Digestão e absorção de lipídeos e proteínas

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Digestão e absorção de lipídeos e proteínas; Rui Fontes
Digestão e absorção de lipídeos e proteínas
1-
Tal como os glicídeos, também as proteínas e os lipídeos da dieta são hidrolisados durante o processo
digestivo por ação catalítica de enzimas. O ambiente em que estas enzimas atuam também é importante
e, neste contexto, tem importância a secreção de ácido clorídrico pelas células parietais do estômago, a
neutralização deste ácido pelo bicarbonato presente no suco pancreático e na bílis e a emulsificação
das gorduras (dispersão em gotículas) por ação dos sais biliares, dos fosfolipídeos, da temperatura e
dos movimentos peristálticos do estômago e intestino.
2-
O ácido clorídrico é segregado nas células parietais do estômago podendo o pH do estômago ser da
ordem de 1-2. O processo envolve a conversão do CO2 em ácido carbónico por ação catalítica da
anídrase carbónica (ver Equação 1) e a subsequente dissociação do ácido carbónico em HCO3- + H+ no
citoplasma das células parietais. No polo apical destas células a ATPase do H+/K+ catalisa a troca de H+
que sai (contra gradiente) por K+ que entra (também contra gradiente); a componente exergónica do
processo é a hidrólise do ATP. No transporte de Cl- do sangue para o lúmen estão envolvidos
transportadores: no polo basal existe um antiporter que troca Cl- (que entra) por HCO3- (que sai); no
polo apical existe um canal iónico que permite a saída do Cl- para o lúmen. Assim quando as células
parietais são estimuladas a segregar ácido clorídrico o bicarbonato que resultou da dissociação do ácido
carbónico vai alcalinizar o plasma sanguíneo. As células que forram o estômago não são normalmente
agredidas pelo ácido porque estão protegidas pelo muco. O pH ácido do estômago tem importância na
digestão gástrica porque é o pH adequado para a ação das enzimas que aqui atuam (lípase gástrica e
pepsina) e provoca desnaturação das proteínas da dieta facilitando a sua digestão. A estimulação da
secreção ácida resulta de estímulos nervosos (via nervo vago), da ação parácrina da histamina
(sintetizada por células da própria mucosa gástrica) e da hormona gastrina. A gastrina é sintetizada por
células endócrinas localizadas na mucosa gástrica e, para além de estimular a secreção de ácido,
também estimula a secreção das enzimas digestivas gástricas por células que são designadas de
principais.
Equação 1
CO2 + H2O → H2CO3
3-
No lúmen do duodeno o ácido do estômago é neutralizado pelo HCO3- dos sucos pancreático e biliar. O
pH 7-8 do lúmen intestinal é adequado para a ação das enzimas digestivas pancreáticas e
intestinais. No pâncreas, o bicarbonato é sintetizado e segregado num processo em que também
participa a anídrase carbónica (ver Equação 1) e que ocorre nas células dos canalículos pancreáticos. O
estímulo para esta secreção tem origem na secretina, uma hormona sintetizada por células endócrinas
situadas no epitélio intestinal. A secretina também tem ação estimuladora na secreção exócrina
pancreática de enzimas digestivas mas, neste papel, tem maior relevância a colecistocinina. A
colecistocinina é uma outra hormona sintetizada por outras células endócrinas situadas no mesmo
epitélio intestinal e, para além de estimular a secreção de enzimas digestivas pancreáticas (nas células
acínares), também estimula a contração da vesícula biliar e a consequente descarga de bílis no lúmen
duodenal.
4-
As proteínas são importantes componentes da dieta. As proteínas são formadas por aminoácidos ligados
entre si (numa cadeia linear) por ligações covalentes que os químicos designam por ligações amida. No
caso particular das proteínas e dos peptídeos essas ligações também se costumam designar por ligações
peptídicas. A hidrólise destas ligações leva à separação de grupos carboxílicos e amina. A hidrólise
completa de uma proteína leva à separação dos resíduos dos aminoácidos componentes dessa proteína.
