipatório do novo paradigma.
O Direito e a Modernidade
O processo crescente de racionalização da vida social que o desenvolvimento urbano e
econômico impõem, colonizam, segundo a visão dos autores, todas as demais instâncias da
vida humana, conduzindo ao que Weber teria chamado de “processo de desencantamento
do mundo”.
Tal fato, transformou o Direito, na configuração que assume na Modernidade, em um
dos principais instrumentos de regulação das condutas sociais. Este teria adquirido, assim,
características formais que romperam com o sistema jurídico pluralista, característico do
mundo feudal, que tornara-se incompatível com as necessidades de funcionalidade típicas
dos grandes centros urbanos e do capitalismo, sobretudo em sua fase industrial.
“Ao Direito Moderno foi atribuída a tarefa de assegurar a ordem exigida
pelo capitalismo, cujo desenvolvimento ocorre em um clima de caos social
que era, em parte, obra sua... Para desempenhar esta função, o Direito
Moderno teve de se submeter à racionalidade cognitiva instrumental da
ciência moderna e tornar-se, ele próprio, científico (Santos, 2000, pg. 120)”
O Direito Moderno, inspirado nos ideais iluministas, resgata, em grande medida, o
Direito Romano, por se caracterizar como autônomo, humanista e laico, e se respaldar nas
idéias de responsabilidade individual e de um corpo único de leis e linguagem jurídica,
convergente com os novos ideais jurídico, político e societal da emergente sociedade
moderna e capitalista. Tais características foram alcançadas a partir da recorrência
sistemática a procedimentos científicos e burocrático na sua formulação e execução.
A cientifização do Direito Moderno envolveu também a sua estatização, já que a
prevalência política da ordem sobre o caos foi atribuída ao Estado Moderno, instituição
que centraliza e protagoniza os esforços de desenvolvimento nacional. Desta forma, o
Direito Moderno pode ser caracterizado como estatal e científico, dotado de formalismo
técnico racional e supostamente neutro em relação a ética.
“O Estado moderno define-se em função de sua competência de produzir o
Direito e a ele submeter-se, ao mesmo tempo em que submete as ordens
normativas setoriais da vida social” (Coelho, Luiz - 1986, p. 258)
Estado, Mercado e Direito1 juntos, operando de forma articulada e interdependente,
configuram o universo institucional responsável pela configuração do quadro social e
político moderno, marcado por intenso processo de racionalização, que inspira e para onde
devem convergir todas as práticas e demandas sociais.
1
A este universo, Boaventura de Souza Santos (2000), acrescenta a ciência moderna instituição igualmente
importante para a conformação da Modernidade.
Tal quadro se evidencia com o crescente intervencionismo sócio-econômico do Poder
Público amparado por uma legalidade dogmática de rígidas pretensões de cientificidade que
atinge seu auge entre os anos 20 e 60 do século XX.
No entanto, o excesso de regulação, promovido pelas diversas instituições que passam
a ser responsáveis pelo ordenamento da vida social, parecem comprometer, em seu
desenvolvimento, o projeto emancipatório anunciado e prometido pela Modernidade, que
passa a conviver com a contradição
promovida pela dupla dinâmica que lhe confere
especificidade: promessa de emancipação X necessidade crescente de regulação.
O dilema gerado por esta contradição parece se constituir em traço marcante deste
período da história da humanidade, que se acentua e ganha visibilidade, sobretudo a partir
do final da década de 60, quando sinais de esgotamento de um modelo civilizatório
colocam em cheque as idéias e ideais de desenvolvimento; guerras, deteriorização do meio
ambiente, sucessivas crises econômicas e a fome , associadas à dificuldade crescente de
conjugação de ideais como liberdade e igualdade, são alguns exemplos das mazelas do
mundo moderno, capitalista e industrial, para as quais o universo institucional vigente
parece não ser mais capaz de formular respostas.
