O compromisso histórico António Covas Universidade do Algarve A economia e a sociedade portuguesas estão perante um duplo impasse. No plano interno, um elevado serviço da dívida pública (amortização e juros) conjugado com um baixíssimo crescimento do produto interno nos próximos anos torna o problema praticamente irresolúvel. Este problema pode, mesmo, arrastar-se durante 20 anos, o tempo exigido pelo tratado orçamental para reduzir a dívida pública que está acima de 60% do PIB. No plano europeu, o impasse tem a ver com a orientação da política económica dominante e o quadro de instrumentos disponíveis, a saber: uma zona marco “travestida” de zona euro, um banco central mono-objectivo, um orçamento muito reduzido e refém de contribuições nacionais em perto de 75% do seu montante, a falta de um instrumento europeu de gestão conjunta da dívida soberana europeia. Este quadro de instrumentos é útil para economias já estabilizadas e em velocidade de cruzeiro, não serve para economias com graves problemas estruturais e muito instabilizadas como a portuguesa. É neste duplo contexto que tem de ser pensado o Programa de Transição Pós-Troika. Dada a dimensão do problema, estou plenamente convencido de que é necessário um Compromisso Histórico entre as forças políticas nacionais que seja, ao mesmo tempo, um momento de viragem decisivo nos estados de alma da sociedade portuguesa. A este propósito, recordo o acordo de coligação entre os dois maiores partidos alemães, SPD e CSU, num país que não teria, em princípio, essa necessidade mas que, mesmo assim, decidiu imprimir esse impulso e essa dinâmica à sua política interna e europeia. Por maioria de razão, este impulso e esta dinâmica são imprescindíveis num país como Portugal. Em virtude de um princípio elementar de negociação internacional, importa lembrar que a força negocial da nossa posição, mas, também, o impacto nos mercados internacionais, aumentam, em linha directa, com os seguintes vectores: o horizonte temporal e a profundidade programática de uma política, a arbitragem temporal dos vários momentos de transição e a importância efectiva atribuída às medidas de reforma estrutural e sua articulação com a política conjuntural, a estabilização de expectativas que só um programa longo é capaz de suscitar, a coerência da base político-partidária de sustentação em que assenta, o acordo de concertação social que a suporta. Todos estes vectores negociais rendem dividendos financeiros no mercado de capitais, por exemplo nas emissões de dívida, e dividendos políticos na negociação europeia, donde a absoluta necessidade de estarem articulados num mesmo Programa de Transição que não se limite a ser um mero programa de gestão de dívida, a curtíssimo prazo, mais ou menos cautelar, para solver os compromissos mais imediatos com os credores ou, pior ainda, um mero exercício de calculismo político para tomar vantagem no próximo acto eleitoral. Para que estes benefícios negociais sejam possíveis e efectivos estou convencido de que um acordo de regime ou um compromisso histórico para um Programa de Transição Pós-troika entre os principais parceiros políticos e sociais é uma condição essencial para começar a resolver aquele duplo impasse. Daqui em diante, todas as medidas negociadas devem estar inscritas numa linha de equilíbrio de longo prazo que, por todas as razões, só pode ser a salvaguarda do crescimento potencial do produto e da riqueza nacionais. Neste contexto, importa recordar que, antes mesmo da negociação sobre a transição, já existe um “regime geral de condicionalidade” na União Europeia que integra o pacto de estabilidade e crescimento, o chamado semestre europeu, os pacotes legislativos conhecidos por Six Pack e Two Pack, o tratado orçamental, para só citar os mais importantes. É fundamental, portanto, conhecermos em profundidade qual a margem de liberdade que nos resta no interior deste regime geral de condicionalidade europeia. Por outro lado, a definição de um eventual “regime de condicionalidade específico”, no âmbito das regras de acesso do Mecanismo de Estabilidade Europeu e do programa de intervenção do BCE nos mercados secundários de dívida pública, deverá estar enquadrado e ser conforme com os termos gerais do Programa de Transição Pós-Troika que for negociado. Dito isto, deixo aqui algumas sugestões para o que poderia ser um Programa de Transição Pós-Troika, no horizonte temporal do próximo período de programação dos fundos europeus, de tal modo que a política de consolidação das finanças públicas seja compatível com a política de crescimento económico e emprego. Estes e outros desenvolvimentos podem ser lidos no meu livro “União Europeia, os bens comuns da futura Federação Europeia” (Editora Colibri). Eis, pois, um decálogo para um Compromisso Histórico: 1º Um programa de transição com um horizonte temporal de sete anos, 2014-2020, coincidente com o próximo período de programação plurianual dos fundos europeus e com o tempo político das duas próximas legislaturas 2015-2019 e 2019-2023, de tal modo que todas as principais reformas estruturais do país sejam levadas a cabo neste período. 