VIOLÊNCIA E FAMÍLIA: UMA DISCUSSÃO A PARTIR DA PSICANÁLISE Nathalia Teixeira Caldas Campana1 Vivian Marques 2 A origem da palavra violência remete à ideia de uma força que submete o sujeito, aprisionando-o. Segundo Marin (2002), essa concepção retoma a etimologia do termo violência, que quer dizer força vital, o impulso de sobrevida. Esta força é necessária para a constituição da singularidade, conforme explicitado nos conceitos de violência primária (Aulagnier, 1975 apud Marin, 2002) e violência fundamental (Marin, 2002). O primeiro refere-se ao momento inicial, no qual a mãe subjetiva seu bebê, atribuindo sentido às manifestações da criança, ato necessário para a constituição do sujeito. Mãe e bebê devem ser capazes de diferenciar-se, para viver de forma criativa e não fusional violência fundamental. A partir da experiência clínica, discorreremos sobre dois casos atendidos 3, cada um por uma profissional, nos quais a dinâmica familiar é marcada pelo ataque à subjetividade do outro. Em ambos a alteridade, constatação da singularidade, é vivida como agressão e, assim, entre os membros da família há uma tentativa de impedir que as manifestações do sujeito ocorram. O caso Eco4 refere-se ao atendimento de uma família que se relaciona de forma psicótica, em que o tema do ataque à subjetividade aparece de forma literal, não há espaço para que a violência fundamental ocorra. Já o Caso Eros5 refere-se a uma adolescente que traz o conflito para a terapia, numa tentativa de elaboração e reafirmação de sua individualidade. Em ambos os casos os pais negam a própria violência, projetando-a, o que estabelece uma relação baseada na repetição, impedindo a emergência do novo, da experiência. (Berlinck, 2000). A relação amorosa ocorre na possibilidade de criação, porém se não se aceita o que é diferente de si mesmo, aprisiona-se na rede imaginária da perfeição sem possibilidade do outro manifestar o seu Eu. 1 Psicóloga graduada pela PUC-SP, com experiência em Acompanhamento Terapêutico e Observação de Bebês. Estágio Monitorado na Pré-escola Terapêutica Lugar de Vida e aprimoramento de Casal e Família pela PUC-SP. Atualmente, cursando especialização em Psicologia da Infância pela UNIFESP. Atua na área clínica com atendimento psicoterapêutico de crianças, adolescentes e famílias. 2 Psicóloga graduada pela Universidade Estadual de Londrina, com aprimoramento em Intervenção Precoce na relação paisbebês pelo Instituto Sedes Sapientiae. Especializanda em Psicologia da Infância pela UNIFESP e em dinâmica de grupo pela Sociedade Brasileira de Dinâmica de Grupo. Atua na área clínica através do atendimento psicoterapêutico de crianças, adolescentes e adultos. 3 Os nomes adotados nos dois casos são fictícios para preservar a identidade dos pacientes. 4 Caso atendido no Aprimoramento Clínico Institucional da PUC-SP, com supervisão da Profª Dra. Isabel Silva Kahn Marin. 5 Caso supervisonado pela psicanalista Márcia Mendes. 1 As dinâmicas familiares possuem mitos, histórias que legitimam a composição da família. Sendo assim, crer neste mito reforça o sentimento de pertinência a este grupo; dessa forma, recusá-lo seria renunciar ao amor familiar. (Vilhena, 1991). Caso Eco – O silencio que fala, se me separo, mato o outro? “Confiscarei o uso de tua língua (...). Terás ainda a última palavra, mas não terás o poder de iniciar uma conversa” Mito de Eco- Thomas Bulfinch A família Silvia composta por Maria, José, João (17 anos) e Ana (13 anos) passou por tratamento psicológico por seis meses em uma clínica-escola. A queixa trazida era o comportamento agressivo e deprimido de Ana, que segundo sua mãe, havia sofrido Bulling na escola e desde então não falava mais. A indicação de terapia familiar foi pensada tendo em vista a impossibilidade de propor um tratamento no qual mãe e filha fossem atendidas separadamente, devido ao vínculo simbiótico que estava configurado. João não compareceu a nenhuma sessão, e o pai José não manteve uma frequência regular. João e Ana não frequentavam a escola havia seis meses por decisão da mãe, que alegava proteger os filhos dos perigos que o colégio oferecia. Maria insistia na ideia de que sua família era perseguida e atacada pelo mundo; tinha certeza de que a diretora da escola havia feito um complô com uma corretora de imóveis para prejudicá-la. A relação mãe e filha foi um dos temas predominantes nessa terapia: Maria ocupava a sessão demonstrando todo o saber a respeito de Ana, atribuindo-lhe pensamentos e gostos; as duas estavam tão misturadas que não havia espaço para a adolescente existir. Ana não falava durante os atendimentos, mas suas expressões faciais e corporais eram reveladoras. A terapeuta entendia que o sintoma da menina denunciava a impossibilidade de expressar-se, de existir dentro de sua família. O embotamento de Ana sempre foi preocupante, assim como a ausência de João às sessões; ao longo do tratamento a psicóloga ressaltou diversas vezes a importância de ele vir aos encontros, tentou falar com ele ao telefone, mas João se recusava a atender. Maria justificava a ausência do filho sorrindo e dizendo que ele não saía de casa pois estava com espinhas. 