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Cátaros: Extermínio dos Puros
Por Pedro Silva
Fonte https://maniadehistoria.wordpress.com/historia-dos-cataros/
Eles afirmavam que Jesus não era filho de Deus e defendiam a igualdade entre
mulheres e homens. Conheça a história dos cátaros, cristãos que foram vítimas
de uma cruzada e alvo da Inquisição.
Os forasteiros chegam à pequena vila sem causar nenhum alarde. Após percorrer
centenas de quilômetros a pé, seu andar tornou-se arrastado e seus calçados se
deterioraram. Têm a cabeça raspada e vestem-se de forma maltrapilha, com uma
longa batina de cor negra presa por uma tira fina de couro. Após uma recepção
praticamente inexistente, eles começam a ser reconhecidos e respeitados pela
comunidade. Em pouco tempo, se tornarão líderes religiosos capazes de fazer frente à
influência da poderosa Igreja Católica.
No fim do século 12, as cenas descritas acima se tornariam cada vez mais comuns na
ampla região do Languedoc, no sul da atual França. Cidade após cidade, os cátaros
iam espalhando sua fé, baseada na simplicidade e na busca da pureza (katharos, em
grego, significa “puro”). A religião nascera do cristianismo, mas era marcada por
profundas diferenças em relação às doutrinas do Vaticano. Acusados de heresia e até
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chamados de adoradores do diabo, os cátaros
provocaram uma implacável reação do papado. O
esforço para eliminá-los incluiu uma cruzada e foi um
dos principais motivos para a criação do Tribunal do
Santo Ofício – mais conhecido como Inquisição.No
século 14, cerca de 200 anos após o catarismo ter
surgido, seus últimos representantes foram varridos
do mapa. Para entender a intensidade da violência
promovida pela Igreja Católica contra eles, é
fundamental compreender como os cátaros foram
capazes de conquistar os corações e as mentes
medievais. E sua brutal eliminação é um dos
exemplos mais bem acabados do incrível poder do papado sobre a Europa da Idade
Média.
Bispos vistosos
O primeiro grupo cátaro conhecido apareceu na década de 1120, na cidade de
Limousin. Logo eles chegaram a povoados próximos, como Albi, Toulouse e
Carcassonne, sempre no Languedoc. A região, separada do resto do território francês
pelas montanhas dos Pirineus, era governada pela dinastia dos Raimundos. Eram
terras prósperas, fortes na agricultura e na indústria têxtil. À primeira vista, seria difícil
prever que num local tão estável – e religioso – pudesse surgir uma crença que
desafiasse a Igreja. Mas, àquela altura, a sociedade medieval estava passando por
importantes transformações.
A Europa vivia uma fase de aumento populacional e melhoria das condições de vida,
com o desenvolvimento das cidades medievais. No ambiente urbano, aumentava o
contato entre as pessoas e a busca pelo conhecimento. Uma parcela da população
começou então a refletir sobre várias questões, entre elas a própria fé. Na origem da
expansão do cristianismo, que ocorrera cerca de nove séculos antes, estavam valores
como a pobreza, o sofrimento pessoal e a sensação de unidade com Deus. Por volta
do século 11, entretanto, a situação do clero não era exatamente essa.
Por todo lado, pululavam grandes edifícios religiosos, magnificamente ornamentados –
alguns deles deram início ao estilo que ficaria conhecido como “gótico”, que
caracteriza algumas das principais catedrais da Europa. Além disso, os sacerdotes
cristãos (sobretudo os bispos e seus representantes locais, os padres) usavam os
fartos recursos da Igreja para garantir a si mesmos uma vida tranquila. A imagem
típica do cristianismo, aquele Jesus magro, de olhar triste e agonizando na cruz, era
apenas uma vaga recordação – o perfil do clero estava mais próximo do bispo
rechonchudo de roupas vistosas e dedos ornados com toda a sorte de joalharia.
Abaixo os dogmas
Diante das contradições da Igreja, a influência dos cátaros avançava rapidamente. Em
1167, alguns deles se reuniram no encontro que marcou o nascimento oficial da nova
religião: o concílio de Saint-Félix-de-Caraman (hoje Saint-Félix-Lauragais, no sul da
França). Compareceram cátaros não só do Languedoc, mas de áreas mais distantes
como a Lombardia (na atual Itália) e a Catalunha (hoje na Espanha). Muito pouco se
sabe sobre o que ocorreu na reunião. Ela provavelmente foi presidida por um homem
chamado Nicetas – um cristão dissidente vindo de Constantinopla e apelidado de
“papa” – e organizou as bases do catarismo.