Globalização e Crise do Universo Institucional
Mais recentemente, diante das aceleradas transformações que presenciamos, uma
nova ordem parece se impor, definida, sobretudo, pela intensidade e velocidade das
mudanças que se operam nas atividades ligadas à economia e cultura, com fortes impactos
na vida social no que concerne à subjetividade e a novas práticas societais, estas marcadas
por alto grau de interconectividade propiciado pelo uso intensivo das novas tecnologias.
Presenciamos uma sociedade em permanente transformação, ampliação crescente
dos processos de comunicação e interconexão das práticas e idéias e consequente
desintegração de formas
historicamente consolidadas de ordenamento da vida social.
Diante deste quadro, a recorrência ao conceito de globalização como fator explicativo
parece estar presente em todas as reflexões que pretendem buscar as “novas bases” em que
se estrutura a vida humana no planeta.
A idéia da globalização está presente nos fatos e interpretações relativos a tudo que é
internacional e as ciências sociais estão sendo desafiadas por essa problemática. Para Ianni
(1993), embora a origem do processo de globalização não seja recente, sua constatação
parece possuir o mesmo impacto das descobertas de Darwin ou Copérnico.
A recorrência de maneira indiscriminada a esse fenômeno, retratado como recente,
inexorável e de poder de abrangência inquestionável e avassalador, parece ser responsável
pela propagação da idéia da existência de uma nova totalidade histórica, que deixa para trás
todas as outras formas de existência social e da qual deriva tudo que se apresenta como
novo.
Segundo essa concepção, estaríamos agora diante da materialização do conceito de
“aldeia global” formulado por Mac Luhan e a sociedade mundial, compreendida como uma
construção histórica, assim como foram os Estados-nação “do passado”, seria a nova
unidade de análise das ciências sociais, especificamente da Sociologia, da Ciência Política e
da Economia Política.
Em verdade, chama-se de globalização a um conjunto de processos que vêm
ocorrendo de forma gradual no seio da sociedade, a partir do final do século XV e que hoje
alcançam visibilidade por assumirem escala global e adquirirem visibilidade devido ao
desenvolvimento dos meios de comunicação.
A década de 70 é marcada por grandes transformações no cenário econômico, social
e político mundial. O intenso desenvolvimento científico e tecnológico que tem em sua
base o que ficou conhecido como “Revolução micro-eletrônica”, associado a fatores de
ordem econômica e política, contribuem para a desorganização da sociedade de base
industrial e nacional ao redefinir as formas e as relações de produção e o relacionamento
dos homens com os homens e destes com os produtos que produzem.
A emergência de um novo padrão tecnológico que se verifica neste final de século,
resultante principalmente do processo de acumulação do capital, permite a produção de
produtos e serviços cada vez mais sofisticados, elevando a competitividade pautada em
diferenciais tecnológicos, uma vez que o conhecimento e a tecnologia não mais conseguem
ser prioridade de um único grupo econômico ou país por muito tempo.Neste contexto, se
impõe a necessidade de que as informações e o conhecimento possam fluir livremente,
gerando um saber produtivo de caráter flexível que pressupõe novas bases produtivas e
novas formas de organização da produção.
No plano econômico, as mudanças se contextualizam em um cenário de crise do
capitalismo, que se opera no marco do esgotamento do modelo de produção e acumulação
do capital, pautadas respectivamente no padrão fordista de produção e em um modelo de
acumulação atrelado à estrutura dos Estados nacionais2 .
Frente aos desafios que se apresentam, o capital adquire novas feições que se
caracterizam por uma nova forma de acumulação pautada na internacionalização da
produção e consequentes mudanças na divisão social do trabalho, bem como pela
concentração, financeirização e fluidez dos capitais, que perdem a sua referência de uma
base material e impedem a realização das contabilidades nacionais.
No plano cultural é que se processam as maiores mudanças3. Assim como acontece
com a economia, os valores que norteiam o convívio social passam também a adquirir um
caráter efêmero, transitório e virtual.
