Cidade Hospitaleira

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A IDÉIA DE UMA CIDADE HOSPITALEIRA
A cidade sempre foi um lugar de liberdade1, comunicação, criatividade e progresso. Para que continuem a
desempenhar esse papel, as cidades devem ser capazes de receber e integrar seus moradores, sejam eles temporários ou
não, desenvolvendo sentimentos de identidade, orgulho e cidadania, garantindo assim o bem-estar social, apoiado na
segurança, na integração social, no desenvolvimento do emprego e no acesso diversificado a bens culturais e
econômicos.
É principalmente na acentuação das desigualdades que se fundamenta a exclusão social, pois também é por falta
de urbanidade2 e inexistência de políticas adequadas de habitação e transportes – setores decisivos no ordenamento do
território – que os fenômenos negativos da vida urbana se acentuam. A urbanidade e a cidadania estão histórica,
etimológica e culturalmente ligadas à cidade e, portanto, à essência da hospitalidade também.
Tipos fundamentais de cidade
A primeira dificuldade que se encontra é definir o que é uma cidade. O estudo da cidade é um tema amplo e
difuso, não havendo um conceito abrangente que se aplique satisfatoriamente a todas as manifestações decorrentes da
evolução da cidade e que cubra desde o núcleo social emergente até as complexas formas decorrentes do ciclo de vida
da cidade: desenvolvimento, maturidade e declínio.
Uma cidade é um certo número de cidadãos pelo que devemos considerar a quem chamar de cidadãos é o
cidadão (...) Chamamos pois cidadão de uma cidade àquele que possui a faculdade de intervir nas funções
deliberativa e judicial da mesma, e cidade em geral ao número total desses cidadãos, suficiente para as
necessidades da vida3.
Essa é uma definição que corresponde a um conceito político da cidade, e que se adapta ao tipo de cidade-estado
da Grécia. Porém, a cidade também foi definida como todo lugar encerrado por muralhas. Trata-se da cidade medieval,
que não se concebe sem muros que a defendam de ameaças exteriores. Já Cantillon4, no século XVIII, imagina a
origem da cidade baseada no seguinte pressuposto: “Se um príncipe ou melhor um senhor fixa residência num lugar
agradável, e se outros senhores aí acorrem para se verem e conviverem em agradável sociedade, esse lugar converterse-á numa cidade” (apud Goitia, 1996: 7). Observamos aqui o conceito da cidade barroca, de caráter senhorial e
eminentemente consumidora.
Em 1921, Max Weber vê a cidade no sentido econômico, quando a população local satisfaz uma parte,
economicamente essencial, de sua demanda diária no mercado local e outra parte, também essencial, mediante produtos
que os habitantes da localidade e a população dos arredores produzem ou adquirem para colocá-los no mercado. A
cidade, para Weber, é um local de mercado; portanto, ela pode ser entendida como sede do poder (Serra, 1987: 11)
Hoje a cidade contemporânea é caracterizada pela sua desintegração. É uma cidade fragmentária, caótica,
dispersa, constituída por áreas congestionadas, com zonas diluídas pelo campo circundante. A dinâmica da integração
social se ressente, pois o homem em sua vida diária sofre estímulos tão contraditórios que ele próprio, à semelhança da
cidade em que habita, se desintegra e se desconstrói.
Desenvolvimento das funções urbanas
Ao fazer um levantamento das atividades da cidade, é preciso distinguir entre dois aspectos: as funções
humanas comuns, desempenhadas em toda parte, e as funções urbanas especiais, produtos de suas filiações históricas e
de sua estrutura singular e complexa desempenhadas apenas dentro da cidade. Entre essas funções e processos, destacase uma capacidade superior de cooperação emocional; e, a partir dessas coisas, emergem novas finalidades, não mais
ligadas às necessidades originárias que acarretam a existência da cidade (Murford, 1998: 110)
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Diz um provérbio alemão que o ar das cidades é livre r torna os homens livres (Die Stadilufi machi frei)
Segundo Jane Jacobs, o grau de urbanidade de uma cidade, de uma metrópole ou de um bairro depende inteiramente do grau de vitalidade
urbana. A autora, portanto, entende urbanidade como a relação dinâmica que se estabelece entre as atividades urbanas cotidianas, que são
maiores que as “funções urbanas”, sempre renováveis e ampliáveis, e o espaço público adequado à sua realização. Segundo Borja (1994), a
cidade em que se vive e se projeta deverá ser sempre uma cidade em que tudo seja, pelo menos teoricamente, possível: máxima informação e
mobilidade, múltiplas ofertas culturais e de consumo, infinitas possibilidades de relações sociais, grande diversidade de atividades e
oportunidades de trabalho.
