Filosofia no currículo do Estado de São Paulo: repensando a

Propaganda
123
Filosofia no currículo do Estado de São Paulo:
repensando a disciplina a partir da Filosofia
da Existência
Wanderlei da Silva de Oliveira1
Resumo: Esta pesquisa tem como objetivos principais: encontrar no currículo do
Estado de São Paulo para a disciplina de Filosofia elementos que expressem a
preocupação em oferecer aos educandos muito mais do que a simples transmissão de conteúdos; e demonstrar que a Filosofia da Existência potencializa nossa
capacidade de refletir, criticamente, sobre a realidade concreta da educação, suscitando professores e alunos conscientes da necessidade de transformação dessa
realidade. Para isso, faremos, incialmente, uma breve análise dos desafios atuais
que se impõem à educação escolar como um todo, apresentando em seguida os
principais eixos teóricos e estruturais da Filosofia da Existência e sua crítica à
concepção mercadológica da educação. Após refletirmos sobre a disciplina de
Filosofia no currículo do Estado de São Paulo, apresentaremos as contribuições
da corrente existencialista na formação de educadores e educandos em vista de
sua emancipação em relação à ideologia do capital.
Palavras-chave: Currículo. Educação. Filosofia. Existência. Crítica.
1
Wanderlei da Silva de Oliveira. Especialista em Filosofia e Ensino de Filosofia pelo Claretiano –
Centro Universitário – Polo de Santo André (SP). Licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário
Assunção (Unifai). Bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da
Assunção (Unifai e PUC). Docente de Filosofia da Escola Estadual “Dr. Américo Brasiliense” em Santo
André. E-mail: <[email protected]>.
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
124
Philosophy in the curriculum of the State of
Sao Paulo: rethinking the subject through the
Philosophy of Existence
Wanderlei da Silva de OLIVEIRA
Abstract: This research has two main objectives: to find in the curriculum of the
State of Sao Paulo to the Philosophy subject elements that express the concern
by offering the students much more than mere transmission of content; and to
demonstrate that the Philosophy of Existence enhances our ability to critically
think over the concrete reality of education, by arousing conscious teachers
and students on the need of changing this reality. To do so, initially we will
briefly review the current challenges that are imposed to school education as
a whole, present theoretical and structural axis of the philosophy of existence
and its criticism of the marketing concept of education. And after thinking over
the Philosophy in the curriculum of the State of Sao Paulo, we will present the
contributions of existentialist current in training educators and learners in view
of their emancipation in relation to the ideology of capital.
Keywords: Curriculum. Education. Philosophy. Existence. Criticism.
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
125
1.  INTRODUÇÃO
O retorno da Filosofia como disciplina obrigatória no Ensino
Médio, há menos de uma década, continua suscitando questões referentes ao seu papel na escola, à formação do professor e ao modo
ideal de ensiná-la a adolescentes e jovens. Tais questões tiveram
presença marcante na formulação do atual currículo do Estado de
São Paulo. Com o intuito de contribuir para a melhoria da aprendizagem dos alunos da rede pública, a Secretaria de Educação do
Estado implantou, em 2008, uma nova proposta curricular, definindo a importância específica de cada disciplina dentro do contexto
escolar.
Nos anos que antecederam a proposta, a prática de ensino
da Filosofia manifestava uma grande preocupação não só entre os
professores que iniciavam sua carreira, como também entre aqueles
mais experientes: “O que realmente os alunos devem aprender com
essa disciplina?”. Como não havia uma resposta bem definida, cada
professor elaborava seu plano de ensino da maneira que achasse
melhor. Enquanto uns optavam por aulas que se desenvolveriam a
partir de determinados temas, outros preferiam apresentar o pensamento de determinados filósofos em ordem cronológica, seguindo
à risca os compêndios de História da Filosofia. Com o novo currículo em vigor desde 2008, temos uma tentativa de unificar aquilo
que seria fundamental no ensino de Filosofia na rede pública estadual. Em todo caso, para promover a autonomia intelectual dos
alunos, fazer com que eles pensem por si mesmos e não tratem a
filosofia como doutrinação, o professor deve sensibilizá-los para
que possam problematizar, investigar e conceituar a realidade.
Mas antes de resgatar o sentido de qualquer disciplina no currículo, é necessário resgatar o sentido da própria escola, sem o qual
as disciplinas se tornam ilhas sem ligação umas com as outras. Boa
parte dos educadores concorda que a Filosofia é uma ferramenta
conceitual que favorece o debate multidisciplinar. Em meio a um
contexto permeado pelos princípios da lógica irracional do capital, consideramos relevante uma reflexão sobre o papel da Filosofia
no currículo paulista a partir de uma corrente filosófica que abre
possibilidade para a emancipação do sujeito pensante em relação
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
126
à ideologia dominante. Através de uma revisão bibliográfica sobre
o ensino de Filosofia no nível médio e a importância da Filosofia
da Existência na educação, com destaque especial para as ideias
presentes nos textos “Chegou a hora da Filosofia”, de Sílvio Gallo,
“Educação: do senso comum à consciência filosófica”, de Dermeval Saviani, e “A educação para além do capital”, de Istvan Mészáros, elaborar-se-á uma reflexão crítica sobre o papel da disciplina
de Filosofia no currículo do Estado de São Paulo.
2.  O CURRÍCULO DO ESTADO DE SÃO PAULO E OS
DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
A rede pública de ensino do estado mais rico do Brasil não é
uma ilha isolada e protegida de problemas e expectativas que afetam
as redes de outros estados. Nesse sentido, para refletirmos mais profundamente sobre o tema desta pesquisa, consideramos importante
situar a educação escolar brasileira no contexto das transformações
da sociedade contemporânea. Estas decorrem, principalmente, da
atual compreensão do papel do Estado e das modificações nele operadas a partir da década de 1980, dos avanços tecnológicos, das
mudanças no sistema financeiro, da reestruturação do sistema de
produção e desenvolvimento e das alterações nos hábitos de consumo e na organização do trabalho.