O aminoácido mais simples é a glicina (CH2NH2COOH) que contém apenas dois carbonos, nenhum
deles assimétrico. Os aminoácidos que fazem parte das proteínas são todos α-aminoácidos e, com
exceção da glicina (que não tem enantiómeros), são todos de tipo L: quando os carbonos 1, 2 e 3 estão
alinhados na vertical, o carbono 2 (ou α) está no plano do papel e os carbonos 1 e 3 estão atrás do
plano, o grupo NH2 ligado no carbono 2 está voltado para a esquerda. Também ligado ao carbono 2 dos
diferentes aminoácidos existe uma “cadeia lateral” (1) que pode ser simplesmente um hidrogénio (como
no caso da glicina), (2) um grupo metilo (como no caso da alanina), (3) uma cadeia alifática ramificada
(como nos casos da valina, leucina e isoleucina), (4) conter um grupo hidroxilo (como nos casos da
serina, treonina, tirosina, hidroxilisina e hidroxiprolina), (5) conter um átomo de enxofre (como nos
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casos da cisteína e metionina), (6) conter grupos carboxílicos ou as respetivas amidas (como nos casos
do aspartato, asparagina, glutamato e glutamina), (7) conter grupos básicos (como nos casos da
arginina, lisina, hidroxilisina e histidina), (8) conter anéis aromáticos (como nos casos da histidina,
tirosina, fenilalanina e triptofano) ou (9) conter uma amina secundária (como nos casos da prolina e
hidroxiprolina).
5-
Na digestão das proteínas (quer as da dieta, quer as endógenas que são segregadas ou “descamam” para
o lúmen do tubo digestivo) participam protéases (hidrólases de proteínas) com origem nas células
principais do estômago (pepsina), nas células acinares pancreáticas (tripsina, quimotripsina, elástase
e carboxipeptídase A e B) e nos enterócitos (aminopeptídases e dipeptídases). Por ação destas
enzimas ocorre rotura das ligações peptídicas das proteínas gerando-se peptídeos com tamanho cada vez
menor e, no final do processo, aminoácidos. A pepsina, a tripsina, a quimotripsina, a elástase e a
enteropeptídase (ver abaixo) dizem-se endopeptídases porque catalisam a rotura de ligações
peptídicas situadas no “interior” da estrutura primária dos seus substratos. Pelo contrário, as
carboxipeptídases (libertam o aminoácido da extremidade carboxílica), as aminopeptídases (libertam o
aminoácido da extremidade amina) e as dipeptídases dizem-se exopeptídases porque atuam em
ligações peptídicas das extremidades e da sua ação catalítica resulta a libertação de aminoácidos.
Embora sejam muito inespecíficas cada uma das peptídases atua preferencialmente em ligações
peptídicas que envolvam determinados aminoácidos; estas “preferências” são diferentes de enzima para
enzima. As peptídases digestivas são capazes de catalisar a hidrólise das proteínas da dieta, das
proteínas que fazem parte das células da mucosa que “descamam” (em constante renovação) assim
como das próprias enzimas digestivas (que também são proteínas). De facto, se admitirmos uma
ingestão diária de cerca 60-80 g de proteínas na dieta, uma massa semelhante de proteínas endógenas é
vertida no lúmen digestivo e apenas uma fração menor (cerca de 10 g/dia) de produtos de origem
proteica aparece nas fezes [1]. A maior parte do azoto das fezes é constituinte das proteínas das
bactérias que povoam o intestino grosso. Estas bactérias usam os produtos nitrogenados que escaparam
à absorção no intestino delgado como substratos do seu metabolismo aminoacídico e para a sua síntese
proteica [2].
6-
A pepsina é segregada no estômago como um zimogénio inativo (pepsinogénio) que, em contacto com
o pH ácido do estômago, se hidrolisa gerando a enzima ativa (pepsina) e um polipeptídeo inativo (ver
Equação 2). A separação do polipeptídeo torna o centro ativo da enzima acessível aos seus substratos. A
ativação do pepsinogénio também ocorre por autocatálise: a própria pepsina tem atividade hidrolítica
sobre o pepsinogénio promovendo a ativação deste a pepsina.
