CBPF – Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas Notas de Aula TÉCNICAS DE DETECÇÃO Prof. Laudo Barbosa 2 Índice Notas Preliminares NP1 Unidade de energia eV. Equivalência massa-energia 3 3 NP2 Seção de choque, probabilidade de interação e livre caminho médio 4 NP3 Valores de constantes físicas usadas no texto 8 Introdução 9 I - Processos de Interação entre Partículas e Matéria 10 1.1 Fórmula de Bethe-Bloch para partículas pesadas com carga elétrica 10 1.2 Caso de partículas leves com carga elétrica: elétrons e pósitrons 16 1.3 Perda de energia por radiação 18 1.4 Caso dos fótons 22 1.4.1 Espalhamento Thomson 22 1.4.2 Efeito fotoelétrico 23 1.4.3 Efeito Compton 24 1.4.4 Produção de pares 25 1.4.5 Coeficiente de absorção 26 1.5 Interações de nêutrons II - Detetores a Gás 27 29 2.1 Princípio de funcionamento e modos de operação 30 2.2 Geometria e campo eletrostático 33 2.3 Formação do sinal elétrico 35 2.4 Detetor sensível a posição 38 2.5 Contador multifilar 39 2.6 Escolha do gás 40 2.7 Limitações dos detetores a gás 40 III - Cintiladores e Tubos Fotomultiplicadores 42 3.1 Forma do sinal luminoso num cintilador 42 3.2 Classes de cintiladores 44 3.2.1 Cintiladores orgânicos 44 3.2.2 Líquidos e plásticos 46 3.2.3 Cristais inorgânicos 46 3.2.4 Gases e vidros 47 3 3.3 Discriminação por forma de pulso 48 3.4 Limitações dos cintiladores 48 3.5 Tubos fotomultiplicadores 49 3.5.1 Microchannel plates IV - Detetores a Semicondutor 51 53 4.1 Estrutura eletrônica dos semicondutores 53 4.2 Semicondutor intrínseco, dopado e junção 54 4.3 Características do detetor a semicondutor 57 4.3.1 CCD’s 4.4 Limitações Referências 58 59 60 4 Notas Preliminares NP1 Unidade de energia eV. Equivalência massa-energia Um elétron-Volt (eV) é definido como a energia adquirida por um elétron quando percorre a distância de 1 metro submetido a uma diferença de potencial de 1 V. O campo elétrico em questão é portanto: E =1 V/m E a energia adquirida pelo elétron: e x E x 1 = 1.60 x 10-19 J. Temos então a equivalência: 1 eV = 1.60 x 10-19 J Por outro lado, a energia - E - de uma partícula relativística de massa de repouso m e velocidade v é definida a partir do vetor quadri-momento P: P = (p,ipo), com p = γmv e p0 = γmc γ = 1 1− β 2 β= , v c O módulo de P, definido a seguir, é uma constante, portanto é também uma grandeza física conservada: P = p 2 − p o = imc 2 A energia total é definida como: E = cp0 ⇒ E = m 2 c 4 + p 2 c 2 = m 2 c 4 + γ 2 m 2 c 4 β 2 = mc 2 1 + γ 2 β 2 = γmc 2 5 Segundo esta definição, é possível que uma partícula tenha massa nula e energia não-nula, desde que sua velocidade seja igual a c. Este é o caso dos fótons. Expandindo E assim definida em termos de potências de β, encontramos: 1 3 v4 5 v6 E = mc 2 + mv 2 + m 2 + m 4 + ... 2 8 c 16 c Aqui vemos claramente porquê E exprime a energia total. O primeiro termo corresponde à ‘energia de repouso’ (presente mesmo quando v = 0). O segundo termo representa a energia cinética clássica (v<<c), e os termos restantes representam as contribuições relativísticas importantes para valores de v próximos de c. A energia cinética relativística pode, portanto, ser expressa por: Ec = E - mc 2 = γmc 2 − mc 2 = mc 2 (1 − γ ) Deste contexto surge a noção de equivalência entre massa e energia, pela qual se pode também falar em energia equivalente a 1 Kilograma de massa de uma partícula em repouso (γ=1): E[1 Kilograma] = 1 x c2 ≈ 9.00 x 1016 J ≈ 5.62 x 1035 eV ⇒ 1 eV ≅ 1.78 x 10-36 Kg Exemplo: me = energia do elétron em repouso = 9.11 x 10-31 Kilograma ≅ 0.512 x 10 6 eV ≅ 8.20 x 10-14 J. NP2 Seção de Choque, Probabilidade de Interação e Livre Caminho Médio. Vários tipos de interação podem ocorrer entre partículas de um feixe e de um alvo: atração gravitacional, atração ou repulsão eletromagnética, colisão elástica ou inelástica, etc. A seção de choque é uma estimativa da probabilidade de ocorrência de 6 cada tipo de interação, e pode ser calculada analiticamente desde que se conheça uma expressão para a interação entre partículas do feixe e do alvo. Para um feixe homogêneo de partículas incidindo sobre uma seção de área do alvo, define-se a seção de choque diferencial como a fração de partículas espalhadas após interação - numa direção particular, dΩ em torno de Ω, relativamente ao número total de partículas incidentes: dσ 1 dN s = dΩ F dΩ Onde F é o fluxo (número de partículas por unidade de área por unidade de tempo), e dNs é o número médio de partículas espalhadas por unidade de tempo no ângulo sólido dΩ. Note-se que a seção de choque diferencial assim definida está diretamente relacionada com a probabilidade de interação. A seção de choque total, σ, está relacionada com o número total de partículas espalhadas devido à interação: σ =∫ dσ dΩ dΩ Na prática, qualquer alvo tem uma espessura finita, δx, dentro da qual há uma certa densidade N (= número de partículas por unidade de volume). A seção de choque diferencial certamente depende de N. Então redefinimos a seção de choque diferencial de maneira que esta dependência fique explícita: dσ 1 N s ( Ω) = dΩ F ANδx ‘A’ é a área da seção de alvo considerada, e Ns é o número médio de partículas espalhadas na direção Ω por unidade de tempo. Segundo esta definição a seção de choque diferencial continua correspondendo à probabilidade de interação. Entretanto, é fácil ver que é uma grandeza com unidade de área: 7 1 dσ Unidade = Unidade 1 2 dΩ s.cm 2 cm 1 s 1 cm 3 2 = cm cm Da expressão anterior obtemos: N s (Ω) = FANδx dσ dΩ Portanto o número total Ntot de partículas espalhadas pela interação por unidade de tempo é: N tot = ∫ N s (Ω)dΩ = ∫ FANδx dσ dΩ = FANδxσ dΩ Considerando que a área A do alvo é igual à área efetivamente coberta pelo feixe de partículas, então FA corresponde ao número de partículas incidentes, Ninc, e podemos definir a probabilidade de interação como: P= N tot = Nσδx N inc Esta é a probabilidade total de interação. Mas podemos nos perguntar também qual é a probabilidade, P(x), para que uma partícula percorra a distância x dentro do alvo sem sofrer interação. Numa aproximação de primeira ordem, podemos supor que a probabilidade, p, de interação num percurso pequeno, dx, seja proporcional ao próprio percurso: p = wdx. Então pode-se escrever: P(x + dx) ≅ P(x) + dP dx = P(x)(1 - wdx) dx 8 Ou seja, a probabilidade para que a partícula ‘sobreviva’ sem sofrer interação até a distância x + dx é o produto das probabilidades de sobreviver até x e de sobreviver até dx após x. Daí obtemos: dP dx = -wP(x)dx ⇒ P(x) ≈ e - wx dx Note-se que a probabilidade para que a partícula tenha sofrido interação num ponto qualquer do percurso até x é: Pint = 1 - P(x) Podemos agora definir e calcular um parâmetro importante para as técnicas de detecção: o livre caminho médio, λ, de uma partícula num meio: λ= ∫ xP( x)dx = 1 ∫ P( x)dx w Então no caso do alvo com espessura δx, teremos: P = Nσδx = Pint = 1 − P(δx) = 1 − (1 − wδx) ≈ wδx Finalmente relacionamos: λ= 1 Nσ Assim ficam estabelecidas as relações entre seção de choque, probabilidade de interação e livre caminho médio de partículas num meio. Pelo fato de σ ter unidade de área, às vezes associa-se seu valor à área de intersecção entre feixe de partículas e alvo. Entretanto, σ geralmente depende da energia da partícula incidente e não está 9 relacionada com a superfície de interação, mesmo porque a variável ‘x’ que aparece na definição de σ é uma coordenada ortogonal a esta superfície. 10 NP3 Valores de constantes físicas usadas no texto: - Na número de Avogadro 6.02 x 1023 / mol - me massa de repouso do elétron 9.11 x 10-31Kg, 0.511 MeV - ε0 permitividade do vácuo 8.85 x 10-12 F m -e carga elétrica do elétron 1.60 x 10-19 C raio clássico do elétron 2.82 x 10-13 cm -c velocidade da luz no vácuo 3.00 x 108 m/s -h constante de Planck 6.63 x 10-34 J s -k constante de Boltzmann 1.38 x 10-23 J/K - α [= e2/(2ε0hc)] constante de estrutura fina 1/137 - re [= e2/(mec2)] 11 Técnicas de Detecção de Radiação Introdução Estas notas se referem ao curso “Técnicas de Detecção”, apresentado em escolas do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Os processos de interação da radiação com a matéria constituem a base para a abordagem das técnicas de detecção. Uma breve revisão destes processos aqui se faz pertinente, a fim de contextualizar cada tipo de detetor no quadro das interações físicas envolvidas em seu funcionamento. A diversidade das interações físicas entre radiação e matéria é tal que se pode afirmar que nenhum detetor se presta à medida de todos os tipos de radiação, nem mesmo a aplicações genéricas de um só tipo de radiação. Conforme poderemos constatar, cada detetor tem aplicabilidade limitada a casos particulares. O termo ‘radiação’ é utilizado como sinônimo de ‘emissão de partículas’. As partículas em questão são as componentes elementares da matéria, agregados destas, ou mediadoras de interações entre elas. Portanto é evidente a necessidade de se elaborar processos e instrumentos capazes tornar perceptível a presença de partículas e suas propriedades no estudo da estrutura da matéria. Além deste estudo fundamental, muitas aplicações em outras áreas da atividade humana decorrem do conhecimento adquirido sobre as partículas, e solicitam o desenvolvimento de detetores. O inverso disto também acontece, ou seja: a atividade em instrumentação gera conhecimentos fundamentais e aplicações importantes. Esta inversão é inevitável, já que a natureza não se prende aos conceitos que elaboramos a seu respeito, não sendo portanto possível prever de onde podem surgir novidades. 