2 Quando José estava presente, falava frases curtas a respeito das situações que o incomodavam, como por exemplo, o fato da filha dormir na cama com o casal; ao mesmo tempo, porém, submetia-se à mulher como se fosse mais um filho precisando de proteção. Maria desqualificava o marido, demonstrando desagrado quando ele trazia conteúdos diferentes dos que ela queria discutir na sessão; era evidente que os dois não estabeleciam uma parceria enquanto casal. Para ilustrar a dinâmica descrita e a linha das intervenções realizadas, seguem duas vinhetas: A terapeuta falou para Ana que já sabia algumas coisas a respeito de Maria, mas que ainda não sabia nada sobre a adolescente. Em seguida, perguntou se ela queria contar alguma coisa, mas Ana faz que não com a cabeça. Maria insistiu para que a filha falasse, mas, desde que fosse a verdade, pois andava mentindo. A psicóloga interveio dizendo para Ana que era impossível obrigá-la a falar, mas que era importante que o fizesse até para ajudar a mãe que tentava ser sua porta-voz; em seguida perguntou se elas eram a mesma pessoa e Maria riu. A terapeuta ressaltou para a menina que, além de ajudar a mãe, também iria se ajudar, pois, quem sabe, se começasse a se colocar, Maria poderia confiar que ela é capaz de se defender e matriculá-la na escola. Afinal, uma menina de 13 anos precisa ir à escola, tem muitas coisas para aprender, amigos para conhecer... Ana sustentou contato visual com a psicóloga, mas não disse nada. Maria tomava como mentira e ataque qualquer opinião da filha que fosse diferente da sua. Assim, as intervenções visaram sustentar a diferenciação mãe / filha e os paradoxos existentes nas relações. A psicóloga disse que Maria estava se sentindo sozinha em seu discurso e que toda a família estava sofrendo. Rapidamente, Maria respondeu que não estava sozinha, pois tem muita ajuda de pessoas no plano espiritual; então a terapeuta falou que se referia ao plano em que viviam. Ainda nesta sessão, Maria afirma que não poderia separar-se da filha, pois se isso acontecesse Ana morreria. As construções desta família, manifestas através do comportamento dos membros e discurso de Maria, eram delirantes. Segundo Vilhena (1991), o delírio é um mecanismo defensivo e diante da angústia de perda total de sua relação com o mundo real, o psicótico cria uma “nova relação” com uma “nova realidade”. 3 Caso Eros – Meu eu te agride; posso existir? “Eros consegue integrar e submeter a destrutividade, convertendo-a em agressividade a serviço da vida” Raquel Elisabeth Pires Marina, que está prestes a completar a maioridade, vem à terapia individual a pedido de sua madrasta, que é quem marca e comparece à primeira entrevista. Desde o início a história de vida da paciente é marcada por situações de violência física e psíquica; inclusive com episódios registrados na polícia. Marina é apresentada como alguém de difícil convívio, capaz de causar confusões onde quer que esteja. Já nos primeiros contatos com os cuidadores há uma enxurrada de informações; embora a terapia fosse para a adolescente, a família aparece misturada nas sessões, sendo necessário delimitar o espaço terapêutico de Marina. Em pouco tempo de trabalho ficou claro que Marina ocupava na mente de seus responsáveis o lugar de objeto, depósito das angústias pessoais de cada membro que compõe esta família. Sendo assim, é tratada de forma violenta em qualquer situação em que aparece sua subjetividade. Contudo, a negação da alteridade vem travestida pelo discurso amoroso, alegando-se uma grande preocupação e cuidado com a paciente. Assim surgem mais conflitos: “faço tudo por você e você é rebelde” (sic). Rebelde, uma vez que não corresponde ao ideal de comportamento desejado por seus cuidadores, assim como não aceita passivamente a posição em que é colocada. Marina revela um mito familiar, é vista como alguém capaz de destruir a paz em todos os meios em que se insere, ou seja, um personagem com alto poder. Durante a terapia é feito um trabalho com a família, buscando rever a posição em que a adolescente é colocada, porém seu rótulo é usado de forma pragmática, e não pode ser questionado. A