Desde a década de 1990, o conjunto de transformações culturais, sociais, políticas e econômicas pelas quais o mundo vem passando está sendo chamado de globalização ou mundialização. Tal
fenômeno pode ser entendido “como uma estratégia de enfrentamento da crise do capitalismo e de constituição de uma nova ordem
econômica mundial” (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2003, p.
74). Tem o objetivo de integrar a produção, o capital, os mercados
e o trabalho, difundindo a ideia de que vivemos numa aldeia global,
num mundo sem fronteiras, num planeta unificado. Todavia, essa
unificação conflituosa segue a contraditória máxima neoliberal segundo a qual a exclusão faz parte do sistema, uma espécie de justificativa irracional para a terrível e escancarada desigualdade social
que assola o gênero humano.
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
127
A globalização surge durante a chamada terceira revolução
científica e tecnológica da modernidade, conhecida também como
revolução informacional, era digital, Terceira Revolução Industrial,
sociedade técnico-informacional, sociedade do conhecimento, dentre outros. Tal revolução se fundamenta em três pilares, a saber, na
energia termonuclear, na microbiologia e na microeletrônica. Essa
última é responsável pela incrível velocidade com que as informações são processadas e acessadas em inúmeros pontos do planeta.
Porém, como alguns já previam, a revolução informacional não só
se mostrou incapaz de minimizar os efeitos nocivos do sistema capitalista como ampliou as formas de divisão social e de exclusão
decorrentes das transformações técnico-científicas, intensificando
a separação entre os detentores do monopólio da informação e os
excluídos desse bem. Parece claro que
[...] a informação, do ponto de vista capitalista, constitui
um bem econômico (uma mercadoria). Sua produção, seu
tratamento, sua circulação ou mesmo sua aquisição tornaram-se fundamentais para a ampliação do poder e da
competitividade no mundo globalizado. Investir em informação ou adquirir informação qualificada passou a ser,
então, condição determinante para o aumento da eficácia
e da eficiência no mundo dos negócios. (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2003, p. 69).
Na sociedade do conhecimento, quem detém o monopólio da
informação dita as regras não apenas para o acúmulo de capital,
mas também para a produção e difusão de boa parte das notícias
que circulam nos meios de comunicação de massa. E ainda que o
acesso à internet seja crescente, a sociedade do século XXI continua marcada pela exclusão de inúmeras pessoas em relação ao uso
das modernas tecnologias de comunicação, seja pelo mal anacrônico do analfabetismo, seja pela falta de recursos financeiros para
adquirir tais tecnologias. Ironicamente, em plena sociedade do conhecimento muitos permanecem presos aos grilhões da ignorância.
Diante de um cenário tão contrastante, a Secretaria de Educação do
Estado de São Paulo, ao publicar sua Proposta Curricular em 2008,
afirma que “na sociedade de hoje, são indesejáveis tanto a exclusão
pela falta de acesso a bens materiais quanto a exclusão pela falta de
acesso ao conhecimento e aos bens culturais” (SEESP, 2008, p. 9).
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
128
Analisando os atuais desafios que se impõem à educação no
Brasil, a SEESP (2008, p. 10) considera que a tendência à ampliação do acesso ao conhecimento “caminha paralelamente à democratização do acesso a níveis educacionais além do ensino obrigatório”. Todavia, com a grande expansão de cursos de graduação
e pós-graduação em todo o país, a posse de um diploma de nível
superior já não é um diferencial suficiente para garantir uma boa
colocação no mercado de trabalho, mas sim a qualidade da educação recebida pelo profissional. E já que as camadas mais pobres
da sociedade brasileira acorrem, em número cada vez maior, para
as escolas públicas, a qualidade da educação nelas oferecida ganha
importância redobrada. Parte-se do pressuposto de que “a relevância e a pertinência das aprendizagens escolares nessas instituições
são decisivas para que o acesso a elas proporcione uma oportunidade real de aprendizagem para a inserção no mundo de modo
produtivo e solidário” (SEESP, 2008, p. 10).
Obviamente, a produtividade e a solidariedade que se esperam dos cidadãos no mundo globalizado não são conceitos que
devem ser compreendidos somente do ponto de vista acadêmico,
cultural e ético, mas também econômico. Em relação à produção, é
possível dizer que os processos de reestruturação técnico-organizacional do trabalho têm a solidariedade como uma condição ideológica, “que fundamenta estratégias de ‘descentralização’, ‘cooperação’ e ‘colaboração’ nas relações de trabalho, em que as inovações
técnico-organizacionais introduzidas a partir do toyotismo/ohnismo são exemplares” (ABREU, 2013). Considerando que o ingresso
dos jovens no mercado de trabalho torna-se cada vez mais tardio,
o currículo do Estado de São Paulo pretende oferecer uma aprendizagem significativa que prepare o aluno para enfrentar a passagem
da adolescência tutelada à autonomia da vida adulta e profissional.
Para isso, o educando deve desenvolver habilidades e competências
que o auxiliem tanto no exercício da liberdade e no respeito às diferenças e às regras de convivência quanto na abertura para as novas
necessidades e oportunidades do mercado.
Ressaltamos que a LDBEN, nos incisos III e IV do artigo 35,
já prescreve como finalidades do ensino médio “o aprimoramento
do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
129
o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” bem como “a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a
prática, no ensino de cada disciplina”. Tais finalidades seriam fundamentais para o aluno apropriar-se dos conhecimentos necessários
à ampliação das liberdades individuais. De acordo com a SEESP,
esses conhecimentos, imprescindíveis para pensarmos o conteúdo e
o sentido da escola hoje, referem-se à “complexidade da ambiência
cultural, das dimensões sociais, econômicas e políticas”, à “presença maciça de produtos científicos e tecnológicos” e à “multiplicidade de linguagens e códigos no cotidiano” (SEESP, 2008, p. 11).