12 I - Processos de Interação entre Partículas e Matéria O que permite que uma partícula seja detectada é o fato de que ela interage com o meio detector. O estudo da interação supõe que a partícula colide com os átomos do meio e disto resultam basicamente a perda de energia da partícula e a deflexão de sua trajetória original. Nas colisões entram em consideração as massas e cargas elétricas das partículas envolvidas. Num meio absorvedor os elétrons têm papel importante, visto que o campo coulombiano por eles criado representa uma espécie de ‘blindagem’ para partículas exteriores. Por outro lado, devido aos choques com partículas, elétrons podem se desprender dos átomos e isto permite a detecção. A interação com o campo nuclear também é possível, porém muito menos provável, já que os elétrons ocupam mais volume que as partículas nucleares. A detecção direta de partículas sem carga elétrica (exemplo: fótons e nêutrons) não é viável. Entretanto, elas podem ser detectadas indiretamente, a partir das partículas resultantes de suas interações. O conhecimento das diferentes interações físicas entre partículas é portanto de importância evidente para as possíveis técnicas de detecção. Apresentamos a seguir uma revisão de resultados interesantes para este fim. 1.1 Fórmula de Bethe-Bloch para partículas pesadas com carga elétrica Num abordagem inicial admite-se que a partícula incidente tenha carga elétrica ze (múltiplos de e) e massa muito maior que a massa dos elétrons constituintes do meio - com os quais as interações efetivamente se verificam. Neste caso caso o desvio da partícula em relação à trajetória de incidência é desprezível e pode-se chegar a uma expressão matemática para a perda de energia. O cálculo correspondente, dentro do contexto da mecânica quântica relativística, foi primeiramente realizado por Hans Bethe e outros autores, aos quais se atribui a seguinte fórmula: − ( dE = K1 ln K2 − 2 β 2 dx onde ) (1) 13 K1 = 2πN a re me c 2 ρ 2 Z z2 A β2 4me 2 c 2 β 2 γ 2 E m K2 = I2 β= γ = v c 1 1− β 2 O sinal negativo indica que a energia da partícula diminui à medida em que a distância x é percorrida. Os termos ρ, Z e A referem-se respectivamente à densidade, número atônico e número de massa do meio detector. ‘v’ é a velocidade da partícula. O termo Em representa a máxima transferência de energia por colisão. Uma expressão analítica para Em é obtida a partir de considerações de cinemática relativística [1]: E m = 2me c 2 β 2 γ 2 Esta última é válida para os casos em a massa da partícula incidente é muito maior que a massa do elétron, me. O termo I é chamado ‘potencial efetivo de ionização’ ou ‘potencial médio de excitação’. Seu valor não tem uma expressão analítica simples. Na prática, valores de I para diferentes materiais são deduzidos de medidas de dE/dx, para os quais uma fórmula semi-empírica é ajustada em função do número atômico, Z, de cada material. Exemplos destas fórmulas são: I = 12Z+7 (em eV), para Z<13 e I = 9.76Z+58.8Z-0.19 (em eV) para Z≥13 [1] I = I0Z (em eV), com valores de I0 tabelados para diferentes materiais [2] 14 A unidade de medida para perda de energia por distância percorrida pode ser por exemplo MeV/cm. Mas esta unidade é dependente da densidade do meio absorvedor. Para o mesmo meio e a mesma partícula, uma densidade maior implicará menor distância percorrida e portanto maior dE/dx. Adotou-se então uma outra unidade de comprimento, que leva em conta a densidade: x→ ρx Esta nova unidade é geralmente expressa em g/cm2. Por ser inversamente proporcional a uma unidade de área, é chamada de ‘densidade superficial’. Dessa forma a unidade para dE/dx pode ser expressa em Mevxcm2/g, e é independente da densidade. A densidade superficial é também conhecida como ‘espessura de massa’ já que também é conveniente para exprimir a espessura efetiva de materiais. Para se retornar à unidade de perda de energia por distância percorrida em unidades usuais (MeV/cm), deve-se portanto multiplicar dE/dx pela densidade ρ. O fato relevante para as técnicas de detecção é que as colisões geram elétrons que se ‘desprendem’ dos átomos do meio ao adquirir a energia perdida pela partícula incidente. Conforme veremos a seguir, um detetor em particular pode explorar diretamente o sinal elétrico gerado por estes elétrons (caso dos detetores a gás ou a semicondutor). A correspondente ionização do meio pode ter consequências químicas utilizáveis para a detecção (caso das emulsões fotográficas). Também a resposta dos átomos do meio absorvedor à excitação provocada pela partícula incidente pode ser a emissão de luz visível subsequente à perda de elétrons (caso dos cintiladores). Na Fig. 01 é mostrada a perda de energia expressa por (1) em função da energia de diferentes partículas incidentes. O meio absorvedor para as curvas mostradas é Argônio a pressão atmosférica. Note-se que partículas de mesma carga apresentam aproximadamente a mesma taxa de perda de energia por unidade de percurso a partir de um certo valor (102-103 MeV). Partículas de energia superior a este valor são por isso chamadas de mínimo-ionizantes. 15 -1/ρ dE/dx [Mev.cm2/g] 103 κ 102 p α π 1 10 µ 100 10-1 -1 10 100 101 102 103 104 105 106 Energia Cinética [MeV] Fig. 01: Representação da fórmula de Bethe-Bloch para diferentes partículas. Partícula Massa de repouso Carga elétrica Alfa (α) 3764 MeV +2e Muon (µ) 106 MeV -1e Pion (π) 140 MeV +1e Próton (p) 938 MeV +1e Kaon (K) 494 MeV -1e Para fins práticos, é natural se perguntar que distância uma partícula de energia conhecida percorre num certo meio antes de perder toda sua energia. Esta distância é conhecida como ‘Range’*, e pode ser estimada a partir da expressão (1) pela seguinte operação: E −1 dE R[ E ] = ∫ dE dx 0 * (2) A palavra ‘Range’ pode ser aqui traduzida como ‘Alcance’ mas não será traduzida por ser assim empregada nos textos especializados. 16 Esta operação equivale a computar a distância percorrida até que a energia seja reduzida de E a 0. A Fig. 02 mostra o Range obtido a partir dos dados da Fig. 01. Os valores já estão mostrados em centímetros, ou seja, multiplicados pela densidade do meio: 1.6 x 10-3 g/cm3 (Argônio a pressão atmosférica). R [cm] 8 10 7 10 6 10 5 10 Próton 4 10 Alfa 103 2 10 1 10 0 10 0 10 1 10 2 10 3 10 4 10 Energia Cinética [MeV] Fig. 02: Range calculado para o caso do próton e da partícula alfa em argônio. A expressão (1) deve ser corrigida para faixas de energia muito alta e muito baixa a fim de incorporar efeitos não previstos nas hipóteses que levaram a sua obtenção [1]. Por este motivo, a integração em (2) deve ser efetuada desde um valor inicial diferente de zero, para o qual (1) é válida, e um termo é adicionado para levar em conta o comportamento a baixa energia. O valor do termo adicional é determinado empiricamente. Outro aspecto que deve ser enfatizado a respeito da validade de (1) é o fato de que a perda de energia resulta de colisões individuais entre partículas e átomos. Há portanto um caráter estatístico inerente ao processo. A manifestação deste caráter pode ser vista por exemplo nas medidas práticas de Range. Se este tivesse um valor exato, conforme sugerido pela expressão (2), uma medida de transmissão de partículas em 17 função da espessura do meio absorvedor apresentaria dados cuja curva descreveria um ‘degrau’. Mas estas medidas mostram de fato una transição suave. A Fig. 03 ilustra este comportamento: repetindo-se a medida de Range para um grande número de partículas de mesma energia, encontra-se uma distribuição de valores aproximadamente gaussiana. Este fenômeno é conhecido como “Range straggling” (∼ dispersão do Range). O valor efetivo para o Range, ou Range prático, é comumente tomado como uma extrapolação da curva de distribuição de valores medidos para um valor onde a transmissão cai a zero. O valor prático é portanto maior que o previsto teoricamente. Este procedimento se justifica por ser frequentemente necessário saber, para ume feixe de partículas de mesma energia, a espessura de material que absorverá todas as partículas. A importância da fórmula de Bethe-Bloch é portanto evidente: permite uma estimativa da quantidade de energia perdida por uma partícula num detetor, e daí conforme veremos a seguir - a quantidade de carga elétrica gerada pela absorção. Estas informações são importantes para o dimensionamento do detetor adequado. Transmissão 100% Range previsto teoricamente Distribuição dos valores de Range medidos Espessura Fig. 03: Representação qualitativa do fenômeno de Range Straggling. 18 1.2 Caso de partículas leves com carga elétrica: elétrons e pósitrons No caso de partículas leves a equação (1) deve ser modificada, já que a hipótese principal (massa da partícula muito maior que a massa do elétron) não é mais válida. A consequência principal é que as deflexões da partícula devidas a cada colisão não são desprezíveis. A fórmula de Bethe-Bloch corrigida para este caso é: − dE = K1 (ln K3 + K 4 ) dx K3 = (3) ε 2 (ε + 2) 2( I / me c 2 ) 2 ε2 + (2ε + 1) Ln2 2 8 K4 = 1 − β + (ε + 1) 2 (para elétrons) β2 14 10 4 + + K4 = 2 ln 2 − 23 + (para pósitrons) 2 ε + 2 ( ε + 2) 12 ( ε + 2) 3 ‘ε’ é a energia cinética da partícula incidente. A Fig. 04 mostra a curva de perda de energia para o caso de elétrons, também em Argônio a pressão atmosférica. Apesar de apresentar aproximadamente a mesma forma das curvas para partículas pesadas, o espectro é deslocado para valores de energia menores. A perda de energia dE/dx para um elétron mínimo-ionizante também é, como no caso de outras partículas mínimo-ionizantes, pouco mais de 1 Mev cm2/g. 19 - 1/ρ dE/dx [KeVcm2/g] 5 10 Perda de energia para elétrons em Argônio a pressão atmosférica 4 10 3 10 -1 10 0 10 1 10 2 10 3 10 4 10 Energia Cinética [KeV] Fig. 04: Representação da Fórmula de Bethe-Bloch para o caso de elétrons. Este caso tem uma importância adicional: na maioria dos detetores a informação efetivamente captada é um pulso elétrico gerado pelos elétrons liberados a partir da interação com a radiação ionizante. Nestes o comportamento dos elétrons é portanto necessariamente levado em conta. Em particular o conhecimento do Range para elétrons é de importância crucial. Podemos computá-lo usando as expressões (2) e (3). A Fig. 05 mostra o resultado deste cálculo. Entretanto, o Range medido na prática tem valor diferente do calculado. Isto decorre principalmente do fato de que as flutuações estatísticas nas interações de elétrons são mais importantes do que no caso de partículas pesadas, disto resultando um maior ‘straggling’ (V. I.1). Por esta razão se faz apelo a fórmulas empíricas, obtidas a partir de medidas de absorção. Uma destas fórmulas para o Range prático é [3]: Rp = 0.71 E 1.72 (E em MeV) Na Fig. 05 estão também incluídos os dados obtidos com esta esta fórmula. 