123 Filosofia no currículo do Estado de São Paulo: repensando a disciplina a partir da Filosofia da Existência Wanderlei da Silva de Oliveira1 Resumo: Esta pesquisa tem como objetivos principais: encontrar no currículo do Estado de São Paulo para a disciplina de Filosofia elementos que expressem a preocupação em oferecer aos educandos muito mais do que a simples transmissão de conteúdos; e demonstrar que a Filosofia da Existência potencializa nossa capacidade de refletir, criticamente, sobre a realidade concreta da educação, suscitando professores e alunos conscientes da necessidade de transformação dessa realidade. Para isso, faremos, incialmente, uma breve análise dos desafios atuais que se impõem à educação escolar como um todo, apresentando em seguida os principais eixos teóricos e estruturais da Filosofia da Existência e sua crítica à concepção mercadológica da educação. Após refletirmos sobre a disciplina de Filosofia no currículo do Estado de São Paulo, apresentaremos as contribuições da corrente existencialista na formação de educadores e educandos em vista de sua emancipação em relação à ideologia do capital. Palavras-chave: Currículo. Educação. Filosofia. Existência. Crítica. 1 Wanderlei da Silva de Oliveira. Especialista em Filosofia e Ensino de Filosofia pelo Claretiano – Centro Universitário – Polo de Santo André (SP). Licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Assunção (Unifai). Bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (Unifai e PUC). Docente de Filosofia da Escola Estadual “Dr. Américo Brasiliense” em Santo André. E-mail: <[email protected]>. Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016 124 Philosophy in the curriculum of the State of Sao Paulo: rethinking the subject through the Philosophy of Existence Wanderlei da Silva de OLIVEIRA Abstract: This research has two main objectives: to find in the curriculum of the State of Sao Paulo to the Philosophy subject elements that express the concern by offering the students much more than mere transmission of content; and to demonstrate that the Philosophy of Existence enhances our ability to critically think over the concrete reality of education, by arousing conscious teachers and students on the need of changing this reality. To do so, initially we will briefly review the current challenges that are imposed to school education as a whole, present theoretical and structural axis of the philosophy of existence and its criticism of the marketing concept of education. And after thinking over the Philosophy in the curriculum of the State of Sao Paulo, we will present the contributions of existentialist current in training educators and learners in view of their emancipation in relation to the ideology of capital. Keywords: Curriculum. Education. Philosophy. Existence. Criticism. Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016 125 1. INTRODUÇÃO O retorno da Filosofia como disciplina obrigatória no Ensino Médio, há menos de uma década, continua suscitando questões referentes ao seu papel na escola, à formação do professor e ao modo ideal de ensiná-la a adolescentes e jovens. Tais questões tiveram presença marcante na formulação do atual currículo do Estado de São Paulo. Com o intuito de contribuir para a melhoria da aprendizagem dos alunos da rede pública, a Secretaria de Educação do Estado implantou, em 2008, uma nova proposta curricular, definindo a importância específica de cada disciplina dentro do contexto escolar. Nos anos que antecederam a proposta, a prática de ensino da Filosofia manifestava uma grande preocupação não só entre os professores que iniciavam sua carreira, como também entre aqueles mais experientes: “O que realmente os alunos devem aprender com essa disciplina?”. Como não havia uma resposta bem definida, cada professor elaborava seu plano de ensino da maneira que achasse melhor. Enquanto uns optavam por aulas que se desenvolveriam a partir de determinados temas, outros preferiam apresentar o pensamento de determinados filósofos em ordem cronológica, seguindo à risca os compêndios de História da Filosofia. Com o novo currículo em vigor desde 2008, temos uma tentativa de unificar aquilo que seria fundamental no ensino de Filosofia na rede pública estadual. Em todo caso, para promover a autonomia intelectual dos alunos, fazer com que eles pensem por si mesmos e não tratem a filosofia como doutrinação, o professor deve sensibilizá-los para que possam problematizar, investigar e conceituar a realidade. Mas antes de resgatar o sentido de qualquer disciplina no currículo, é necessário resgatar o sentido da própria escola, sem o qual as disciplinas se tornam ilhas sem ligação umas com as outras. Boa parte dos educadores concorda que a Filosofia é uma ferramenta conceitual que favorece o debate multidisciplinar. Em meio a um contexto permeado pelos princípios da lógica irracional do capital, consideramos relevante uma reflexão sobre o papel da Filosofia no currículo paulista a partir de uma corrente filosófica que abre possibilidade para a emancipação do sujeito pensante em relação Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016 126 à ideologia dominante. Através de uma revisão bibliográfica sobre o ensino de Filosofia no nível médio e a importância da Filosofia da Existência na educação, com destaque especial para as ideias presentes nos textos “Chegou a hora da Filosofia”, de Sílvio Gallo, “Educação: do senso comum à consciência filosófica”, de Dermeval Saviani, e “A educação para além do capital”, de Istvan Mészáros, elaborar-se-á uma reflexão crítica sobre o papel da disciplina de Filosofia no currículo do Estado de São Paulo. 