De fato, são grandes os desafios contemporâneos para a educação escolar como um todo. Diante deles, o Currículo do Estado
de São Paulo objetiva promover uma educação a serviço do desenvolvimento pessoal do aluno, que coincide com a construção de
sua identidade, autonomia e liberdade. Em meio a um mundo que
se diz globalizado, esse tipo de educação ofereceria ao indivíduo
uma síntese dos saberes produzidos pela humanidade a fim de que
ele tenha maiores condições de acesso ao conhecimento necessário
para exercer a cidadania numa dimensão mundial.
Conscientes do modo como o currículo do Estado de São
Paulo se coloca em meio à problemática advinda das transformações técnico-científicas e da reestruturação do modo de produção
capitalista, podemos analisar agora os principais eixos teóricos e
estruturais da Filosofia da Existência e sua crítica à ideologia capitalista da educação.
3.  FILOSOFIA DA EXISTÊNCIA: UM OLHAR CRÍTICO
SOBRE A EDUCAÇÃO
Uma reflexão crítica sobre um determinado currículo escolar
exige a busca dos fundamentos teóricos que sustentam suas concepções pedagógicas. E toda pedagogia tem como base questões
profundamente filosóficas, como o significado do ser humano e sua
formação, por exemplo. Sendo assim, o currículo do Estado de São
Paulo, diante dos desafios contemporâneos, procura responder a
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
130
uma das questões centrais da Filosofia da Educação: “Que homem
queremos formar ou construir?”. A resposta pode ser dada a partir
de duas grandes correntes filosóficas cujas visões antagônicas remetem a um embate acirrado na história ocidental: a pedagogia da
essência e a pedagogia da existência. Como este trabalho tem como
foco a segunda corrente, faremos apenas um breve comentário sobre a primeira, destacando alguns dos seus pontos marcantes na
história da Filosofia.
Na antiguidade, a pedagogia da essência encontra-se em
meio a discussões centradas na originalidade do ser ou em questões
antropológicas. Tendo em vista o ideal de vida do homem na polis,
Platão, ao discutir o que é justiça, constrói uma República cujo modelo de educação promoveria a formação do cidadão ideal. Para ele,
a realidade não se encontra no mundo sensível, mas no inteligível.
Na filosofia medieval, temos Agostinho, que, vivendo num contexto histórico com problemas diferentes dos que Platão enfrentava,
preferiu usar o platonismo e o neoplatonismo para discutir a relação
entre fé e razão e elaborar sua teoria do conhecimento. Em relação
à filosofia da educação, o pensamento agostiniano defende a tese
de que “a causa primeira de todo princípio educativo é a transposição da fé como fundamento da ordem racional e com base nesta
racionalidade busca-se o entendimento da ordem natural, da física”
(SILVA, 2008, p. 48). Tomás de Aquino, por sua vez, encontra em
Aristóteles o instrumental para superar o dualismo platônico, afirmando que “o corpo e os sentidos são os caminhos necessários para
que haja qualquer tipo de conhecimento, inclusive o verdadeiro,
e é através dos sentidos que o homem pode chegar ao inteligível”
(SILVA, 2008, p. 49). Inaugurando a filosofia moderna, Descartes
postula a necessidade do método para organização do pensamento,
pois devemos seguir uma ordem lógica na construção do saber. Já
Rousseau “retoma os ideais de Agostinho para justificar sua teoria
do ‘bom selvagem’: é na ordem natural das coisas que se sedimentam os ideais de um princípio educativo; a educação natural” (SILVA, 2008, p. 51).
A crise da modernidade fez ressurgir uma ideia que ficou
adormecida durante séculos: o movimento e a mudança são os
motores da existência. Esta era a visão de Heráclito, um filósofo
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
131
pré-socrático do século VI a.C. que, ao contrário de Parmênides,
afirmava que tudo muda; o ser nada mais é do que o não-ser. Numa
concepção marxiana, pode-se dizer que Heráclito foi o primeiro
pensador dialético da história da filosofia. Porém, a pedagogia da
existência só apresentaria suas primeiras sementes nos séculos
XVII e XVIII, com Pestalozzi e Froebel; desenvolveria e aprofundaria suas diferenciações no século XIX, com Kierkegaard, Stirner
e Nietzsche. Mas é com Karl Marx, representante maior dos movimentos socialistas em ascensão nesse período, que se instaura de
vez a filosofia da existência. Seu materialismo histórico-dialético
seria usado por filósofos do século XX para explicar a história através de fatores econômicos e técnicos.
Marx pretendia tornar mais explícito o caráter revolucionário
da filosofia. Por isso, a corrente existencialista caracteriza-se pela
leitura crítica da realidade concreta; pelo objetivo de colocar a filosofia em prática, analisando os problemas existentes na realidade
do ser humano, cuja condição se faz pela produção social do seu
contexto; pelo intuito de sair da abstração contemplativa da filosofia da essência para a fundamentação conceitual de produção do
saber transformador. Aplicada à atividade didática e pedagógica,
essa corrente filosófica nos oferece ferramentas imprescindíveis
para analisarmos mais profundamente uma determinada reforma
educacional. Afinal, conceber a realidade tal como ela é (ao menos
no sentido mais realista possível) e não em sua forma idealizada é
o primeiro passo para refletirmos sobre os problemas reais que a
educação enfrenta atualmente.
No início do século XXI não é raro encontrar pensadores com
uma visão negativa em relação à política educacional do Brasil.
