4 Introdução. Aproveito-me desta pequena introdução para um rápido esclarecimento a respeito das citações: na tradução de Costa Macedo – a utilizada aqui – as numerações podem se repetir no caso de um capítulo extenso, como no primeiro, por exemplo, ou quando mesmo pequeno ele se divide em duas páginas. Para evitar confusões, após o nome do texto eu cito o capítulo, o parágrafo e só por fim as linhas. Postas tais observações, levanto uma questão: Por que tratar de um Santo num curso de Filosofia? A muitos nem faria sentido tal objeção, porque o Santo também não lhes interessaria. Porém, posso dizer que um dos meus esforços aqui foi observar, junto com a análise do texto, é claro, tal questão. Sob o título “Sobre a existência de Deus” eu inicio meu estudo e sigo a mergulhar nas palavras desse santo homem, como também no pensamento do século XI. Nas primeiras linhas, cito as três principais localidades pelas quais Anselmo passou, fato que até hoje leva alguns a confundirem-se com a existência de três Anselmos. Em seguida, aparece a diferença entre o pensamento anselmiano frente à briga entre dialéticos e antidialéticos, e também sua postura em relação às fé e razão. Depois de tais contextualizações, surge a análise do Proslogion a começar pelo proêmio – onde Anselmo diz de qual o pressuposto parte para desenvolver o seu argumento –, sendo que, logo após, é possível verificar o cumprimento de tal promessa com a oração do capítulo I. Já sobre o capítulo II, por ser o principal da obra, quanto deste trabalho, a análise prolongou-se um pouco mais e, munido da obra, de comentadores e das lembranças ainda frescas das aulas tidas, tentei – na medida do possível – esclarecer os pontos principais do argumento. E por fim, uma rápida entrada no capítulo III fez-se necessária para uma melhor compreensão do que desenrolou-se nas observações precedentes. 5 Sobre a existência de Deus. Para o mundo, de Cantuária; para a Itália, de Aosta; mas também de Bec, por ter sido Prior (1063) e Abade (1079) no convento de Le Bec; para todos, Anselmo, santo homem que creu e refletiu, sendo que tais reflexões o tornaram numa importante figura não só para os cristãos, mas a todo o pensamento Ocidental. Nascido em Aosta (1033), Anselmo surgiu como uma evolução filosófica em meio às controvérsias entre dialéticos e antidialéticos, tendo já em seu pensamento a distinção entre fé e razão, campos que dois séculos depois – devido aos instrumentos aristotélicos – tornaram-se mais distintos à Escolástica posterior.1 Porém, a distinção dos campos não consistiu em optar por um ou por outro, mas pelos dois, pois, embora seja de Anselmo a fórmula da primazia da fé sobre a razão, quando ele apelou para a razão lidou somente com a razão.2 Aqui será tratado de um texto em que esse aparente conflito aparece, o Proslogion, onde fé e razão caminham de mãos dadas, tão juntas e tão separadas que faz com que o leitor desatento não perceba essa tenuidade. No proêmio, Anselmo nos diz o que o motivou a escrever o opúsculo, nos mostra de qual pressuposto partirá – a fé – e quais são as suas intenções. Com isso reforça a primazia da fé tanto em suas palavras quanto na ordem em que foram escritas, alertando o leitor a respeito do caminho percorrido por ele e a percorrer pelos que desejam entender aquilo que acreditam, caminho que podemos definir pelo primeiro título dado ao opúsculo: A Fé procurando o Entendimento. O primeiro capítulo faz jus ao pressuposto e o autor presenteia o leitor com uma belíssima prece que, a meu ver, já na primeira linha mostra-nos a postura a ser tomada – para entender a fé – quando diz: “E agora, miserável homem, deixa um pouco as tuas preocupações, retira-te um pouco dos teus pensamentos tumultuosos”.3 Ou seja, Anselmo toma uma postura despida do mundo, num movimento de voltar-se para o interior, mas parece-me que não apenas, é preciso um movimento ao mais íntimo de nosso íntimo, pois se viermos somente de fora para dentro, ainda é arriscado nos perdermos no turbilhão de nossos pensamentos. Em seguida, as pequenez e angústia do homem em relação ao Criador são demonstradas. Um homem que busca o Supremo inacessível, mas que ao mesmo tempo 1 Cf. STEIN, ERNILDO. 2004, p. 254. Cf. GILSON, ÉTIENNE. 2006, p. 41. 