2. O CURRÍCULO DO ESTADO DE SÃO PAULO E OS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS A rede pública de ensino do estado mais rico do Brasil não é uma ilha isolada e protegida de problemas e expectativas que afetam as redes de outros estados. Nesse sentido, para refletirmos mais profundamente sobre o tema desta pesquisa, consideramos importante situar a educação escolar brasileira no contexto das transformações da sociedade contemporânea. Estas decorrem, principalmente, da atual compreensão do papel do Estado e das modificações nele operadas a partir da década de 1980, dos avanços tecnológicos, das mudanças no sistema financeiro, da reestruturação do sistema de produção e desenvolvimento e das alterações nos hábitos de consumo e na organização do trabalho. Desde a década de 1990, o conjunto de transformações culturais, sociais, políticas e econômicas pelas quais o mundo vem passando está sendo chamado de globalização ou mundialização. Tal fenômeno pode ser entendido “como uma estratégia de enfrentamento da crise do capitalismo e de constituição de uma nova ordem econômica mundial” (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2003, p. 74). Tem o objetivo de integrar a produção, o capital, os mercados e o trabalho, difundindo a ideia de que vivemos numa aldeia global, num mundo sem fronteiras, num planeta unificado. Todavia, essa unificação conflituosa segue a contraditória máxima neoliberal segundo a qual a exclusão faz parte do sistema, uma espécie de justificativa irracional para a terrível e escancarada desigualdade social que assola o gênero humano. Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016 127 A globalização surge durante a chamada terceira revolução científica e tecnológica da modernidade, conhecida também como revolução informacional, era digital, Terceira Revolução Industrial, sociedade técnico-informacional, sociedade do conhecimento, dentre outros. Tal revolução se fundamenta em três pilares, a saber, na energia termonuclear, na microbiologia e na microeletrônica. Essa última é responsável pela incrível velocidade com que as informações são processadas e acessadas em inúmeros pontos do planeta. Porém, como alguns já previam, a revolução informacional não só se mostrou incapaz de minimizar os efeitos nocivos do sistema capitalista como ampliou as formas de divisão social e de exclusão decorrentes das transformações técnico-científicas, intensificando a separação entre os detentores do monopólio da informação e os excluídos desse bem. Parece claro que [...] a informação, do ponto de vista capitalista, constitui um bem econômico (uma mercadoria). Sua produção, seu tratamento, sua circulação ou mesmo sua aquisição tornaram-se fundamentais para a ampliação do poder e da competitividade no mundo globalizado. Investir em informação ou adquirir informação qualificada passou a ser, então, condição determinante para o aumento da eficácia e da eficiência no mundo dos negócios. (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2003, p. 69). Na sociedade do conhecimento, quem detém o monopólio da informação dita as regras não apenas para o acúmulo de capital, mas também para a produção e difusão de boa parte das notícias que circulam nos meios de comunicação de massa. E ainda que o acesso à internet seja crescente, a sociedade do século XXI continua marcada pela exclusão de inúmeras pessoas em relação ao uso das modernas tecnologias de comunicação, seja pelo mal anacrônico do analfabetismo, seja pela falta de recursos financeiros para adquirir tais tecnologias. Ironicamente, em plena sociedade do conhecimento muitos permanecem presos aos grilhões da ignorância. Diante de um cenário tão contrastante, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, ao publicar sua Proposta Curricular em 2008, afirma que “na sociedade de hoje, são indesejáveis tanto a exclusão pela falta de acesso a bens materiais quanto a exclusão pela falta de acesso ao conhecimento e aos bens culturais” (SEESP, 2008, p. 9). Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016 128 Analisando os atuais desafios que se impõem à educação no Brasil, a SEESP (2008, p. 10) considera que a tendência à ampliação do acesso ao conhecimento “caminha paralelamente à democratização do acesso a níveis educacionais além do ensino obrigatório”. Todavia, com a grande expansão de cursos de graduação e pós-graduação em todo o país, a posse de um diploma de nível superior já não é um diferencial suficiente para garantir uma boa colocação no mercado de trabalho, mas sim a qualidade da educação recebida pelo profissional. E já que as camadas mais pobres da sociedade brasileira acorrem, em número cada vez maior, para as escolas públicas, a qualidade da educação nelas oferecida ganha importância redobrada. Parte-se do pressuposto de que “a relevância e a pertinência das aprendizagens escolares nessas instituições são decisivas para que o acesso a elas proporcione uma oportunidade real de aprendizagem para a inserção no mundo de modo produtivo e solidário” (SEESP, 2008, p. 10). Obviamente, a produtividade e a solidariedade que se esperam dos cidadãos no mundo globalizado não são conceitos que devem ser compreendidos somente do ponto de vista acadêmico, cultural e ético, mas também econômico. Em relação à produção, é possível dizer que os processos de reestruturação técnico-organizacional do trabalho têm a solidariedade como uma condição ideológica, “que fundamenta estratégias de ‘descentralização’, ‘cooperação’ e ‘colaboração’ nas relações de trabalho, em que as inovações técnico-organizacionais introduzidas a partir do toyotismo/ohnismo são exemplares” (ABREU, 2013). Considerando que o ingresso dos jovens no mercado de trabalho torna-se cada vez mais tardio, o currículo do Estado de São Paulo pretende oferecer uma aprendizagem significativa que prepare o aluno para enfrentar a passagem da adolescência tutelada à autonomia da vida adulta e profissional. Para isso, o educando deve desenvolver habilidades e competências que o