Submissa aos organismos financeiros internacionais e às entidades
supranacionais, a educação escolar brasileira começou este século
preocupada em formar quadros profissionais para o desenvolvimento e para a geração de riqueza, supervalorizando a competitividade, o individualismo, a liberdade excessiva, a qualidade econômica e a eficiência para poucos e a exclusão da maioria. Na ótica
mercadológica, há um claro reconhecimento mundial e social da
importância de um ensino público de qualidade para a formação de
trabalhadores qualificados e consumidores exigentes e sofisticados
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
132
para um mercado diversificado, competitivo e sofisticado. Contudo,
[...] esse reconhecimento e esse empreendimento, especialmente no governo de Fernando Henrique Cardoso, deram-se de acordo com uma lógica economicista, cujo projeto
educativo tem por objetivo último adequar a educação escolar às novas demandas e exigências do mercado. Nesse
sentido, a educação assume a perspectiva de mercadoria
ou serviço que se compra, e não de um direito universal, o
que a leva a tornar-se competitiva, fragmentada, dualizada
e seletiva social e culturalmente (LIBÂNEO; OLIVEIRA;
TOSCHI, 2003, p. 116-117).
Ora, se a informação, na concepção capitalista, é um bem
econômico, nada mais natural do que tratar a educação como uma
mercadoria ou ferramenta essencial para a reprodução de um sistema cujas diretrizes gerais permanecem como base das principais
reformas políticas, econômicas e educacionais. Depois de FHC, o
governo Lula, por meio do programa intitulado Uma Escola do Tamanho do Brasil, apresentou ao país a proposta de pensar a educação como uma ação relevante na transformação da realidade econômica e social do nosso povo. Mas, ainda que consideremos uma
evolução do poder de compra dos brasileiros nos últimos anos e o
aumento de vagas nas escolas públicas, técnicas e universidades
federais, poderíamos dizer que as reformas educacionais recentes
estão proporcionando uma mudança efetiva da realidade econômica e social do país? Sob o ponto de vista da Filosofia da Existência,
essa é uma questão extremamente complexa.
Hoje é difícil encontrar oposição à ideia de que os processos
educacionais estão intimamente ligados aos processos sociais mais
abrangentes de reprodução. Desse modo, “uma reformulação significativa da educação é inconcebível sem a correspondente transformação do quadro social no qual as práticas educacionais da sociedade devem cumprir as suas vitais e historicamente importantes
funções de mudança” (MÉSZÁROS, 2008, p. 25). Não é sensato
subestimar o grande impacto da lógica do capital sobre a educação. A sociedade de livre mercado necessita formar indivíduos que
pensem e ajam segundo os princípios imutáveis do sistema. Quaisquer reformas planejadas por um determinado governo no campo
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
133
da educação e da economia só são viabilizadas a fim de corrigir
eventuais falhas da ordem estabelecida, sem que haja a menor interferência nas determinações estruturais essenciais da sociedade
como um todo.
Analisando as ideias de grandes pensadores que marcaram a
história, como Adam Smith, um dos maiores economistas políticos
de todos os tempos, e Robert Owen, um extraordinário reformador
social e educacional utópico, Mészáros tece uma crítica ferrenha
às reformas educacionais que se fazem reconciliadas com o ponto
de vista do capital. Ainda que subjetivamente bem-intencionados,
posicionando-se claramente contra as manifestações desumanas
dos interesses materiais da classe dominante, os autores de utopias e discursos reformistas não conseguem romper com a lógica
do capital. Atacam apenas os piores efeitos e não os fundamentos
causais antagônicos da ordem reprodutiva capitalista estabelecida.
Negligenciando o caráter questionador da filosofia, a educação é
pensada e estruturada como se o capital devesse sempre permanecer incontestável.
Como já citamos anteriormente, uma das finalidades do ensino médio, conforme a LDBEN, é desenvolver a autonomia intelectual e o pensamento crítico dos alunos, o que condiz perfeitamente com uma formação filosófica. Entretanto, é possível atingir
tal meta integralmente sem questionar o modo capitalista de organização e reprodução econômica e social? Há como compreender
criticamente os fundamentos científico-tecnológicos dos processos
produtivos no mundo globalizado sem se dar conta de que nas últimas duas décadas houve o acirramento da tensão característica do
capitalismo em sua fase inicial? Ora, se a globalização nos trouxe,
“por um lado, o desenvolvimento gigantesco das forças produtivas, gerando o acúmulo de riquezas”, por outro, contribuiu para
“o aumento da pobreza e da injustiça social, sobretudo nos países
periféricos” (DALBOSCO, 2007, p. 107).
Consequência do pensamento crítico seria a constatação de
que os efeitos nocivos do sistema sobre a classe trabalhadora são
relativizados diante da crescente produtividade que se tem com
o desenvolvimento contínuo das forças produtivas. Ao explicar
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
134
a prioridade que concede ao contexto do trabalho, o currículo do
Estado de São Paulo, em princípio, parece concebê-lo dentro dos
parâmetros estruturais fundamentais do capital. Segundo o currículo, o valor e a importância do trabalho incidiriam em toda a vida
escolar. Como formas dessa valorização, teríamos “o conhecimento
do trabalho como produtor da riqueza e o reconhecimento de que
um dos fundamentos da desigualdade social é a remuneração injusta do trabalho” (SEESP, 2008, p. 23). A Filosofia da Existência
aprofundaria essa explicação fazendo, no mínimo, duas questões:
trabalho como produtor da riqueza de quem? E, se o capitalismo se
caracteriza pela propriedade privada dos meios de produção com o
objetivo de obter lucro, dividindo, assim, a sociedade em duas classes fundamentais, seria possível de fato haver uma remuneração
justa do trabalho a ponto de abolir a desigualdade social?
Está claro que o currículo paulista, como qualquer outra reforma educacional oficial do país, não visa a uma transformação
social radicalmente qualitativa. De acordo com Mészáros (2008, p.
27), “[...] é necessário romper com a lógica do capital se quisermos
contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente”.