20 R [cm] 5 10 4 Range para elétrons em Argônio a pressão atmosférica 10 3 10 2 10 Calculado da fórmula de Bethe-Bloch 1 10 0 10 Fórmula empírica -1 10 -2 10 -3 10 -4 10 0 10 1 10 2 10 3 10 4 10 Energia Cinética [KeV] Fig. 05: Comparação entre valores teóricos e práticos para o Range de elétrons. 1.3 Perda de energia por radiação. Uma dos resultados mais conhecidos e utilizados das equações de Maxwell é a emissão de radiação eletromagnética por partículas carregadas aceleradas [4]. Na verdade isto corresponde ao fenômeno conhecido como Bremsstrahlung, ou radiação de frenagem, e também à emissão de radiação por partículas carregadas cuja trajetória é curvada por campos magnéticos em aceleradores de partículas. Ao penetrar num meio os elétrons são ‘freados’ pelo campo elétrico dos átomos. Portanto deve ser considerada a probabilidade para perda de energia através da emissão de fótons. Este processo não está incluído na fórmula de Bethe-Bloch, que trata apenas de colisões entre partículas. Como a interação eletromagnética é conhecida, pode ser calculada sua seção de choque diferencial (V. N2) em função das energia do elétron incidente, E, e do fóton emitido, hν. Daí pode ser calculada a perda de energia dE/dx por radiação como: 21 ν0 dσ dE − = N ∫ hν ( E ,ν )dν dx rad dν 0 (4) Como pode ser constatado, o produto hνdσ tem dimensão de energiaxárea. Multiplicado pela densidade N ( = número de partículas por unidade de volume = ρNa/A), dividido por dν e integrado sobre todas as frequências possíveis para o fóton emitido, resulta uma quantidade com dimensão de energia por unidade de distância. A energia do fóton pode variar de 0 até o valor máximo ν0 = E/h. Embora seja conhecida uma expressão analítica para dσ [5], o cálculo de dE/dx só é viável para faixas de energia onde é possível se fazer alguma aproximação. Assim temos [1]: 2E 1 dE 2 − = NE 4 Z ( Z + 1)re α ln − − f ( Z ) 2 dx rad 3 me c (mec2<<E<<mec2Z1/3) 1 dE 2 − = NE 4 Z ( Z + 1)re α ln 183Z −1/ 3 + − f ( Z ) dx rad 18 ( E>>mec2Z1/3) A função f(Z) representa uma pequena correção introduzida para se levar em conta a interação coulombiana do elétron no campo elétrico do núcleo. É expressa pela fórmula: [( f (Z ) = a 2 1 + a 2 ) −1 ] + 0.20206 − 0.0369a 2 + 0.0083a 4 − 0.002a 6 , a = αZ A Fig. 06 mostra as curvas obtidas com estas aproximações. Apesar de as duas curvas estarem mostradas na mesma faixa de energia, cada uma delas é válida apenas dentro da faixa de valores indicada. 22 -1/ρ dE/dx [Mev cm2/g] 106 mec2<<E0<<mec2Z1/3 E0>>137mec2Z1/3 5 10 104 103 102 101 100 10-1 10-2 10-3 -1 10 100 101 102 103 104 105 106 Energia total [MeV] Fig. 06: Perda de energia por radiação de elétrons em Argônio. Está claro que a perda de energia por radiação é importante para valores elevados da energia da partícula incidente, superando em muito - nesta faixa - a perda por colisões. Por outro lado, a perda por radiação depende do termo r2, que pode ser expresso como (raio clássico): r= q2 mc 2 Onde q e m são respectivamente a carga e a massa da partícula. Então dE/dx é inversamente proporcional ao quadrado da massa da partícula . As perdas por radiação para partículas pesadas são portanto desprezíveis. A próxima partícula mais pesada depois do elétron e do pósitron é o múon, cuja massa é cerca de 200 vezes maior. Também é importante estimar que distância o elétron (ou pósitron) percorre antes de perder energia por radiação. Na prática computa-se a distância percorrida até que a energia tenha-se reduzido a 1/e do valor inicial. Esta distância, Lr, é conhecida como ‘comprimento de radiação’ (radiation length). Para calculá-lo, notemos que, para E >> 137mec2Z1/3, a perda de energia pode ser re-escrita como: 23 − dE = kE ⇒ E = E (0)e − kx dx onde 1 k = N 4 Z ( Z + 1)re 2α ln 183Z −1/ 3 + − f ( Z ) 18 (5) Na faixa de energia onde esta aproximação é válida, a perda de energia por colisão é desprezível diante da perda por radiação. Neste caso, pela definição acima temos: E/E(0) = 1/e ⇒ Lr = 1/k Aplicando aos dados da Fig. 06 (Argônio, pressão atmosférica), obtemos Lr ≈ 20 g/cm2 ≈ 130 m. A tabela a seguir mostra valores do comprimento de radiação para diferentes absorvedores. Material Lr (g/cm2) Lr (cm) Ar 36.20 30050 H2 0 36.08 36.1 Pb 6.37 0.56 Fe 13.84 1.76 Al 24.01 8.9 Note-se que a definição de Lr tem alguma analogia com a definição de livre caminho médio (Ver NP2). De fato, mesmo para elétrons incidentes com alta energia, absorvedores de espessura muito inferior ao comprimento de radiação do meio não produzem radiação, embora seja este o processo dominante. 24 1.4 Caso dos fótons Até agora foram tratadas as interações de partículas com carga elétrica e com massa. O caso dos fótons se distingue porque estes não apresentam nem carga elétrica nem massa. Considerados como luz, pode-se tratar classicamente a re-emissão de luz por uma partícula carregada. Pelo menos três outras interações de fótons com partículas materiais são conhecidas: efeito fotoelétrico, efeito Compton e produção de pares. Nestas interações o fóton é considerado como partícula de massa nula. O efeito fotoelétrico e a produção de pares são abordáveis somente pelo formalismo da mecânica quântica, enquanto o efeito Compton pode também ser abordado pela mecânica relativística. O tratamento analítico dessas interações é relativamente complexo. A noção de perda de energia por unidade de percurso perde sentido, já que nos casos do efeito fotoelétrico e produção de pares o fóton interage uma única vez, sendo sua energia completamente transferida para outras partículas. A presença do fóton é então detectável a partir destas partículas que com ele interagem primariamente. Para estas valem os resultados acima expostos. Para se proceder às estimativas de praxe usa-se geralmente, em vez de dE/dx, a probabilidade P(E) de interação em 1 g/cm2 de material absorvedor. 1.4.1 Espalhamento Thomson No quadro do eletromagnetismo clássico a luz é tratada como onda, e é conhecido o fato de que uma partícula carregada, sob efeito de uma onda de determinada frequência oscila numa frequência coerente com a mesma. A oscilação implica aceleração, e portanto re-emissão de luz. Embora este fenômeno também seja abordável pela mecânica quântica, ficou conhecido no contexto do eletromagnetismo clássico como ‘espalhamento Thompson’, cuja seção de choque é expressa por [6]: 2 dσ 0 q 2 2 = sen Θ dΩ mc 2 (6) 25 Onde Θ é o ângulo entre a direção de espalhamento e a direção de oscilação da partícula. ‘q’e ‘m’ são respectivamente a carga elétrica e a massa da partícula sob ação da onda. Naturalmente o caso importante é o espalhamento coerente de luz por elétrons, não somente porque estes ocupam mais volume que outras partículas na matéria, como também porque têm massa menor. Integrando sobre todos os possíveis ângulos Ω (dΩ=senΘdΘdϕ, ϕ = ângulo azimutal varia de 0 a 2π, enquanto Θ varia de 0 a π) encontramos a seção de choque total: σ0 = 8π e 2 8π 2 re = 3 me c 2 3 (7) Nesta última expressão já ficou incluída a defininição de raio clássico de uma partícula, no caso o elétron. 1.4.2 Efeito fotoelétrico Quando a energia, E, do fóton incidente é igual ou superior à energia de ligação de um elétron num átomo do meio, pode ocorrer transferência da energia do fóton ao elétron e consequente ejeção do elétron. Este último é chamado fotoelétron, cuja energia passa a ser: Ee = E - I Onde I é a energia de ligação. Na verdade o efeito fotoelétrico é a interação mais provável para energias de fóton da ordem da energia de ligação dos elétrons nos átomos de quaisquer elementos químicos (∼ KeV). O fotoelétron é o resultado básico da interação, a partir do qual se pode detectar o fóton. Como o átomo que perdeu um elétron fica em estado excitado, pode também ser emitido um fóton ou mesmo um elétron (Auger-elétron), ambos de baixa energia, a fim de que o átomo retorne a um estado equilibrado. 26 O efeito fotoelétrico só é possível com elétrons ligados, visto que não é possível para um elétron livre adquirir energia no processo e conservar momento. Num elétron ligado o núcleo absorve o momento de recuo. Sabe-se aliás que os elétrons ligados à camada K são os mais suscetíveis ao efeito fotoelétrico. Para estes valem as seguintes aproximações [7,8]: 7 Pfoto ( E ) = 4σ 0 Pfoto ( E ) = N m c2 2 2α 4 Z 5 a e A E N m c2 3 σ 0α 4 Z 5 a e A E 2 (para I << E << mec2) (8) (para E >> mec2) (9) O termo σ0 é o mesmo definido em (7). Na faixa de energias de valor próximo de I ocorrem as conhecidas bordas de absorção: aumento ‘súbito’ da absorção de fótons por efeito fotoelétrico quando a energia do fóton tende ao valor da energia de ligação. Um termo de correção deve ser introduzido em (8) para que seja coberta esta faixa de energia [1]. 1.4.3 Efeito Compton Se a energia do fóton é muito superior à energia de ligação, um elétron num átomo pode ser considerado como livre. Então ocorre colisão inelástica entre fóton e elétron: o elétron adquire energia e é projetado fora do núcleo, enquanto o fóton perde energia e muda de trajetória. Este é o fenômeno conhecido como Efeito Compton. Relativamente às outras interações, esta é a mais conhecida do ponto de vista analítico. Sua probabilidade é expressa por [9]: ( 2 πCme c 2 2 E me c 2 πC me c PCompton ( E ) = + 2 ln − 2 E 4E 3 me c 2 E onde C = 3 Na σ0 8 A ) 3 (10) 27 Vale ressaltar que, para efeitos de detecção e medida da energia do fóton, esta interação apresenta o inconveniente de que, embora um elétron seja liberado com uma parte da energia, o fóton continua sua trajetória, podendo escapar do meio absorvedor. 1.4.4 Produção de Pares Desde que a energia do fóton seja superior a duas vezes a energia do elétron em repouso (≈ 1.02 MeV), passa a ser possível que o fóton desapareça criando um par elétron-pósitron. Novamente, para que seja conservado o momento, é necessário que haja um corpo ou partícula que absorva o momento de recuo - geralmente o núcleo de algum átomo. Ou seja, não pode ocorrer produção de pares no vácuo. Esta interação pode ser entendida qualitativamente como um processo de Bremsstrahlung ao contrário: em vez de uma partícula carregada ser desacelerada gerando luz, um fóton desaparece gerando partículas carregadas. Esta analogia é usada no tratamento teórico da produção de pares [1]. Entretanto, expressões analíticas para a probabilidade de interação só são possíveis por aproximações dentro de faixas de energia [10,11]: Na 2 re A Ppar ( E ) = 2 Z + 1 012 . 