auxiliem tanto no exercício da liberdade e no respeito às diferenças e às regras de convivência quanto na abertura para as novas necessidades e oportunidades do mercado. Ressaltamos que a LDBEN, nos incisos III e IV do artigo 35, já prescreve como finalidades do ensino médio “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016 129 o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” bem como “a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina”. Tais finalidades seriam fundamentais para o aluno apropriar-se dos conhecimentos necessários à ampliação das liberdades individuais. De acordo com a SEESP, esses conhecimentos, imprescindíveis para pensarmos o conteúdo e o sentido da escola hoje, referem-se à “complexidade da ambiência cultural, das dimensões sociais, econômicas e políticas”, à “presença maciça de produtos científicos e tecnológicos” e à “multiplicidade de linguagens e códigos no cotidiano” (SEESP, 2008, p. 11). De fato, são grandes os desafios contemporâneos para a educação escolar como um todo. Diante deles, o Currículo do Estado de São Paulo objetiva promover uma educação a serviço do desenvolvimento pessoal do aluno, que coincide com a construção de sua identidade, autonomia e liberdade. Em meio a um mundo que se diz globalizado, esse tipo de educação ofereceria ao indivíduo uma síntese dos saberes produzidos pela humanidade a fim de que ele tenha maiores condições de acesso ao conhecimento necessário para exercer a cidadania numa dimensão mundial. Conscientes do modo como o currículo do Estado de São Paulo se coloca em meio à problemática advinda das transformações técnico-científicas e da reestruturação do modo de produção capitalista, podemos analisar agora os principais eixos teóricos e estruturais da Filosofia da Existência e sua crítica à ideologia capitalista da educação. 3. FILOSOFIA DA EXISTÊNCIA: UM OLHAR CRÍTICO SOBRE A EDUCAÇÃO Uma reflexão crítica sobre um determinado currículo escolar exige a busca dos fundamentos teóricos que sustentam suas concepções pedagógicas. E toda pedagogia tem como base questões profundamente filosóficas, como o significado do ser humano e sua formação, por exemplo. Sendo assim, o currículo do Estado de São Paulo, diante dos desafios contemporâneos, procura responder a Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016 130 uma das questões centrais da Filosofia da Educação: “Que homem queremos formar ou construir?”. A resposta pode ser dada a partir de duas grandes correntes filosóficas cujas visões antagônicas remetem a um embate acirrado na história ocidental: a pedagogia da essência e a pedagogia da existência. Como este trabalho tem como foco a segunda corrente, faremos apenas um breve comentário sobre a primeira, destacando alguns dos seus pontos marcantes na história da Filosofia. Na antiguidade, a pedagogia da essência encontra-se em meio a discussões centradas na originalidade do ser ou em questões antropológicas. Tendo em vista o ideal de vida do homem na polis, Platão, ao discutir o que é justiça, constrói uma República cujo modelo de educação promoveria a formação do cidadão ideal. Para ele, a realidade não se encontra no mundo sensível, mas no inteligível. Na filosofia medieval, temos Agostinho, que, vivendo num contexto histórico com problemas diferentes dos que Platão enfrentava, preferiu usar o platonismo e o neoplatonismo para discutir a relação entre fé e razão e elaborar sua teoria do conhecimento. Em relação à filosofia da educação, o pensamento agostiniano defende a tese de que “a causa primeira de todo princípio educativo é a transposição da fé como fundamento da ordem racional e com base nesta racionalidade busca-se o entendimento da ordem natural, da física” (SILVA, 2008, p. 48). Tomás de Aquino, por sua vez, encontra em Aristóteles o instrumental para superar o dualismo platônico, afirmando que “o corpo e os sentidos são os caminhos necessários para que haja qualquer tipo de conhecimento, inclusive o verdadeiro, e é através dos sentidos que o homem pode chegar ao inteligível” (SILVA, 2008, p. 49). Inaugurando a filosofia moderna, Descartes postula a necessidade do método para organização do pensamento, pois devemos seguir uma ordem lógica na construção do saber. Já Rousseau “retoma os ideais de Agostinho para justificar sua teoria do ‘bom selvagem’: é na ordem natural das coisas que se sedimentam os ideais de um princípio educativo; a educação natural” (SILVA, 2008, p. 51). A crise da modernidade fez ressurgir uma ideia que ficou adormecida durante séculos: o movimento e a mudança são os motores da existência. Esta era a visão de Heráclito, um filósofo Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016 131 pré-socrático do século VI a.C. que, ao contrário de Parmênides, afirmava que tudo muda; o ser nada mais é do que o não-ser. Numa concepção marxiana, pode-se dizer que Heráclito foi o primeiro pensador dialético da história da filosofia. Porém, a pedagogia da existência só apresentaria suas primeiras sementes nos séculos XVII e XVIII, com Pestalozzi e Froebel; desenvolveria e aprofundaria suas diferenciações no século XIX, com Kierkegaard, Stirner e Nietzsche. Mas é com Karl Marx, representante maior dos movimentos socialistas em ascensão nesse período, que se instaura de vez a filosofia da existência. Seu materialismo histórico-dialético seria usado por filósofos do século XX para explicar a história através de fatores econômicos e técnicos. Marx pretendia tornar mais explícito o caráter revolucionário da filosofia. Por isso, a corrente existencialista caracteriza-se pela leitura crítica da realidade concreta; pelo objetivo de colocar a filosofia em prática, analisando os problemas existentes na realidade do ser humano, cuja condição se faz pela produção social do seu contexto; pelo intuito de sair da abstração contemplativa da