4.  A DISCIPLINA DE FILOSOFIA NO CURRÍCULO DO
ESTADO DE SÃO PAULO
Nossa tentativa de situar a educação pública do Estado de São
Paulo no contexto das transformações técnico-científicas nos levou
à constatação da importância que os processos educacionais têm
na reprodução do sistema político-econômico vigente. O homem
que se quer formar ou construir no mundo contemporâneo tem que
necessariamente corresponder às exigências inalteráveis do capital, cujos parâmetros fundamentais são assimilados como dogmas
inquestionáveis. Assim, mesmo conscientes dos efeitos nocivos do
sistema, podemos demonstrar uma forte resignação diante do fato
de que a crescente investigação técnica e o contínuo investimento na pesquisa científica estão mais a serviço da economia do que
da humanidade e do meio ambiente. Sem dúvida, “[...] a novidade
central que o capitalismo tardio apresenta é a transformação do poEducação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
135
der técnico-científico na principal força produtiva e na forma mais
eficiente de ideologia” (DALBOSCO, 2007, p. 107).
Em meio a esse contexto, queremos agora refletir sobre o papel da Filosofia no currículo do Estado de São Paulo. Enquanto
disciplina obrigatória, seria ministrada como simples doutrinação
ou teria condições de proporcionar o senso crítico e a consequente emancipação do professor e do aluno em relação aos processos
sociais de reprodução da ordem estabelecida? Qual seria sua importância, tanto do ponto de vista da SEESP quanto da Filosofia da
Existência, para a formação do aluno? Como se relacionaria com os
princípios centrais do currículo estadual? Deixamos claro que nosso principal objetivo não é analisar a disciplina a partir da prática
em sala de aula, mas faremos algumas inferências acerca de como
deve se dar essa prática em vista do desenvolvimento da autonomia
intelectual do aluno. Em todo caso, o que buscamos neste trabalho
é a fundamentação teórica e crítica do retorno da Filosofia ao currículo do Estado de São Paulo.
Inicialmente, é importante destacar que os processos de discussão e elaboração do currículo de Filosofia do atual Ensino Médio foram promovidos pela SEESP já nas décadas de 1980 e 1990.
As discussões ganharam amparo legal quando em 1996 a LDBEN
reconheceu os conhecimentos filosóficos como fundamentais para
o exercício da cidadania. Mas só na primeira década do século XXI
é que a disciplina se inseriu no currículo estadual com caráter obrigatório. Dessa forma, de 2005 a 2010, procurando compor o quadro
do magistério, a SEESP abriu três concursos públicos para provimento de cargo de professor da educação básica II em várias disciplinas, dentre as quais a filosofia teve presença constante.
Até 2007, os professores de Filosofia não dispunham de material didático para unificar os conteúdos essenciais a serem trabalhados nas escolas da rede pública estadual. A base para a elaboração dos planos de ensino, que variavam muito de escola para
escola, encontrava-se nos Parâmetros Curriculares Nacionais para
o Ensino Médio e em alguns livros didáticos tradicionais. Porém,
em 2008, a SEESP, colocando em prática uma nova Proposta Curricular, distribuiu a todo o corpo docente cadernos organizados por
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
136
bimestre e por disciplina, os quais contemplavam não apenas os
conteúdos oficiais da escola estadual, mas também as competências
e habilidades a serem desenvolvidas nos alunos com cada conteúdo. Em 2009, com a consolidação da proposta, os alunos receberam
os cadernos de cada disciplina com textos e atividades voltados
para o desenvolvimento das competências e habilidades previstas.
E, desde 2011, alunos e professores recebem um livro didático de
Filosofia para complementação e aprofundamento dos conteúdos.
Com isso, a Secretaria (2008, p. 8) procurou “cumprir seu dever de
garantir a todos uma base comum de conhecimentos e competências, para que nossas escolas funcionem de fato como uma rede”.
Como pontos de unidade, o currículo estadual apresenta seis
princípios centrais: uma escola que também aprende; o currículo
como espaço de cultura; as competências como referência; a prioridade para a competência da leitura e da escrita; articulação das
competências para aprender; e articulação com o mundo do trabalho. Nesses princípios, o destaque concedido às competências é
irrefutável. Segundo a Secretaria (2008, p. 14), isso acontece porque é com elas que o aluno “contará para fazer sua leitura crítica
do mundo, para compreendê-lo e propor explicações, para defender suas ideias e compartilhar novas e melhores formas de ser, na
complexidade em que hoje isso é requerido”. Assim, entendemos
que o retorno da Filosofia ao Ensino Médio é pensado segundo sua
importância para o desenvolvimento de determinadas competências e habilidades. Afinal, ela propõe reflexões que ajudam o aluno
a “compreender melhor as relações sociais e, ao mesmo tempo”,
inserir-se “no universo subjetivo das representações simbólicas,
elevando a Educação a um nível político-existencial, capaz de superar a mera transmissão e aquisição de conteúdos” (SEESP, 2008,
p. 41), realizadas de forma mecânica e inconsciente.
Diante de tudo isso, é interessante sabermos como foi pensada a prática de ensino da Filosofia para o Ensino Médio. Qual abordagem seria utilizada? A partir da História da Filosofia ou de Temas
Filosóficos? Analisemos, então, o currículo oficial do Estado.
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
137
Quadro 1. Conteúdos de Filosofia.
1ª SÉRIE DO ENSINO MÉDIO
1º Bimestre
2º Bimestre
A Filosofia e outras formas de
Por que estudar Filosofia?
conhecimento:
As áreas da Filosofia.
Mito, Cultura, Religião, Arte, Ciência.
3º Bimestre
4º Bimestre
Democracia e cidadania: origens,
conceitos e dilemas; desigualdade
Introdução à Filosofia Política.
Teorias do Estado: Socialismo, social e ideológica; democracia e
anarquismo e liberalismo.
justiça social; os direitos humanos;
participação política.