2
A referida crise enfrentada pelo capital é interpretada sob múltiplas ópticas. Paramio (1988), nos informa
sobre a existência de pelo menos dois marcos analíticos: um primeiro que a interpreta como fruto da tendência
à queda da taxa de lucro inerente ao capitalismo e consequente do crescimento da composição orgânica do
capital; e um segundo que acredita que a crise se origina do conjunto de relações sociais que surge em
consequência da fase de expansão econômica anterior responsável por mudanças na correlação das forças
sociais.
3
Cultura aqui concebida como forma de relacionamento do homem com a realidade e que possui grande
interface com os planos econômico e político administrativo.
Segundo Harvey (1993), a crise econômica iniciada no final dos anos 60 e que chega
ao seu auge em 1973 com a crise do petróleo, contribui para que a sociedade adquira uma
nova configuração, marcada pela ausência de formas definidas, na qual, em contrapartida e
paradoxalmente, se verifica a supervalorização das formas. Para o autor, a experiência do
tempo e do espaço se transformam, a estética triunfa sobre a ética como foco primário de
preocupação intelectual e social, a efemeridade e a fragmentação assumem precedência
sobre verdades eternas e sobre a política unificada e as explicações deixam o âmbito dos
fundamentos materiais e político-econômicos e passam para a consideração de práticas
políticas e culturais autônomas.
O conjunto destas transformações parte, como pode ser visto, principalmente de um
impulso inovador que se opera no mundo da produção e da configuração que assume o
capital. No entanto, adquire um poder de abrangência que acaba por atingir outros aspectos
da vida social, contribuindo para a construção de uma nova realidade que tende a ser
interpretada como um processo global compreendido a partir do conceito de globalização.
Sob muitos aspectos, a globalização se assemelha a um exercício de futurologia,
portador de forte teor ideológico, tendendo a assumir caráter dogmático e adquirir poder
determinante de conformação, sobretudo de novos padrões sociais, sem permitir que se
processem reflexões sobre o significado das novas ações sociais que passam a ser
empreendidas a partir de sua constatação5.
Se é certo que o desenvolvimento tecnológico é fator determinante da globalização
por “diminuir” distâncias e facilitar a comunicação, é certo também que o desenvolvimento
do capitalismo, em suas diversas feições, vem impondo cada vez mais a interdependência e
integração entre os povos a partir do que, dentro de sua lógica, os unifica, ou seja, o
5
Verifica-se um debate muito intenso em torno da natureza do fenômeno da globalização. Ianni (1993 e
1996), a interpreta como uma nova totalidade histórica, característica da atual etapa do capitalismo e fruto do
desenvolvimento tecnológico que pressupõe a transnacionalização. Petras (1995), de outra forma, a percebe
como uma configuração de forças políticas e sociais onde se verifica a projeção de uma classe social
dominante e alerta para o fato de que, não sendo assim, esta corre o risco de ser interpretada como fenômeno
a-histórico de poder transcendente.
mercado. Da mesma forma, o acesso aos produtos do desenvolvimento tecnológico
depende também da inclusão dos povos nessa mesma lógica.6
A mundialização da produção e dos mercados possui capacidades equivalentes tanto
para integrar como para excluir e isso, por si só, esvazia o argumento do poder de
abrangência totalizante da globalização.
Ademais, a concepção do universo global como uma nova totalidade histórica pautase na premissa, no mínimo discutível, da metamorfose da sociedade nacional em sociedade
global que é dada pelo fim do Estado-nação e do Estado enquanto instituição política
responsável pela regulamentação da produção e distribuição dos meios materiais de
existência (Ianni, 1993 e 1996). Se isso é fato, é importante registrar o grande número de
grupos sociais e até de nações cuja vida econômica e política se organizam à margem de
qualquer estrutura formal, ampliando enormemente o processo de exclusão daqueles que
não conseguem se adequar à nova lógica hegemônica do capital.