82 4αZ ( Z + 1) 7 2 E 109 − ln 2 9 me c 54 (11) (para mec2<<E<<137mec2Z-1/3) Na 2 re 1 7 A Ppar ( E ) = ln 183Z −1/ 3 − 2 54 Z 9 . 1 + 012 82 4αZ ( Z + 1) (para E>>137mec2Z-1/3) ( ) (12) 28 Para fins de comparação, mostramos na Fig. 07 as curvas de probabilidade de interação em 1 g/cm2 de absorvedor para os fenômenos tratados. Para cada interação a curva P(E) é mostrada na faixa de energias onde é predominante. P(E) por g/cm 2 100 10 Probabilidade de absorção de fótons por g/cm 2 de Argônio Efeito fotoelétrico (camada K) [equação (8)] 1 Produção de pares [equação 11] Efeito Compton [equação (10)] 0,1 0,01 0,001 0,0001 4 10 5 10 6 10 7 10 8 10 9 10 10 10 Energia [eV] Fig. 07: Comparação entre as probabilidades de absorção de fótons por diferentes interações em 1 g/cm2 de Argônio. 1.4.5. Coeficiente de absorção As interações de fótons acima descritas permitem delinear algumas características dos raios-x (fótons de energia ∼1 Kev a 100 KeV ) e raios gama (fótons de energia ∼ acima de 100 KeV). A mais evidente é que, devido à ausência de carga elétrica e de massa, esse tipo de radiação é muito mais penetrante. Além disto, os fótons de um feixe que atravessa um meio absorvedor não perdem energia. Apenas o feixe perde intensidade, já que os fótons que interagem são subtraídos. De fato, observa-se que a intensidade, I, decai exponencialmente com a espessura do meio: I ( x ) = I 0e − µx (13) 29 Onde I0 é a intensidade do feixe incidente. Esta relação não é verificada quando a energia dos fótons tem valor muito próximo da energia de ligação de elétrons, caso em que ocorrem as bordas de absorção. O coeficiente µ inclui as contribuições das seções de choque de todas as interações. É comum usar a espessura de massa, ρ, na expressão (13) a fim de levar em conta a densidade do meio absorvedor. Para isto se escreve: µ ρx I ( x) = I 0e − ρ 1.5 Interações de Nêutrons Nêutrons também não têm carga elétrica, portanto fórmula de Bethe-Bloch não é aplicável aos mesmos. Além disto, eles praticamente só interagem com o campo nuclear. Em consequência, as interações não são conhecidas por expressões analíticas simples. Para os nêutrons, um meio absorvedor é quase como espaço vazio, dada o pequeno volume dos núcleos atômicos relativamente ao volume ocupado pelos elétrons. Por isso observa-se que os nêutrons são extremamente penetrantes e suas interações são raras. Entre as possíveis interações podem-se enumerar [1,12]: - Espalhamento elástico com núcleos, predominante para energias da ordem de MeV. -Espalhamento inelástico. Neste caso o núcleo fica excitado e pode emitir fótons. Para este processo o nêutron deve ter energia muito superior a MeV, para que possa perturbar o núcleo atômico. - Captura. Neste caso o nêutron é incorporado ao núcleo e um fóton ou uma partícula carregada são emitidos. A probabilidade de captura é maior para nêutrons de baixa energia. - Fissão nuclear: o núcleo é literalmente ‘quebrado’ e fótons são emitidos. Mais provável para nêutrons lentos ou térmicos ( ⇒ energia cinética comparável à excitação térmica ≈ kT ≈1/40 eV). 30 - Produção de chuveiro de hádrons. Importante apenas para energias acima de 100 MeV. 31 II - Detetores a Gás Conclui-se a partir da revisão acima apresentada que uma partícula que atravesse um meio material deixará neste uma certa quantidade de energia, desde que seja prevista uma espessura suficiente para propiciar interações. A energia depositada será absorvida principalmente pelos elétrons ligados aos átomos. Partículas mínimoionizantes depositam aproximadamente 1 MeVcm2/g em Argônio (⇒ ≈ 2 KeV/cm). A energia,W, necessária para ionizar um átomo do gás é cerca de 26 eV. Portanto numa espessura de 1 cm de Argônio uma tal partícula deve gerar cerca de 38 (1 KeV / 26 eV) pares e--íon+. No caso de fótons de 2 KeV esta energia será transferida para um elétron, provavelmente ligado à camada K, cuja energia de ligação é da ordem de KeV. O fotoelétron também perde energia no meio, conforme descrito pela equação (3), gerando pares e--íon+. A tabela abaixo mostra a energia média necessária para ionização de diversos gases a pressão atmosférica, bem como outros dados relevantes [2]. A coluna dE/dx se refere a partículas mínimo-ionizantes. Gás ρ [g/cm3] W [eV] dE/dx [KeV/cm] H2 8.38 x 10-5 37 0.34 He 1.66 x 10-4 41 0.32 N2 1,17 x 10-3 35 1.96 O2 1.33 x 10-3 31 2.26 Ne 8.39 x 10-4 36 1.41 Ar 1,66 x 10-3 26 2.44 Kr 3.49 x 10-3 24 4.60 Xe 5.49 x 10-3 22 6.76 CO2 -3 1.86 x 10 33 3.01 CH4 6.70 x 10-4 28 1.48 C4H10 2.42 x 10-3 23 4.50 Os pares e--íon+ podem ser coletados em eletrodos para produzir um sinal elétrico. Na maioria dos detetores procura-se obter um sinal elétrico como resultado da detecção, para que se possa beneficiar das técnicas disponíveis para o tratamento 32 analógico e digital de sinais. Os detetores a gás são muito difundidos em diversas aplicações principalmente porque a separação e coleta de pares e--íon+ é muito mais simples em meio gasoso do que em sólidos ou líquidos. 2.1 Princípio de funcionamento e modos de operação Na Fig. 08 é esboçado o esquema de funcionamento de um detetor a gás. O gás é contido entre dois eletrodos entre os quais é estabelecido um campo elétrico, através da diferença de potencial elétrico V0. A passagem de uma partícula ionizante gera pares e--íon+ que são atraídos para os respectivos eletrodos. Segundo o esquema mostrado é possível medir tanto a corrente de ionização quanto o variação de tensão ocasionada pela detecção de partículas. Na ausência de campo elétrico, a tendência natural dos pares gerados é se recombinarem, re-estabelecendo assim a neutralidade elétrica dos átomos. Os elétrons em podem também ser capturados por moléculas de impurezas presentes no gás. Na verdade algumas impurezas são propositadamente adicionadas (Ver 2.6). A presença do campo elétrico permite que os elétrons e íons sejam direcionados aos eletrodos. A partir de um certo valor de V0 todos eles atingem os eletrodos antes de se recombinarem. Nesse caso o detetor é chamado de ‘câmera de ionização’, em alusão ao fato de coletar a carga total de ionização gerada pela partícula detectada. R Partícula incidente Fig. 08: Esquema de funcionamento de um detetor a gás. Note-se que os elétrons e íons gerados efetivamente adquirem energia do campo elétrico, acelerando-se em direção aos eletrodos. É claro que eles podem também provocar novas ionizações, desde que adquiram energia suficiente para tanto. Os elétrons, por ter menor massa, são mais acelerados e portanto são mais suscetíveis de gerar ionizações em choques com elétrons ligados. As novas ionizações são 33 chamadas ‘ionizações secundárias’ e podem também gerar mais ionizações. Este processo de ionizações em cascata é conhecido como ‘avalanche’. A capacidade de gerar ionizações secundárias é uma característica extremamente importante dos detetores a gás. Aumentando-se a diferença de potencial V0, pode-se obter uma multiplicação da carga de ionização e com isto uma amplificação do sinal detectado. O ponto interessante é que esta amplificação é intrínseca ao detetor, não solicitando um circuito externo. Até um certo limite para o valor de V0, a quantidade total de carga de ionização é proporcional a energia depositada pela partícula. Um detetor operando dentro deste limite é chamado ‘contador proporcional’. Uma expressão simples para o fator de multiplicação pode ser obtido. Seja λ o livre caminho médio de um elétron no gás. O incremento (dn) do número de elétrons (n) presentes numa posição x, após percorrer uma distância dx deve ser: dn = n(x+dx) - n(x) = nαx (α = 1/λ) Expandindo n(x+dx) e utilizando aproximação de primeira ordem, encontramos: n( x) = n(0)eαx O fator de multiplicação, M, é portanto: M = n(x)/n(0) = eαx Nesta descrição simplificada, x é tomada como uma coordenada paralela ao campo elétrico. O termo α, conhecido como ‘primeiro coeficiente de Townsend’ é função de fatores como composição e pressão do gás, e também do campo elétrico aplicado. Uma expressão mais genérica para o fator de multiplicação é: E ( x) x ∂x dE M = exp ∫ α ( x )dx , ou M = exp ∫ α ( E ) ∂E E ( 0) 0 (14) 34 A validade destas fórmulas já foi verificada para ganhos de até M ≈104 [13,14]. Na região proporcional, aumentar V0 implica aumentar M. Os contadores proporcionais são por isto muito usados para a medida de energia da partícula incidente. Acima do limite desta região, a quantidade de carga elétrica gerada por partícula detectada passa a funcionar como blindagem para o campo elétrico, de modo que a proporcionalidade é gradualmente perdida. Aumentando-se ainda mais o valor V0, atinge-se uma região em que a quantidade total de carga gerada é constante, independente da quantidade de carga gerada primariamente pela partícula ionizante. Esta é a região de operação dos contadores Geiger-Muller, que apresentam boa relação sinal ruído mas não oferecem resolução em energia. A Fig. 09 ilustra qualitativamente o comportamento de um detetor a gás em função do campo elétrico aplicado, para duas partículas de energias diferentes. Nas câmeras de ionização geralmente se mede a corrente de ionização a fim de monitorar a intensidade de um feixe de partículas. Como nelas não ocorre o processo de avalanche, a quantidade de carga por evento detectado é pequena e portanto elas se prestam à monitoração de feixes intensos. Nos contadores proporcionais é mais comum a medida do pulso elétrico gerado pela partícula detectada, a fim de se relacionar sua amplitude com a energia depositada. Pelo fato de se beneficiarem da multiplicação por avalanche, são também usados em outras aplicações (exemplo: detetores sensíveis a posição, Ver 2.4). Os contadores Geiger-Muller, devido a sua alta sensibilidade, são aplicados genericamente para contagem de diferentes tipos de partículas. 