2ª SÉRIE DO ENSINO MÉDIO
1º Bimestre
2º Bimestre
Introdução à teoria do indivíduo
(John Locke, Jeremy Bentham e
Introdução à ética: O eu racional;
Stuart Mill); tornar-se indivíduo (Paul
Autonomia e liberdade.
Ricoeur e Michel Foucault). Condutas
massificadas; alienação moral.
3º Bimestre
4º Bimestre
Filosofia, Política e Ética: humilhação, Desafios éticos contemporâneos:
velhice e racismo; homens e mulheres. A Ciência e a condição humana.
Filosofia e educação.
Introdução à Bioética.
3ª SÉRIE DO ENSINO MÉDIO
1º Bimestre
2º Bimestre
O que é Filosofia: superação de
Características do discurso filosófico:
preconceitos em relação à Filosofia
comparação com o discurso religioso.
e definição e importância para a
O homem como ser político.
cidadania.
A desigualdade entre os homens como
O homem como ser de natureza e de
desafio da política.
linguagem.
3º Bimestre
4º Bimestre
Características do discurso filosófico:
Características do discurso filosófico: comparação com o discurso da
comparação com o discurso científico. literatura.
Três concepções de liberdade: Valores contemporâneos que cercam
libertarismo, determinismo e dialética. o tema da felicidade e das dimensões
pessoais e sociais da felicidade.
Fonte: SEESP, 2011, p. 120-131.
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
138
Podemos perceber que a SEESP orienta seus professores a
trabalharem os conteúdos filosóficos a partir de determinados temas e não da História da Filosofia. Na visão da Secretaria (2008, p.
42-43), “não irá muito longe o professor que encerrar um pensador
em uma espécie de caixa-preta, tentando isolar seu pensamento,
imaginando que a arquitetura do texto, por si só, poderá levar a
qualquer forma de compreensão ou reflexão”. Não que o currículo
oficial do estado expresse uma avaliação depreciativa da História
da Filosofia, mas, sem menosprezar sua importância, ela “não deve
constituir a principal orientação para o ensino da disciplina na escola pública, pois é com o olhar voltado para o mundo que se aprende
a pensar filosoficamente”.
Sílvio Gallo, professor da Faculdade de Educação da Unicamp, nos ajuda a aprofundar um pouco mais a reflexão sobre o
tipo de abordagem ideal na prática de ensino da Filosofia para a última etapa da educação básica. Segundo ele, podemos construir um
currículo dessa disciplina em torno de pelo menos três eixos: um
histórico, um temático e um problemático. O problema do primeiro
“é que a chance de cair num ensino enciclopédico, apresentando
um desfile de nomes de filósofos, pensamentos e datas, é muito
grande”. Já o segundo parece uma abordagem mais apropriada para
o nível médio, pois nela “os conteúdos são apresentados de forma
temática, numa tentativa de torná-los mais próximos da realidade
vivida pelos jovens”. Mas Gallo prefere a terceira alternativa, já
que, além de abarcar as outras duas, ela “avança para além delas,
pois toma a filosofia como uma ação, uma atividade, posto que se
organiza em torno daquilo que motiva e impulsiona o filosofar, isso
é, o problema” (GALLO, 2013, n.p.).
O eixo problemático evitaria a doutrinação filosófica e ofereceria maiores condições para o aluno desenvolver o senso crítico
diante das questões que surgem em sua realidade concreta. Mas,
para isso, as aulas de filosofia teriam que seguir quatro etapas. Na
primeira, denominada sensibilização, o professor propõe problemas que “devem ser vividos pelo aluno como problemas seus, que
o mobilizem para fazer o movimento de pensamento”, usando “instrumentos que possam despertar nos jovens o interesse por aquele
assunto, por um determinado tema”. Logo após, temos a etapa da
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
139
problematização, na qual o professor tratará “de transformar o tema
em problema”, colocando “em prática o sentido crítico e investigador da Filosofia, instigando os alunos a produzirem questões a
partir do tema abordado”. Em seguida, na etapa da investigação,
faz-se “uso da história da Filosofia, recorrendo a filósofos que, em
sua época e em seu contexto, pensaram sobre o tema que está sendo
abordado”. E na última etapa, chamada de conceituação, temos “o
exercício da experiência filosófica propriamente dita”, onde “o estudante recria os conceitos estudados, refazendo ele mesmo o movimento de pensamento que levou à sua criação, desde o problema
inicial” (GALLO, 2013, n.p.).
Para a corrente existencialista, o eixo problemático é o ideal
para um ensino de Filosofia que tenha em vista a emancipação do
indivíduo, uma vez que supera a simples assimilação de conteúdos
e a inútil “decoreba” de ideias e sistemas.
5.  CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA DA EXISTÊNCIA
PARA A EDUCAÇÃO E O ENSINO DA FILOSOFIA
Certamente, uma preocupação recorrente nos longos debates
sucedidos desde a década de 1980 ao início do século XXI sobre o
retorno da Filosofia como disciplina do currículo do ensino médio
gira em torno da seguinte questão: haveria um número suficiente de professores bem formados para suprir a grande demanda do
Estado de São Paulo? Ressaltamos que a questão aponta para o aspecto quantitativo e qualitativo do professorado paulista. Seria um
desastre integrar uma disciplina ao currículo obrigatório sem ter,
no mínimo, um quadro satisfatório de profissionais para lecioná-la. Ao mesmo tempo, se a ideia é despertar o interesse dos alunos
e incentivá-los a pensar filosoficamente, a qualidade do ensino é
imprescindível. A própria SEE, ao elaborar sua Proposta Curricular
em 2008, apontou essa preocupação.
