Direitos do Homem em Emmanuel Lévinas: A Responsabilidade por Outrem Dr. Camilo José d'Ávila Couto Direitos do Homem. A Liberdade como Direito do Homem. A Liberdade em Emanuel Kant. Direito, Justiça e Responsabilidade por Outrem. Os Direitos do Homem a partir da aproximação da idéia de Deus. O Homem, a relação com o Outro e os Direitos à Personalidade. A Responsabilidade por Outrem, o Ato de Corrupção do Administrador Público e o Imperativo “Não Matarás”. Conclusão. 1 INTRODUÇÃO O primeiro caminho a ser trilhado refere-se ao verdadeiro significado do direito do homem, do direito à livre vontade do homem, segundo as reflexões do filósofo Emmanuel Lévinas. Não obstante, ab ovo, faz-se necessário discorrer, ainda que sucintamente, sobre o criador de um dos pensamentos mais originais e fortes dos últimos tempos, o filósofo judeu Emmanuel Lévinas. Nasceu em Kovno, Lituânia, no ano de 1906. Faleceu na cidade de Paris, França, em 25 de dezembro de 1995. A raiz de seu pensamento filosófico é o humano do humano, sendo o centro do mesmo a relação intersubjetiva. Seu objetivo maior é a saída do ser, o rompimento com o círculo egoísta de uma filosofia que vem desde Parmênides até Heidegger. Lévinas vai de encontro a todas as forças centrípetas do Eu, o idealismo, o subjetivismo, o Kantismo, até o próprio existencialismo.1 Envereda pelo caminho oposto ao solipsismo, repensando a razão, a intersubjetividade, causadora da tragédia cotidiana da guerra e da violência, fator impeditivo da construção da paz sobre os alicerces da justiça como responsabilidade de cada um e, nesta, a alteridade, com a qual identifica que a ontologia é superada pela ética, tornando-se filosofia primeira, capaz de inspirar e sustentar uma nova ordem humana e institucional.2 A ética é portanto a filosofia primeira, a estrutura mais originária da realidade, é o lugar onde nasce a subjetividade, como refém do Outro que a torna responsável.3 Emmanuel Lévinas não faz ontologia, não faz síntese nem sistema, não conceitua nada, pois conceituar é apreender, é gerar totalidade, mas vislumbra a ética da alteridade, definindo a natureza da relação ética que une cada homem ao seu próximo. Lévinas é essencialmente humanista. Tenta desvendar o humano do humano. Humanismo a partir do Outro. 2 DIREITO DO HOMEM A consciência ocidental foi essencialmente marcada por dois momentos. Primeiro, a descoberta dos direitos que se relacionam à própria condição do ser homem, independentemente de certas qualidades como: nível social, força física, intelectual e moral, virtude e talentos, pelos quais os homens diferem entre si. Segundo, pela elevação destes direitos ao nível de princípios fundamentais da legislação e da ordem social. Desta forma, os direitos do homem estão unicamente e simplesmente ligados à condição de ser 1 PAIVA, Márcio. Subjetividade e infinito: o declínio do cogito e a descoberta da alteridade. Síntese - Revista de Filosofia, Belo Horizonte, Edições Loyola, v. 27, n. 88, p. 228, 2000. 2 PIVATTO, Pergentino Stefano. Apresentação da Obra Entre nós: ensaios sobre a alteridade, de autoria de Emmanuel Lévinas Petrópolis: Vozes, 1997. p. 10/11. 3 PAIVA, Márcio. Subjetividade e infinito: o declínio do cogito e a descoberta da alteridade. Síntese - Revista de Filosofia, Belo Horizonte, Edições Loyola, v. 27, n. 88, p. 228, 2000. homem. Basta ser homem para ter direitos, não importando suas diferenças, seus “acidentes”, em uma linguagem aristotélica. Vale ressaltar que, apesar de terem sua expressão nos imperativos bíblicos “não matarás” 4 e “amarás ao estrangeiro”, somente após milênios tais direitos ligados à humanidade do homem entraram no discurso jurídico primordial de nossa civilização. Conclui-se, então, que tais imperativos bíblicos: “não matarás”, que encontra sua expressão maior na sentença “farás tudo para que o Outro viva” e, “amarás ao estrangeiro”, aparecem como direitos naturais por excelência, existentes antes mesmo de serem positivados. Assim, como para ter direitos basta ser homem, o homem