2º Um programa de redução estrutural da despesa pública, à volta de um 1% ao ano, para um patamar próximo dos 40% da despesa pública em 2020, de modo a libertar espaço e recursos para um programa de redução da carga fiscal no mesmo período, de tal modo que possamos estabilizar as regras fiscais para um período suficientemente longo. 3º A negociação de um programa de reescalonamento ou reprofiling da dívida pública portuguesa, muito em especial dos 78 MM de euros dos créditos oficiais Troika, cerca de 40% do actual stock de dívida pública, assente em três vectores: um período de carência de sete anos coincidente com a programação 2014-2020, um prazo de amortização alongado até 2050 e um ritmo de amortização que deve estar indexado à evolução nominal do PIB português. 4º A negociação de um programa de prevenção e contingência, para fazer face a uma eventual instabilidade dos mercados financeiros internacionais, junto do Mecanismo Europeu de Estabilidade, em matéria de linhas de crédito e outras facilidades, e do programa de intervenção do BCE nos mercados secundários, se tal se revelar necessário. 5º A preparação de um Programa de Crescimento e Emprego para o período 2014-2020, que consagre não apenas o acordo político sobre um núcleo de investimentos de alto valor acrescentado que devemos preservar e realizar a todo o custo como, também, o acordo sobre um regime de incentivos que coloque a fasquia dos bens exportáveis próximo dos 60% do PIB em 2020; independentemente do regime de ajustamento que continuemos a realizar, importa negociar, para o efeito, as disposições derrogatórias em matéria orçamental e de política de concorrência que são necessárias. 6º A preparação de um programa de reformas para fortalecer a coesão social da sociedade portuguesa; por um lado, intensificar o combate à corrupção, evasão e fraude fiscais e economia clandestina e, de uma maneira geral, tudo o que envolve a prática de risco moral e, por outro lado, preparar um acordo político alargado no que diz respeito à reposição das medidas extraordinárias e transitórias que sacrificaram, neste período, os salários da função pública, as pensões e as prestações sociais. 7º Um programa de reformas no aparelho de Estado, em dois planos: no plano políticoeleitoral, é tempo, também, de rever o sistema eleitoral (assembleia da republica e autarquias), de ajustar a estrutura de poderes instituídos, de intensificar a reforma do poder local e regional e, sobretudo, de reordenar o universo administrativo, empresarial e fundacional que gira na órbita do Estado e onde se praticam e geram as maiores deseconomias externas para o contribuinte nacional; no plano político-administrativo, é tempo de conduzir uma reforma do Estado-administração em dois registos que correm em paralelo, a saber, uma macro-cirurgia na estrutura da despesa pública (missões, funções e estrutura orgânico-funcional) com resultados mais diferidos e uma microcirurgia nas áreas do processo e procedimento técnico e administrativo com resultados mais imediatos e efectivos. A este conjunto de medidas fundamentais, mais especificamente orientadas para a economia e a sociedade portuguesas, acrescento mais três propostas que devemos patrocinar e apoiar activamente no plano especificamente europeu, a saber, a União Bancária, uma Agência Europeia de Gestão do Crédito Público ou um Fundo Europeu de Redenção da dívida soberana e um Plano Delors para a União Mediterrânica, qualquer delas com impactos muitos positivos sobre o funcionamento da economia e da sociedade portuguesas. 8º A finalização da União Bancária, nas suas três vertentes principais, tem óbvios impactos positivos sobre a solidez da estrutura bancária, a redução da segmentação financeira nos mercados e a criação de condições de liquidez e crédito muito mais favoráveis. 9º Ao mesmo tempo, devemos pugnar no plano europeu pela criação de um instrumento de gestão conjunta da dívida pública europeia, seja sob a forma de uma agência europeia de gestão do crédito público ou de um fundo europeu de redenção tal como, de resto, já foi proposto pelo grupo de peritos que dá assessoria ao governo alemão. 10º Um Plano Delors para a União Mediterrânica que represente, na actual conjuntura, um gesto magnânimo da União Europeia em direção às duas margens do mediterrâneo, seja para recriar uma 2ª versão dos Programas Integrados Mediterrânicos (PIM) ou para relançar em bases novas a iniciativa francesa de uma União para o Mediterrâneo; este é o tempo certo para a União Europeia fazer as pontes que são necessárias para a prosperidade das duas margens do mediterrâneo. Se formos capazes de conceber um pensamento estruturado em redor deste decálogo da negociação institucional teremos construído uma retaguarda política negocial muito mais sólida, não apenas para negociar o programa de transição pós-troika mas toda a estratégia negocial que nos deve guiar no plano europeu.