filosofia da essência para a fundamentação conceitual de produção do saber transformador. Aplicada à atividade didática e pedagógica, essa corrente filosófica nos oferece ferramentas imprescindíveis para analisarmos mais profundamente uma determinada reforma educacional. Afinal, conceber a realidade tal como ela é (ao menos no sentido mais realista possível) e não em sua forma idealizada é o primeiro passo para refletirmos sobre os problemas reais que a educação enfrenta atualmente. No início do século XXI não é raro encontrar pensadores com uma visão negativa em relação à política educacional do Brasil. Submissa aos organismos financeiros internacionais e às entidades supranacionais, a educação escolar brasileira começou este século preocupada em formar quadros profissionais para o desenvolvimento e para a geração de riqueza, supervalorizando a competitividade, o individualismo, a liberdade excessiva, a qualidade econômica e a eficiência para poucos e a exclusão da maioria. Na ótica mercadológica, há um claro reconhecimento mundial e social da importância de um ensino público de qualidade para a formação de trabalhadores qualificados e consumidores exigentes e sofisticados Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016 132 para um mercado diversificado, competitivo e sofisticado. Contudo, [...] esse reconhecimento e esse empreendimento, especialmente no governo de Fernando Henrique Cardoso, deram-se de acordo com uma lógica economicista, cujo projeto educativo tem por objetivo último adequar a educação escolar às novas demandas e exigências do mercado. Nesse sentido, a educação assume a perspectiva de mercadoria ou serviço que se compra, e não de um direito universal, o que a leva a tornar-se competitiva, fragmentada, dualizada e seletiva social e culturalmente (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2003, p. 116-117). Ora, se a informação, na concepção capitalista, é um bem econômico, nada mais natural do que tratar a educação como uma mercadoria ou ferramenta essencial para a reprodução de um sistema cujas diretrizes gerais permanecem como base das principais reformas políticas, econômicas e educacionais. Depois de FHC, o governo Lula, por meio do programa intitulado Uma Escola do Tamanho do Brasil, apresentou ao país a proposta de pensar a educação como uma ação relevante na transformação da realidade econômica e social do nosso povo. Mas, ainda que consideremos uma evolução do poder de compra dos brasileiros nos últimos anos e o aumento de vagas nas escolas públicas, técnicas e universidades federais, poderíamos dizer que as reformas educacionais recentes estão proporcionando uma mudança efetiva da realidade econômica e social do país? Sob o ponto de vista da Filosofia da Existência, essa é uma questão extremamente complexa. Hoje é difícil encontrar oposição à ideia de que os processos educacionais estão intimamente ligados aos processos sociais mais abrangentes de reprodução. Desse modo, “uma reformulação significativa da educação é inconcebível sem a correspondente transformação do quadro social no qual as práticas educacionais da sociedade devem cumprir as suas vitais e historicamente importantes funções de mudança” (MÉSZÁROS, 2008, p. 25). Não é sensato subestimar o grande impacto da lógica do capital sobre a educação. A sociedade de livre mercado necessita formar indivíduos que pensem e ajam segundo os princípios imutáveis do sistema. Quaisquer reformas planejadas por um determinado governo no campo Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016 133 da educação e da economia só são viabilizadas a fim de corrigir eventuais falhas da ordem estabelecida, sem que haja a menor interferência nas determinações estruturais essenciais da sociedade como um todo. Analisando as ideias de grandes pensadores que marcaram a história, como Adam Smith, um dos maiores economistas políticos de todos os tempos, e Robert Owen, um extraordinário reformador social e educacional utópico, Mészáros tece uma crítica ferrenha às reformas educacionais que se fazem reconciliadas com o ponto de vista do capital. Ainda que subjetivamente bem-intencionados, posicionando-se claramente contra as manifestações desumanas dos interesses materiais da classe dominante, os autores de utopias e discursos reformistas não conseguem romper com a lógica do capital. Atacam apenas os piores efeitos e não os fundamentos causais antagônicos da ordem reprodutiva capitalista estabelecida. Negligenciando o caráter questionador da filosofia, a educação é pensada e estruturada como se o capital devesse sempre permanecer incontestável. Como já citamos anteriormente, uma das finalidades do ensino médio, conforme a LDBEN, é desenvolver a autonomia intelectual e o pensamento crítico dos alunos, o que condiz perfeitamente com uma formação filosófica. Entretanto, é possível atingir tal meta integralmente sem questionar o modo capitalista de organização e reprodução econômica e social? Há como compreender criticamente os fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos no mundo globalizado sem se dar conta de que nas últimas duas décadas houve o acirramento da tensão característica do capitalismo em sua fase inicial? Ora, se a globalização nos trouxe, “por um lado, o desenvolvimento gigantesco das forças produtivas, gerando o acúmulo de riquezas”, por outro, contribuiu para “o aumento da pobreza e da injustiça social, sobretudo nos países periféricos” (DALBOSCO, 2007, p. 107). Consequência do pensamento crítico seria a constatação de que os efeitos nocivos do sistema sobre a classe trabalhadora são relativizados diante da crescente produtividade que se tem com o desenvolvimento contínuo das forças produtivas. Ao explicar Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016 134 a prioridade que concede ao contexto do trabalho, o currículo