enquanto homem teria direito a um lugar excepcional no ser e exterior ao determinismo dos fenômenos. Direito a um lugar excepcional no ser equivalente ao direito à independência ou à liberdade de cada um reconhecida por cada um. Lugar excepcional como expressão de direito à livre vontade, garantido e protegido pelas leis já instituídas pelo homem. Todavia, o direito à livre vontade se revela na obrigação (a qual incumbe aos próprios homens livres) de poupar ao homem a dependência em que ele não seria senão puro meio de uma finalidade da qual não seria de modo nenhum, o fim. Obrigação de poupar ao homem os constrangimentos e as humilhações da miséria, da errância e mesmo da dor e da tortura que a própria sucessão dos fenômenos naturais (físicos ou psicológicos), a violência e a crueldade das más intenções do seres vivos ainda comportam.5 Destarte, o direito “maior” é o direito à livre vontade. Direito à livre vontade que se exterioriza em obrigação. Obrigação de zelar, efetivamente, para que o homem não morra e na de amar ao estrangeiro. E na defesa dos direitos do homem fica patente a necessidade de estabelecer uma ordem de urgência para estes direitos concretos. Contudo, tal ordem pode variar em face de situações fáticas de cada país. Justamente face a possibilidade de variação da ordem desses direitos deriva uma obra imprescindível: a elaboração de uma ordem humana da liberdade, pela eliminação de muitos obstáculos materiais do contingente e das estruturas sociais que perturbam e distorcem a aplicação e o exercício dos direitos do homem. Ainda assim, mesmo ordenados, tais direitos talvez não consigam fazer desaparecer os últimos rigores do “inumano” no ser que sempre contrariam e limitam a livre vontade do homem. A sua liberdade como limite à própria liberdade. A liberdade como necessidade de obrigação consistente em, repito, poupar o homem das más intenções que os seres vivos ainda comportam.6 3 A LIBERDADE COMO DIREITO DO HOMEM Em que e de que modo, concretamente, a vontade livre ou autônoma que o direito do homem reivindica poderia opor-se a uma outra vontade livre, sem que esta imposição implicasse um efeito, uma violência sofrida por esta vontade? São duas as hipóteses: a) quando a decisão de uma vontade livre não se conformar a uma máxima de ação que se deixa universalizar sem se contradizer e que, revelando assim a razão que habita uma vontade livre, esta vontade não se faça respeitar por todas as outras vontades, livres por sua racionalidade. Vontade que Kant chamou razão prática.7 A vontade livre do direito do homem poderia opor-se 4 LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 243/245. LÉVINAS. Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 263/264. 6 LÉVINAS. Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 263/264. 7 LÉVINAS. Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 217/219: 241/242. 5 a uma outra vontade livre, sem que tal imposição implicasse em violência à esta vontade quando a ação oriunda da vontade livre subordinada fosse desconforme à universalidade, ou seja, não fosse boa a ponto de tomar-se universal. Na realidade, em tal situação a vontade subordinada não é vontade livre, pois em relação a um mesmo argumento só há uma verdade. b) quando o “sentimento intelectual” do respeito delineie aqui o respeito como modalidade do sentido verdadeiro da situação. “Sentimento intelectual” que, precisamente como intelectual, não procederia mais da sensibilidade, entendida por Kant como fonte de heteronomia e que, em lugar da ofensa infligida pela vontade à liberdade de outra vontade, atesta a plenitude da paz na razão. Neste particular, a vontade que obedece à ordem da vontade livre seria ainda uma vontade livre, como uma razão que se rende à razão, na concepção de Kant. Para Lévinas, repetimos, não seria vontade livre. O imperativo categórico seria o princípio maior, “último”, do direito do homem. Destarte, uma ação que pudesse ser universal (ages apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal) seria o princípio maior do direito à vontade livre. Vontade livre do homem expressa em uma ação que possa ser uma lei universal. 