Os efeitos seletivos da globalização ganham visibilidade e revelam os limites e os
sinais de esgotamento de um modelo de civilização no qual o império de uma lógica
utilitarista e instrumental conduzem a situações que colocam em risco o futuro da
humanidade, bem como a própria possibilidade de reprodução do capital, tendo em vista as
sérias questões socio-econômica e ambientais que suscita e que, cada dia mais, vêm sendo
denunciadas por alguns setores da sociedade organizada, fazendo emergir propostas
alternativas de desenvolvimento que contemplem a questão da sustentabilidade e da
participação.
Gohn (1996), compreende este processo como um novo ciclo de crescimento
econômico que se opera a partir da redefinição dos atores socio-políticos em cena. Segundo
6
Dessa constatação pode-se deduzir que o universo potencialmente globalizável é aquele que
compartilha da lógica do mercado que, é importante registrar, torna-se a cada dia mais seletiva e restrita, dada
a capacidade de alguns países de impor os termos em que esta competitividade deve se operar.
esta visão, os ajustes estruturais da economia demandam e conduzem à criação de novas
bases sociais de legitimação e novas formas de mediação política.
O processo em curso se constitui em fato de renovação da ordem socio-econômica
anterior e da sua fonte de legitimação, deslocando o Estado da posição central que ocupava
anteriormente.
As bases para a legitimação de uma nova ordem econômica mundial são construídas
a partir da idéia da existência do consenso de que nem o Estado nem o mercado têm
condições de responder, por si só, aos desafios do desenvolvimento com equidade
(Fernandes, 1994; Arato, 1995; Schiochet, 1994; Rifkin, 1995; e Randolph, 1995).
Desta forma, verifica-se o deslocamento do olhar da estrutura econômica e do
universo institucional para as redes de relações geradas por ações coletivas que ocorrem no
âmbito da sociedade civil, na qual a solidariedade e a cidadania se constituem em valores
sociais básicos.
O potencial transformador atribuído a estas novas práticas sociais está presente, entre
outras, nas idéias de Touraine (1994), que se refere à construção da sociedade pós-Estado,
estruturada a partir de novas formas de regulação apoiada na vontade dos sujeitos; de Ianni
(1996), que anuncia as possibilidades para a construção de um neosocialismo de caráter
global no qual o Estado manifesta-se em âmbito internacional, ou nas idéias da
globalização da economia social de Rifkin (1995).
Concepções otimistas apontam para o desenvolvimento de uma consciência crítica
mundial que estaria sendo construída a partir do lançamento, em escala mundial, das
desigualdades e mazelas do processo civilizatório. Tal consciência, colocaria em evidência
a falência do universo institucional sustentado pelo tripé Estado –Mercado - Direito, e
estaria fazendo emergir uma nova institucionalidade, marcada por maiores níveis de
participação popular e defesa de interesses que, embora articulados globalmente e sendo
definindos a partir de parâmetros estabelecidos por valores cada vez mais universais (como
por exemplo as questões relativas aos Direitos Humanos e à sustentabilidade do planeta), se
definem localmente e reivindicam o respeito às
especificidades que lhes conferem
identidade.
O Direito frente às transformações da sociedade contemporânea
Os princípios do pluralismo, sobre os quais se assenta a idéia de Modernidade, quais sejam:
autonomia; descentralização; participação; individualismo; diversidade; tolerância;
interação etc., esbarram em dificuldades para a sua realização/aplicação quando se trata do
Direito.
A concepção Moderna de Direito, que, paradoxalmente se sustenta na idéia de que não
há outro Direito senão o contido na lei do Estado, pautada em uma visão formalista e de
univocidade da lei, transforma o Poder Judiciário, instância de sua realização, em órgão
burocrático do Estado.
“Nesta visão o direito abdica da intencionalidade de realizar a justiça e
converte-se num instrumento de poder”. (Della Cunha: 1997, pg.83)
O ideal de universalidade, pressuposto da Modernidade, e que, como bem registra
Santos (2000), se defronta com o desafio de ser alcançado em contexto de igual valorização
dos ideais de pluralismo e democracia, no campo do Direito, se expressa sob a forma
hegemônica do monismo jurídico, típico do Direito Positivo e que rejeita a idéia de
diversidade, mascarando as contradições existentes no corpo da sociedade.