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Para os cátaros, o livro sagrado era a Bíblia (em particular o Novo Testamento). Sua
religião, entretanto, divergia muito do catolicismo. O princípio fundamental era o
dualismo: segundo ele, o mundo seria composto de dois reinos opostos e
coexistentes. O primeiro, comandado por Deus, seria invisível e luminoso, onde só
existiria o bem. Já o segundo reino, material e visível, seria controlado pelo diabo. Em
outras palavras: segundo o catarismo, o inferno ficava na Terra. E o objetivo da vida
humana seria escapar do mal através da purificação dos espíritos, reencarnação após
reencarnação. Se isso fosse feito, quando chegasse o Juízo Final, todos se salvariam
e iriam para o reino de Deus.
Apesar de se considerarem cristãos, os cátaros não acreditavam que Jesus fosse filho
de Deus. Ele era apenas considerado um profeta importante, que havia divulgado
alguns ideais que mereciam ser seguidos. Para completar a afronta ao catolicismo, os
cátaros viam São João Batista como nada menos que um instrumento a serviço do
diabo. Afinal, por meio do batismo, ele teria cumprido a profecia de que Jesus era o
messias – coisa na qual, como vimos o catarismo não acreditava.
Assim como a teoria, a prática dos cátaros era bem diferente da dos católicos. Eles
recusavam o ritual da hóstia sagrada (em suas cerimônias, bastante simples, havia
apenas a repartição do pão). Tampouco aceitavam o papel subalterno que o papado
romano reservava para as mulheres – para o catarismo, o ser humano não admitia
distinção entre sexos. A elas era permitido, inclusive, celebrar ritos religiosos.
A autoridade do papa ou de seus bispos não era reconhecida pelos cátaros. Sem uma
liderança espiritual única, eles
dividiam os seguidores da religião em
três níveis. O mais alto deles era o
dos Perfeitos, também conhecidos
como “bons homens”. Para chegar a
esse posto, era preciso passar por
duras
provas
e
receber
o
Consolamentum, o único sacramento
cátaro (que, grosso modo, resumia
num só o batismo, a ordenação e a
extrema-unção). Os Perfeitos eram
celibatários e passavam grande parte
dos dias em oração e jejum.
Abaixo dos Perfeitos estavam os Crentes, categoria que reunia a grande maioria dos
cátaros. Eles comungavam das práticas de virtude e humildade, mas não estavam
obrigados a qualquer tipo de abstinência. Podiam casar (embora preferissem o
concubinato) e só tinham direito a receber o Consolamentum na hora da morte. O
terceiro nível da sociedade cátara era composto pelos Ouvintes. Simpatizantes da
religião, eles acompanhavam as palestras dos Perfeitos e se curvavam perante eles
para receber a bênção.
Na virada do século 13, o avanço dos cátaros havia se tornado a maior preocupação
da Igreja. “Havia o perigo de que a contestação à ordem imposta por Roma se
estendesse rapidamente a outras regiões da cristandade”, escreveu o historiador
Ernest Bendriss em artigo publicado na revista espanhola História y Vida em março de
2007. A reação não tardaria.
Armas contra a fé
“Matem-nos todos. Deus saberá reconhecer os seus!” De acordo com alguns registros,
foi com essas palavras que o abade Arnoldo de Amaury incitou à aniquilação total dos
cátaros que se escondiam na fortaleza de Béziers, no Languedoc, em julho de 1209.
Há quem defenda a tese de que a frase nunca foi dita. De qualquer modo, ela resume
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bem o espírito da sangrenta Cruzada Albigense – graças à grande concentração de
cátaros na cidade de Albi, eles também eram conhecidos como “albigenses”.
Antes de recorrer às armas, entretanto, a Igreja tentou combater o catarismo no
campo da fé. Há relatos de que, entre 1165 e 1198, os cátaros foram perseguidos
publicamente em locais tão díspares quanto Lombers (França), Colônia (Alemanha) e
Oxford (Inglaterra). Para ouvir e julgar os hereges, a Igreja montou tribunais
eclesiásticos. Graças à experiência dos cátaros como oradores, entretanto, eles se
defenderam brilhantemente das acusações e viram sua fé ganhar status de religião.