35 Carga elétrica Coletada Contador Geiger-Muller Contador Proporcional Câmera de Ionização E1 E1 > E2 E2 V0 Fig. 09: Representação qualitativa das regiões de operação possíveis para um detetor a gás. 2.2 Geometria e campo eletrostático O eletrodo utilizado para coletar os elétrons é geralmente um fio, por razões que ficarão claras a seguir. A geometria mais elementar para os eletrodos de um detetor a gás é uma disposição de cilindros coaxiais, onde o cilindro interior (fio anodo) coleta os elétrons enquanto os íons positivos se dirigem ao cilindro exterior (catodo). Nesse caso, aplicação da lei de Gauss fornece para o campo elétrico: E (r ) = C= CV0 1 2πεε 0 r 2πεε 0 b ln a (15) 36 C é a capacitância por unidade de comprimento, ε é a permitividade relativa do gás, a e b são respectivamente os raios dos cilindros interior e exterior. O potencial V(r) é obtido por integração de E(r): V (r ) = CV0 b ln 2πεε 0 r (16) Note-se que o campo elétrico atinge valor máximo na superfície do fio e decresce rapidamente. Para um valor fixo de V0, o valor máximo é tanto maior quanto menor for o raio do fio. Utiliza-se na prático fios cujo raio é da ordem de micrômetros. Esta é a razão pela qual é adotada a geometria de fios, principalmente em contadores proporcionais: valores de campo elétrico bastante altos são atingidos em uma pequena região espacial. Em particular o valor Ec de campo elétrico necessário ao início das avalanches só é atingido próximo da superfície do fio. Esta característica favorece tanto a localização de posição do evento quanto a sensibilidade em energia. Numa geometria mais simples, tal como dois planos condutores paralelos, o campo elétrico entre os planos é constante. Aumentando-se V0 até o valor necessário para o regime proporcional obtém-se a condição de avalanche (E = Ec) em todo o detetor, de modo que as avalanches podem ocorrer em qualquer ponto do volume detecção. Assim a quantidade total de carga de ionização passa a depender também da posição, prejudicando a resolução em energia. 2.3 Formação do sinal elétrico O sinal elétrico observado nos eletrodos por ocasião da detecção de uma partícula é essencialmente devido ao deslocamento de cargas elétricas no campo eletrostático do detetor. De fato, uma partícula de carga q deslocando-se sob ação de um campo elétrico adquire energia: x2 δE = ∫ qE. dx x1 37 A lei de conservação exige que esta mesma quantidade de energia seja perdida pelo campo eletrostático, o que acarreta variação do potencial nos eletrodos: x2 ∫ qE. dx = − ∫ Qdu = − ∫ CV du 0 x1 Onde Q é a carga elétrica presente nos eletrodos para gerar o campo eletrostático e u é a amplitude da variação de potencial induzida nos mesmos pela carga q. Nos detetores, u << V0, de modo que CV0 ≈ C(V0+u). Considerando x como uma coordenada paralela ao campo elétrico, e substituindo E = -dV/dx, obtemos uma expressão genérica para a amplitude do sinal: ∫ du = x q 2 dV dx CV0 ∫x1 dx (17) Na geometria de fios, x ≡ r. As cargas que contribuem para a formação do sinal são os elétrons e os íons positivos. As diferenças entre estes dois portadores de carga elétrica determinam a forma do sinal gerado. Consideremos um evento (≡ detecção de partícula ≡ avalanche) originado na posição r0. Seja -q a carga total dos elétrons liberados e +q a carga total dos íons positivos. Considerar a carga elétrica em questão como puntual é uma aproximação válida (pelo menos para fins de estimativas) na geometria de fios, visto que as avalanches ocorrem num pequeno volume espacial. Segundo a expressão acima, a contribuição dos elétrons é dada por: u( − q ) = −q CV0 a d CV0 ∫ dr 2πεε r0 0 r q b ln dr = − ln 0 r 2πεε 0 a Para os íons obtém-se da mesma forma: u( + q ) = q CV0 b d CV0 ∫ dr 2πεε r0 0 r q b ln dr = ln 0 r 2πεε 0 b 38 A variação total de potencial elétrico é portanto: u = u( + q ) + u( − q ) = − q q b ln = − C 2πεε 0 a O resultado acima corresponde ao esperado. Por outro lado, é menos intuitivo constatar que a contribuição maior para a variação de potencial é devida aos íons positivos. Para valores típicos de parâmetros de construção de detetores (r0 = 15 µm, a = 10 µm, b = 1 cm), encontramos: r ln 0 a u( − q ) = u( + q ) b ln r0 ≈ 0.062 A contribuição dos elétrons é portanto desprezível. O motivo fica claro a partir das relações estabelecidas acima: enquanto os elétrons são rapidamente coletados no anodo, percorrendo uma distância infinitesimal, os íons percorrem uma distância muito maior, sofrendo mais a influência do campo elétrico. É importante avaliar também a forma ( ≡ evolução temporal) do sinal elétrico detectado. Para os íons positivos, é fato conhecido [15] que sua velocidade de deslocamento no gás é proporcional ao quociente E/P, onde P é a pressão do gás: v+ = µ + µ + CV0 1 E dr = = P dt 2 Pπεε 0 r µ+ é chamado de ‘mobilidade’ dos íons positivos (nenhuma relação com o coeficiente de absorção). Da expressão acima deduzimos: r (t ) ∫ rdr = r0 µ + CV0 ∫0 Pπεε 0 dt ⇒ r (t ) = t µ + CV0 2 t + r0 Pπεε 0 (18) 39 Usando agora as equações (16), (17) e (18), obtemos para o sinal induzido no anodo: u + (t ) = − µ+ q ln 1 + 2πεε 0 Pπεε 0 r0 2 t (19) Note-se que um sinal simétrico a este é induzido no catodo: ucatodo = - uanodo. A Fig. 10 mostra u+(t) para uma configuração definida pelos parâmetros seguintes, que podem ser considerados típicos: q = 1.6 x 10-13 C (100 elétrons primários, com fator de multiplicação 104) ε = 1 (Argônio a pressão atmosférica, P = 1) r0 = 30 µm C = 8 pF (a = 10 µm, b = 1 cm) V0 = 3000 V µ+ = 1.7 x 10-4 m2/V.s (para Argônio a pressão atmosférica) A função u(t) assim obtida descreve a variação de potencial no interior do detetor. Mas este não é exatamente o sinal observado no exterior, uobs(t). Conforme mostrado na Fig. 08, um circuito é necessariamente utilizado para se observar o sinal detectado, cuja impedância de entrada é R. Este circuito juntamente com o detetor definem o equivalente a um circuito diferenciador. O produto RC (onde C inclui as capacitâncias do detetor, do circuito exterior, e capacitâncias espúrias) define uma constante de tempo segundo a qual o função u(t) será diferenciada. A ausência de circuito de medida implica R = infinito, e neste caso teríamos uobs=u(t). Na Fig. 10 são mostradas as formas de pulso para diferentes valores da constante de tempo. 40 0 100 200 300 400 500 t [µ s] 0,000 RC = 10 µ s RC = 100 µ s -0,005 -0,010 RC = 1 ms -0,015 RC = infinito -0,020 u [Volts] Fig. 10: Evolução temporal do pulso gerado por um evento para diferentes valores da constante de tempo RC. A constante de diferenciação é estabelecida segundo se queira favorecer resolução em energia ( maior amplitude ⇒ RC → ∞) ou resolução temporal (sinais rápidos ⇒ RC→ 0). 2.4 Detetor sensível a posição Conforme ressaltamos acima, a geometria de fios favorece a localização espacial do evento em detetores a gás. Várias técnicas foram desenvolvidas para a localização ao longo do fio, entre as quais podemos citar: - Técnica do Fio Resistivo. Neste caso o fio tem resistência elevada, e em suas extremidades são previstos capacitores de valor conhecido. Dessa forma o sinal correspondente a um evento sobre a posição x ao longo de um fio de comprimento L encontra resistências diferentes ao se propagar em direção às extremidades. Nesse 41 caso o circuito RC funciona como integrador, de modo que o tempo de subida do pulso elétrico depende da posição x [16]. - Técnica da Linha de Retardo. O sinal elétrico é coletado no catodo, que é subdivido em pistas independentes. As pistas são conectadas a uma linha de retardo, de tal sorte que a posição pode ser determinada pelo tempo de propagação do sinal sobre a linha [17]. - Técnica da Centróide. Catodo também subdivido em pistas. A quantidade de carga induzida pelo evento em cada uma das pistas é medida, e a posição é determinada pelo cálculo da centróide da distribuição de cargas [18]. A Fig. 11 ilustra a implementação dessas técnicas. (a) (b) (c) Fig. 11: Esquemas das técnicas de localização: (a) fio resistivo, (b) linha de retardo, (c) centróide. 2.5 Contador Multifilar Uma associação de vários fios paralelos [2] num detetor a gás constitui uma poderoso instrumento de detecção. Cada fio opera como um contador proporcional, portanto daí já resulta sensibilidade em energia e capacidade para taxas de contagem elevadas. Por outro lado, os fios podem cobrir uma área importante (em algumas aplicações da ordem de vários metros quadrados) e habilitar localização 42 bidimensional. Esse conjunto de características faz dos contadores multifilares um dos tipos de detetores mais flexíveis, podendo ser utilizados nas mais diversas aplicações. 2.6 Escolha do gás O gás de operação é geralmente um gás nobre. Devido a sua estabilidade física e química, os átomos de gases nobres normalmente emitem elétrons quando da absorção de energia, o que favorece a produção do sinal elétrico na detecção de uma partícula. Argônio é o mais usado, por ser de mais fácil obtenção e baixo custo relativamente aos outros. Além do gás nobre uma pequena fração de outro gás é normalmente adicionada ao gás de operação dos detetores. A função do gás adicional é ‘frear’ o processo de avalanche, evitando que o detetor entre em regime de descarga contínua. Sem ele, os próprios fótons de des-excitação dos átomos podem extrair elétrons das paredes do detetor e dar início a novas avalanches. O gás adicional é chamado gás de ‘quenching’. Sua característica principal é justamente dispor de processos de absorção de energia sem emissão de elétrons. Esta característica é encontrada em gases de moléculas de estrutura complexa, tais como: CH4, C4H10, C2H6, C02. Uma mistura padrão, comercialmente disponível é a chamada P10, composta de 90% Argônio + 10% CH4. 2.7 Limitações dos detetores a gás A limitação mais evidente para o uso de detetores a gás vem certamente da baixa densidade do gás como meio absorvedor. Para absorver toda a energia de partículas de alta energia ( >> KeV) seria necessária uma espessura de gás impraticável, mesmo sob alta pressão. Outra limitação vem do tempo necessário para coleta das cargas de ionização. Num contador proporcional sob taxas de contagem muito altas a quantidade de carga gerada por ionização pode atenuar o campo elétrico. Por esta razão a máxima taxa de contagem possível a um detetor a gás é da ordem de 105 eventos/s/mm2. Embora este limite seja aceitável na maioria das aplicações, a disponibilidade de fontes de raios-x tem impulsionado o desenvolvimento de novas estruturas de detecção em meio gasoso. Um exemplo disto é a substituição dos fios 43 por pistas condutoras depositadas em um substrato isolante (microstrips [19]), uma técnica que permite menor espaçamento entre eletrodos e portanto menor tempo para coleta de cargas. A resolução espacial é limitada pela dimensão das avalanches (algumas dezenas de micrômetros), e também pelo Range de elétrons no gás [20] . 