Equação 2
zimogénio + H2O → enzima ativa + polipeptídeo inativo
7-
As protéases de origem pancreática também são segregadas como zimogénios inativos; são o
tripsinogénio, o quimotripsinogénio, a pró-elástase e as pró-carboxipeptídases A e B. No duodeno
e jejuno proximal, a enteropeptídase (também impropriamente designada por enteroquínase) catalisa a
hidrólise do tripsinogénio levando à formação de tripsina (ver Equação 2). A tripsina formada vai, por
sua vez, catalisar a hidrólise do quimotripsinogénio, da pró-elástase e das pró-carboxipeptídases A e B
levando à formação de enzimas ativas, que se designam, respetivamente, por quimotripsina, elástase e
carboxipeptídases A e B (ver Equação 2). Até há pouco tempo pensava-se que, à semelhança do que
acontece no caso do pepsinogénio/pepsina, a tripsina podia hidrolisar a ligação peptídica que leva à
conversão de tripsinogénio em tripsina, mas não é essa a convicção atual; esta conversão é estritamente
dependente da ação da enteropeptídase [2]. A enteropeptídase é uma ectoenzima ancorada na
membrana apical dos enterócitos do intestino delgado proximal. Esta localização faz com que a ativação
do tripsinogénio e a consequente ativação dos outros zimogénios apenas ocorra no lúmen do tubo
digestivo prevenindo a autodigestão do pâncreas.
8-
Da ação combinada das enzimas proteolíticas pancreáticas e da pepsina resultam alguns aminoácidos
livres e polipeptídeos, mas a digestão destes últimos continua por ação de ectoenzimas
(aminopeptídases e dipeptídases) que estão ancoradas na membrana apical dos enterócitos. Estes
processos podem levar à formação de aminoácidos livres no lúmen intestinal, mas a absorção pode
ocorrer em fases menos avançadas da digestão das proteínas [3].
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9-
A absorção ocorre nos enterócitos, cuja membrana apical tem múltiplas projeções em forma de
“dedo” que se designam de microvilosidades: ao conjunto dá-se o nome de bordadura em escova. A
absorção das proteínas é um processo complexo podendo fazer-se na forma de aminoácidos, de
dipeptídeos, de tripeptídeos ou mesmo de proteínas inteiras. No polo apical dos enterócitos, o transporte
dos aminoácidos envolve vários simporters em que, na maioria dos casos, o Na+ é cotransportado com
os aminoácidos (transporte ativo secundário em que o componente exergónico é o transporte de Na+).
No caso de aminoácidos com carga global positiva (como a arginina e a lisina) o transporte também
depende da ação da ATPase do Na+/K+ já que a energia envolvida no processo é o potencial elétrico
negativo no interior das células. No caso dos di- e tripeptídeos o único transportador conhecido é um
simporter peptídeo/H+ (PEPT1; da expressão inglesa “peptide transporter 1”) altamente inespecífico
relativamente aos aminoácidos constituintes do peptídeo transportado [3]. A energia envolvida neste
transporte é a que resulta do gradiente eletroquímico do protão. Os protões têm tendência a entrar nas
células devido ao potencial elétrico ser negativo no interior, acoplando (via PEPT1) a entrada de di- e
tripeptídeos. Os protões presentes no lúmen resultaram da ação de um trocador Na+/H+ que catalisa a
troca de um protão que sai para o lúmen por um ião Na+ que entra a favor do gradiente eletroquímico.
10-
Os di- e tripeptídeos e outros peptídeos incompletamente digeridos que foram absorvidos são
maioritariamente hidrolisados por peptídases do citoplasma dos enterócitos. No polo basal dos
enterócitos os múltiplos sistemas transportadores de aminoácidos são distintos dos que existem no polo
apical e, na maioria dos casos, são uniporters, não envolvendo cotransporte de iões inorgânicos. Na
maioria dos casos, os aminoácidos que entraram para os enterócitos ou foram aí libertados via hidrólise
de peptídeos entram na corrente sanguínea através do sistema porta hepático. No entanto, alguns
aminoácidos (com particular destaque para a glutamina) são, em grande parte, oxidados nos enterócitos
sendo aqui importantes nutrientes do ponto de vista energético [3].
