Fragmentos sobre o pensar o Brasil Com a palavra, Marilda Iamamoto1 “Esse momento exige dos pesquisadores uma atividade intelectual aberta a compreender o novo, presidida por elevados valores éticos e guiada por normas de responsabilidade intelectual, atribuindo à pesquisa uma ampla dimensão pública que adense uma vigília crítica do Brasil, de modo que se possa afirmar, com o poeta Murilo Mendes, “não sou meu sobrevivente e sim meu contemporâneo”. O legado já acumulado pelo pensamento social crítico brasileiro sobre a interpretação do Brasil necessita ser apropriado e atualizado para, a partir dele, pensar as particularidades dos processos sociais que conformam o Brasil contemporâneo. São referências as obras de Caio Prado Junior., Astrojildo Pereira, Nelson Werneck Sodre, Florestan Fernandes, Antônio Cândido, Josué de Castro, Celso Furtado, Hélio Jaquaribe, Octávio Ianni, Guerreiro Ramos e Roland Corbisier, entre muitos outros. As transformações históricas, que tiveram lugar tanto em nosso País, quanto nos demais países latinoamericanos, foram por eles assumidas como desafios ao pensamento. Mas eles tinham clareza que as explicações obtidas também influenciaram movimentos da sociedade, à medida que a teoria se transforme em força real ao ser incorporada pelos sujeitos em suas ações, especialmente aqueles que protagonizam a história dos trabalhadores neste País. Os “homens simples” também tecem as linhas da história com suas lutas e reivindicações, rebeldias e conformismos. Como nos lembra Ianni, para conhecer a história do Brasil é indispensável conhecer “a história social do povo brasileiro. A maneira como se relacionam os grupos e classes sociais é uma dimensão fundamental da realidade política” (Ianni, 1992, p. 1). Mas as estruturas de dominação-subordinação não se revelam clara e imediatamente nessas relações. Há elementos sociais e culturais que as transfiguram e as complexificam. É, hoje, fundamental contribuir para a análise das classes na história brasileira, densa de determinações étnico-raciais, regionais e culturais, rurais e urbanas, que resguarde a efetiva reciprocidade entre o conhecimento científico e as configurações da vida social ao longo dessa era de extremos, nos termos de Hobsbawm (1995). Em outros termos, somos desafiados a integrar pensamento teórico e as condições de existência social captadas a partir da diversidade das posições que os homens ocupam nos quadros da estrutura social, o que implica o reconhecimento das diferentes visões de mundo daí derivadas, às quais não é imune o pensamento científico. Isso envolve a afirmação das concepções de totalidade e do devir 1 IAMAMOTO, Marilda Villela. Serviço Social em tempo de Capital Fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2008 (p.468-471). histórico (Ianni, 1992), que norteie tanto os estudos monográficos quanto as interpretações globalizadoras, inter-relacionadas e complementares. Em outras palavras, impulsionar o “ato científico como um ato de imaginação criadora”, cuja decadência encontra-se na raiz da crise do conhecimento científico com as invasões positivas e empiristas, a-históricas, que estimulam a expansão irracional das especializações. Estas se desdobram na transformação do cientista em técnico, adstrito às tarefas que lhe são impostas com alvos não-científicos, em que os procedimentos e a teoria são reduzidos a instrumentos de ações, orientadas segundo os interesses daqueles que financiam o seu labor. O cientista metamorfoseado em técnico mostrase, portanto, incapaz de lidar com os fundamentos envolvidos no esquema teórico particular de seu trabalho (Ianni, 1992, p. 145) e, consequentemente, de decifrar o significado de suas atividades no âmbito das relações sociais e do pensamento social globais. Recuperar a concepção de conhecimento científico que privilegie a história é uma exigência em tempos de pós-modernidade e de generalização do fetichismo do capital financeiro, que invade e adensa todas as esferas da vida em sociedade tornando opaco o mundo da produção e do trabalho em suas múltiplas relações com a política e a cultura. Erigem-se, em consequência, reações às metanarrativas e a recusa da história, no elogio aos fragmentos, à superficialidade da vida aprisionada aos fetiches mercantis que redundam na indiferença e esvaziamento das dimensões humano-universais. Essas teorias exaltam os particularismos e as diferenças, como substitutivas – e não complementares – das contradições e das desigualdades de classes, num amplo empreendimento ideológico que invade o saber científico. A contrapartida está no cultivo das problemáticas já anunciadas pelos pensadores clássicos –, e certamente redimensionadas na história do presente –, a favor da compreensão que valoriza a vinculação dos homens entre si e com as configurações histórico-estruturais em suas particularidades nacionais. Integrar razão e história, ciência e realidade, contribuindo para fecundar o que Florestan Fernandes chamou de “Sociologia Crítica” no Brasil: um estilo de reflexão que questiona a realidade social e o pensamento ao lidar com as relações, processos e estruturas sociais, que engendram a especificidade do social. Ela é assim caracterizada por Ianni, ao referir-se à obra de Florestan Fernandes: A sociologia crítica, compreendendo teoria e história, sintetiza um estilo de pensar a realidade social. Ao resgatar o ponto de vista crítico da sociologia clássica e moderna, com base nos ensinamentos do marxismo, e recuperar o ponto de vista crítico oferecido pelas condições de vida e de trabalho dos oprimidos da cidade e do campo, a obra de Florestan Fernandes cria e estabelece um novo estilo de pensamento (Ianni, 2004, p. 72). O desafio é afirmar uma profissão voltada à defesa dos direitos e das conquistas acumuladas ao longo da história da luta dos trabalhadores no País, e comprometida com a radical democratização da vida social no horizonte da emancipação humana: “ser radical é tomar as coisas pela raiz, e a raiz, para o homem, é o próprio homem” (K. Marx)”.