do Estado de São Paulo, em princípio, parece concebê-lo dentro dos parâmetros estruturais fundamentais do capital. Segundo o currículo, o valor e a importância do trabalho incidiriam em toda a vida escolar. Como formas dessa valorização, teríamos “o conhecimento do trabalho como produtor da riqueza e o reconhecimento de que um dos fundamentos da desigualdade social é a remuneração injusta do trabalho” (SEESP, 2008, p. 23). A Filosofia da Existência aprofundaria essa explicação fazendo, no mínimo, duas questões: trabalho como produtor da riqueza de quem? E, se o capitalismo se caracteriza pela propriedade privada dos meios de produção com o objetivo de obter lucro, dividindo, assim, a sociedade em duas classes fundamentais, seria possível de fato haver uma remuneração justa do trabalho a ponto de abolir a desigualdade social? Está claro que o currículo paulista, como qualquer outra reforma educacional oficial do país, não visa a uma transformação social radicalmente qualitativa. De acordo com Mészáros (2008, p. 27), “[...] é necessário romper com a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente”. 4. A DISCIPLINA DE FILOSOFIA NO CURRÍCULO DO ESTADO DE SÃO PAULO Nossa tentativa de situar a educação pública do Estado de São Paulo no contexto das transformações técnico-científicas nos levou à constatação da importância que os processos educacionais têm na reprodução do sistema político-econômico vigente. O homem que se quer formar ou construir no mundo contemporâneo tem que necessariamente corresponder às exigências inalteráveis do capital, cujos parâmetros fundamentais são assimilados como dogmas inquestionáveis. Assim, mesmo conscientes dos efeitos nocivos do sistema, podemos demonstrar uma forte resignação diante do fato de que a crescente investigação técnica e o contínuo investimento na pesquisa científica estão mais a serviço da economia do que da humanidade e do meio ambiente. Sem dúvida, “[...] a novidade central que o capitalismo tardio apresenta é a transformação do poEducação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016 135 der técnico-científico na principal força produtiva e na forma mais eficiente de ideologia” (DALBOSCO, 2007, p. 107). Em meio a esse contexto, queremos agora refletir sobre o papel da Filosofia no currículo do Estado de São Paulo. Enquanto disciplina obrigatória, seria ministrada como simples doutrinação ou teria condições de proporcionar o senso crítico e a consequente emancipação do professor e do aluno em relação aos processos sociais de reprodução da ordem estabelecida? Qual seria sua importância, tanto do ponto de vista da SEESP quanto da Filosofia da Existência, para a formação do aluno? Como se relacionaria com os princípios centrais do currículo estadual? Deixamos claro que nosso principal objetivo não é analisar a disciplina a partir da prática em sala de aula, mas faremos algumas inferências acerca de como deve se dar essa prática em vista do desenvolvimento da autonomia intelectual do aluno. Em todo caso, o que buscamos neste trabalho é a fundamentação teórica e crítica do retorno da Filosofia ao currículo do Estado de São Paulo. Inicialmente, é importante destacar que os processos de discussão e elaboração do currículo de Filosofia do atual Ensino Médio foram promovidos pela SEESP já nas décadas de 1980 e 1990. As discussões ganharam amparo legal quando em 1996 a LDBEN reconheceu os conhecimentos filosóficos como fundamentais para o exercício da cidadania. Mas só na primeira década do século XXI é que a disciplina se inseriu no currículo estadual com caráter obrigatório. Dessa forma, de 2005 a 2010, procurando compor o quadro do magistério, a SEESP abriu três concursos públicos para provimento de cargo de professor da educação básica II em várias disciplinas, dentre as quais a filosofia teve presença constante. Até 2007, os professores de Filosofia não dispunham de material didático para unificar os conteúdos essenciais a serem trabalhados nas escolas da rede pública estadual. A base para a elaboração dos planos de ensino, que variavam muito de escola para escola, encontrava-se nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio e em alguns livros didáticos tradicionais. Porém, em 2008, a SEESP, colocando em prática uma nova Proposta Curricular, distribuiu a todo o corpo docente cadernos organizados por Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016 136 bimestre e por disciplina, os quais contemplavam não apenas os conteúdos oficiais da escola estadual, mas também as competências e habilidades a serem desenvolvidas nos alunos com cada conteúdo. Em 2009, com a consolidação da proposta, os alunos receberam os cadernos de cada disciplina com textos e atividades voltados para o desenvolvimento das competências e habilidades previstas. E, desde 2011, alunos e professores recebem um livro didático de Filosofia para complementação e aprofundamento dos conteúdos. Com isso, a Secretaria (2008, p. 8) procurou “cumprir seu dever de garantir a todos uma base comum de conhecimentos e competências, para que nossas escolas funcionem de fato como uma rede”. Como pontos de unidade, o currículo estadual apresenta seis princípios centrais: uma escola que também aprende; o currículo como espaço de cultura; as competências como referência; a prioridade para a competência da leitura e da escrita; articulação das competências para aprender; e articulação com o mundo do trabalho. Nesses princípios, o destaque concedido às competências é irrefutável. Segundo a Secretaria (2008, p. 14), isso acontece porque é com elas que o aluno “contará para fazer sua leitura crítica do mundo, para compreendê-lo e propor explicações, para defender suas ideias e compartilhar novas e melhores formas de ser, na complexidade em que hoje isso é requerido”. Assim, entendemos que o retorno da Filosofia ao Ensino Médio é pensado segundo sua importância para o desenvolvimento de determinadas competências e habilidades. Afinal, ela propõe reflexões que ajudam o aluno a “compreender melhor as relações sociais e, ao mesmo tempo”, inserir-se “no universo subjetivo das representações simbólicas, elevando a Educação a um nível político-existencial, capaz de superar a mera transmissão e aquisição de conteúdos” (SEESP, 2008, p. 41), realizadas de forma mecânica e inconsciente. Diante de tudo isso, é interessante sabermos como foi pensada a prática de ensino da Filosofia para o Ensino Médio. Qual abordagem seria utilizada? A partir da História da Filosofia ou de Temas Filosóficos? Analisemos, então, o currículo oficial do Estado. Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016 137 Quadro 1. Conteúdos de Filosofia. 1ª SÉRIE DO ENSINO MÉDIO 1º Bimestre 2º Bimestre A Filosofia e outras formas de Por que estudar Filosofia? conhecimento: As áreas da Filosofia. Mito, Cultura, Religião, Arte, Ciência. 3º Bimestre 4º Bimestre Democracia e cidadania: origens, conceitos e dilemas; desigualdade Introdução à Filosofia Política. Teorias do Estado: Socialismo, social e ideológica; democracia e anarquismo e liberalismo. justiça social; os direitos humanos; participação política. 2ª SÉRIE DO ENSINO MÉDIO 1º Bimestre 2º Bimestre Introdução à teoria do indivíduo (John Locke, Jeremy Bentham e Introdução à ética: O eu racional; Stuart Mill); tornar-se indivíduo (Paul Autonomia e liberdade. Ricoeur e Michel Foucault). Condutas massificadas; alienação moral. 3º Bimestre 4º Bimestre Filosofia, Política e Ética: humilhação, Desafios éticos contemporâneos: velhice e racismo; homens e mulheres. A Ciência e a condição humana. Filosofia e educação. Introdução à Bioética. 3ª SÉRIE DO ENSINO MÉDIO 1º Bimestre 2º Bimestre O que é Filosofia: superação de Características do discurso filosófico: preconceitos em relação à Filosofia comparação com o discurso religioso. e definição e importância para a O homem como ser político. cidadania. A desigualdade entre os homens como O homem como ser de natureza e de desafio da política. linguagem. 3º Bimestre 4º Bimestre Características do discurso filosófico: Características do discurso filosófico: comparação com o discurso da comparação com o discurso científico. literatura. Três concepções de liberdade: Valores contemporâneos que cercam libertarismo, determinismo e dialética. o tema da felicidade e das dimensões pessoais e sociais da felicidade. Fonte: SEESP, 2011, p. 120-131. Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016 138 Podemos perceber que a SEESP orienta seus professores a trabalharem os conteúdos filosóficos a partir de determinados temas e não da História da Filosofia. Na visão da Secretaria (2008, p. 42-43), “não irá muito longe o professor que encerrar um pensador em uma espécie de caixa-preta, tentando isolar seu pensamento, imaginando que a arquitetura do texto, por si só, poderá levar a qualquer forma de compreensão ou reflexão”. Não que o currículo oficial do estado expresse uma avaliação depreciativa da História da Filosofia, mas, sem menosprezar sua importância, ela “não deve constituir a principal orientação para o ensino da disciplina na escola pública, pois é com o olhar voltado para o mundo que se aprende a pensar filosoficamente”. Sílvio Gallo, professor da Faculdade de Educação da Unicamp, nos ajuda a aprofundar um pouco mais a reflexão sobre o tipo de abordagem ideal na prática de ensino da Filosofia para a última etapa da educação básica. Segundo ele, podemos construir um currículo dessa disciplina em torno de pelo menos três eixos: um histórico, um temático e um problemático. O problema do primeiro “é que a chance de cair num ensino enciclopédico, apresentando um desfile de nomes de filósofos, pensamentos e datas, é muito grande”. Já o segundo parece uma abordagem mais apropriada para o nível médio, pois nela “os conteúdos são apresentados de forma temática, numa tentativa de torná-los mais próximos da realidade vivida pelos jovens”. Mas Gallo prefere a terceira alternativa, já que, além de abarcar as outras duas, ela “avança para além delas, pois toma a filosofia como uma ação, uma atividade, posto que se organiza em torno daquilo que motiva e impulsiona o filosofar, isso é, o problema” (GALLO, 2013, n.p.). O eixo problemático evitaria a doutrinação filosófica e ofereceria maiores condições para o aluno desenvolver o senso crítico diante das questões que surgem em sua realidade concreta. Mas, para isso, as aulas de filosofia teriam que seguir quatro etapas. Na primeira, denominada sensibilização, o professor propõe problemas que “devem ser vividos pelo aluno como problemas seus, que o mobilizem para fazer o movimento de pensamento”, usando “instrumentos que possam despertar nos jovens o interesse por aquele assunto, por um determinado tema”. Logo após, temos a etapa da Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016 139 problematização, na qual o professor tratará “de transformar o tema em problema”, colocando “em prática o sentido crítico e investigador da Filosofia, instigando os alunos a produzirem questões a partir do tema abordado”. Em seguida, na etapa da investigação, faz-se “uso da história da Filosofia, recorrendo a filósofos que, em sua época e em seu contexto, pensaram sobre o tema que está sendo abordado”. E na última etapa, chamada de conceituação, temos “o exercício da experiência filosófica propriamente dita”, onde “o estudante recria os conceitos estudados, refazendo ele mesmo o movimento de pensamento que levou à sua criação, desde o problema inicial” (GALLO, 2013, n.p.). Para a corrente existencialista, o eixo problemático é o ideal para um ensino de Filosofia que tenha em vista a emancipação do indivíduo, uma vez que supera a simples assimilação de conteúdos e a inútil “decoreba” de ideias e sistemas. 5. CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA DA EXISTÊNCIA PARA A EDUCAÇÃO E O ENSINO DA FILOSOFIA Certamente, uma preocupação recorrente nos longos debates sucedidos desde a década de 1980 ao início do século XXI sobre o retorno da Filosofia como disciplina do currículo do ensino médio gira em torno da seguinte questão: haveria um número suficiente de professores bem formados para suprir a grande demanda do Estado de São Paulo? Ressaltamos que a questão aponta para o aspecto quantitativo e qualitativo do professorado paulista. Seria um desastre integrar uma disciplina ao currículo obrigatório sem ter, no mínimo, um quadro satisfatório de profissionais para lecioná-la. Ao mesmo tempo, se a ideia é despertar o interesse dos alunos e incentivá-los a pensar filosoficamente, a qualidade do ensino é imprescindível. A própria SEE, ao elaborar sua Proposta Curricular em 2008, apontou essa preocupação. Lembramos que a questão não é se a formação acadêmica possibilitaria ao docente um domínio considerável dos conteúdos filosóficos, mas se o prepararia para fazer uso de uma metodologia de ensino apropriada à última etapa da educação básica. De Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016 140 qualquer modo, nos cursos que têm como foco principal a pesquisa científica e a docência no ensino superior, a preocupação com a prática na educação básica é minimizada. Procurando superar ao menos uma parte dessa defasagem, o currículo do Estado de São Paulo, por meio dos cadernos bimestrais do professor, oferece algumas pistas de como ensinar os conteúdos curriculares de uma maneira mais significativa para os jovens. Alguns cadernos apresentam, inclusive, a sensibilização do aluno como primeiro passo para uma boa aula de Filosofia, o que corresponde à etapa inicial proposta por Sílvio Gallo para uma abordagem problemática. Obviamente, o êxito da Filosofia no ensino médio depende de diversos fatores. Para Gallo (2013, n.p.), o professor deve, em primeiro lugar, ter claro para si mesmo o seu conceito de Filosofia, pois se espera que ele, no mínimo, “apresente coerência entre aquilo que ele entende por Filosofia e aquilo que ele ensina em sua prática escolar”. Para a SEESP (2008, p. 41), “é interessante perguntar como o professor de Filosofia vê sua presença no universo escolar”, isto é, “qual o papel, ou papéis, que ele pode e deve desempenhar”. O que não se questiona é a importância da disciplina para a construção da cidadania e formação da consciência crítica dos estudantes. Além disso, pode-se afirmar sua relevância na ampliação do significado e dos objetivos sociais e culturais da Educação. Nesse sentido, sob o ponto de vista da corrente existencialista, faremos uma breve reflexão sobre o papel da Filosofia não apenas na formação do educando, mas também do educador. Indubitavelmente, o ensino de filosofia não tem como objetivo essencial reproduzir um conhecimento meramente enciclopédico ou formar mão de obra para o mercado de trabalho nos moldes do capital, mas sim promover a autêntica emancipação dos educandos. E, para cumprir seu objetivo, a filosofia deve partir da realidade concreta do educando, ou não fará sentido algum para ele. Mas todo aquele que é formado para lecionar essa disciplina reconhece seu valor? Ora, “não se educa o novo educador para ser filósofo se, em sua realidade, ele não reconhece a reflexão filosófica como parte de seu amadurecimento intelectual” (SILVA, 2008, p. 38). Isso tornaria infrutífero seu trabalho em sala de aula. Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016 141 Saviani (1996), pensador da corrente existencialista, reserva o primeiro capítulo da sua obra “Educação: do senso comum à consciência filosófica” para refletir justamente sobre a importância da filosofia na formação do educador. O desenvolvimento da sua reflexão parte de uma pergunta que intriga os pensadores desde os primórdios da filosofia: “que é que leva o homem a filosofar?”. Procurando responder a essa pergunta, Heidegger (2012, n.p.) nos lembra que pensadores gregos como Platão e Aristóteles “chamaram a atenção para o fato de que a filosofia e o filosofar fazem parte de uma dimensão do homem, que designamos dis-posição”. Segundo eles, o páthos (espanto) é a arkhé (causa) do filosofar. Mas essa arkhé não é deixada para trás no surgir da filosofia; ela se refere “àquilo de onde nasce o filosofar e que constantemente determina sua marcha”. Considerando que o homem só se descobre existindo no mundo, Saviani afirma que o ato de filosofar surge quando algo interrompe o curso normal e espontâneo da existência humana, alterando, assim, a sua sequência natural. Sentindo-se obrigado a descobrir o que é esse algo, ao qual damos o nome de problema, o homem é levado a filosofar. Nas palavras do próprio Saviani (1996, p. 10), “eis, pois, o objeto da filosofia, aquilo de que trata a filosofia, aquilo que leva o homem a filosofar: são os problemas que o homem enfrenta no transcurso de sua existência”. Mas, para entendermos isso profundamente, precisamos superar os usos correntes da palavra problema, que a identificam com uma simples ou complexa questão cuja resposta pode ser ou não conhecida, e recuperar a sua problematicidade. De acordo com Saviani (1996, p. 13-14), “quando o homem considera as manifestações de sua própria existência como algo desligado dela, ou seja, como algo independente do processo que as produziu, ele está vivendo no mundo da ‘pseudo-concreticidade’” e acaba tomando “por problema aquilo que é apenas manifestação do problema”. Na verdade, “algo que eu não sei não é problema; mas quando eu ignoro alguma coisa que eu preciso saber, eis-me, então, diante de um problema”. É a necessidade de conhecer algo que me espanta e incomoda minha alma no transcurso da minha existência que define uma questão como sendo realmente problemática. Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016 142 Partindo dessas considerações, podemos entender melhor a importância da atividade filosófica na formação do educador, o qual não deveria abrir mão de uma constante reflexão crítica sobre os problemas da realidade escolar. Com o método característico da corrente existencialista, a Filosofia da Educação torna-se mais apta a cumprir sua tarefa de: [...] oferecer aos educadores um método de reflexão que lhes permita encarar os problemas educacionais, penetrando na sua complexidade e encaminhando a solução de questões tais como: o conflito entre “filosofia de vida” e “ideologia” na atividade do educador; a necessidade da opção ideológica e suas implicações; o caráter parcial, fragmentário e superável das ideologias e o conflito entre diferentes ideologias; a possibilidade, legitimidade, valor e limites da educação; a relação entre meios e fins na educação (como usar meios velhos em função de objetivos novos?); a relação entre teoria e prática (como a teoria pode dinamizar ou cristalizar a prática educacional?); é possível redefinir objetivos para a educação brasileira? Quais os condicionamentos da atividade educacional? Em que medida é possível superá-los e em que medida é preciso contar com eles? (SAVIANI, 1996, p. 23). Dispondo-se a refletir criticamente sobre esses problemas, o professor exercita o ato de filosofar, o qual não se resume à busca por um produto acabado, mas exige que se faça a experiência de produzir conceitos. E o que o currículo do Estado de São Paulo espera da Filosofia é justamente que ela possa “assumir uma de suas principais funções, a de ser uma ferramenta conceitual, produtora de síntese, com o que animaria o debate multidisciplinar, elevando os padrões do Ensino Médio” (SEESP, 2008, p. 43). Para a concretização de tal expectativa, pode-se aplicar o currículo a partir do eixo problemático, cujos passos didáticos conduzem o aluno à etapa final da atividade filosófica que é a conceituação. Assim, as aulas superam a perspectiva conteudista e promovem o desenvolvimento da autonomia e o exercício da liberdade de pensamento tanto do educando quanto do educador em vista de uma formação para além da lógica do capital. Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016 143 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Repensar a Filosofia como disciplina do currículo oficial do Estado de São Paulo a partir da corrente existencialista definitivamente não é uma tarefa que se esgota em poucas páginas. Afinal, como vimos, a pergunta sobre o papel e a importância da Filosofia no Ensino Médio não pode ser satisfatoriamente respondida sem considerarmos a situação da rede pública estadual nos últimos anos, cuja análise se torna superficial se ignoramos os desafios da educação escolar brasileira no contexto das transformações técnico-científicas. Ao discutirmos as mudanças impostas à sociedade contemporânea pela reestruturação do modo de produção capitalista, constatamos a íntima ligação entre os processos educacionais e os processos sociais mais abrangentes de reprodução. Assim, descobrimos que qualquer reforma na área da educação fica impossibilitada de cumprir sua vital e imprescindível função transformadora se não conseguir romper com a lógica do capital. As inferências que fizemos neste trabalho acerca das questões anteriores carecem, é claro, de uma abordagem mais ampla, mas acreditamos serem suficientes para justificar a relevância da Filosofia não apenas para desenvolver a autonomia intelectual do educando como para potencializar a reflexão crítica do educador sobre os problemas reais da educação. Munidos com as ferramentas da corrente existencialista, os professores estarão mais aptos a identificar os mecanismos de dominação e reprodução da concepção mercadológica no meio educacional que mascaram as contradições existentes na sociedade neoliberal. Entretanto, com salários pouco atrativos, más condições de trabalho e jornadas semanais cansativas, os professores de Filosofia da rede pública veem, muitas vezes, sua atividade reflexiva perder a profundidade e sua disciplina tornar-se improdutiva para os alunos. Seria puro idealismo refletir sobre o valor de qualquer disciplina do currículo sem preocupar-se com a valorização daqueles que têm a delicada tarefa de conectar as matérias curriculares à concretude da vida. Enfim, apoiados no método histórico dialético da Filosofia da Existência, educadores e educandos devem fazer o exercício constante de problematizar, investigar e conceituar a realidade em Educação, Batatais, v. 6, n. 1, p. 123-145, jan./jun. 2016 144 que vivem. Devem aprimorar a capacidade humana de perguntar sobre as coisas. E a pergunta sobre o modo pelo qual a educação é produzida obriga o filósofo a historiá-la. Caso negligencie essa obrigação, “em vez de instrumento de superação da desigualdade, a educação, por desconhecer os determinantes inerentes à sociedade que a engendra, acabará por cumprir a função de legitimadora da desigualdade” (SAVIANI, 1996, p. 84). REFERÊNCIAS ABREU, M. M. Solidariedade e participação no contexto da atual reestruturação capitalista: aspectos conceituais e questões pertinentes à classe trabalhadora. Disponível em: <http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinppII/pagina_PGPP/ Trabalhos2/Marina_Maciel_Abreu130.pdf>. Acesso em: 12 maio 2013. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9394/96, de 20 de dezembro de 1996. ______. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: Ensino Médio. Brasília: MEC/SEF, 2000. DALBOSCO, C. A. Pedagogia filosófica: cercanias de um diálogo. São Paulo: Paulinas, 2007. (Coleção Educação em Foco). GALLO, S. Chegou a hora da filosofia. 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