Lembramos que a questão não é se a formação acadêmica
possibilitaria ao docente um domínio considerável dos conteúdos
filosóficos, mas se o prepararia para fazer uso de uma metodologia de ensino apropriada à última etapa da educação básica. De
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
140
qualquer modo, nos cursos que têm como foco principal a pesquisa
científica e a docência no ensino superior, a preocupação com a
prática na educação básica é minimizada. Procurando superar ao
menos uma parte dessa defasagem, o currículo do Estado de São
Paulo, por meio dos cadernos bimestrais do professor, oferece algumas pistas de como ensinar os conteúdos curriculares de uma
maneira mais significativa para os jovens. Alguns cadernos apresentam, inclusive, a sensibilização do aluno como primeiro passo
para uma boa aula de Filosofia, o que corresponde à etapa inicial
proposta por Sílvio Gallo para uma abordagem problemática.
Obviamente, o êxito da Filosofia no ensino médio depende
de diversos fatores. Para Gallo (2013, n.p.), o professor deve, em
primeiro lugar, ter claro para si mesmo o seu conceito de Filosofia,
pois se espera que ele, no mínimo, “apresente coerência entre aquilo que ele entende por Filosofia e aquilo que ele ensina em sua prática escolar”. Para a SEESP (2008, p. 41), “é interessante perguntar
como o professor de Filosofia vê sua presença no universo escolar”,
isto é, “qual o papel, ou papéis, que ele pode e deve desempenhar”.
O que não se questiona é a importância da disciplina para a construção da cidadania e formação da consciência crítica dos estudantes.
Além disso, pode-se afirmar sua relevância na ampliação do significado e dos objetivos sociais e culturais da Educação. Nesse sentido, sob o ponto de vista da corrente existencialista, faremos uma
breve reflexão sobre o papel da Filosofia não apenas na formação
do educando, mas também do educador.
Indubitavelmente, o ensino de filosofia não tem como objetivo essencial reproduzir um conhecimento meramente enciclopédico ou formar mão de obra para o mercado de trabalho nos moldes
do capital, mas sim promover a autêntica emancipação dos educandos. E, para cumprir seu objetivo, a filosofia deve partir da realidade concreta do educando, ou não fará sentido algum para ele. Mas
todo aquele que é formado para lecionar essa disciplina reconhece
seu valor? Ora, “não se educa o novo educador para ser filósofo se,
em sua realidade, ele não reconhece a reflexão filosófica como parte de seu amadurecimento intelectual” (SILVA, 2008, p. 38). Isso
tornaria infrutífero seu trabalho em sala de aula.
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
141
Saviani (1996), pensador da corrente existencialista, reserva o primeiro capítulo da sua obra “Educação: do senso comum à
consciência filosófica” para refletir justamente sobre a importância
da filosofia na formação do educador. O desenvolvimento da sua
reflexão parte de uma pergunta que intriga os pensadores desde os
primórdios da filosofia: “que é que leva o homem a filosofar?”.
Procurando responder a essa pergunta, Heidegger (2012, n.p.) nos
lembra que pensadores gregos como Platão e Aristóteles “chamaram a atenção para o fato de que a filosofia e o filosofar fazem parte
de uma dimensão do homem, que designamos dis-posição”. Segundo eles, o páthos (espanto) é a arkhé (causa) do filosofar. Mas essa
arkhé não é deixada para trás no surgir da filosofia; ela se refere
“àquilo de onde nasce o filosofar e que constantemente determina
sua marcha”.
Considerando que o homem só se descobre existindo no
mundo, Saviani afirma que o ato de filosofar surge quando algo
interrompe o curso normal e espontâneo da existência humana,
alterando, assim, a sua sequência natural. Sentindo-se obrigado a
descobrir o que é esse algo, ao qual damos o nome de problema, o
homem é levado a filosofar. Nas palavras do próprio Saviani (1996,
p. 10), “eis, pois, o objeto da filosofia, aquilo de que trata a filosofia, aquilo que leva o homem a filosofar: são os problemas que o
homem enfrenta no transcurso de sua existência”. Mas, para entendermos isso profundamente, precisamos superar os usos correntes
da palavra problema, que a identificam com uma simples ou complexa questão cuja resposta pode ser ou não conhecida, e recuperar
a sua problematicidade. De acordo com Saviani (1996, p. 13-14),
“quando o homem considera as manifestações de sua própria existência como algo desligado dela, ou seja, como algo independente
do processo que as produziu, ele está vivendo no mundo da ‘pseudo-concreticidade’” e acaba tomando “por problema aquilo que é
apenas manifestação do problema”. Na verdade, “algo que eu não
sei não é problema; mas quando eu ignoro alguma coisa que eu
preciso saber, eis-me, então, diante de um problema”. É a necessidade de conhecer algo que me espanta e incomoda minha alma no
transcurso da minha existência que define uma questão como sendo
realmente problemática.
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
142
Partindo dessas considerações, podemos entender melhor
a importância da atividade filosófica na formação do educador, o
qual não deveria abrir mão de uma constante reflexão crítica sobre
os problemas da realidade escolar. Com o método característico da
corrente existencialista, a Filosofia da Educação torna-se mais apta
a cumprir sua tarefa de:
[...] oferecer aos educadores um método de reflexão que
lhes permita encarar os problemas educacionais, penetrando na sua complexidade e encaminhando a solução
de questões tais como: o conflito entre “filosofia de vida”
e “ideologia” na atividade do educador; a necessidade da
opção ideológica e suas implicações; o caráter parcial,
fragmentário e superável das ideologias e o conflito entre
diferentes ideologias; a possibilidade, legitimidade, valor
e limites da educação; a relação entre meios e fins na educação (como usar meios velhos em função de objetivos novos?); a relação entre teoria e prática (como a teoria pode
dinamizar ou cristalizar a prática educacional?); é possível redefinir objetivos para a educação brasileira? Quais
os condicionamentos da atividade educacional? Em que
medida é possível superá-los e em que medida é preciso
contar com eles? (SAVIANI, 1996, p. 23).