11-
Apesar de existirem enzimas capazes de hidrolisarem completamente as proteínas da dieta, algumas
moléculas escapam ao processo e podem aparecer intactas no plasma sanguíneo. A absorção de
proteínas inteiras pode ocorrer por dois mecanismos. Um deles, designado por transcitose, envolve a
endocitose no polo luminal dos enterócitos e a subsequente exocitose no polo basal. O outro, designado
por transporte paracelular, envolve a passagem das moléculas proteicas através dos espaços entre os
enterócitos; isto pode ocorrer quando há lesão das junções impermeáveis (tight junctions) que
normalmente impedem esta passagem. A entrada de moléculas proteicas do lúmen intestinal para o
sangue é mais frequente nos bebés que nos adultos e permite que os anticorpos presentes no leite
materno desempenhem um papel na proteção do bebé. No entanto, uma outra consequência é a maior
propensão para a ocorrência de alergias alimentares nos bebés.
12-
Os lipídeos são um grupo heterogéneo de compostos que, em geral, são praticamente insolúveis na água
e solúveis em solventes orgânicos. As gorduras existem sobretudo no tecido adiposo, são os mais
abundantes componentes lipídicos da dieta (mais de 90%) e são misturas de diferentes tipos de
triacilgliceróis. Os triacilgliceróis são ésteres de ácidos gordos e glicerol. Os ácidos gordos podem
ser saturados (sem duplas ligações) ou insaturados (contendo duplas ligações que, no caso dos
lipídeos naturais, estão sempre na configuração cis). Os ácidos gordos denominam-se de acordo com o
número de carbonos e, no caso de existirem, com o número e localização das duplas ligações. São
exemplos de ácidos gordos saturados, o butírico (4C), o palmítico (16C), o esteárico (18C) e o
araquídico (20C). São exemplos de ácidos gordos monoinsaturados o palmitoleico (16:1;9) e o oleico
(18:1;9). Os ácidos linoleico (18:2;9,12), α-linolénico (18:3;9,12,15), araquidónico (20:4;5,8,11,14) e
eicosapentaenoico (20:5;5,8,11,14,17) são exemplos de ácidos gordos poli-insaturados. A esmagadora
maioria dos ácidos gordos da dieta estão, aquando da sua ingestão, esterificados sendo componentes dos
triacilgliceróis; os mais abundantes são o oleico, o palmítico e o linoleico.
13-
Para além dos triacilgliceróis também fazem parte da dieta os componentes lipídicos das membranas de
que destacamos os glicerofosfolipídeos e o colesterol. Os colesterídeos (ésteres de colesterol)
formam gotículas no citoplasma das células e também fazem parte da dieta normal. Entre os
glicerofosfolipídeos têm especial importância as lecitinas. As lecitinas (também designadas por
fosfatidil-colina) são formadas por glicerol ligado nos carbonos 1 e 2 a dois resíduos de ácidos gordos e
no carbono 3 a um resíduo de fosfato por sua vez ligado a um resíduo de colina. Para além de serem
componentes da dieta, as lecitinas e o colesterol também são componentes da bílis que é vertida no
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lúmen duodenal durante a digestão. De facto, as quantidades de lecitinas e de colesterol que diariamente
são vertidas no lúmen intestinal através da bílis são muito superiores às que, normalmente, são ingeridas
na dieta [4].
14-
A dispersão (emulsificação) das gorduras é um passo importante na digestão dos lipídeos consistindo
na diminuição do tamanho das gotículas de gordura. Esta diminuição faz com que aumente a superfície
de contacto entre as fases gorda e aquosa (onde estão as enzimas) do lúmen intestinal. No processo de
emulsificação participam, para a além da temperatura corporal e dos movimentos peristálticos,
substâncias que têm ação detergente. Os detergentes são substâncias com propriedades anfipáticas; na
digestão são importantes os sais biliares, os fosfolipídeos da dieta e de secreção biliar assim como os
próprios produtos da digestão dos lipídeos. As enzimas envolvidas na digestão dos lipídeos são todas
estérases (porque catalisam a rotura hidrolítica de ligações éster) e em todos os casos um dos produtos
é um ácido gordo.