44 III Cintiladores e Tubos Fotomultiplicadores Emitir luz em consequência da absorção de energia é uma propriedade presente na maioria dos materiais. Notamos anteriormente que um átomo que perde elétrons fica em estado excitado, e um dos mecanismos para retornar a um estado estável envolve emissão de luz. Nos detetores cintiladores é justamente esta luz emitida que permite a detecção de partículas ionizantes. Para ser utilizável como cintilador, um material deve reunir as seguintes propriedades: - Converter a energia cinética de partículas absorvidas em fótons, com boa eficiência. - A quantidade de fótons gerados deve ser linearmente proporcional a energia absorvida. - Ser transparente aos fótons por ele gerados, de modo que a luz possa ser transmitida a um dispositivo capaz de captá-la. - O processo de emissão deve ter curta duração, para que seja viável a contagem de partículas. Estas propriedades restringem os cintiladores a algumas classes já bem conhecidas, embora o desenvolvimento de novos cintiladores continue desde a descoberta dos primeiros: cristais orgânicos, líquidos e plásticos, cristais inorgânicos, vidros e gases. O uso efetivo de cintiladores só foi possível depois da invenção dos tubos fotomultiplicadores (∼1940), que convertem fótons de baixa energia em elétrons num processo semelhante ao das avalanches em detetores a gás. Mais recentemente foram disponibilizados comercialmente os fotodiodos e diodos avalanche, que tornam ainda mais versátil o uso dos cintiladores. 3.1 Forma do sinal luminoso num cintilador O processo físico que resulta em emissão de fótons por um átomo excitado é um re-arranjo de elétrons nos níveis de energia disponíveis. Nas transições entre níveis o excesso de energia é emitido na forma de fótons. O intervalo de tempo necessário às transições é da ordem de nano-segundos, e o processo é chamado de fluorescência. É também possível que um elétron realize transição a um estado meta- 45 estável, e se mantenha nesse estado por um intervalo de tempo bem maior antes de decair com emissão de fóton. Nesse caso a emissão é retardada: o intervalo entre absorção de energia pelo átomo e emissão do fóton pode levar desde alguns microsegundos até horas, dependendo do material. Este último processo é chamado de fosforescência. Uma maneira simples de descrever o sinal luminoso é representá-lo por decaimento exponencial: t N − τ N (t ) = 0 e d τd (20) Onde N(t) é o número de fótons emitido no instante t, N0 o número total de fótons emitidos, e τd é uma constante de tempo característica do processo. N(t) 1000 Eq. (20) 800 Modelos para a f orma do sinal luminoso 600 400 200 Eq. (21) 0 0 20 40 60 80 100 t [ns] Fig. 12: Curvas de descritivas da forma do sinal luminoso em cintiladores. Observa-se que o tempo de subida de zero a máximo é muito menor que a duração total do pulso, por isto este tempo é desprezado no modelo representado pela 46 equação (20). Isto equivale a admitir que o tempo de população dos estados excitados é muito menor que o tempo de transição entre estados. Entretanto, em alguns cintiladores o tempo de população não é desprezível. Uma expressão mais abrangente para a forma do sinal pode ser: N (t ) = t t − N 0 − τ 1 τ e − e 2 (τ 1−τ 2 ) (21) Onde τ2 é a constante de tempo para o processo de população de estados excitados. As equações (20) e (21) correspondem satisfatoriamente às formas de sinal observadas experimentalmente. Valores para as constantes de tempo são ajustadas aos cintiladores e divulgadas pelos fabricantes. A Fig. 12 apresenta dados referentes às duas equações, com N0 = 20000, τ1 = 20 ns e τ2 = 4 ns. Uma forma ainda mais genérica para a forma do sinal incluiria uma terceira constante de tempo, chamada de componente lenta, que adiciona ao modelo a contribuição das emissões de fótons atrasadas (exemplo: fosforescência). 3.2 Classes de cintiladores O uso de cintiladores tornou-se comum pela diversidade de materiais que apresentam a propriedade de cintilação. Pode-se encontrar provavelmente um tipo de cintilador adequado a cada tipo de radiação, bem como tipos de cintilador que cobrem aplicações de vários tipos de radiação. Apresentamos a seguir uma breve descrição das principais classes de cintiladores, com uma breve descrição de suas propriedades. 3.2.1 Cintiladores orgânicos Os cintiladores orgânicos são compostos por moléculas de hidrocarbonos aromáticos, para as quais é representativo o diagrama de níveis de energia apresentado na Fig. 13. São mostrados o estado fundamental, S0, e dois estados excitados S* e S**, com os correspondentes sub-estados que se referem à estrutura fina das moléculas (estados degenerados). S0, S* e S** são estados associados a ‘spin singlet’. 47 Na figura são também mostrados os estados associados a ‘spin triplet’, que são decalados em energia. O espaçamento energético entre níveis eletrônicos é da ordem de eV, enquanto o espaçamento entre sub-níveis é da ordem décimos de eV. Os fótons emitidos nas transições estão portanto na faixa de luz visível. Degradação Excitação Degradação Excitação T** S** T* S* Fluorescência T0 S0 Fig. 13: Diagrama de estados eletrônicos para moléculas de cintiladores orgânicos. A absorção de energia de uma partícula ionizante normalmente leva elétrons para estados excitados S** ou superior. Daí os elétrons decaem para o nível S* em alguns picosegundos, sem emissão de fótons. Este processo é conhecido como ‘degradação interna’ [1]. Uma vez em S*, a maior probabilidade para os elétrons é fazer uma transição para um dos subníveis de S0, com emissão de fótons. Esta é a transição típica de fluorescência. Para os estados de ‘spin triplet’ ocorrem apenas degradações internas. Poderiam ocorrer transições de T0 para S0, mas estas são proibidas por regras de seleção. O que acontece efetivamene são interações entre moléculas excitadas no estado T0 que resultam num estado excitado S* e daí uma fluorescência. Esta última é portanto atrasada, e é responsável pela componente lenta do sinal luminoso. O fato de as transições de fluorescência ocorrerem de S* para um subnível de S0 explica porquê um cintilador ideal é transparente a sua própria fluorescência: a energia do fóton emitido nesta transição não é suficiente para excitar outra molécula. Os cintiladores orgânicos se apresentam como cristais, líquidos e plásticos. O cristal mais comum é o antraceno (C14H10), que se distingue por ter a mais alta eficiência de conversão (maior saída de luz por unidade de energia absorvida). A eficiência do antraceno é tomada como referência para especificação da eficiência de 48 outros cristais. Sua constante de decaimento é aproximadamente 30 ns. Outros cristais cintiladores conhecidos são C14H12 e C10H8, cuja constante de tempo é da ordem de alguns nanosegundos. 3.2.2 Líquidos e plásticos Os cintiladores líquidos são na verdade soluções onde um ou mais cintiladores orgânicos são dissolvidos num solvente. A absorção de energia de ionização é feita pelo solvente, que repassa energia para o soluto. Uma vantagem dos cintiladores líquidos é que podem sem carregados com outros materiais para aumentar a absorção numa determinada aplicação. Costuma-se adicionar, por exemplo, Boro-11 para favorecer a detecção de nêutrons. Adiciona-se também materiais que absorvem luz numa frequência e re-emitem numa frequência inferior. Estes materiais são conhecidos como ‘deslocadores de comprimento de onda’ (wavelength shifters) sendo importantes para transferir a luz do cintilador a um tubo fotomultiplicador num comprimento de onda onde o tubo é mais eficiente. Os plásticos são soluções em um solvente sólido. Sua característica principal é o rápido tempo de resposta (constante de tempo de 2 a 3 ns). Constituem o caso típico em que a expressão (20) não descreve adequadamente o sinal luminoso, sendo necessário levar em conta o tempo de população de estados excitados. São também flexíveis, facilmente usináveis em formas convenientes a cada aplicação. 3.2.3 Cristais inorgânicos Nos cristais inorgânicos o processo de cintilação está relacionado com a estrutura eletrônica do cristal, mais do que propriamente com os átomos componentes. Os elétrons se dispõem em duas bandas: banda de valência, em que estão os elétrons ligados à rede cristalina, e banda de condução onde estão elétrons livres para condução elétrica (Ver 4.1). Absorção de energia de uma partícula incidente leva elétrons da banda de valência à banda de condução, deixando um ‘buraco’ na banda de valência. A volta de um elétron à banda de valência, preenchendo assim um buraco, resulta em emissão de luz, mas o processo é pouco eficiente. Além disto, a 49 energia envolvida na transição é tipicamente acima da região de eficiência dos tubos fotomultiplicadores. Pequenas quantidades de impureza são adicionadas aos cristais, com níveis de energia intermediários entre banda de valência e banda de condução. Dessa forma são criados sítios de impureza que atraem elétrons e buracos gerados pela passagem de radiação ionizante, de modo que os próprios sítios são ionizados. O material constituinte da impureza é chamado de ativador. Ao se des-excitar, este emite os fótons característicos do processo de cintilação. O cristal cintilador mais comumente utilizado é o NaI (Tl): iodeto de sódio, ativado com tálio. Outros exemplos: CsI (Tl), CsI (Na), LiI (Eu). O tempo de resposta é da ordem de 500 ns, sendo portanto considerados ‘lentos’ relativamente aos orgânicos. Também são higroscópicos, o que torna delicada sua manipulação. Outros cristais de interesse são: Bi4Ge3O12 (germanato de bismuto, ou BGO) e BaF2 (fluoreto de bário). Estes são mais eficientes para detecção de raios γ, por conter átomos de número atômico elevado. Além disto não são higroscópicos. Por outro lado, a eficiência de conversão de energia em luz é inferior ao NaI e a resolução em energia também é inferior. 