12 CIDADES CEGUEIRA E HOSPITALIDADE

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LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 191-200
Cidades, cegueira e hospitalidade
Márcia de N.S. Ferran
A visão é pouco discutida enquanto meio de controle, gestão da sociedade e freio às pulsões mais anímicas do ser humano. O ápice deste fenômeno
é imaginado no romance Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago. No livro
transformado em filme, o escritor, através de uma parábola, leva suas personagens
a uma situação limite (borderline), onde ter visão significa guiar, decidir, julgar,
mas também ter o triste privilégio de assistir ao colapso da civilidade. O colapso
ético e a calamidade urbana vêm em par.
Aubervilliers é uma cidade-subúrbio no norte de Paris, repleta de conjuntos habitacionais e vestígios de chaminés que, em 2005, atraiu um pouco mais
de estigma nas manchetes mundiais sobre os episódios de incêndios e revoltas,
como culminância de alarmantes taxas de desemprego jovem entre filhos de imigrantes.
Quais são as possíveis relações entre a cidade em colapso imaginada em
Ensaio sobre a Cegueira e Aubervilliers? Tomando a cidade francesa como panode-fundo, iremos aproximar a ordem do fantástico, a cegueira branca de Saramago, à problemática ética da hospitalidade levantada por Emmanuel Lévinas, para
quem o sentido da visão é antes de tudo a possibilidade de encontro com o rosto
do outro, e é neste encontro que reside o limiar entre paz e Guerra.
Lévinas – o respeito ao rosto do outro
De Emmanuel Lévinas, partimos de um conjunto de noções que conduzem a valorizar e a conferir toda uma significação especial à idéia de hospitalidade
ao precisá-la enquanto acolhimento de um outro completamente diferente, denominado “Outrem”. É no livro Totalidade e Infinito que se desenvolve a trama entre
os temas do acolhimento, do estrangeiro, do rosto e, enfim, da hospitalidade.
No seu prefácio a Totalidade e Infinito, Lévinas diz que o livro se apresenta como uma “defesa da subjetividade... fundada na idéia de infinito”. Prosseguindo, o autor acrescenta que ao longo desta obra, será questão de distinguir
“entre a idéia de totalidade e a idéia de infinito”. E, ao afirmar o primazia filosófica da idéia de infinito, ele vai relatar de que modo “o infinito se produz na
relação do Mesmo com o Outro e como, intransponível, o particular e o pessoal
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magnetizam de algum modo o próprio campo onde esta produção do infinito se
efetua” (Lévinas, 2003, p.11).
Vejamos então um parágrafo muito significativo onde são introduzidas
algumas palavras-chave:
Colocar o transcendente como estrangeiro e pobre é proibir a relação metafísica
com Deus de realizar-se na ignorância dos homens e das coisas. A dimensão do
divino abre-se a partir do rosto humano. Uma relação com o Transcendente –
contudo livre de qualquer influência do Transcendente – é uma relação social
(Lévinas, 2003, p.76).
Podemos transpor a incitação acima para o contexto de afirmação da diversidade cultural dos nossos dias, que não depende só de organismos e instituições nacionais e internacionais. É necessária uma abertura pessoal profunda em
direção a um outro, diverso, representante de uma alteridade absoluta. Abertura
que inclui a proximidade física e corporal e que tem no rosto a instância “fundadora”, como um expediente insubstituível para “transcender”. Em outras palavras,
ele nos indica a importância de ir ao empírico para aceder à filosofia; e ele reinaugura, sem deixar de invertê-lo, o lugar daqueles que não tinham direito à cidade
na tradição platônica. Atualmente, o desafio é entender mais abrangentemente o
clássico “estrangeiro”, atualizando-o no migrante, no imigrante, pobre e em todos
cuja subjetividade diverge da nossa, do “padrão”, do “mesmo”, e que pode assim
ser representado também por alguém cego, que tem uma relação diferenciada com
o espaço da cidade.
Recorremos a Jacques Derrida nas suas análises dos textos lévinassianos – complexos, não raro herméticos – para insistir sobre a coerência e a força
próprias do pensamento do autor naquilo que concerne a uma construção passo a
passo da importância da hospitalidade, palavra escolhida por Derrida para titular
sua própria homenagem a Lévinas.
O ponto de vista que associa prematuramente a vontade de hospitalidade
à posse concreta de uma moradia é equivocada, e não corresponde ao pensamento
de Lévinas. Com efeito, segundo ele, a hospitalidade precede qualquer propriedade.