15-
Nos seres humanos, as enzimas com atividade relevante na hidrólise dos triacilgliceróis são as lípases
gástrica e pancreática1. A lípase pancreática tem atividade ótima quando ligada a uma outra proteína
de origem pancreática, a colípase. Porque nem a lípase gástrica nem a pancreática atuam na ligação
éster que envolve o grupo hidroxilo secundário do glicerol, da ação catalítica destas lípases resultam
como produtos ácidos gordos e o 2-monoacilglicerol (ver Equação 3). Na hidrólise dos fosfolipídeos
tem importância uma fosfolípase de tipo A2 (ver Equação 4); por ação desta enzima geram-se
lisofosfolipídeos (glicerofosfolipídeo sem o ácido gordo que estava ligado ao carbono 2 do glicerol) e
ácidos gordos. Na hidrólise dos colesterídeos participa a estérase dos ésteres de colesterol que leva à
formação de colesterol e ácidos gordos (ver Equação 5). De facto, esta enzima é altamente inespecífica
(por isso é conhecida por muitas outras designações) e pode catalisar a hidrólise de outros ésteres
(como, por exemplo, o 2-monoacil-glicerol) assim como as ligações amida dos esfingolipídeos [4, 5].
Equação 3
Equação 4
Equação 5
triacilglicerol + 2 H2O → 2-monoacilglicerol + 2 ácido gordo
glicerofosfolipídeo + H2O → lisofosfolipídeo + ácido gordo
colesterídeo + H2O → colesterol + ácido gordo
16-
A lípase pancreática, a fosfolípase A2 e a estérase dos ésteres de colesterol são, tal como as outras
enzimas digestivas pancreáticas, segregadas pelas células acinares do pâncreas. A lípase e a estérase de
ésteres de colesterol são segregadas na forma ativa, mas no caso da fosfolípase A2 e da colípase a sua
ativação depende da hidrólise parcial que ocorre no lúmen intestinal. Tal como as protéases de origem
pancreática, a fosfolípase A2 e a colípase são segregadas no pâncreas numa forma inativa (a prófosfolípase A2 e a pró-colípase) e, também neste caso, a sua ativação é uma consequência da ação
hidrolítica da tripsina (ver Equação 2).
17-
Para além do seu papel na digestão, os sais biliares também têm um papel essencial na absorção dos
produtos da digestão lipídica. Estes produtos e os sais biliares combinam-se formando micelas
(hidrossolúveis) que se designam por micelas mistas. Ainda no lúmen intestinal, mas junto da
bordadura em escova o ambiente é hidrofílico. O contacto entre os produtos da digestão dos lipídeos
(também eles lipídeos) e a membrana apical dos enterócitos só é possível quando estes produtos estão,
nas micelas mistas, complexados com os sais biliares. Quando as micelas mistas entram em contacto
com a membrana apical dos enterócitos, os produtos da digestão libertam-se das micelas mistas e são
absorvidos. Admite-se que uma parte dos produtos da digestão dos lipídeos seja absorvida sem a
intervenção de transportadores proteicos. No entanto, também existem dados que apontam para a
intervenção de transportadores (transporte passivo) nos casos do 2-monoacilglicerol [6], dos ácidos
gordos de cadeia longa (10-18C) [4], e do colesterol [7]. No caso do transporte de ácidos gordos está
envolvido um transportador designado por translócase de ácidos gordos (FAT; da expressão inglesa,
“Fatty Acid Translocase”) que também é conhecido por CD36. Dentro dos enterócitos os ácidos gordos
de cadeia longa ligam-se a proteínas de ligação a ácidos gordos (FABP, da expressão inglesa, “Fatty
Acid Binding Proteins”) e são, de seguida, “ativados” a acis-CoA por ação catalítica de sintétases de
acil-CoA. Esta “ativação” é a primeira etapa no metabolismo dos ácidos gordos e consiste na sua
1
A atividade da lípase lingual humana é demasiado baixa para poder ter um papel relevante na digestão dos
triacilgliceróis (DeNigris e col. (1988) Biochim Biophys Acta. 959, 38-45).
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esterificação com a coenzima A (ver Equação 6). A formação da ligação tioéster entre a coenzima A e o
ácido gordo é um processo endergónico que está acoplado com o processo exergónico de hidrólise de
ATP a AMP e PPi.
Equação 6
18-
No caso do colesterol o transportador é conhecido pela sigla NPC1L1 (a expressão inglesa que o
designa poderá ser traduzida por “Proteína 1 semelhante à proteína afetada na doença de Niemann-Pick
C1”). A atividade do NPC1L1 é inibida pela ezetimiba, um medicamento que é usado com o objetivo
de baixar a concentração de colesterol no plasma sanguíneo.