4 A LIBERDADE EM EMANUEL KANT Para Emanuel Kant, cuja vida terrena se estendeu entre 1724 e 1804, a liberdade é o fundamento da vida moral. A liberdade é condição da vida ética e moral, apesar dessa ser conhecida somente na razão prática e não na razão pura. O vocábulo “razão” tem várias significações, principalmente quando vem acompanhado de um adjetivo: razão analítica, razão concreta, razão dialética, razão instrumental, razão mecânica, razão teórica, razão prática etc. Contudo, a razão que nos interessa é a razão prática de Kant. Segundo Kant, as duas razões (teórica e prática) não são dois tipos distintos de razão, mas a mesma razão, a qual diferem em sua aplicação. A razão, em seu uso prático, ocupa-se das razões determinantes da vontade, da liberdade etc. e, então, seu uso é ético ou moral. Para Kant, só um ser racional tem vontade. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo as representações das leis. A vontade é a razão prática. A razão determina infalivelmente a vontade. A vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer, como bom. Bom é aquilo que determina a vontade por meio de representações da razão, por conseguinte, não por causas subjetivas, mas de forma objetiva, por princípios que são válidos para todo o ser racional como tal. A representação de um princípio objetivo chama-se um mandamento da razão, enquanto fator que obriga a uma vontade, e a fórmula do mandamento da razão chama-se imperativo. O imperativo dividese em hipotético e categórico. O imperativo categórico é único e dele derivam todos os imperativos do dever: “ages apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”; temos que poder querer que uma máxima da nossa ação se transforme em lei universal. Kant procurou demonstrar que a liberdade é o fundamento do imperativo categórico. É, também, o fundamento da moralidade. Mas, se a razão só por si não determina suficientemente a vontade, se esta está ainda sujeita a condições subjetivas (a certos móbiles) que não coincidem sempre com as objetivas, ou seja, se a vontade não é em si plenamente conforme a razão (conforme acontece realmente entre os homens), então as ações, que objetivamente são reconhecidas como necessárias, são subjetivamente contingentes, e a determinação de uma tal vontade, conforme as leis objetivas, é obrigação, quer dizer, a relação das leis objetivas para uma vontade não absolutamente boa representa-se como a determinação da vontade de um ser racional por princípio da razão, princípios esses porém a que esta vontade, pela sua natureza, não obedece necessariamente. Os princípios dizem que seria bom praticar ou deixar de praticar qualquer coisa, mas dizem-no a uma vontade que nem sempre faz qualquer coisa só porque lhe é representado que seria bom fazê-la. Se a razão não é apta bastante para guiar com segurança a vontade no que respeita aos seus objetos e à satisfação de todas as nossas necessidades (que ela mesma, a razão, em parte multiplica), e se, no entanto, a razão nos foi dada como faculdade prática, isto é, como faculdade que deve exercer influência sobre a vontade, então o seu verdadeiro destino deverá ser produzir uma vontade, não só boa, quiçá como meio para outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma, para o que a razão é absolutamente necessária, uma vez que a natureza de resto agiu em tudo com acerto na repartição das suas faculdades e talentos. 