René Schérer (2005), outro filósofo, investiga a essência filosófica da
hospitalidade, em uma passagem sintomaticamente nomeada “entre a residência
e a tenda”. A hospitalidade não estaria necessariamente numa nem noutra, estaria
em todos os lugares potencialmente. Schérer recorre primeiro a Heidegger que, a
partir de um poema de Hölderlin, liga a hospitalidade à possessão se não de uma
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residência, pelo menos de uma terra. Schérer observa que esta ligação entre o cultivo da terra e certo sentido de possibilidade sine qua non da fixação do homem
sobre a terra e, daí mesmo, um sentido de hospitalidade, é característico de poetas
da época de Virgílio e de Hesíodo. No entanto, o autor não se satisfaz com esta
limitação e explora outro caminho que, ao contrário, vai vincular a hospitalidade
a um desenraizamento, aos povos nômades que acolhem os viajantes na sua tenda, sem grandes infra-estruturas, mas sempre com algum alimento a oferecer, na
atitude deliberada correspondente de “abrir a porta”; mesmo que sua condição ali
seja quase tão sem raízes quanto o do viajante. Na verdade, o nômade pratica uma
generosidade que é a condição mesma de sua existência singular. Em seus hábitos mais arraigados, há uma percepção intrínseca de sua interdependência com o
outro, e da alegria que o encontro com o outro possibilita, da mesma ordem da
“transcendência” no parágrafo citado pouco acima.
Nomadismo e lugar público
Embora bem longe do contorno do poema de Hölderlin, realidades de
fluxos de pessoas no território do mercado globalizado contemporâneo, nomadismos de diferentes ordens e processos interferem diretamente nas relações pessoais
e coletivas. Eles flagram os limites da tentativa de “decalcar” para os dias de hoje
o antigo modelo de cidadania, baseado na fixidez das pessoas como regra, e na
mobilidade como exceção. A ágora contemporânea não é mais uma centralidade
e está pulverizada em várias partes; o lugar público pode ser considerado o lugar
do comum? Passemos rapidamente por umas pistas...
Com uma visão crítica, Otília Arantes (1995), no livro O Lugar da Arquitetura depois dos Modernos, delineia, embora com certo pessimismo, o que seria
uma atual ideologia do “lugar público”. Nela, agentes privados e públicos unem
suas forças pelo embelezamento e transformação da cidade através de um discurso que defende a capacidade de criação de memória dos espaços públicos, não
raro através de formas monumentais. Esta ideologia teria sido bem empregada e
servido de paradigma na intervenção urbana de Barcelona por ocasião dos Jogos
Olímpicos em 1992.
No intuito de devolver a cidade moderna à coletividade expropriada ao longo do
processo de constituição das grandes aglomerações urbanas contemporâneas,
arquitetos e urbanistas entregaram-se, particularmente a partir de meados dos
anos 60, a uma verdadeira obsessão pelo lugar público, em princípio o antídoto
mais indicado para a patologia da cidade funcional (Arantes, 1995, p.97).
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Já em Condição pós-moderna, David Harvey (1992) argumenta que se
a rua foi utilizada pelo movimento moderno para espetáculos políticos, nos últimos anos também voltou-se a apostar, agora por novos meios, no poder social do
espetáculo. Harvey introduz assim o tema do espaço público situando o início do
espetáculo urbano nas cidades americanas no final da década de 60, quando diversas manifestações ocorriam pelos direitos civis, contra a guerra e também contra
os projetos modernistas de habitação e de renovação urbana.
Ora, Aubervilliers, nossa cidade-de-fundo, é exatamente um retrato do
palimpsesto de tipologias de habitação social construídas à sombra das utopias
modernas na França. Desde que foram construídas, estas cidades exacerbam a
tensão entre espaço privado e espaço público. O espaço da rua, o “lugar do comum” hoje em Aubervilliers, é intrinsecamente perpassado pela complexidade da
convivência de grupos sociais de origens culturais diversificadas.
Cegueira à hospitalidade
Schérer pergunta se a hospitalidade, finalmente, não seria “uma sensibilidade específica ao outro”. Esboçada nestes termos, é um atributo de gratuidade
que aí se depreende, o indivíduo despossuído, pobre, é teoricamente tão emissor
de hospitalidade quanto um rico proprietário. Um largo arco de posturas individuais abre-se então para mostrar justamente que é antes daquele despossuído de
riqueza material que pode emergir esta hospitalidade especial.
