Deus está no cérebro? - Universidade de Coimbra

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ID: 30671848
19-06-2010 | P2
Tiragem: 50458
Pág: 7
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 17,07 x 36,80 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 1
Deus está no cérebro?
As neurociências são o grande continente para
o século XXI. Nisto acredita Anselmo Borges, padre
e professor de Filosofia da Universidade de Coimbra
Maria João Lopes
a Chegou à hora combinada a
Coimbra. Tudo correu conforme o
previsto. Partiu do Porto, o carro
andou, não teve nenhuma avaria,
ninguém se atravessou no caminho.
Ao realçar que tudo aconteceu
como acreditámos que aconteceria,
o que o sacerdote da Igreja
Católica e professor de Filosofia da
Universidade de Coimbra Anselmo
Borges nos queria dizer era que, ao
contrário do que possamos pensar,
a maior parte da nossa vida passase no domínio da fé e não da razão.
Fé, que vem de fide, tem que ver
com confiar e acreditar. E é aí que
passamos a maior parte do dia.
Claro que o carro podia ter
avariado, mil e uma coisas podiam
ter acontecido. A realidade é
ambígua e, nesse caso, se não a
considerássemos merecedora de
confiança, entraria em campo
a razão. Mas desta vez não foi
preciso. Fiámo-nos que o encontro
iria acontecer e aconteceu, sem
alvoroços. Falámos com Anselmo
Borges sobre ciência e religião,
sobre ateus e crentes. Aproveitámos
a boleia de uma conferência sobre
“Fundamentalismos e intolerâncias
da razão e da fé” e, no fim da
sessão, colocámos-lhe questões que
ainda se prolongaram por e-mails. E
poderiam prolongar-se mais. É, que
apesar dos tempos, há perguntas
que se mantêm.
Uma delas é a questão entre
Deus e ciência. Ainda é pertinente?
Para Anselmo Borges, sim. “Para
evitar o fundamentalismo tanto
científico como religioso. Quando
a ciência pretende que tem o
monopólio da racionalidade,
como se fosse a única via de
conhecimento verdadeiro, cai no
fundamentalismo cientificista”,
explica. Porque não é só a ciência
que tem a razão, ou razões, diz. A
fé também tem: “Diria que a razão
para acreditar é fundamentalmente
uma razão do sentido enquanto
sentido de todos os sentidos, isto
é, do Sentido último”, diz por
e-mail, reconhecendo também
existir fundamentalismo do lado da
religião, quando esta “não respeita
a esfera própria da ciência e a sua
autonomia ou faz uma leitura literal
dos livros sagrados”, como a Bíblia.
Mas há questões novas,
deste tempo, no campo das
neurociências, “o grande
continente para o século XXI”:
“Hoje, por causa dos novos
métodos, como a ressonância
magnética nuclear funcional, que
nos permitem observar o que se
passa no cérebro, concretamente
as zonas activadas em presença das
diferentes emoções e actividades,
surge a tentação do reducionismo,
no sentido de se defender que os
acontecimentos espirituais não
passam de processos físicos e
químicos no cérebro”, diz. Para
o docente, é “uma conclusão
apressada, pois está-se a esquecer
que a realidade humana envolve
biologia e cultura” e “a dimensão
cultural precisa de interpretação,
para a qual não há métodos
científico-naturais”.
O ponto de Deus
Anselmo Borges sabe que há
neurocientistas que se propõem
encontrar “o ponto de Deus”
no cérebro e que alguns destes
estudiosos defendem que “a religião
não é mais do que um produto do
cérebro, um artefacto do cérebro”.
Mas aqui o padre cita o cientista
americano Andrew Newberg,
que “popularizou a chamada
‘neuroteologia’”: “Ele diz mais ou
menos o seguinte: se observo o
cérebro de uma monja franciscana
que vive a experiência da presença
de Deus, vejo o que se passa no
cérebro, mas não posso dizer se
Deus está lá e se existe ou não. Deus
não é objecto de experimentação
científica”, defende o docente, que
considera não haver conflito entre a
Igreja e os avanços científicos.
Então, em que acreditar? No Big
Bang? Na teoria da evolução das
espécies? No Génesis? Em Adão e
Eva? Para Anselmo Borges, pode
acreditar-se tanto nas teorias
científicas como nas religiosas.
A ciência explica-lhe o como, a
religião o porquê.
“Claro que, no quadro da ciência
actual, aceito o Big Bang e a teoria
da evolução. Também aceito, mas
numa leitura crítica, o mito do
Génesis e de Adão e Eva. Repare:
numa leitura crítica. É preciso
entender que os livros sagrados
não são livros de ciência, mas livros
religiosos”, nota, acrescentando
que a intenção destas obras não é
ensinar ciência, mas o caminho da
“relação com Deus”.
A ciência explica “como funciona
o mundo”, mas o padre continua
a sentir-se insatisfeito. Há mais
para perceber. “A ciência não pode
responder às perguntas: por que
há algo e não nada? Qual o sentido
último da minha vida, da história
e do mundo?”, questiona. E é aqui
que pode “aparecer a religião”, que
“não pode ser cega nem irracional e
tem de dar razões”.
Porque “a revelação não cai do
céu”. Nem Deus “faz ditados, nem
fala directamente com ninguém”:
“A revelação de Deus é sempre
indirecta, através do cosmos e da
história”, defende. E a fé, “uma
entrega confiante ao mistério de
Deus, com razões”, “não exclui a
dúvida”.
Anselmo Borges até está “de
acordo” com o filósofo ateu André
Comte-Sponville, para quem
um ateu que diz saber que Deus
não existe, “antes de ateu, é um
imbecil, como é igualmente imbecil
o crente” que diz saber que Deus
existe. “O ateu só pode dizer, e tem
razões para isso, que crê que Deus
não existe, como o crente só pode
dizer, e tem razões para isso, que
crê que Deus existe”, defende o
padre. E sublinha a diferença entre
saber e crer.
RUI GAUDÊNCIO
Anselmo Borges: “Deus não é objecto de experimentação científica”
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