Mais do mesmo: a tragédia do trauma repetitivo

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Mais do mesmo: a tragédia do trauma repetitivo
Anna Paula Rezende Pereira
A experiência em setor de terapia de família de hospital universitário público
traz a possibilidade de vermos, enquanto terapeutas, o contexto psíquico em que muitos
laços familiares se encontram, seja na complexidade dos vínculos inconscientes
estabelecidos pelas relações grupais, seja na fragilidade que apresentam por não terem,
no aparato psíquico o suporte necessário que dê conta de questões próprias a cada
sujeito e a suas relações familiares.
Ao considerarmos a constituição do sujeito ressaltamos que este não parte do zero, pois
recebe um legado de seus antepassados, está inserido em uma linguagem, em uma
família, tem relações com outros, ou seja, há vinculações – antes mesmo de seu
nascimento (contrato terapêutico, P. Aulagnier, 1978).
O vínculo é uma estrutura inconsciente, que promove pertença a um conjunto e
uma produção inconsciente própria entre o sujeito e o(s) outros(s); assim, organiza
lugares a partir dos quais cada um suplementa sua subjetividade e é modificado por eles
(Moguillansky, 1996). Cada pessoa simultaneamente pertence a diferentes conjuntos,
nos quais lhe é outorgado papéis distintos; determinadas dimensões são privilegiadas,
assim como distintas significações. Isto quer dizer que, cada indivíduo tem uma função
dentro do sistema familiar, marcado por aspectos distintos que norteiam as referências
junto ao grupo.
Segundo Féres-Carneiro(2008), a família é concebida como uma estrutura, com
características próprias e interações peculiares, cuja dinâmica não pode ser explicada
apenas pelo desejo - fato individual - de cada um de seus participantes. Nesse sentido,
enfoca-se o grupo familiar como um todo, em sua especificidade, diferenciado dos
indivíduos que o formam. Ou seja, as famílias apresentam sua vinculação estabelecida
no encontro entre seus membros, que compartilham de aspectos comuns, alianças e
acordos inconscientes que ratificam -ou não- a noção de segurança, suporte e
acolhimento.
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Trabalho desenvolvido na UDA de Psiquiatria - Setor de Terapia Familiar Psicanalítica do HUPE, sob
supervisão da Dra Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado e apresentado no XVII Fórum de
Residência em Psicologia Clínica Institucional, em setembro de 2013.
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Residente do 1º ano de Psicologia Clínica Institucional do IP/HUPE/UERJ.
Nesse sentido, Kaës (1989) fala de “alianças inconscientes” que, por estarem
inscritas no processo de recalque e por visarem a preservação do vínculo, organizam e
criam os vínculos na medida em que esta dimensão da aliança implica em obrigação e
assujeitamento através de obrigações mútuas , ou seja , a criança que nasce é premida a
encarregar-se das alianças inconscientes sobre as quais se fundamenta o encontro entre
seus pais e sua descendência circunscritos pelos seus contratos narcísicos e pactos de
negação.
Em contrapartida, muitas famílias não apresentam esses vínculos, não possuem a
noção de continente, não constituem um grupo de dependência e apoio que assegure sua
coerência e coesão. São marcadas por uma constituição patológica que acarreta falhas
no processo de simbolização e comunicação, demonstrando deficiências em seu
funcionamento.
Na psicoterapia de família de referencial psicanalítico busca-se viabilizar um
funcionamento psíquico- relacional no qual a família possa se organizar, no registro da
representação, o que tenha ficado fora dessa possibilidade: melhorar a circulação de
elementos representativos e restabelecer a capacidade de pensar.
Escutar uma família a partir do dispositivo da terapia familiar psicanalítica é receber os
diferentes níveis de expressão e funcionamento mental, contê-los e transformá-los.
Partindo-se do funcionamento psíquico mais arcaico, considera-se que o que é
produzido ou dito do conjunto familiar. O aparelho psíquico familiar muda de posição,
dependendo de como esteja podendo se organizar psiquicamente em um dado momento.