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Aristóteles, Política, Livro III, Cap. I.
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Richard Cantillon, economista de origem irlandesa, nasceu em 1680 e morreu em Londres em 1734. Seu trabalho mais relevante foi Essai sur
la nature du commerce, publicado postumamente em 1755.
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Para satisfazer suas necessidades, os homens exercem uma série de ações sobre a natureza, modificando seu
ambiente e adaptando o espaço. Assim, no processo de interação com o espaço natural, o homem insere-lhe construções
humanas, criadas com uma finalidade, uma função. São compartimentações do espaço em subconjuntos mais ou menos
permanentes e de dimensões variadas, porém interligados em rede, caracterizando um sistema.
A produção de adaptações do espaço é feita pelo trabalho humano cooperativo, sendo, portanto, um produto
social.
Marx (1980: 202) divide em três elementos o processo de trabalho: o trabalho propriamente dito, o objeto de
trabalho e os meios de trabalho. O instrumento é o meio de trabalho e este
é uma coisa ou um complexo de coisas, que o trabalhador insere entre si e o objeto de trabalho e lhe serve para
dirigir sua atividade sobre esse objeto. Portanto, as ferramentas, as máquinas e os edifícios, assim como outras
adaptações promovidas no espaço, são instrumentos, fazendo parte da força produtiva da sociedade (Serra,
1989: 47)
Os homens não trabalham sozinhos; pelo contrário, cooperam para atingir um objetivo comum, e durante esse
processo de interação o homem introduz modificações fixas no ambiente natural, destinadas ao atendimento das
necessidades básicas de abrigo ou à produção de outras coisas destinadas à satisfação das necessidades humanas.
À medida que o conjunto geral dos instrumentos se desenvolve, paralelamente ao desenvolvimento da
tecnologia e da cultura, durante o processo de acumulação e de complexidade crescente na divisão do trabalho, maior é
a capacidade do homem de introduzir modificações no meio ambiente, construindo adaptações do espaço conscientes e
dirigidas para determinada finalidade; entretanto, tais modificações resultantes dessas adaptações implicam, com
freqüência, aspectos negativos imprevistos (Serra, 1989: 51).
Para Milton Santos, citado por Silva (1991: 13), o espaço, portanto,
se define como um conjunto de formas representativas de relações sociais do passado e do presente, e por uma
estrutura representada por relações sociais que estão acontecendo diante dos nossos olhos e que se manifestam
através de processos e funções. Daí porque a evolução espacial não se faz de forma idêntica em todos os
lugares.
A idéia de uma cidade hospitaleira
A idéia de uma cidade hospitaleira está vinculada à construção da urbe, à tessitura estrutural e social da cidade
como conhecemos atualmente. A perda da unidade e autonomia das partes têm sido conseqüências constatáveis do
processo normal de evolução da cidade e da sociedade. As contradições de localização e a contraposição de situações
decididamente aposentam os projetos integrais, os planos oniscientes, onipresentes e totalitários. A cidade-máquina está
descartada; ao invés disso assistimos à necessidade de uma nova compreensão da cidade, agora destinada a novos
papéis: expressão de segmentos sociais, vínculo concreto dos tempos de uma sociedade, narrativa cultural da trajetória
da comunidade, lugar urbano, seqüência de lugares de vida e de disputa.
Não se pode falar de comunidade, ou mesmo tratar dela, sem considerar os inúmeros aspectos dos quais os
indivíduos que vivem na cidade dependem, pois compõem essa comunidade. É essa compreensão de cidade, em que
todas as coisas e todos os processos estão inseridos no espaço e no tempo (inseparáveis), que define os quadros
geoistóricos da ação humana, pois um movimento no espaço é também um movimento no tempo. O espaço nos envia à
nossa especialidade, ou seja, aos diferentes lugares que constituem nossa geografia, ao mesmo tempo pessoal e social.
Todo indivíduo é, com efeito, originário de um determinado lugar, desenvolveu-se em um meio particular, ocupa uma
posição profissional, trabalha em determinada organização, vive em determinado lugar e morre algum dia em algum
lugar. Esses lugares estão integrados a espaços mais amplos. Esse enraizamento espacial pode ser mais ou menos forte,
mas não se pode conceber um ser humano ou uma coletividade que não tenha algum tipo de vinculação espacial. É por
essa razão que os lugares e as posições que ocupamos no âmbito individual ou coletivo são objetos de diversos
investimentos: afetivos, materiais, profissionais e outros (Fischer, 1989, apud Torres, 1992: 31).