3.2.4 Gases e vidros Como foi visto anteriormente, os gases também podem emitir luz de fluorescência. Para uso como detetores cintiladores os gases nobres são novamente os mais eficientes. O tempo de resposta e bastante rápido ( ∼1 ns), mas o fóton emitido é geralmente de energia na faixa de ultra-violeta. Nesta região os tubos fotomultiplicadores são pouco eficientes, por isto costuma-se revestir o recipiente que contém o gás com um deslocador de comprimento de onda (Ver 3.2.2). Os vidros cintiladores são geralmetne boro-silicatos ativados com cério. A eficiência é de aproximadamente de 25 - 30 %, relativametne ao antraceno. O tempo de resposta é da ordem de dezenas de nanosegundos. O interesse dos vidros cintiladores é a robustez física e química, pelo que são a melhor escolha para aplicações em ambientes agressivos. 50 3.3 Discriminação por forma de pulso Conforme mencionado em 3.1, a forma do pulso luminoso gerado em alguns cintiladores pela passagem de partícula ionizante pode ter uma componente ‘lenta’. Esta componente geralmente depende da função dE/dx para a partícula considerada. É possível explorar esta dependência para distinguir o tipo de partícula. Por exemplo, em CsI (Tl), o constante de tempo de decaimento é de 425 µs para partículas alfa, 519 µs para prótons e 695 µs para elétrons [21]. Estas diferenças se manifestam na forma do pulso luminoso, e permitem assim a discriminação. A explicação para este fenômeno não é completamente bem compreendida, mas sabe-se está relacionada com o fato de que os estados excitados são populados em proporções diferentes, dependendo da função dE/dx para cada partícula [1]. Um modelo para representar a forma de pulso levando em conta as constantes de tempo rápida e lenta é expresso por: N (t ) = Ae t − τ A + Be t − τB (22) Os termos A e B são específicos de cada material, e são ajustados empiricamente. 3.4 Limitações dos cintiladores Os cintiladores não podem ser usados isoladamente. Qualquer que seja seu desempenho, o resultado final de sua operação é de alguma forma convoluído com o desempenho do circuito utilizado para conversão de sinal luminoso em sinal elétrico. Os tubos fotomultiplicadores são os mais usados para este fim, e têm eficiência de absorção (= número de fótons incidentes / número de fótons convertidos em elétrons) da ordem de 30%. Isto não representa entretanto uma limitação crítica, já que tanto cintiladores quanto tubos fotomultiplicaores de boa qualidade são disponíveis para diversas aplicações. Como principal limitação dos cintiladores podemos citar a não linearidade nas medidas de energia. Num cintilador ideal espera-se que luminiscência, ou luz emitida por cintilação, L, seja proporcional à energia absorvida: 51 dL dE ≈ dx dx Na maioria dos cintiladores esta relação não é verificada, embora em alguns ela corresponda a uma boa aproximação. A razão disto é que a resposta de cintiladores a energia absorvida é uma função complexa de vários parâmetros, inclusive da energia da partícula ionizante. A seguinte relação semi-empírica foi apresentada para descrever as não-linearidades observadas [22]: dL = dx dE dx dE 1+ B dx A Os parâmetros A e B são novamente ajustáveis empiricamente. Embora esta relação tenha tido sucesso para explicar o comportamento de cintiladores, correções de segunda ordem foram ainda propostas para melhorar o ajuste do modelo aos dados [23]. Outro inconveniente que pode ser citado é a inadequação dos cintiladores para medidas com sensibilidade a posição. De fato os cintiladores são normalmente usados como contadores de partículas, com alguma resolução em energia e sem sensibilidade a posição. 3.5 Tubos Fotomultiplicadores A estrutura básica de uma fotomultiplicadora é apresentada na Fig. 14. Os componentes principais da estrutura são: o fotocatodo, a óptica de focalização de elétrons, os dinodos e o anodo. O processo de multiplicação inclui inicialmente a transferência da energia do fóton (tipicamente ∼ 3 eV) para um elétron no fotocatodo, a migração do elétron até a superfície do fotocatodo, o transporte do elétron até o primeiro dinodo. A partir daí os elétrons são conduzidos num processo de multiplicação até o anodo. 52 Dinodos (multiplicadores de elétrons) Fotocatodo Janela de entrada Anodo (coletor de elétrons) Óptica de focalização de elétrons Fig. 14: Estrutura básica de um tubo fotomultiplicador Podem-se delinear algumas características esperadas para o fotocatodo: - Deve dispor de uma banda estreita para permitir a passagem de elétrons da banda de valência à banda de condução pela absorção de luz visível; - Deve ser espesso o bastante para que o processo de absorção seja eficiente, mas fino o suficiente para que os elétrons não sejam re-absorvidos durante o percurso até a superfície do dinodo; - Deve apresentar função trabalho baixa. Função trabalho é a energia necessária para desprender um elétron da superfície de um meio. Em metais esta energia é da ordem de 3 - 4 eV, mas pode chegar a 1.5 - 2 eV em semicondutores. Estas características fazem do fotocatodo o componente crítico da fotomultiplicadora. A óptica de focalização de elétrons é composta por eletrodos que geram um campo elétrico que guia os elétrons para a superfície do primeiro dinodo. Uma diferença de potencial é aplicada entre dinodos subsequentes, de modo que os elétrons são acelerados e geram novos elétrons nos choques com as superfícies. O material componente da superfície dos dinodos é escolhido para que cada elétron incidente provoque a emissão vários (pelo menos mais de 1) elétrons da mesma superfície. É possível que, com uma diferença de potencial de 100V aplicada entre dinodos, cada elétron produza cerca de 30 novos elétrons. Entretanto, apenas uma pequena fração 53 destes atinge o próximo dinodo, já que muitos não chegam a se desprender da superfície. Desde 1970 são disponíveis materiais com afinidade elétrica negativa [24] (NEA - negative electron affinity). O tratamento da superfície dos dinodos com estes materiais (exemplo: GaP, dopado com Zn) aumenta o rendimento da re-emissão de elétrons. A estrutura fotomultiplicadora composta pelos dinodos portanto fornece um ganho em corrente elétrica. Com n dinodos o ganho é expresso por G = αδn, onde α é a fração de fotoelétrons coletados (próximo de um para os melhores tubos). O valor de δ é próximo de 5 para os dinodos convencionais. Seu valor depende naturalmente da tensão entre dinodos. Ganhos da ordem de 106 - 107 são portanto atingíveis com fotomultiplicadoras de 10 estágios. O processo de multiplicação tem um aspecto estatístico importante. Pode ser mostrado, admitindo-se que a produção de elétrons nos dinodos siga uma distribuição de Poisson, que o o valor médio do número total de elétrons produzidos para um elétron gerado no primeiro dinodo é δn, com variância 1/(δ-1). Melhor resolução em energia é portanto obtida com valores altos de δ. Um outro componente necessário ao funcionamento da fotomultiplicadora, não mostrado na Fig. 14, é a chamada base. Consiste num circuito que distribui os valores de tensão a cada dinodo a partir de uma tensão de alimentação ( ∼ divisor resistivo). A partir da base se extrai o sinal de anodo, que traz a informação sobre o número total de elétrons gerados por fóton absorvido. 3.5.1 Microchannel Plates Vários outros tipos de fotomultiplicadoras existem, com desenhos diferentes do mostrado na Fig. 14. Dentre estas a mais interessante é provavelmente a estrutura em canal, em que o processo de multiplicação ocorre no interior de um tubo. O aspecto interessante é que os canais são na verdade micro-estruturas, que podem ser dispostas de modo a cobrir uma superfície. Tipicamente 104-107 canais (ou ‘furos’) podem ser implantados numa superfície de 1” de diâmetro. Estas estruturas são conhecidas como ‘microchannel plates’. Podem ser considerados como uma fotomultiplicadora com sensibilidade a posição. 54 IV Detetores a Semicondutor Também conhecidos como detetores de estado sólido, os detetores a semicondutor são análogos aos detetores a gás. A diferença essencial é que usam um meio sólido para absorver partículas ionizantes. Apesar de ser mais praticável a coleta de cargas elétricas de ionização em meio gasoso, a disponibilidade de materiais semicondutores a partir de ∼ 1950 abriu possibilidades importantes para o desenvolvimento de detetores. Enquanto nos detetores os portadores de carga elétrica gerados por partículas ionizantes são pares e--íon+, nos semicondutores os pares são do tipo elétron-buraco. A vantagem mais evidente dos detetores a semicondutor parece ser a densidade do meio absorvedor: um sólido tem capacidade de absorver mais energia em um volume menor. Mas não menos importante é o fato de que a energia média necessária para gerar um par elétron-buraco é ∼3 eV. Isto é aproximadamente 10 vezes menos do que o necessário para gerar o par e--íon+ nos detetores a gás. Nos cintiladores a energia média para se criar um fóton é pode chegar a 300 eV (BGO) ou mais tipicamente 60 eV (antraceno). Em consequência, os detetores a semicondutor fornecem melhor resolução em energia. 4.1 Estrutura eletrônica dos semicondutores Os átomos de um material semicondutor são dispostos em uma rede cristalina. Enquanto em um átomo isolado os níveis de energia acessíveis a um elétron são discretos, quando ordenados na rede os níveis se subdividem (degeneração) a tal ponto que para o cristal pode-se falar em bandas de energia. A chamada banda de valência é ocupada por elétrons ligados aos átomos e a banda de condução contém os elétrons livres para circular pela rede cristalina. Entre as bandas de condução e valência existe a banda ‘proibida’, no sentido de que não existe a probabilidade para que um elétron do cristal tenha energia de valor dentro desta banda. Como mostrado na Fig. 15, esta noção de bandas permite classificar genericamente os materiais como isolantes, condutores e semicondutores. 