5 DIREITO, JUSTIÇA E RESPONSABILIDADE POR OUTREM Retornando a Lévinas, a fonte de todo verdadeiro direito e de toda verdadeira justiça encontra-se na separação ética da relação entre o Eu e o Outro.8 Lévinas faz pensar um direito do Outro, à vida, verdadeiro e próprio. O autêntico direito do homem é, acima de tudo, direito do Outro homem. Para Lévinas o des-inter-essamento - esquecimento - de si mesmo move a justiça. O indiscutível mérito de Lévinas foi ter remetido o infinito a uma questão de justiça. Em Lévinas a responsabilidade, irredutível, do um por todos parece nominar um ser-para ao qual é essencial a justiça: pelo contrário, outra a questão última, a sociedade, o Estado e as instituições compõem o âmbito da responsabilidade do um (Eu) para o Outro. Esta justiça, que é o mesmo fundamento da consciência, comporta que se dê um surplus dos meus deveres sobre meus direitos, os direitos do homem manifestando-se à consciência como direito das pessoas, do qual a mim cabe responder. Verifica-se, desta forma, que os direitos do homem estão sustentados em três pilares: a)a consciência desses direitos como direitos do Outro homem; b)a responsabilidade do Eu para com o Outro homem e, c)liberdade revelada na obrigação de zelar pela vida do Outro. E, então, qual o significado do dever-ser destes direitos? Reconhecida que a questão da justificação ou do mesmo dever-ser dos direitos do homem resta aberta, Lévinas sustenta que o autêntico direito do homem é; acima de tudo, direito do Outro homem, que procede daquele absoluto do social, do para-a-outro, que é a bondade vinda primeiro. A morte do Outro homem me põe em xeque e me questiona, como se desta morte o Eu se tornasse, por sua indiferença, o cúmplice, e tivesse que responder por esta morte do Outro e não deixálo morrer só. É precisamente neste chamado à responsabilidade do Eu pelo rosto que o convoca, que o suplica e que o reclama, que Outrem é o próximo do Eu. A proximidade do próximo é a responsabilidade do Eu por um Outro. Esta responsabilidade não é fria exigência jurídica. É toda a gravidade do amor do próximo, do amor sem concupiscência.9 E, na transcendência do para-o-outro se instaura o sujeito ético, o entre nós que fundiria os SCILLITANI, Lorenzo. Dall’infinito del pensiero all’infinito etico: i diritti dell’uomo e i diritti altrui in Emmanuel Lévinas. Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto. Serie V, anno LXXVII, n. 03, p. 366, Iuglio-settembre 2000. 9 LÉVINAS. Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 237/238. 8 deveres do homem: os direitos do homem tornam-se possíveis somente onde a igualdade de todos é alcançada pela minha desigualdade, porque l’oblio di sé muove la giustizia. Entretanto, cabe aqui um último questionamento antes de avançarmos. Se Eu sou responsável pelo Outro, o Outro também não seria responsável a meu respeito? E Lévinas responde: talvez, mas isso é assunto dele, o Outro. A relação intersubjetiva, em seu pensamento filosófico, é não-simétrica, ou seja, sou responsável por Outrem sem esperar a recíproca, ainda que isso me viesse custar a vida. A recíproca é assunto dele. E, precisamente na medida em que entre Outrem e Eu a relação não é recíproca é que Eu sou sujeição a Outrem, e sou “sujeito” essencialmente neste sentido. Sou Eu que suporto tudo. O Eu tem sempre uma responsabilidade a mais do que todos os Outros. Vale trazer à baila a frase de Dostolevsky: “Somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, e eu mais do que os outros”. 6 OS DIREITOS DO HOMEM A PARTIR DA APROXIMAÇÃO DA IDEIA DE DEUS Na religião ou na teologia o direito é conferido ao homem por Deus e este direito do homem responde à vontade de Deus. Para entender o discurso de Lévinas sobre Deus é preciso ter presente o “contexto ético” como lugar de onde Deus me vem à idéia. E o momento em que Deus vem à idéia é o encontro do Rosto do Outro, que é o vestígio de Deus no homem. A relação ética se torna o lugar onde se faz a experiência de Deus, que não se pode demonstrar dentro de um sistema cognoscitivo, porque está além, mas que se mostra e se revela na responsabilidade, na solicitude e amor para com o Outro. Portanto, a ética é a verdadeira religião. . E Lévinas explica: Não gostaria de definir nada através de Deus, dado que eu conheço o humano. É Deus que posso definir através das relações humanas e não o contrário. Eu não me oponho à noção de Deus, e Deus o sabe! Mas quando devo dizer algo sobre Deus, é sempre a partir das relações humanas... Eu falarei de Deus em