No entanto, mesmo diante desta configuração hegemônica, observa-se a subsistência
paralela de um outro tipo de Direito, de criação popular, comunitária e plural, obedecido
como se fosse sancionado pelo Estado. Trata-se do que Eugen Ehrlich, já no início do
século XX, denominava de Direito Vivo e que corresponde ao universo jurídico que
transcende os documentos, as decisões judiciais e tudo o que só é válido diante dos
tribunais e da autoridade e que tem que ser observado na vida, na forma como efetivamente
se realiza (Souto e Falcão,1999).
“...Não se discute se a lei perdeu seu domínio sobre a vida ou se nunca o
teve; se a vida tomou seu desenvolvimento para além da lei ou se nunca
correspondeu à lei. Também aqui a, a ciência e a teoria do Direito
cumprem a sua tarefa muito mal, se elas simplesmente apresentam o que a
lei prescreve e nada do que realmente acontece. (...) Isso é, então, o direito
vivo em contradição com o que é somente válido diante dos tribunais e
autoridades. O direito vivo não está nas proposições jurídicas do direito
positivo, mas o que, porém, domina a vida”( Ehrlich,1929).
Na sociedade atual, o esgotamento desta concepção de Direito (Monismo Jurídico), se
acentua e se torna mais evidente pela emergência e multiplicação de novas formas de
representação7 que transcendem o universo institucional de caráter universalista e
legalmente
instituído
e
reivindicam
para
si
o
direito
de
identificação/reconhecimento/formulação de seus próprios direitos. Este fato se evidencia
em sociedades desenvolvidas – nas quais grupos de interesse se organizam cada vez mais
“de costas para o Estado”8- mas, sobretudo, em sociedades consideradas periféricas ao
modelo hegemônico de organização social, em que
a crise de valores, a saturação
institucional e o respectivo esgotamento do instrumento jurídico estatal/nacional se fazem
mais evidentes, transformando o Direito Formal em uma verdadeira “camisa de força” que
não corresponde aos interesses mais gerais do corpo social, revelando múltiplas formas de
representações de interesses e de mediação de questões sociais, bem como a expansão da
contravenção.
Este fato atesta e evidencia a existência de uma realidade jurídica plural, marcada por
amplas formas de ação social, a qual o Direito Formal não consegue mais responder como
7
Ver a este respeito Quadros, 1996.
Concepção clássica ,expressa por Tilman Evers, em início da década de 80, quando da emergência do que
ficou conhecido na literatura sociológica como Novos Movimentos Sociais, mas que parece ainda válida para
denominar as formas de organização social que reivindicam direitos políticos mas que se organizam de forma
marginal ao universo institucional legalmente instituído.
8
instrumento de regulação, definição e normatização das condutas sociais e individuais.
Diante desta realidade, o jurídico emerge enquanto fenômeno coletivo, e que não se
confunde com o Direito elaborado artificialmente pelo Estado.
A visão pluralista como alternativa
Frente a este cenário, parece necessária a construção/consolidação de um novo
argumento de validade jurídica, que reconheça novas manifestações de ações participativas
e novas práticas normativas, pautadas nas necessidades existenciais, materiais e culturais
efetivas de grupos sociais específicos e que, ao mesmo tempo, não perca de vista
parâmetros ético-sociais universais, que possibilitem a convivência/sobrevivência da
espécie no planeta. Para Della Cunha (1997), trata-se de uma nova fundamentação de
validade para o mundo jurídico para uma sociedade cada vez mais instável e conflituosa.