55 ∼ 1 eV ∼ 6 eV ISOLANTE Valência SEMICONDUTOR Condução Proibida CONDUTOR Intersecção Fig. 15: Classificação de materiais em termos da estrutura de bandas. Num isolante praticamente não há elétrons na banda de condução, e a diferença de energia entre as bandas de condução e valência é relativamente alta, de modo que a, temperatura ambiente, um elétron não tem energia suficiente para ‘saltar’ para a banda de condução. Num condutor as bandas se interceptam, e os elétrons podem se mover livremente pelos átomos do material. No semicondutor a diferença de energia entre bandas é pequena, os elétrons podem facilmente passar para a banda de condução deixando um buraco na banda de valência. 4.2 Semicondutor intrínseco, dopado e junção Para ser usado como um detetor, um material semicondutor deve permitir a coleta do sinal induzido pelo movimento de elétrons e buracos. Pode-se pensar, por exemplo, em envolver uma certa espessura de material entre duas placas condutoras e polarizá-las como em um detetor a gás. Embora o contato elétrico entre um condutor e um semicondutor não seja impraticável, veremos brevemente a seguir que na prática os detetores a semicondutor são feitos de maneira diferente. Na rede cristalina de um semicondutor puro (≡ intrínseco) a temperatura ambiente, existe uma probabilidade não nula para que elétrons passem para a banda de condução, de modo que pares elétron-buraco são constantemente gerados. Em condições de equilíbrio elétrico e térmico a concentração ni de elétrons ou buracos pode ser expressa por [1]: 56 ni ≈ T 3/ 2 e − Eg 2 kT (23) Onde T é a temperatura e Eg é a diferença de energia entre bandas a 0 K. Para os semicondutores de fato utilizados como detetores o valor de ni a 300 K é de aproximadamente 2.5 x 1013 /cm3 (silício) e 1.5 x 1010 /cm3 (germânio). Apesar de essa concentração ser pequena relativamente à densidade do próprio semicondutor ( ∼ 1022 átomos/cm3), representa uma espécie de ruído de fundo. O semicondutor intrínseco pode ser dopado com uma impureza que tenha um elétron de valência a mais ou a menos. A Fig. 16 mostra o resultado da adição de um átomo de impureza na rede. Elétron em excesso Buraco em excesso (a) (b) Fig. 16: Dopagem de semicondutores: (a) impureza tipo ‘n’, (b) impureza tipo ‘p’ Tanto silício quanto germânio são átomos tetravalentes. Substituição de um dos átomos da rede por um átomo pentavalente equivale a acrescentar um elétron à banda de valência, enquanto o substituição por um átomo trivalente equivale a acrescentar um buraco. Segundo este critério os semicondutores dopados são referidos como ‘tipo-n’ e tipo ‘tipo-p’. Nos semicondutores tipo-n a corrente elétrica é principalmente determinada pelo movimento de elétrons, e nos tipo-p pelo movimento de buracos. As impurezas tipicamente usadas são: fósforo, arsênio, antimônio, gálio, índio e boro. Note-se que no semicondutor dopado o equilíbrio elétrico é mantido, já que o átomo acrescentado é eletricamente neutro. A equação (23) continua portanto válida. 57 Uma junção pn é obtida quando se fabrica um semicondutor tipo-p justaposto com um tipo-n. Na região de interface entre os dois, haverá tendência dos elétrons a migrar para a região tipo-p, e dos buracos a migrar para a região tipo-n. Dessa forma a região tipo-n torna-se carregada positivamente por haver capturado buracos, e a região tipo-p torna-se carregada negativamente por haver capturado elétrons. Um campo elétrico portanto se estabelece, implicando uma diferença de potencial elétrico tipicamente da ordem de 1V. O dispositivo assim fabricado é o conhecido diodo retificador. Note-se que na região de interface, cuja espessura é da ordem de micrômetros, não haverá excesso de carga elétrica, já que o campo elétrico estabelecido tende a confinar os portadores de carga disponíveis nos respectivos polos de atração. Com isto se obtem a eliminação quase completa do ruído de fundo (também chamado ‘corrente de fuga’) acima mencionado. Esta região é chamada de ‘zona de depleção’. Para que este dispositivo seja usado como um detetor, é preciso tanto aumentar a espessura da região de depleção (para obter melhor eficiência na captação da energia de partículas ionizantes) quanto a magnitude do campo elétrico (para que o processo de coleta de carga seja eficiente). Esta configuração é obtida quando se aplica um campo elétrico exterior à junção, conforme mostrado na Fig. 17. Sinal de saída Depleção Lado p Lado n Fig. 17: Esquema de funcionamento de um detetor a semicondutor. O campo elétrico exterior aplicado à junção tende a confinar ainda mais os elétrons ao lado p e os buracos ao lado n, aumentando assim a espessura da região de depleção. Com isto obtem-se espessuras de alguns milímetros mediante aplicação de 58 algumas centenas de volts. O campo elétrico favorece exterior favorece também a eficiência do processo de coleta de carga nos eletrodos. Aqui fica clara a analogia com os detetores a gás. Fica também justificado porque não é viável a simples justaposição de um material condutor a um semicondutor para se realizar o detetor: a região de junção entre um condutor e um semicondutor é uma estrutura de comportamento eletronicamente complexo. De fato, mesmo os condutores ôhmicos que permitem o contato elétrico com as eletrodos no detetor semicondutor são na verdade regiões do próprio semicondutor altamente dopadas com impurezas tipo-p ou tipo-n, que fazem o papel de metais por ter resistência elétrica muito pequena. 4.3 Características do detetor a semicondutor A energia média, w, necessária para produzir um par elétron-buraco em um semicondutor é de 3.62 eV para o silício a 300K, e 2.96 eV para o germânio a 77K. Os detetores fabricados a partir de germânio são resfriados a nitrogênio líquido para assim minimizar a corrente de fuga presente na região de depleção. A amplitude do sinal elétrico induzido pela deposição de energia E pela passagem de partícula ionizante é portanto: u= E carga gerada =n C wC Onde n é um fator que traduz a eficiência de absorção e C a capacitância. Há portanto linearidade na relação entre amplitude de sinal e energia depositada, além de que w é praticamente independente do tipo de partícula ionizante (exceto para íons pesados, para os quais observa-se que partículas de mesma energia podem gerar diferentes amplitudes de sinal). Devido ao pequeno valor de w, comparado a outros detetores, a resolução em energia dos detetores a semicondutor é considerada excelente. Apesar de já serem disponíveis comercialmente os diodos avalanche [24], o fator de ganho por multiplicação é pequeno ( ∼ 200) nestes dispositivos, e nos detetores a semicondutor mais correntemente usados não ocorre o processo de avalanche. Por esta razão, é importante o uso de pré-amplificadores de baixo ruído e alto ganho conectados o mais 59 próximo possível do eletrodo de coleta de carga, de modo a minimizar o valor de C. No caso do uso de germânio é também necessário resfriar o detetor em nitrogênio líquido. O valor de Eg para o germânio a 300K é 0.7V, pelo que há maior probabilidade de trânsito de elétrons da banda de condução à banda de valência a temperatura ambiente do que no caso do silício (Eg = 1.1 eV). Dada a alta densidade dos sólidos, a eficiência de detecção dos detetores a semicondutor é geralmente alta. Para detecção de raios γ (um dos usos mais correntes dos detetores a semicondutor), germânio é preferido por apresentar maior número atômico. Para uma estimativa da forma de pulso, o mesmo procedimento apresentado em 2.3 pode ser utilizado. A diferença principal em relação aos detetores a gás é que os portadores de carga têm praticamente a mesma mobilidade e se movem em um campo elétrico mais uniforme. A tecnologia de fabricação de dispositivos semicondutores é complexa [1,24], mas permite por exemplo a construção de micro-estruturas de detecção independentes (detetores a micro-strips [25]), a partir das quais são realizados detetores sensíveis a posição com resolução espacial inferior a 100 µm. 4.3.1 CCD’s Micro-estruturas de silício podem ser fabricadas como poços de potencial distribuídos sobre uma pequena superfície. Estes poços se carregam eletricamente absorvendo elétrons liberados pela incidência de radiação (exemplo: luz visível). A carga acumulada é lida por um processo eletrônico que transfere a carga presente em cada poço a um circuito de saída. O dispositivo assim construído é chamado ChargeCoupled Device (CCD). Sua utilização é mais conhecida como captador de imagens de luz visível, embora seja também utilizado como detetor de partículas. Nesse caso geralmente se prevê um absorvedor que converte a energia da partícula em luz visível que é a seguir focalizada sobre o CCD. 60 4.4 Limitações Duas limitações à utilização de detetores a semicondutor podem ser destacadas. A primeira delas é a dependência do desempenho dos detetores com a temperatura. Detetores a germânio são necessariamente operados a baixa temperatura a fim de se limitar a corrente de fuga. Também nos detetores a silício o aumento da temperatura traz aumento da corrente de fuga e do ruído eletrônico. A outra limitação vem da fragilidade da estrutura cristalina utilizada nos semicondutores. A presença de impurezas prejudica a resolução em energia, por introduzir níveis de energia entre as bandas de condução e de valência. Defeitos da própria estrutura, como a ausência de um dos átomos em um ponto da rede cristalina, ou o deslocamento de uma parte dela, também prejudicam o desempenho do detetor. Em particular a própria radiação incidente pode causar danos estruturais ao semicondutor. 61 Referências [1] Willian R. Leo. Techniques for Nuclear and Particle Physics Experiments. Springer- Verlag. Berlin, Heidelberg, New York, London, Paris, Tokyo (1987). [2] F. Sauli. Principles of Operation of Multiwire Proportional and Drift Chambers. CERN 77-09 (1977). [3] E. J. Kobetich, R. Katz. Phys. Rev. 170, 391 (1968). [4] K. Hubner. Synchrotron Radiation, in: CERN Accelerator School, Synchrotron Radiation and Free Electron Lasers. CERN 90-03 (1990). [5] H. W. Koch, J. W. Motz. Rev. Mod. Phys. 4, 920 (1959). [6] J. D. Jackson. Classical Electrodynamics. John Wiley&Sons, Inc. (1962). [7] W. Heitler. The Quantum Theory of Radiation. Oxford (1936). [8] F. Sauter. Ann. Phys. 9, 217 (1931). 11, 454 (1931). [9] O. Klein, Y. Nishima. Z. Physik. 52 853 (1929). [10] E. Fenyves, O. Haiman. The physical Principles of Nuclear Radiation Measurements. 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