termos de relações com o Outro. Não rejeito o termo religioso, mas o adoto para designar a situação em que o sujeito existe na impossibilidade de esconder-se. Não parto da existência de um ser sumo e onipotente. Tudo o que eu puder dizer dele virá desta situação de responsabilidade que é religiosa no sentido de que o Eu não pode evitá-la... A idéia de Deus é um idéia que não pode eliminar uma situação humana.10(Grifo conforme original) Via de conseqüência, os direitos do homem constituem uma conjunção em que Deus vem à idéia, em que a noção da transcendência deixa de permanecer puramente negativa, em que o “além” abusivo de nossas conversações é pensado positivamente a partir do rosto de Outrem. A interrupção ou ruptura da perseverança dos seres no seu ser, no des-inter-essamento da bondade, significa todo o absoluto social, do para-o-outro, que é, provavelmente, o próprio desígnio do humano. Isto significa o “mais importante” da fala de Descartes. Na boa filosofia, o que importa é não pensar os direitos do homem a partir de um Deus desconhecido. É permitido aproximar a idéia de 10 PAIVA, Márcio. Subjetividade e infinito: o dec1ínio do cogito e a descoberta da alteridade. Síntese - Revista de Filosofia. Belo Horizonte, Edições Loyola, v. 27, n. 88, p. 224/225, 2000. Apud LÉVINAS, Emmanuel. Transcendence et hauteur. Bulletin de la Société Française de Philosophie, ano LIV, p. 108, 1962. Deus, partindo do absoluto que se manifesta na relação a Outrem. 7 O HOMEM, A RELAÇÃO COM O OUTRO E OS DIREITOS À PERSONALIDADE Dispõe o artigo 5.°, inciso X, da Constituição Federal Pátria promulgada em 05 de outubro de 1988, que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, estando inserido no Capítulo I, que versa sobre os Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, do Título II, que declara e regula os Direitos e Garantias Fundamentais. Os direitos à personalidade compreendem os direitos à integridade física, intelectual e moral das pessoas. Para alguns juristas, o direito à intimidade estaria inserido no direito à integridade moral, sendo este espécie do qual o direito da personalidade seria gênero. Vale ressaltar que os direitos da personalidade mantém elos tão estreitos entre si que o legislador constitucional, corretamente, deu-lhes tratamento unitário, pois, a violação de um deles geralmente repercute nos demais. Necessário demonstrar, ainda que sucintamente, a diferenciação entre intimidade e vida privada segundo a teoria alemã das esferas. A mencionada teoria tem por fundamento a gradativa restrição da intimidade no contexto da vida privada. Assim, em uma esfera maior, representada pela vida privada, situam-se os acontecimentos que o indivíduo não quer que se tornem públicos. Tudo que for externo, estiver além desta esfera, será de natureza pública, ao alcance da coletividade. Em um círculo menor, apreende-se o confidencial, configurando a esfera da intimidade, em cujo círculo restrito tomam parte somente pessoas muito íntimas. E, por fim, no centro das esferas anteriores situase a esfera do segredo, onde não participam sequer as pessoas da intimidade do sujeito, sendo a necessidade de proteção contra a indiscrição bastante intensa. Para atingir o escopo de nossa reflexão, tomaremos por foco principal o direito à intimidade. Contudo, dispensaremos de forma propositada o aprofundamento de seu conceito, conteúdo e a amplitude constitucional de sua expressão. Não obstante, resta incontestável que tal direito é um direito do homem, é um desdobramento do direito à livre vontade, à liberdade, também na concepção do filósofo Emmanuel Lévinas e que, na elaboração de uma ordem humana dos direitos do homem, o direito à intimidade estaria em posição de destaque. Importante registrar que o direito à liberdade vem consignado no diploma legal maior ora citado, no Título I, que declara e normatiza os Princípios Fundamentais, artigo 3.°, inciso I, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, e no artigo 1.