Haverá a necessidade de uma escuta grupal, pois a família fala por muitas bocas, que
compõem um discurso revelador do funcionamento de seu aparelho psíquico
(Ciavaldini, Ruffiot, 1990, apud. Almeida Prado, 2008).
Assim, através da experiência clínica no atendimento a famílias, pude observar o
quanto a desestruturação da família traz reflexos profundos na vida de cada um de seus
membros, acarretando confusões nas relações entre eles. Em alguns casos, é notável a
busca por continências em espaços que estejam para além da família que possibilitem
condições de acolhimento e suporte, atuando na função de um envelopamento do
aparelho psíquico do sujeito.

A história de Marina¹
Peter Gay (1923) refere-se a afirmação de Freud, de que um homem que tenha
sido o preferido da mãe, manteria durante a vida o sentimento de um conquistador e a
confiança no êxito que muitas vezes induz à concretização do sucesso. È evidente na
experiência empírica que nem sempre é assim. E quando as circunstâncias são
justamente inversas, quais repercussões poderão ser encontradas na vida de uma pessoa
quando não há investimento emocional proveniente de seus genitores?
¹ O nome da paciente foi modificado a fim de preservar sua identidade.
Marina, 56 anos, encontra-se em acompanhamento familiar psicanalítica há nove
anos, tendo sido encaminhada para mim a fim de dar continuidade ao tratamento. Sua
história de vida é marcada por perdas e muita violência. Nascida em ambiente precário,
foi rejeitada pela mãe, que via em seu nascimento a utilidade de ter alguém para cuidar
dela em sua velhice. Quanto ao pai, não há nenhuma referência por parte da paciente,
sobre sua participação ao longo de seu crescimento.
Ao longo dos atendimentos vou conhecendo, através do relato de Marina, as
marcas traumáticas instituídas desde o início de sua vida. Seu crescimento foi
determinado por uma criação de muito desrespeito e desvalorização, conduzida pela
mãe a um casamento forçado em que a reafirmação de seu desvalor toma força numa
união em que não há desejo e onde acaba sendo trocada por outra mulher. Mais tarde,
Marina se casa com outra pessoa, repetindo-se uma relação conturbada contaminada
pela presença de drogas por parte do marido e de decadência financeira devido à perda
de emprego e dos bens materiais deixados pela mãe. Ao longo dessa união, engravida e,
devido às tentativas de aborto, seu filho nasce com múltiplas deficiências. Em função
dos vícios e das dívidas adquiridas, seu marido negocia com o tráfico a casa e a família
e parte, instalando-se então na casa um jovem traficante, responsável por garantir o que
parecia ser uma “penhora” Ele acaba por assumir diferentes papéis, de chefe da casa,
marido e filho da paciente. Este terceiro casamento indica a existência dos traumas
ativos (Almeida-Prado e Féres-Carneiro, 2005) no psiquismo da paciente e na dinâmica
familiar.
O início da história de Marina é marcado pela função de ser um objeto para o
outro e isto irá perdurar ao longo da sua vida. Já nasce com um papel de serventia, de
objeto-utensílio para a mãe que escolhe a manutenção da gestação apenas para ter
alguém que cuidasse dela ao envelhecer. Narcisicamente, esta mãe que não desejava ter
filhos, decide manter a gravidez em seu próprio benefício. Ou seja, Marina representa o
filho invertido a partir de um interesse narcísico da mãe onde o fim é em si mesma, não
tendo, portanto, lugar em seu psiquismo. O sentimento de desamparo vivido desde seu
nascimento decorre, em parte, dessa mãe pouco disponível na correspondência dos
anseios do bebê, voltando os investimentos apenas para si mesma.
A vivência de desamparo se re-atualiza nas três relações conjugais estabelecidas
por ela, permeadas por decadências, onde nada é bem gestado, tudo é tratado com
violência, com imposições e agressões. A vida de Marina é marcada por tragédias que
se repetem; reproduções de marcas que se enraizaram desde o seu nascimento e que
repercutiram em sombras que se propagam até os dias atuais.