Apesar de ter havido algumas condenações, o prestígio dos Perfeitos saiu fortalecido.
Em 1205, Domingos de Gusmão criou a ordem dos dominicanos. Pregando uma
postura moral exemplar e o retorno aos princípios originais da cristandade, eles
tentavam competir com a “pureza” dos cátaros. O problema é que os sacerdotes
católicos não conseguiam se aproximar da população como os Perfeitos. Quando um
líder cátaro chegava a uma vila, sua primeira preocupação era encontrar emprego.
Após trabalhar de dia para se manter, ele dedicava a noite ao diálogo com os locais,
procurando transmitir seus conceitos religiosos. Enquanto isso, os monges católicos
raramente eram vistos em contato com o povo – optavam, em geral, pela clausura.
Diante da contínua perda de fiéis, o papa Inocêncio III decretou o confisco dos bens de
todos aqueles considerados hereges. Sua vontade foi cumprida por todos os cantos da
Europa. Exceto no Languedoc, onde os governantes se recusaram a agir contra os
cátaros. A alternativa encontrada pelo pontífice foi montar uma verdadeira força-tarefa:
ordenou que os clérigos se unissem aos
pregadores
dominicanos
para,
em
conjunto, redobrar a batalha pela fé no
Languedoc. Sacerdotes católicos se
misturaram aos Perfeitos nas ruas, mas
pouca coisa parecia mudar. Até que um
crime selou o destino dos cátaros.
Em 1208, o legado papal (figura máxima
da hierarquia da Igreja na região,
representante direto do pontífice) Pedro de
Castelnau foi morto por alguns habitantes
de Toulouse. Logo correu a notícia de que
os assassinos eram, supostamente,
cátaros. Inocêncio III teve, então, a deixa de que precisava. Em 10 de março,
organizou uma cruzada liderada por Arnoldo de Amaury e pelo bispo Folquet de
Marselha. No campo de batalha, o comando coube a Simão de Montfort, à frente de
um exército com 10 mil homens.
Além dos cátaros, o alvo da cruzada foram os principais nobres que davam proteção a
eles: o conde Raimundo VI de Toulouse e o visconde Raimundo Rogério de Trencavel.
O primeiro grande ataque, em Béziers, surpreendeu pela violência intensa e
indiscriminada. Cátaros e católicos, Perfeitos e padres, não importa: todos foram
massacrados pelos cruzados. “Os cruzados não mostravam clemência. Mulheres e
crianças amontoaram-se na igreja de Santa Maria Madalena, na parte alta da cidade”,
escreve o historiador canadense Stephen O’Shea em A Heresia dos Cátaros.
“Deveriam ter sido à volta de mil, um cálculo baseado na capacidade da igreja.
Fossem quantos fossem, a igreja estava apinhada de aterrorizados católicos e cátaros
quando os cruzados derrubaram os portões e massacraram todos os que ali se
encontravam”, completa. Em 1840, durante uma reforma do templo, várias ossadas
foram descobertas sob o piso.
Estima-se que, em Béziers, nada menos que 20 mil pessoas tenham sido mortas –
praticamente toda a população da cidade. Depois disso, os cruzados destroçaram
Carcassonne, Bram, Minerve, Termes e Lavaur, ignorando quaisquer tentativas de
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rendição. Como recompensa pelo extermínio dos hereges, os cruzados ganharam o
perdão pelos seus pecados – e puderam repartir entre si as riquezas e terras do
Languedoc. A carnificina só parou em 1229, quando foi celebrado o tratado de paz de
Meaux-Paris, entre Raimundo VII de Toulouse e o rei Luís IX da França.
A fogueira final
Inocêncio III morreu sem ter conseguido extinguir o catarismo. A tarefa coube a seu
sucessor, Gregório IX, que assumira em 1227. Com a situação aparentemente
controlada em termos militares, o papa teve uma ideia que seria decisiva para a
história dos séculos seguintes. Em 1231, por meio da bula Excommunicamus, criou a
Santa Inquisição. Não é exagero dizer que a caça aos cátaros foi uma das principais
razões para a novidade. Afinal, após anos de perseguição, eles haviam mudado sua
maneira de agir. Agora, os Perfeitos misturavam-se à população, sem usar a
tradicional veste negra. Para facilitar a identificação dos cátaros, a Inquisição
empregava métodos sofisticados – e sórdidos – de interrogatório e investigação.