Uma parte do colesterol absorvido pode ser esterificado por ação catalítica da ACAT (da expressão
inglesa “Acyl-Cholesterol-Acyl Transferase”; ver Equação 7). Parte do colesterol que não é esterificado
com a coenzima A é transportado (transporte ativo) de novo para o lúmen intestinal através de
transportadores situados no polo apical dos enterócitos: ou seja, a absorção líquida de colesterol é a
diferença entre o número de moléculas de colesterol que passa do lúmen intestinal para o interior dos
enterócitos e o número de moléculas que se movimenta contra gradiente no sentido contrário. Os
transportadores envolvidos no processo de transporte ativo de colesterol designam-se pelas siglas
ABCG5 e ABCG8 (da expressão inglesa “ATP Binding Cassete G”) e também catalisam a saída para o
lúmen de esteróis de origem vegetal (da dieta) que foram previamente absorvidos. Os esteróis vegetais
presentes na dieta também são absorvidos para dentro dos enterócitos mas, na sua esmagadora maioria,
são imediatamente segregados para o lúmen através da ação da ABCG5 e da ABCG8. Poderia pensar-se
que, ao competirem com o colesterol no processo de “expulsão” do interior dos enterócitos para o
lúmen, os esteróis vegetais aumentassem a absorção líquida de colesterol mas, de facto acontece o
contrário. Uma das razões porque os esteróis vegetais inibem a entrada de colesterol no organismo
resulta da competição entre estes esteróis e o colesterol pela sua incorporação nas micelas mistas [4].
Equação 7
19-
acil-CoA + colesterol → éster de colesterol + CoA
Os ácidos gordos de cadeia curta e cadeia média (<10C) são relativamente pouco abundantes e são
absorvidos para a veia porta. Algum glicerol que se forma no processo digestivo também é absorvido da
mesma forma. Os outros ácidos gordos sofrem, dentro dos enterócitos, re-esterificação. A formação dos
triacilgliceróis a partir dos acis-CoA (ácidos gordos ativados) e do 2-monoacilglicerol é catalisado por
enzimas que se situam na face citoplasmática do retículo endoplasmático e se designam de aciltransférases (ver Equação 8 e Equação 9). Por ação destas enzimas, o resíduo acilo do acil-CoA é
transferido para as posições 1 e 3 do 2-monoacilglicerol com a consequente regeneração dos
triacilgliceróis. Por mecanismos enzímicos semelhantes também os fosfolipídeos são regenerados a
partir dos lisofosfolipídeos (ver Equação 10).
Equação 8
Equação 9
Equação 10
20-
ácido gordo + CoA + ATP → acil-CoA + AMP + PPi
2-monoacilglicerol + acil-CoA → 1,2-diacilglicerol + CoA
1,2-diacilglicerol + acil-CoA → triacilglicerol + CoA
lisofosfolipídeo + acil-CoA → fosfolipídeo + CoA
Por mecanismos desconhecidos os triacilgliceróis, os fosfolipídeos, parte do colesterol livre e do
colesterol esterificado entram para o lúmen do retículo endoplasmático e vão, neste compartimento
intracelular, combinar-se com proteínas de síntese endógena (apolipoproteínas: apo B48 e apo A) para
formar agregados lipoproteicos. Estes agregados vão ser depois transportados para o complexo de Golgi
e finalmente são vertidos no polo basal dos enterócitos. Nesta fase, estes agregados designam-se por
quilomicra imaturos. Os quilomicra são demasiado grandes para poderem passar através do endotélio
dos capilares para o sangue. Em vez disso, passam para o interior dos canais linfáticos que confluem no
canal torácico e são depois vertidos na corrente sanguínea numa veia central. Ao contrário dos
aminoácidos e dos glicídeos, que passam através do fígado antes de atingirem a circulação geral, os
lipídeos, na sua esmagadora maioria, não são absorvidos via sistema porta hepático. Devido à lentidão
dos processos que envolvem a digestão e a absorção dos lipídeos assim como a síntese e o transporte
dos quilomicra via linfáticos para o sangue, a concentração de quilomicra no plasma sanguíneo só
atinge um máximo 3 a 5 horas após as refeições.
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Digestão e absorção de lipídeos e proteínas; Rui Fontes
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