família mostra que é difícil abrir uma possibilidade para que Marina possa ser olhada sob outro prisma. Para que isso ocorra, cada membro precisaria responsabilizar-se por seus próprios conflitos. A grande queixa dos cuidadores em relação a Marina é que ela faz muita bagunça, quebra e esconde objetos na casa, além de contar mentiras constantemente. Mas com o passar do tempo é possível verificar que a realidade não condiz com essa descrição: a adolescente denuncia a confusão, a “bagunça” interna de cada um. Assim, parece que toda a família concorda que Marina seja castigada, caso contrário não terá chances de futuro. Com essa 4 dinâmica, os demais estão livres de responsabilidades e implicações nesta bagunça; Marina sendo o bode expiatório, os outros podem ser cordeiros. Estabelece-se nesta família um mito de que existe um mal que precisa ser combatido; neste “mal” são depositadas as características próprias que causam um sofrimento que não pode ser assumido como pertencente a eles mesmos e, assim, isentam-se de responsabilidades. (Pires, 2004). Marina sofre dentro de sua casa daquilo de que é acusada, pois semanalmente seus pertences são jogados no chão, revirados ou estragados. Marina mantém sua saúde mental através de leituras e escritos, porém estes são facilmente proibidos e confiscados: seus livros são trancados, ameaçados de destruição e os escritos são rasgados e jogados no lixo. Além disso, suas amizades são criticadas pela família. Assim, não há espaço para que ela possa demonstrar sua individualidade. Os cuidadores tentam de diferentes formas submeter Marina ao que eles desejam e idealizam, mantendo-a na posição de depositária daquilo que rejeitam. Esta família está atravessada por conflitos e desavenças transgeracionais. As relações são permeadas por bastante raiva, algumas vezes explícita ( como uma ameaça de ataque com faca), outras vezes implícita. Parece haver uma necessidade de colocar os filhos como subalternos, tratando-os sob ameaças e agressões. O trabalho da terapeuta, neste caso, foi de diferenciar cada um na família, buscar separar os nós desse emaranhado de fios enrolados (ligações) para ir tecendo os vínculos. “Torna-se vital o resgate da singularidade, a escuta da subjetividade e a possibilidade de se debruçar sobre o sentido das coisas, condições essenciais para a busca da verdade.” (Pires, 2004, p. 156). Considerações Finais Os dois casos exemplificam a violência em relação à alteridade, há um ataque às estruturas, e pode-se perceber a dificuldade que essas famílias encontram para que a diferenciação ocorra. Neste contexto, Eros segue existindo, pois mesmo diante dos obstáculos continua buscando recursos para manter sua diferenciação, procura na terapia sustentação e acolhimento para enfrentar esse processo. Por outro lado, Eco permanece no silêncio, na psicose para existir se escapa da realidade, desta forma, encontra como alternativa, viver no delírio e na relação de complementariedade. Entende-se que o sintoma é a solução criativa para enfrentar os conflitos, o que denuncia a organização social de forma única e singular. 5 Por fim, Winnicott (1971), afirma que o analista deve propiciar ao paciente a descoberta do seu Eu, sendo capaz de existir e sentir-se real, como si mesmo. Neste sentido, em ambos os casos as terapeutas buscaram proporcionar um espaço para a emergência do Eu, espaço para a diferenciação. No caso Eros, entende-se que há recursos internos para que a adolescente possa beneficiar-se da análise. Já no caso Eco, os membros da família encontram dificuldade para sustentar esse espaço, o que vai ao encontro da posição que ocupam, uma vez que não conseguem fixar-se e manter-se em um processo, seguem desistindo e recomeçando tratamentos nos mais diferentes locais. Referência AULAGNIER, P. O aprendiz de historiador e o mestre-feiticeiro: do discurso identificante ao discurso delirante. São Paulo: Editora Escuta, 1989. BERLINCK, M. T. Psicopatologia fundamental. São Paulo: Escuta, 2000. BULFINCH, T. O livro de Ouro da Mitologia: historias de Deuses e Heróis. São Paulo, Martin Claret, 2006. MARIN, I. S. K. Violências. São Paulo: Escuta/fapesp, 2002. SANDLER, P. C. (org.). Leituras psicanaliticas da violência. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. VILHENA, J. Mito e fantasia. Conjunções e disjunções no grupo familiar In: Escutando a familia. Uma abordagem psicanalítica. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará, 1991. pp 9398. WINNICOTT, D. W. (1971). O papel do espelho da mãe e da familia no desenvolvimento infantile. In: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro. Imago, 1975. pp.153-162. 6