°, inciso III, do referido diploma legal, como fundamento desta. O direito à liberdade de todos e para todos, em nossos tempos e no mundo ocidental, já transformou-se em direito imanente, direito natural, direito maior, como o próprio Lévinas fez consignar. Todavia, o problema consiste no consciente exercício desses direitos: à liberdade e à intimidade. Afinal, o que é liberdade? Quem é seu destinatário? Qual a sua finalidade precípua? A quem interessa a liberdade pós-moderna? Será que a liberdade de nossos tempos não está sendo idealizada como instrumento de dominação de um modelo neo-capitalista-liberal? E aí chegamos ao objetivo primeiro desse trabalho que consiste em refletir a interpretação que o Eu da pós-modernidade ou ainda, modernidade para alguns, confere a tal direito do homem, como direito à liberdade, à vontade livre, à sua intimidade, na relação com o Outro, frente ao pensamento humanista de Emmanuel Lévinas. E para que o elemento justiça possa vir à tona, faz-se necessário a presença do terceiro, pois, segundo Lévinas, a justiça é a limitação do privilégio na relação do Outrem com o Eu, relembrando que o Eu é sempre responsável pelo Outro, sempre sujeitando-se à ordem do Outro. A ordem sempre brota do Outrem. A análise torna-se mais prática quando trazemos à baila uma situação rotineira nas relações de ordem jurídica entre os indivíduos. Vejamos. É comum, em litígios envolvendo dúvida quanto a paternidade, solicitar-se a realização do exame de DNA. Tal exame gera uma presunção absoluta de verdade, face seu elevadíssimo grau de confiabilidade cientificamente comprovado. Todavia, tão comum quanto, é o denominado investigado, ou seja, aquele à quem se atribui a paternidade de Outrem, negar a realização do exame, que necessita, regra geral, da colheita de sangue do investigado e do investigando. O argumento jurídico invocado para justificar tal negativa é o direito à personalidade, mais precisamente, o direito à intimidade: inviolabilidade da integridade física (retirar umas gotas de sangue), da integridade moral - honra - (submeter-se ao “vexame” da realização de tal exame) e, até mesmo, da vedação da produção de prova contra si. Acontece que todos estes argumentos, que inclusive são tomados como dogmas no cenário jurídico vigente, sendo plenamente aceitos como fatores justificadores, tem por base, na realidade, uma visão filosófica e uma interpretação do que seja liberdade dos tempos modernos ou pós-modernos, ou seja, extremamente solipsista, onde o Eu impera como única realidade do mundo. O Eu como centro de tudo e de todos. O Eu que gera solidão, violência, guerra. Na concepção de Lévinas tais argumentos jurídicos e egoístas caem por terra quando se afirma que o Eu é sempre responsável pelo Outrem. In casu, o Outrem é o investigando, aquele que procura pelo pai biológico. O Eu é o investigado, o suposto pai biológico. O terceiro, a mãe biológica ou o responsável legal do investigando. O Eu-investigado, tem responsabilidade com o Outrem-investigando. Responsabilidade que não é simples atributo da subjetividade, como se esta existisse já em si mesma, antes da relação ética. A subjetividade não é um para si, ela é, mais uma vez, inicialmente para Outro. O Outro é vestígio do infinito. Tudo aquilo que escapa do Eu é infinito. Ao negar a realização do dito exame, mesmo sob a alegação de estar tutelando um direito próprio, o da personalidade-intimidade, o Eu adota uma postura solipsista, valorizando ainda mais o subjetivismo pós-moderno. O Eu gera violência e solidão. Despreza a sua responsabilidade para com o Outro, que na hipótese, pode ser seu filho. Mas, mesmo não sendo, sua responsabilidade não diminui. É o Outrem que lhe chama, lhe convoca, lhe reclama, lhe suplica a responsabilidade. Responsabilidade que não é fria exigência jurídica. Responsabilidade que é proximidade do próximo, do Eu por um Outro, para-o-outro. É justamente aqui, na relação subjetiva, irreversível e assimétrica, que nasce a consciência moral: na escuta, na obediência, na aceitação da responsabilidade. Existo para o Outro, dou a minha vida ao Outro, aqui esta o bem, para além, no não-lugar, na ausência, na verdadeira vida.11 E esta atitude do Eu faz-nos regressar a questão, já resolvida, do aparente conflito de vontades livres, a qual concluímos tratar-se de uma vontade totalitária, geradora de violência, uma vontade que jamais poderá devir-se um princípio último do direito do homem, um imperativo categórico. 