3 ANSELMO. Proslogion. Cap. I. 2 6 mostra-se esperançoso em relação a essa busca. Um homem que ao assumir o que é, tem consciência do que procura e ao mesmo tempo admite incapacidade para tal. “Em antíteses – luz/trevas, feliz/infeliz, pátria/exílio4 –, Anselmo nos faz refletir sobre a condição humana antes e após o pecado original, e parece-me também que mostra-nos que essa desgraça a qual nos encontramos foi um ato de vontade, ou seja, clamamos por aquilo que um dia jorrava no paraíso. Por que Adão abnegou tantos bens? “Aquele tinha bens em abundância, nós mendigamos”.5 Reconhecer-se pequeno reforça a inacessibilidade de Deus, rogar a Ele reforça seu poder, e é na esperança desse poder que uma alma desgastada por vícios clama por renovação e restauração, uma alma que é incapaz de conhecer a profundidade de seu Criador, porém, devido à fraca imagem que dentro de si resta-lhe ainda de seu Senhor (imago dei), essa mesma alma ainda crê, e é isso o que o Doutor Magnífico almeja: Entender o que crê, e crê até que, se não crer, não é possível entender.6 No segundo capítulo, que é o objeto principal deste trabalho, como também do opúsculo, deter-me-ei um pouco mais, pois seu único parágrafo é tão denso que há quase mil anos vem sendo estudado sem que suas questões se esgotem. E inicio meu estudo citando Anselmo: “Portanto, Senhor, Tu que dás o entendimento da fé, concede-me que quanto sabes ser-me conveniente, entenda que existes como acreditamos e que és o que acreditamos [seres]”.7 Nessas linhas, parece-me que autor resume agora em poucas palavras o que disse nos sete parágrafos anteriores. Novamente mostra-nos o abismo existente entre Criador e criatura, pois ao pedir a Deus o entendimento, assume-se incapaz, mas ao mesmo tempo contente e esperançoso com o pouco de luz que lhe puder ser concedido pela misericordiosa graça divina. No entanto, parece-me que esta primeira frase traz algo mais do que simples repetições, traz o fato de que Anselmo deseja entender – mesmo pouco – a existência de Deus como ele crê, e se Deus é o que essa crença diz. É preciso deter atenção sobre a palavra como (sicut), pois, somente é possível compreender o argumento se tivermos em mente o que o vocábulo Deus representa para o autor. Significado e significante8 não podem estar separados na inteligência (intellectus), que é a mediadora entre pensamento (cogitatio) e a coisa (res), e essa perfeita relação cogitare/intelligere que o insensato deixa de realizar faz com que ele conceba Deus como não existente.9 4 MARTINES, PAULO RICARDO. 1997, p. 51 Proslogion. Cap. I, § 3, 20. 6 Cf. Proslogion. Cap. I, § 7, 6. 7 Proslogion. Cap. II, 7 – 9. 8 Termos meus. 9 Cf. MARTINES, PAULO RICARDO. 1997, p. 54 – 56. 5 7 Também nesse importantíssimo capítulo segundo, temos o que a tradição considera como o núcleo do argumento10, a segunda frase: “E na verdade acreditamos que Tu és algo maior do que o qual nada pode ser pensado”.11 A partir deste momento, o Doutor Magnífico suspende a fé e inicia sua experiência reflexiva, e para tentar acompanhá-lo vale salientar dois pontos de seu argumento: Primeiro, a palavra maior (maius), parecerá à uma leitura desatenta que Anselmo quis nos dizer que Deus era um ser bem grande, mas, como observa Martines, o maius utilizado é um “comparativo de superioridade, e não um superlativo”,12 o que podemos também observar se formos ao dicionário latino, onde maius aparece como um comparativo de magnus, palavra que muitas vezes traz consigo a ideia acessória de força, nobreza, o que a palavra grandis – por exemplo – não designaria;13 segundo, destaquemos o não poder ser pensado além desse maius, ponto que talvez seja a chave do núcleo do argumento anselmiano, ou seja, pensar algo maior sem o movimento no espírito do cogitare/intelligere que já foi dito acima, pode nos levar a pensar que a esse maior pode-se pensar algo maior ainda, ad infinito, mas quando se diz “nada maior pode ser pensado” (nihil maius cogitari potest), há a palavra nada, que traz consigo um caráter negativo à observação, e aí não se trata mais de pensar algo maior, mas sim, de não pensar um maior existente do que esse maior, ou como observa Martines, “o limite do pensamento humano é Deus”.14 Por ignorar tais observações ou interpretá-las erroneamente, Gaunilo e S.to Tomás rejeitam o argumento anselmiano, e ambos consideram ilegítima a passagem da ordem mental (in intellectu) para a ordem real (in re) e que, da concepção do ser necessário não se pode concluir sua existência15. Gaunilo, inclusive, dá um exemplo de uma suposta magnífica ilha perdida que pode ser pensada como existente16, porém, posso pensar numa outra ilha mais magnífica, e noutra, e noutra... E esse pensar ao infinito já foi restringido um pouco acima quando foi referida a palavra nihil, ou seja, o maius do qual tratamos aqui é o limite do pensar, e sendo assim, a ilha não Lhe serve como comparativo. Com outro exemplo, o do pintor, Anselmo nos mostra não ser ingênuo e explica-nos realmente que nem tudo o que pode ser pensado, ou que está no intelecto, possui correspondente na realidade, ou seja, a obra a ser exteriorizada já está na mente do pintor, só na mente, e é preciso uma passagem de in intellectu para in re, porém, pensar em passagem já é pensar em um não ser que passou a ser, e isto é inconcebível a algo maior do qual nada 10 Cf. MARTINES, PAULO RICARDO. 