A concepção de Direito que responda a este desafio deve pautar-se em uma visão
pluralista, ou seja, que tenha como
pressuposto a pluralidade da vida social,
o
reconhecimento de novos direitos que se constróem no marco da descentralização, da
democratização e, muitas vezes, à margem do universo institucional. Que se fundamente no
reconhecimento de uma multiplicidade de fontes informais e difusas de normatividade,
(novos atores sociais - povo - sujeitos coletivos) e na constituição de uma
Justiça
Comunitária, a partir de procedimentos alternativos, com baixo nível de institucionalização
e de burocracia e que se opere no marco do próprio sistema legal vigente.
Não se trata de voltar no tempo ou de se contrapor aos valores ou conquistas da
Modernidade, mas da necessidade de construção de uma nova ética, que não se restrinja
aos valores tradicionais, da religião, da família ou comunitários, como ocorrera em
períodos anteriores da História da humanidade, mas também que não se limite à defesa dos
valores corporativos que alimentam e protegem um modelo hegemônico de sociedade que
se define e se sustenta em uma lógica racional-instrumental, que atende prioritariamente a
interesses econômicos de uma minoria e que o Direito Moderno, de inspiração positiva,
ajuda a tornar soberana e onipotente. Montesquieu e Toqueville já exaltavam e faziam
apelo às associações livres de mediação política, que rompessem com a hegemonia do
Estado como forma exclusiva de regulação da vida social.
Segundo Bobbio (1991), uma concepção pluralista é aquela que “...propõe como
modelo a sociedade composta de vários grupos ou centros de poder, mesmo que em
conflito entre si, aos quais é atribuída a função de limitar, controlar e contrastar, até o
ponto de eliminar, o centro de poder dominante, historicamente identificado como o
Estado” (Bobbio, 1991, p. 928). Para Santos (apud Souto,1999), existe uma situação de
pluralismo jurídico sempre que no mesmo espaço geopolítico vigoram (oficialmente ou não
mais de uma ordem jurídica.
Uma prática política transformadora, em um mundo globalizado e que pretenda superar
o dilema posto pela modernidade (universalismo X individualismo), passa necessariamente
por uma revisão dos parâmetros institucionais que alicerçaram a sociedade moderna,
capitalista e industrial. Tal propósito, clama por uma nova institucionalidade e, dentro
desta, um novo Direito; um Direito sensível e que reflita a realidade que o gera e que lhe
confere validade. Um Direito que represente os interesses legítimos de uma sociedade, que
possa se articular em grupos de poder que se situem, ao mesmo tempo, abaixo do Estado e
acima dos indivíduos.
Esta parece ser uma tendência em curso. Como exemplo de uma institucionalidade
emergente, temos algumas novas unidades que se fazem representar, gradativamente, junto
à comunidade política e que inauguram novas formas de fazer valer seus interesses: dentre
elas, temos
associações comunitárias; federações de natureza econômica, religiosos,
culturais, familiares, profissionais; ONGs, etc. Adicionalmente, presenciamos a emergência
de uma cultura localista que, aliada e consequente de uma tendência paralela à
descentralização política e administrativa que a nova forma de organização da produção e a
nova configuração do capital impõem, contribuem para o fortalecimento destas novas
formas de representação e institucionalidades. No entanto, para uma prática social
transformadora e que responda aos desafios do nosso tempo, não é suficiente que estes
novos atores se façam presentes apenas no cenário político, ou apenas frente ao Estado ainda considerado arena privilegiada para o confronto/mediação de interesses entre grupos
politicamente organizados. É necessário que suas práticas adquiram validade jurídica pois,
só assim, poderão gozar da legitimidade necessária e inerente ao mundo moderno, que se
opera no plano da normatividade e da racionalização. Tal conquista não se faz e nem se
fará, no entanto, sem que seja desenvolvida uma sensibilidade por aqueles que operam o
Direito e que, através da atualização e reflexão crítica sobre as consequencias sociais de
suas condutas e práticas, poderão imprimir uma nova concepção do Direito, de maneira a
implica-lo efetivamente com o processo de desenvolvimento social e humano.
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