Aqui, pensamos que uma pausa sobre a “previsibilidade” ou sobre a “programabilidade” de um sentido da hospitalidade faz-se necessária. Ao focalizar a
imagem da “porta” no encadeamento de noções em Lévinas, que conduzem à
idéia de acolhimento e, em seguida, àquela de hospitalidade, Derrida alerta sobre
a importância, para um verdadeiro acolhimento, de condicionar uma porta aberta
a uma tomada de decisão espontânea, que seria “tudo menos uma simples passividade, o contrário de uma abdicação da razão” (Derrida, 1997, p.57).
Fica claro o problema que esta compreensão coloca para a filosofia ética,
já que não se pode depreender “soluções”, regras ou planejamento, no que seria
uma deontologia da hospitalidade!
O “bastão” está claramente na mão de cada pessoa e não nas mãos de
gestores de qualquer política, onde a racionalidade técnica é o princípio básico,
ainda que tão falido, como vários cientistas políticas atestam !!!
É sobre uma alteridade originária que repousam os verdadeiros fatores
em jogo na hospitalidade. Derrida sublinha que Lévinas fala de uma alteridade
radical que supõe uma separação inicial e que ele renomeia “a metafísica”, como
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ética ou filosofia primeira que acolhe a idéia de infinito (transcendente) no seio do
finito (palpável, humano). Este acolhimento que, rompendo com o entendimento
tradicional da filosofia, acolhe a “finitude” já em si uma hospitalidade filosófica
(DERRIDA, 1997, p.88). Este deslocamento, dentre outras escolhas de noções,
faz justamente que Lévinas seja um autor considerado complexo e de difícil “aplicabilidade”.
A dificuldade imposta pelo pensamento de Lévinas, repara ainda Derrida,
é o limite sutil e mesmo ambivalente entre uma atitude de acolhimento totalmente
espontânea e somente assim verdadeiramente oriunda de uma ética pessoal digna
do nome hospitalidade e, de outro lado, um acolhimento resultante de um quadro
jurídico impositivo, que foi justamente o que guiou a construção tanto de conjuntos habitacionais em Aubervilliers em tantas outras cidades européias, assim
como os hospícios e hospitais públicos na cidade em colapso de Saramago !!!
Ao fundo, conjunto habitacional Albenet, em Aubervilliers.
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Aubervilliers: Palimpsesto habitacional
Aubervilliers: atividade artística em antigo galpão
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O medo do rosto do outro
Um segundo tema que Lévinas relaciona à possibilidade da hospitalidade é a aproximação do rosto do outro; o rosto como sede do mistério do outro e
como primeira instância da relação com o desconhecido. Então, primeira barreira
e primeiro desvendamento, tratar-se-á agora de um momento quase sagrado de
aceitação do outro. Mais fundamentalmente – e aqui trata-se de um eixo do caráter
essencialmente ético do pensamento de Lévinas, do qual não podemos nos afastar
demais – o rosto engendra a tendência ou não ao assassinato, ele suscita a opção
ética entre fazer a guerra ou fazer a paz. Lévinas está se referindo a uma opção
diária, uma conduta cotidiana individual, como o começo ou a raiz, daí sua essência radical. Não é apenas uma paz suficiente e conveniente ao comércio internacional, como era a paz preconizada por Kant, e por isto ainda assunto de Estado.
Assim, mesmo que esta paz não seja nem puramente institucional nem puramente
jurídico-política, para Lévinas o começo de tudo repousa no acolhimento do rosto
do outro (pobre, estrangeiro ou os dois, simultaneamente) na hospitalidade.
Acreditamos que ele quer indicar que, na ética da hospitalidade, o aspecto do rosto do outro não influirá no seu acolhimento, ou seja, saímos de um
postulado fenomenológico onde a visão tem alguma primazia; ao invés disto, é
a relação pela palavra que deve ser eticamente acolhedora, prescindindo de referências às histórias pessoais passadas, ao “contexto”. Ora, ao prescindirmos da
visão como “plataforma” estamos também potencialmente nos referindo à uma
certa cegueira !
A hospitalidade é, portanto, um registro que atravessa criticamente a
dimensão urbana tanto quanto a dimensão cultural e vem abalar as lógicas da
gestão provinda da indiferenciação e padronização inerentes à cidade-espetáculo.