8 A RESPONSABILIDADE POR OUTREM, O ATO DE ADMINISTRADOR PÚBLICO E O IMPERATIVO “NÃO MATARAS” CORRUPÇAO DO O imperativo “não matarás” é um direito natural por excelência. Um direito do homem. Basta ser homem para possuí-lo. Vimos no segundo capítulo que o referido imperativo encontra sua maior expressão na sentença “farás tudo para que o Outro viva”. Vimos ainda que todas as vezes que utilizamos o direito maior do homem, ou seja, o direito à 11 PAIVA, Márcio. Subjetividade e infinito: o declínio do cogito e a descoberta da alteridade. Síntese - Revista de Filosofia, Belo Horizonte, Edições Loyola, v. 27, n. 88, p. 223, 2000. livre vontade para eximir-nos de nossa responsabilidade pelo Outro, estamos gerando totalidade, gerando violência, gerando guerra, gerando morte, conforme a filosofia humanista de Emmanuel Lévinas. Via de conseqüência, toda vez que violamos o imperativo “não matarás”, estamos deixando de fazer tudo, para que o Outro viva. Estamos, repito, eximindo-nos de nossa responsabilidade pelo Outro. O ato de “eximir” consiste em sua quase totalidade em uma conduta puramente omissiva, podendo configurar, em casos excepcionais, uma conduta omissiva-comissiva. Esta mesma linha de raciocínio foi utilizada para nortear a reflexão do tema principal esposado no capítulo anterior, referente a negativa da realização de exame de DNA por parte do Eu-investigado, diante do chamado do Outro-investigando. Não obstante, apesar da violação do imperativo sob enfoque consistir em um ato omissivo na quase totalidade dos eventos, pois todas as vezes que não fizeres tudo para que o Outro viva, estarás infringindo-o, queremos trazer à baila um ato comissivo que, no nosso entender, configura o maior ato de inumanidade do Eu-administrador público, a maior violação do imperativo “não matarás”: o ato da corrupção. E assim o entendemos face a extensão danosa de seus efeitos e conseqüências, tanto sob o aspecto quantitativo quanto qualitativo, bem como, pela intensidade e gravidade do subjetivismoegoísmo com que é motivado e efetivamente realizado. Todavia, imergindo no direito penal positivado, cumpre-nos registrar que o legislador penal pátrio, ao hierarquizar as condutas que a sociedade a qual representa reputa mais danosas e gravosas, considerou o crime de homicídio, ou seja, de matar o Outro, mais grave e danoso que o crime de corrupção, quaisquer que sejam as suas formas e vertentes. A corrupção, na visão do direito penal, assume vestes diferentes. Entretanto, genericamente, podemos afirmar que o mesmo figura entre os crimes contra a administração pública e consiste nos atos de solicitar, oferecer, receber, aceitar promessa ou prometer, vantagem indevida, para si ou para outrem, direta ou indiretamente. É um ato criminoso que ofende à coletividade. Atinge a todos, de forma direta ou indireta. Atinge tanto ao Rosto que lhe clama e suplica diretamente, quanto ao que lhe silencia. A corrupção do Eu-administrador público gera fome, desnutrição, destruição do ser, sede, doença, escravidão, desesperança, desespero, ignorância, violência, dor, morte do Outro. É a maior expressão de irresponsabilidade pelo Outro. A corrupção do Eu-administrador público gera injustiça pois sempre há terceiros nessa relação. O ato da corrupção praticada pelo Eu-administrador público gera uma morte lenta e dolorosa não somente do Outro mas de diversos Outros, podendo sê-la simultaneamente ou não, dependendo de certos fatores e circunstâncias. Através deste, os direitos naturais dos Outros são violados a cada segundo dos segundos restantes de suas vidas. Corrupção e solipsismo andam lado a lado. Talvez