Dispondo-se a refletir criticamente sobre esses problemas, o
professor exercita o ato de filosofar, o qual não se resume à busca
por um produto acabado, mas exige que se faça a experiência de
produzir conceitos. E o que o currículo do Estado de São Paulo espera da Filosofia é justamente que ela possa “assumir uma de suas
principais funções, a de ser uma ferramenta conceitual, produtora
de síntese, com o que animaria o debate multidisciplinar, elevando
os padrões do Ensino Médio” (SEESP, 2008, p. 43). Para a concretização de tal expectativa, pode-se aplicar o currículo a partir
do eixo problemático, cujos passos didáticos conduzem o aluno à
etapa final da atividade filosófica que é a conceituação. Assim, as
aulas superam a perspectiva conteudista e promovem o desenvolvimento da autonomia e o exercício da liberdade de pensamento tanto
do educando quanto do educador em vista de uma formação para
além da lógica do capital.
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
143
6.  CONSIDERAÇÕES FINAIS
Repensar a Filosofia como disciplina do currículo oficial do
Estado de São Paulo a partir da corrente existencialista definitivamente não é uma tarefa que se esgota em poucas páginas. Afinal,
como vimos, a pergunta sobre o papel e a importância da Filosofia
no Ensino Médio não pode ser satisfatoriamente respondida sem
considerarmos a situação da rede pública estadual nos últimos
anos, cuja análise se torna superficial se ignoramos os desafios da
educação escolar brasileira no contexto das transformações técnico-científicas. Ao discutirmos as mudanças impostas à sociedade
contemporânea pela reestruturação do modo de produção capitalista, constatamos a íntima ligação entre os processos educacionais e
os processos sociais mais abrangentes de reprodução. Assim, descobrimos que qualquer reforma na área da educação fica impossibilitada de cumprir sua vital e imprescindível função transformadora
se não conseguir romper com a lógica do capital.
As inferências que fizemos neste trabalho acerca das questões anteriores carecem, é claro, de uma abordagem mais ampla,
mas acreditamos serem suficientes para justificar a relevância da
Filosofia não apenas para desenvolver a autonomia intelectual do
educando como para potencializar a reflexão crítica do educador
sobre os problemas reais da educação. Munidos com as ferramentas
da corrente existencialista, os professores estarão mais aptos a identificar os mecanismos de dominação e reprodução da concepção
mercadológica no meio educacional que mascaram as contradições
existentes na sociedade neoliberal. Entretanto, com salários pouco
atrativos, más condições de trabalho e jornadas semanais cansativas, os professores de Filosofia da rede pública veem, muitas vezes, sua atividade reflexiva perder a profundidade e sua disciplina
tornar-se improdutiva para os alunos. Seria puro idealismo refletir
sobre o valor de qualquer disciplina do currículo sem preocupar-se
com a valorização daqueles que têm a delicada tarefa de conectar
as matérias curriculares à concretude da vida.
Enfim, apoiados no método histórico dialético da Filosofia
da Existência, educadores e educandos devem fazer o exercício
constante de problematizar, investigar e conceituar a realidade em
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
144
que vivem. Devem aprimorar a capacidade humana de perguntar
sobre as coisas. E a pergunta sobre o modo pelo qual a educação
é produzida obriga o filósofo a historiá-la. Caso negligencie essa
obrigação, “em vez de instrumento de superação da desigualdade, a
educação, por desconhecer os determinantes inerentes à sociedade
que a engendra, acabará por cumprir a função de legitimadora da
desigualdade” (SAVIANI, 1996, p. 84).
REFERÊNCIAS
ABREU, M. M. Solidariedade e participação no contexto da atual reestruturação
capitalista: aspectos conceituais e questões pertinentes à classe trabalhadora.
Disponível em: <http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinppII/pagina_PGPP/
Trabalhos2/Marina_Maciel_Abreu130.pdf>. Acesso em: 12 maio 2013.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9394/96, de
20 de dezembro de 1996.
______. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação
Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: Ensino Médio. Brasília:
MEC/SEF, 2000.
DALBOSCO, C. A. Pedagogia filosófica: cercanias de um diálogo. São Paulo:
Paulinas, 2007. (Coleção Educação em Foco).
GALLO, S. Chegou a hora da filosofia. Disponível em: <http://revistaeducacao.
uol.com.br/formacao-docente/116/artigo234074-asp>. Acesso em: 27 maio
2013.
HEIDEGGER, M. Que é isto – a filosofia? Disponível em: <http://pt.scribd.com/
doc/6580786/Martin-Heidegger-Que-e-Isso-A-Filosofia-PDF>. Acesso em: 11
jan. 2012.
LIBÂNEO, J. C.; OLIVEIRA, J. F.; TOSCHI, M. S. Educação escolar: políticas,
estrutura e organização. São Paulo: Cortez, 2003. (Coleção Docência em
Formação).
MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital. Tradução de Isa Tavares. 2.
ed. São Paulo: Boitempo editorial, 2008.
SÃO PAULO. Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Proposta
curricular do estado de São Paulo: Filosofia, ensino médio. Coord. Maria Inês
Fini. São Paulo: SEE, 2008.
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
145
______. Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Currículo do Estado
de São Paulo: ciências humanas e suas tecnologias. Coordenação geral Maria
Inês Fini; coordenação de área Paulo Miceli. 1. ed. atual. São Paulo: SEE, 2011.
SAVIANI, D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 11. ed.
Campinas: Autores e associados, 1996.
SILVA, M. D. Filosofia da educação e as grandes correntes do pensamento: da
filosofia da essência à filosofia da existência. Batatais: Claretiano, 2008. (Guia
de disciplina e Caderno de Referência de Conteúdo).
______. Filosofia da educação: questão do método. Batatais: Claretiano, 2008.
(Guia de disciplina e Caderno de Referência de Conteúdo).
LOPES, O. T. Ensino de filosofia para o ensino médio. Batatais: Claretiano,
2008. (Guia de disciplina e Caderno de Referência de Conteúdo).
Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016
Download