1997, p. 57. Proslogion. Cap. II, 9 – 10. 12 Cf. MARTINES, PAULO RICARDO. 1997, p. 57. 13 FARIA, ERNESTO. 2003, p. 586. 14 Cf. MARTINES, PAULO RICARDO. 1997, p. 58. 15 Cf. MACEDO, COSTA. 1996, p. 107. 16 GAUNILO. Cf. MACEDO, COSTA. 1996, P. 48, § 6, 22 – 36. 11 8 pode ser pensado, pois, se foi criado, quer dizer que há algo maior do que ele, qual o criou, como é caso do pintor que cria o quadro; também não posso ter esse algo maior do qual nada pode ser pensado somente no intelecto, dado que seja melhor aquilo que existe na realidade, portanto, para Anselmo, o simples fato de pensar algo maior do qual nada pode ser pensado, é pensá-lo existente, ou melhor, reta relação entre cogitare/intelligere.17 E no terceiro capítulo, Anselmo salienta exatamente isso, e diz: se aquilo maior do que o qual não é possível pensar-se pode pensar-se como não existente, isso mesmo maior do que o qual nada pode ser pensado não é isso mesmo maior do que o qual nada pode ser pensado, ou seja, seria o mesmo que dizer que A é A e não-A ao mesmo tempo, o que é uma contradição lógica e, no caso de Deus, também ontológica, pois, “se alguma mente pudesse pensar algo melhor do que Ele, essa mente erguer-se-ia acima do criador e ajuizaria acerca do criador, o que é extremamente absurdo”18, a não ser que essa mente seja estulta, ou insensata.19 17 Cf. Proslogion. Cap. II, 10 – 26. Proslogion. Cap. III, 6 – 9. 19 Cf. Proslogion. Cap. III, 16. 18 9 Conclusão. O que posso concluir em pouquíssimas páginas a respeito de um assunto que há séculos vem sendo tratado? Que Deus existe? Que isso não pode ser provado? Que Anselmo era teólogo apenas? Ou também filósofo? Ao menos uma coisa eu afirmo com toda certeza e felicidade: sempre haverá questões. E a tarefa aqui foi exatamente clarificar algumas dessas questões, principalmente a meus olhos, pois o exercício de análise e escrita deste trabalho retirou-me da face algumas brumas, trouxe-me outras perguntas que talvez jamais serão respondidas mas, eis aqui, mais um pequeno passo findado em minha jornada acadêmica. E de tudo, em minha opinião, Anselmo pode sim ser chamado de filósofo, e digo mais, seu nome ecoará ainda por séculos vindouros, seja por lábios adoradores, seja por contestadores. Sempre houve e haverá movimento em torno dos assuntos de Deus, sejam debates, guerras, paz. O que importa é que Anselmo foi uma das principais figuras a tratar do assunto, ao mesmo tempo em que outros evitaram e outros tantos maldisseram. Sob um pano de fundo ainda Agostiniano de filosofar, o Doutor Magnífico mostra em seu Proslogion como fé e razão podem caminhar juntas. Mesmo não abrindo mão da primazia da fé como também não partindo de premissas lógicas para desenvolver seu argumento, Anselmo faz-nos participar de sua experiência reflexiva e nos mostra, segundo Martines, que “sua intenção não é compreender o incompreensível, mas apontá-lo como incompreensível”, uma experiência reflexiva que aponta para o limite do pensamento humano e visa a positividade existente de um ser na sua possibilidade de ser incomparável, ou seja, o intellectus impulsiona a cogitatio e impõe a ela um limite, e a prova de Anselmo termina como um “movimento da inteligência que reconhece o que está nela e aquilo que a transcende”.20 20 Cf. MARTINES. 1997, p. 61 e 66. 10 Bibliografia. ANSELMO. Proslogion, de S.to Anselmo, seguido do Livro em favor de um insensato, de Gaunilo, e do Livro Apologético; tradução, introdução e comentários de Costa Macedo. Portugal, Porto Editora, 1996. FARIA, ERNESTO. Dicionário Latino-Português. Belo Horizonte, Livraria Garnier, 2003 – Dicionários Garnier v.17. GILSON, ÉTIENNE. O espírito da Filosofia Medieval. São Paulo, Martins Fontes, 2006. MARTINES, PAULO RICARDO. O argumento único do Proslogion de Anselmo de Cantuária. Porto Alegre, EDIPUCRS, 1997. STEIN, ERNILDO (org). A cidade de Deus e a A cidade dos homens: de Agostinho a Vico. Texto: Santo Anselmo de Copenhague, de Álvaro Luiz Montenegro Valls. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2004, v.1.