se confundam. Leva-nos a concluir que a corrupção é uma conseqüência, quiçá direta, do subjetivismo da modernidade e da pós-modernidade. Um subjetivismo que prega o Eu no centro do mundo, um Eu que para ser Eu tem que ter bens. Um homem que para ter direitos não basta ser homem, basta ter para ser. O ser-para idealizado por Lévinas transformado em ter-para-ser. Enquanto o imperativo “não matarás” significa “farás tudo para que o Outro viva”, o ato de corrupção do Eu-administrador público significa “ajas para que o Outro morra”. Portanto, o Euadministrador público mata. Mata todos os Outros aos poucos, sordidamente. Um ato inumano que mata desumanamente. Destarte o Eu-administrador público é assassino do Outro. É inumano. Repito, é a expressão maior da irresponsabilidade pelo Outro. É um dos maiores distanciamentos da idéia que vem de Deus. 9 CONCLUSÃO A proposta humanista de Emmanuel Lévinas empolga-nos e renova-nos as esperanças de um mundo melhor, de um mundo verdadeiramente humano. Suas idéias e reflexões a respeito da relação ética, da justiça, do Rosto e da responsabilidade por Outrem, ajudam-nos a identificar vetores de violência na sociedade e no Eu. Enquanto a sociedade coloca os homens em permanente conflito, a ética levinasiana os coloca frente a frente, humanizando-os diante da responsabilidade suplicada pelo Rosto de Outrem. Rosto que é vestígio do infinito. Entretanto, vimos como o direito constitucional à personalidade-intimidade, positivado no artigo 5.°, inciso X, da Carta Magna Pátria, é usado pelo homem da modernidade ou da pós-modernidade, para aqueles que entendem que ainda estamos nesta fase, como um instrumento do “inumano”, como um escudo à conscientização da responsabilidade do Eu pelo Outrem, como uma forma de cegueira e surdez ante a súplica do Rosto do Outro e, dessa maneira, como resposta positiva a uma onto-ego-logia fundada sobre as bases do ego-centrismo do Mesmo, como afirmação de um solipsismo pleno, onde o Eu é a única realidade e verdade do mundo. Infelizmente, os exemplos descritos anteriormente não são únicos. Várias são as hipóteses em que o direito, positivado ou não, é usado dessa forma e para tal fim. Várias são as condutas do Eu que violam os direitos naturais do Outro, principalmente o ato da corrupção. E, toda vez que utilizamos o direito do homem, o direito à livre vontade, o direito da personalidade, o direito à intimidade, em qualquer situação fática e jurídica que seja: para eximir, inumanamente, nossa responsabilidade pelo Outro, estamos, diante desta filosofia humanista, gerando totalidade, gerando violência e guerra, gerando morte. Até quando insistiremos... Até quando resistiremos... Porém, este mesmo direito maior, o direito à livre vontade, cujos pilares, repetimos, consistem na consciência que este direito é direito do Outro, na responsabilidade para com o Outro e na liberdade revelada na obrigação de, em síntese, zelar para que o homem não morra, pode ser o fator transformador do próprio Eu, do próprio homem e da própria sociedade. É hora de abaixarmos o escudo que impede nossa conscientização quanto a responsabilidade do Eu pelo Outrem. É hora de enxergar a vida através do Outro. É hora de escutar a súplica do Rosto do Outro. É hora do encontro do Rosto do Outro, momento em que Deus vem à idéia. Camilo José d’Ávila Conto Juiz de Direito, Mestre em Direito Processual – PUC-MG 10 REFERÊNCIAS COSTA JÚNIOR, Paulo José da. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 1997. PAIVA, Márcio. Subjetividade e infinito: o declínio do cogito e a descoberta da alteridade. Síntese Revista de Filosofia, Belo Horizonte, Edições Loyola, v. 27, 11. 88, p. 213-231, 2000. PASCAL, Georges. O pensamento de Kant. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1992. SCILLITANI, Lorenzo. Dall’infinito del pensiero all’infinito etico: i diritti dell’uomo e i diritti altrui in Emmanuel Lévinas. Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto. Serie V. Anno LXXVII, n. 03, p. 363/375, Iuglio-settembre 2000.