O psiquismo do indivíduo é afetado pelas referências transmitidas por sua
família, e as marcas saudáveis ou patológicas encontradas representam os reflexos de
como o vínculo foi construído. A forma como Marina vai se colocar no mundo e nas
suas relações está ligada ao estigma de quem não tem voz nem vez - é como se não
pudesse mudar e não tivesse condições de sair desse círculo patológico que a enredou.
O lugar que ocupa na cabeça da mãe não é de pertença e sim de um referencial de
utilidade, onde lhe é destinada uma atitude de condescendência. Tudo isso traz
conseqüências negativas, fruto de traumatismos precoces, evidenciados por marcas que
a “carimbam” no mundo e que desencadeiam um lugar de concessão, em que não existe
direito e as situações abusivas acabam por produzir grandes efeitos ao longo de sua
história.
Marina é uma pessoa que concede ao outro, não sabe dizer não e isto é nítido nas
três relações conjugais. A permissividade autorizada por ela reflete a sua própria falta de
limite, pois não há querer; as situações vivenciadas são, acima de tudo, traumas
repetitivos pela não escolha.
Como Marina não recebera amor de sua mãe, este tipo de vinculação nunca se
consolidou no aparato psíquico da paciente; a partir de sua gravidez, a transmissão desse
legado acabou se realizando também em sua relação com o próprio filho. Devido às
tentativas de aborto, ele nasce com lesões que acabam, mais tarde, sendo agravadas pelo
atropelamento sofrido quando rapaz, resultando, portanto em mais problemas mentais e
psicomotores que demandam cuidados constantes.
Ao escutá-la, percebo que sua história é marcada por uma existência de um não
lugar, de uma subjetividade em que não consegue defender-se ou fazer o que se deseja.
As coisas são feitas pelo viés da não vontade- os três casamentos não desejados, não
querer o filho, - ou seja, Marina se destina a ser refém pelas escolhas que não faz, pelas
imposições trazidas das próprias situações traumáticas e pela repetição da dor.
As conseqüências dessa história são recheadas de vivências traumáticas, de
desvalorização pela posição ocupada como objeto-utensílio e a tragédia da repetição a
partir das influências familiares recebidas por ela e que são re-editadas nas suas
relações. Apesar disso, ela conseguiu sobreviver, mesmo não encontrando apoio afetivo
que promovesse melhor continência a seu aparato psíquico. Mesmo com todas as
dificuldades, Marina procura no espaço hospitalar um lugar de cidadania para ser um
sujeito de direito, onde exista e possa ser cuidada. O hospital abre um campo de
significação para ela, lugar em que é vista pelo outro e onde pode ser ouvida. Mas há
um problema: será que obter progressos junto aos tratamentos não acabará por
representar uma ameaça de voltar a um lugar de não existência, de não ser?
A partir da análise feita sobre a história de Marina podemos considerar a citação
de Freud acerca do filho preferido, ao observar como a vida de uma pessoa concebida
da forma oposta à assinalada por ele poderá transformar num desastre, uma vez que o
trauma inicial vivido consegue ser propagado ao longo de sua trajetória de vida.
Bibliografia
- ALMEIDA PRADO, M.C. O psicodiagnóstico da família a partir de uma escuta psicanalítica.
In GOMES, Isabel Cristina (Org.). Família- diagnóstico e abordagens terapêuticas. Rio de
Janeiro: Guanabara Koogan, 2008.
- GAY P, 1923- Freud: uma vida para o nosso tempo / Peter Gay; tradução de Denise Bottmann;
consultoria editorial Luiz Meyer. — 2ª ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
- FERENCZI, S. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte. In FERENCZI, S. Psicanálise
IV. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2011.
-FÉRES CARNEIRO, T. O aparelho psíquico grupal familiar: propostas clínicas. In GOMES,
Isabel Cristina (Org.). Família- diagnóstico e abordagens terapêuticas. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 2008.
- MOGUILLANSKY, R. Representação, relação de objeto e vínculo. Uma visão pessoal sobre a
“noção de vínculo”. In GOMES, Isabel Cristina (Org.). Família- diagnóstico e abordagens
terapêuticas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2008.
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