Ela abala a cidade-espetáculo que se transforma em caos logo que a cegueira se
instaura, anulando o “poder de polícia” imediato operado pelo olhar coletivo. A
cidade-espetáculo é aniquilada quando a sociedade não tem mais uma tela de TV
para atribuir-se a sua própria medida. Processo que Guy Debord prognosticou
como irreversível, à medida do espraiamento universal da sociedade do espetáculo, das massas tornadas espectadores.
É aqui que podemos nos aproximar ao máximo da cidade de José Saramago e o papel desempenhado pela mulher do médico, a única pessoa que não é
acometida pela misteriosa cegueira branca mundial. É sobre esta personagem que
se concentram os dilemas de lidar com o rosto do outro, vendo-o em sua fragilidade máxima, enquanto “tornado cego”. E esta postura de acolher o rosto do outro,
tem como “palco” o espaço de um antigo hospital, espaço similar ao hospício,
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espaço disciplinador, foucaultiano, um lugar ostensivamente inóspito, diametralmente oposto a uma tenda, ou a uma casa. Interessante também é reparar que esta
função acolhedora na escolha de Saramago é desempenhada por uma mulher, e
que o “feminino” é o ápice da hospitalidade para Lévinas !!!
Paradoxo, idéia radical e necessária nos dias atuais: a verdadeira hospitalidade seria, portanto, não-programável!
No livro de Saramago, a hospitalidade desta personagem, ao mesmo tempo guia e “gestora” da crise ética que se desenrola, acontece imprevisivelmente nas
dependências em vias de degradação de um espaço-fantasma, um espaço que vai
paulatinamente se tornando um espaço de exilados, subjetiva e objetivamente.
Esta condição de confusão e deterioração entre exílio e refúgio é uma
condição bastante atual e significativa para as dinâmicas urbanas complexas. Assim, foi no livro Além do versículo – leituras e discursos talmúdicos, no qual
Lévinas elabora uma análise sobre as “cidades-refúgios” que nos inspiramos para
esta livre abordagem...
As cidades-refúgio, instituição bíblica, seriam cidades que acolhem todos
aqueles que teriam cometido homicídio involuntário e que, apesar da ausência de
intenção criminosa de seus atos, seriam perseguidos pelos conhecidos das vítimas,
os chamados “vingadores do sangue”, a quem, por outro lado, seria acordado um
direito parcial. Este direito parcial se origina, por seu turno, do entendimento que
vê no homicídio involuntário, igualmente uma falta de atenção, de prudência, em
suma: um erro. É devido à prevalência do direito pleno sobre este direito parcial,
que uma Lei designa as cidades-refúgio onde o matador se esconde e onde o “vingador do sangue” terá mais dificuldade de o encontrar. Uma vez que este direito
parcial acordado ao “vingador de sangue” permanece até o fim do pontificado do
avô contemporâneo ao matador, o lugar de refúgio torna-se também um exílio, no
sentido de uma sanção. Lévinas destaca o duplo efeito da cidade-refúgio:
Há então, na cidade-refúgio, proteção da inocência que é também punição do
objetivamente culpado. Os dois ao mesmo tempo [...] A imprudência, a falta de
atenção, limitam a nossa responsabilidade? (LEVINAS, 1982, p.56)
Na verdade, se esta imagem da “cidade-refúgio”, oriunda do Talmude81,
resta um caso-limite e hipotético, onde justamente uma certa homogeneidade re81 O Talmud é a versão escrita das lições e das discussões dos doutores rabinos que ensinavam
na Palestina e na Babilônia nos séculos que precederam e seguiram o início da nossa era, doutores que continuavam provavelmente antigas tradições. A Thora, uma parte do Talmud onde se
insere a passagem sobre as cidade-refúgio, é considerada como exprimindo o cerne mesmo da
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ligiosa reinaria, o próprio Lévinas lança sua correlação aos dias atuais numa multiplicação de diásporas:
Estas mortes, cometidas sem que os matadores as tenham querido, não se produzem por outro meio que não a lâmina que se solta do machado e vem derrubar
o passante?
Na nossa sociedade ocidental, livre e civilizada, mas sem igualdade social, sem
justiça social rigorosa, será absurdo se perguntar se as vantagens da quais dispõem os ricos frente aos pobres – e todo o mundo é rico frente à alguém no
Ocidente –, se estas vantagens, paulatinamente, não são elas próprias a causa
de alguma agonia, de certa parte?