A última ação militar contra os cátaros foi o cerco a Montségur, em 1243. Naquela
época, a Inquisição já havia provado sua eficácia para eliminar seletivamente os
hereges. Depois das condenações nos tribunais inquisitórios, a Igreja usava o “fogo
purificador”: de acordo com o discurso oficial, a
morte na fogueira seria a única forma de salvar
as almas dos cátaros.Encurralados, os cátaros
eram colocados diante da seguinte escolha:
negar sua fé ou enfrentar a fogueira. De uma
forma ou de outra, a religião ia sendo
exterminada. Em 1321, foi executado o último
sacerdote
cátaro
conhecido,
Guillaume
Bélibaste, que havia se refugiado no oeste da
Espanha. Cerca de um século depois, já não se
ouvia mais falar de seguidores do catarismo.
Terminava assim a trajetória dos contestadores
que, com humildade de caráter e simplicidade
de métodos, haviam conquistado o respeito do
povo – da mesma forma que os primeiros
cristãos haviam feito, 12 séculos antes, na
Palestina.
Caçador de cátaros
Simão de Montfort acabou morto por uma guarnição feminina.
Antes de ser convidado para comandar as tropas da Cruzada Albigense, Simão de
Montfort, nascido por volta de 1160, já havia sujado suas mãos de sangue em nome
da Igreja. Ele participara da fracassada Quarta Cruzada, entre 1202 e 1204. O
movimento havia sido convocado para expulsar os muçulmanos da Terra Santa, mas
acabou se desviando um bocado do objetivo. Um dos culpados foi o próprio Simão de
Montfort, que no meio do caminho resolveu saquear com seus homens a cidade de
Zara (hoje Zadar, na Croácia), contrariando as determinações do papa Inocêncio III
para que nenhum cristão fosse atacado durante a campanha – a Quarta Cruzada,
aliás, terminaria de modo ainda pior, com a pilhagem de Constantinopla, em 1204.
Anos mais tarde, durante a Cruzada Albigense, Montfort reforçou sua reputação de
líder inflexível e implacável. Glorificado como herói da fé católica por diversos
cronistas, ele foi o responsável direto pela morte de milhares de pessoas – já que
raramente dava ordens para poupar alguém. Em 1209, Montfort se tornou visconde de
Béziers e Carcassonne, duas localidades que suas tropas haviam arrasado. Liderando
um massacre após o outro, ele logo se transformou no senhor absoluto da região do
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Languedoc. Montfort lutou pela expansão de seus domínios até a morte, em 1218,
durante um cerco à cidade de Toulouse. Segundo alguns relatos, ele foi atingido por
uma pedra atirada por uma catapulta da guarnição feminina da resistência cátara –
destino apropriado para alguém conhecido por ser “firme como uma rocha”.
Heresias sortidas
Na época dos cátaros, católicos também desafiaram a Igreja
Percebendo que a Igreja estava se desviando de seus princípios originais, o papa
Gregório V promoveu uma ampla mudança na instituição. A Reforma Gregoriana,
iniciada em 1075, reforçava a obrigatoriedade do celibato no clero e atacava a simonia
(a venda de falsas relíquias cristãs). Enquanto o papado tentava reestruturar o
catolicismo, entretanto, a confusão teológica era generalizada. Além de grupos
cristãos dissidentes – entre os quais os cátaros se destacaram –, a Igreja daquela
época foi obrigada a enfrentar vozes dissonantes dentro de sua própria comunidade
de seguidores e sacerdotes. Em 1110, o religioso Tanchelm de Antuérpia, originário da
região de Flandres (hoje na Bélgica), levou alguns fiéis católicos a idolatrá-lo
cegamente – a ponto de aceitarem beber a água que ele usava para tomar banho.
Crítico dos rumos da Igreja, ele se proclamou messias e acabou preso na cidade
alemã de Colônia. Ficou na cadeia entre 1113 e 1114 e, no ano seguinte, após ser
libertado, foi morto por um padre católico. Na mesma época, Pedro de Bruis, nascido
na Provença, quis reformar a Igreja na marra. Apesar de ser padre, ele chacoalhou o
sul da França promovendo ataques a igrejas e queimando crucifixos – assim como os
cátaros, ele detestava a opulência dos templos católicos e desprezava o significado
místico da cruz. Acusado de heresia, foi executado na fogueira em 1126.
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