Fontes de enraizamentos, esses investimentos reafirmam uma identidade pessoal e coletiva, ambas aliadas a
uma nova compreensão de qualidade de vida, fornecendo assim novos parâmetros para a construção de uma filosofia de
Cidade Hospitaleira. A união dessas duas concepções, cidade e hospitalidade, leva à formulação também da idéia de
Estado, que deixa de ser visto como elemento centralizador. As políticas públicas, agora, não podem mais ser definidas
nos gabinetes, mas dependem de negociação com a sociedade. A idéia de Estado passa a admitir uma concepção de
mediação. A cidade, portanto, não é apenas um centro de produção, mas também um lugar em que a sociabilidade se
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desenvolve frui certa hospitalidade. E em relação a essa dimensão que as idéias de bem-estar coletivo e de interesse
público parecem aplicar-se diretamente.
Para o pensador francês Michael Foucault5, a cidade nasce como um projeto de disciplinar o espaço e as
pessoas. Embora já existissem cidades que se encaixavam nessa definição, fundamento da cidade moderna é a idéia
grega de polis.
Qualidade de vida no espaço urbano
A cidade constrói-se dia a dia, toda a construção se processa a partir de uma destruição, obedecendo um curso
natural cujo fim é sempre a morte. Uma cidade que se constrói é ao mesmo tempo uma cidade que se destrói; e é
precisamente na maneira de articular essa dupla operação de construção-destruição que reside a possibilidade de as
cidades se desenvolverem harmoniosamente, visto que o ideal é que a construção se faça com o mínimo de destruição
possível e, sobretudo, que essa destruição não seja nada além de uma readaptação inteligente às novas exigências
(Goitia, 1996: 205).
O conceito de qualidade de vida no espaço urbano é de difícil mensuração; qualidade no âmbito da cidade é o
resultado que combina determinadas características gerais, entre elas segurança, qualidade ambiental, mobilidade e
oportunidade de lazer, com sensibilização para as diferenças da população, especialmente as de faixa etária e limitações
físicas. Seu pressuposto básico é poder expressar conceitualmente as condições ecológicas e sociais características de
um espaço ocupado e explorado pelo homem, com garantias de satisfação de suas necessidades mediante o uso de
recursos da natureza e de objetos construídos pelo homem; um conceito normativo que envolve o qualitativo, mas que
se exprime quantitativamente por seus componentes (Silva, 1997: 202).
Ainda segundo Silva (1997), o processo de crescimento dos centros urbanos do terceiro Mundo possui uma
dinâmica própria, marcada por ajustes estruturais que influenciam decisivamente a qualidade de vida da população. A
incipiência da ação do Estado, em suas diferentes esferas de governo, na proteção/prevenção de danos ao meio
ambiente nas grandes cidades, não assegurando um nível aceitável de condições de sobrevivência, envolvendo tanto a
produção como os serviços sociais, e as diversas atividades da gestão do desenvolvimento, portanto da reprodução
social destas últimas. Esse contexto generalizado tem engendrado uma queda contínua da qualidade de vida das
populações.
Considerações finais
O quadro caótico de violência nas metrópoles tem gerado um alto nível de medo e tensão nos seus habitantes,
restringindo a utilização dos ambientes domésticos e outros locais mais reservados em detrimento de outros espaços
também públicos. A carência de vida cultural e de atividades sociais e coletivas diminui o que se entende por laço
social, levando dessa forma à castração das forças de mobilização, ação e reivindicação da coletividade em geral, além
de causar a perda da hospitalidade.
A hospitalidade representa, eminentemente, o sustentáculo do laço social pois ela tem como princípio
fundamental atar o indivíduo a um coletivo, contrapondo-se inteiramente ao ato de exclusão. A qualidade de vida insere
e reconstitui o tecido social, em uma sociedade de “justos” cada um trabalha para incluir os outros (Lévy, 1998:58).
Sendo assim, entendemos que toda a identidade requer a existência do outro, “o outro não existe enquanto existe
apenas nós, o que significa que uma forma de relacionamento – identificação, amor, solidariedade, hospitalidade – é
indispensável para construir o que quer que seja com o outro”(Enriquez, 1983 apud Torres, 1992)
O conceito de hospitalidade cuja qualidade pode ser entendida como categoria da identidade, não pode ser
estudada apenas no seu nível normativo; deve-se levar em consideração as percepções influenciadas pela cultura e
educação dos indivíduos.
MATHEUS Zilda Maria. “A idéia de uma cidade hospitaleira”, in Célia Maria de Moraes Dias (org) Hospitalidade:
reflexões e Perspectivas. Barueri, SP. Ed. Manole, 2002 (pp. 57-67)
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A obra de Michael Foucault (1926-1984) se dirige para um esgotamento dos valores estabelecidos até o século XX. Ela é destruidora de
convicções problematizando o passado e perguntando pela atualidade, segundo Eribon.
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