Não existem, em alguma parte do mundo, guerras e matanças que são a conseqüência disto? Sem que nós daqui, habitantes de nossas cidades-capitais sem
igualdade, é certo, mas protegidas e abundantes-, sem que nós daqui, tenhamos
querido mal à quem quer que seja?
O vingador ou o redentor de sangue “de coração aquecido” não ronda ao nosso
redor, sob forma de cólera popular, de espírito de revolta ou mesmo de delinqüência em nossos subúrbios, resultado do desequilíbrio social no qual nós estamos instalados?
As cidades onde nós moramos e a proteção que, legitimamente, em razão de
nossa inocência subjetiva, nós encontramos na nossa sociedade liberal (mesmo
se nos a encontramos um pouco menos do que outrora) contra tantas ameaças
de vinganças sem fé nem lei, contra tantos corações inflamados, não serão elas,
de fato, a proteção de uma semi-inocência ou de uma semi-culpabilidade, – tudo
isto não faz das nossas cidades, cidades-refúgio ou cidades de exilados? (LEVINAS, 1982, p.57)
Ao deixar esta pergunta aos nossos ouvidos, Lévinas estabelece equivalência em um só ato, inequívoca, entre as cidades-capitais “abastadas” de todo o
mundo e, por conseguinte, entre migrantes, imigrantes e exilados pobres de todo
o mundo. Ele caracteriza uma relação de forças onde a “inocência subjetiva” não
pode mais se eximir dos danos objetivos que, numa engrenagem já previsível,
fazem das cidades contemporâneas apenas um outro cenário de sangrentos convontade de Deus à qual devem obedecer os judeus ditos ortodoxos. “O Talmud (...) consignado
por escrito entre o séc. II e o fim de século V da nossa era – é nos seus sessenta e oito tratados,
um texto imenso, de mais de três mil páginas in-folio coberto de comentários e comentários dos
comentários”
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frontos. Nem se eximir de estar sempre fechando os olhos, que são usados não
no seu potencial de tecer encontros como proposto por Lévinas, mas apenas para
espetacularizar o medo do encontro, tornando o espaço do coletivo um espaço da
fuga do rosto do outro... olhares de través, olhares baixos...
É urgente repensarmos nossas cidades atuais como potencialmente cidades-refúgio e cidades-exílio, onde lidar com cultura é cada vez mais lidar com
multilingüismo, intraduzibilidade e onde a cegueira mais perversa é a cegueira a
este estado de coisas. O direito de ir e vir, a dinâmica dos fluxos humanos está novamente posta à prova em 2008, no que tange à compreensão dos países europeus
que vêm deliberando e se cegando em matéria de humanismo.
Ora, o que são os episódios de eclosão de revoltas e depredação urbana
senão protestos reativos a uma cegueira crescente, completamente impermeável
à hospitalidade ???
Referências
ARANTES, Otília. O Lugar da Arquitetura depois dos Modernos. São Paulo:EDUSP,
1995.
DERRIDA, J. Adieu à Emmanuel Lévinas. Paris: Galilée. 1997.
______ Cosmopolites de tous les pays, encore un effort. Paris: Galilée, 1997.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola,1992.
LEVINAS, E. Totalité et Infini – essai sur l’extériorité. Paris: Le Livre de Poche,
2003.
LEVINAS, E. L’au-delà du verset. Lectures et discours Talmudiques. Paris: Les éditions de minuit, 1982.
SCHERER, René. Zeus Hospitalier. Éloge de l’hospitalité. Éditions de la Table Ronde, 2005.
Márcia de N.S. Ferran é arquiteta, mestre em Urbanismo pelo PROURB/UFRJ,
doutora em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA e em Filosofia pela Université de Paris1 –
SORBONNE. Implantou e coordenou eventos científicos e culturais na França como o I Rencontre Culture em 2004 na Embaixada do Brasil e o Ciclo de Palestras científicas APEB-FR
– Associação de pesquisadores e estudantes brasileiros na França. Foi convidada do programa
Courants du Monde promovido pela Maison des Cultures du Monde, Paris em dez/ 2001. Desde
1999 tem pesquisado projetos culturais e artísticos em subúrbios na França e no Brasil. É Consultora da Secretaria de Cultura do Maranhão para o Ano da França no Brasil 2009.
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