Trajetos de criação na arte: apontamentos sobre o conceito de

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Trajetos de criação na arte: apontamentos sobre o conceito de criação em Gilles Deleuze
Caroliny Pereira
Doutoranda em Artes visuais, IA Unicamp
sob orientação do Prof. Edson do Prado Pfutzenreuter
Bolsista Capes
Resumo:
Este artigo propõe-se a reflexionar sobre o conceito de criação na arte sob a ótica da filosofia de
Gilles Deleuze, proposição que o autor desenvolve principalmente em seus textos O ato de criação
e O que é a filosofia?, escrito em parceria com Félix Guattari. Nesse intento pretende ainda abordar
como o conceito de criação perpassa ao do devir, para se pensar em como se produz a passagem do
plano virtual para o atual em um trabalho de arte.
Palavras-chave: criação; Deleuze; arte
A criação é um campo de discussão importante para se pensar não somente a arte, como
também a filosofia e a ciência. Vários campos reflexivos tem se detido em abordar a criação e o
processo que a envolve. A intenção desse artigo é abordar o conceito de criação do ponto de vista
da abordagem filosófica instaurada pelo filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995) e investigar
como se opera a passagem da ideia para o trabalho em arte.
Em seu texto O ato de criação, transcrição de uma conferência realizada em 1987, Deleuze
aborda a questão da criação do ponto de vista filosófico, científico e artístico. Para ele, o ato de
criação é comum a todas as áreas, no entanto, diferenciar-se-ão pelo componente operatório com
que cada uma compõe sua criação. À filosofia cabe criar conceitos, à ciência criar funções e às artes
blocos de sensações. E delimitando cada especificidade, cada linguagem artística cria blocos de
sensações que lhe são próprias. “O cinema conta histórias com blocos de movimento/duração. A
pintura inventa um tipo totalmente diverso de bloco. Não são nem blocos de conceitos, nem blocos
de movimento/duração, mas blocos de linhas/cores. A música inventa um outro tipo de bloco,
também todo peculiar.” (Deleuze, 1999, p. 3-4).
A questão da criação também foi desenvolvida no último livro publicado em vida por
Deleuze e escrito conjuntamente com Félix Guattari, O que é a filosofia (1991). A abordagem,
contudo, se deu com mais intensidade, apresentando um complexo conceitual mais amplo para
tratar da criação. Ao conceito de criação, Deleuze e Guattari desenvolveram os conceitos de
percepto e afecto.
A função, na ciência, determina um estado de coisas, uma coisa ou um corpo que
atualizam o virtual sobre um plano de referência e num sistema de coordenadas; o
conceito, na filosofia, exprime um acontecimento que dá ao virtual uma
consistência sobre um plano de imanência e numa forma ordenada. O campo de
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criação respectivo se encontra, pois, balizado por entidades muito diferentes nos
dois casos, mas que não deixam de apresentar uma certa analogia em suas tarefas:
um problema, em ciência ou em filosofia, não consiste em responder a uma
questão, mas em adaptar, coadaptar, com um "gosto" superior, como faculdade
problemática, os elementos correspondentes em curso de determinação [...]
(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 172).
Interessa-nos, nestes dois textos o ponto de vista de Deleuze sobre o ato criativo sobretudo
nas artes. Diante da abordagem deleuzeana procuramos ver a possibilidade de estabelecer um elo
entre a criação em arte e o devir.
Como se dá então essa passagem da ideia para a criação? Deleuze coloca que a ideia está
alocada no virtual, e a criação seria a capacidade de se fazer atualizar esse virtual:
Guardando o infinito, a filosofia dá uma consistência ao virtual por conceitos;
renunciando ao infinito, a ciência dá ao virtual uma referência que o atualiza, por
funções. A filosofia procede por um plano de imanência ou de consistência; a
ciência, por um plano de referência. No caso da ciência, é como uma parada da
imagem. É uma fantástica desaceleração, e é por desaceleração que a matéria se
atualiza, como também o pensamento científico, capaz de penetrá-la por
proposições. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 154).
Guardemos a questão da desaceleração para tratá-la logo adiante. Quanto ao virtual, este
está inserido em uma zona de indiscernibilidade, que compreende todos os componentes passíveis
de serem atualizados. Eles já existem, pois, o virtual é uma zona real, apenas não se encontram
atualizados. As ideias enquanto componentes não atualizados, estão todas nesse campo virtual, em
movimento constante e profícuo, portanto, elas não são genéricas, e mesmo estando nessa zona
ainda indiscernível, elas já estão destinadas a um domínio específico. “As idéias, devemos tratá-las
como potenciais já empenhados nesse ou naquele modo de expressão, de sorte que eu não posso
dizer que tenho uma idéia em geral. Em função das técnicas que conheço, posso ter uma idéia em
tal ou tal domínio.” (Deleuze, 1999, p. 2).
Mais adiante, contudo, Deleuze diz:
A arte desfaz a tríplice organização das percepções, afecções e opiniões, que
substitui por um monumento composto de perceptos, de afectos e de blocos de
sensações que fazem as vezes de linguagem. [...] O monumento não atualiza o
acontecimento virtual, mas o incorpora ou o encarna: dá-lhe um corpo, uma vida,
um universo. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 228, 229).
Portanto, não seria uma questão apenas de atualizar a ideia que está contida no plano virtual,
de maneira que ela se atualize como um trabalho em arte, mas de encarná-la, de fazê-la tornar-se
corporificada. E isso muda o sentido do entendimento sobre a criação em Deleuze, pois não é uma
mudança apenas de grau, mas de natureza. Atualiza-se a ideia em uma materialidade específica a
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cada linguagem artística, mas o monumento, que é tratado por Deleuze, como a própria obra de arte,
“‘variedades’ de compostos de sensações” e não como o que comemora um acontecimento. O
monumento não está direcionado à memória, mas à fabulação, pois esta permite a criação, que se dá
por blocos de acontecimento, enquanto a memória está relacionada a lembrança. Deleuze coloca
que é necessário um material mais complexo do que o existente na memória para se fazer criar a
arte, e este material precisa ser suficiente e autônomo e para tanto, não mais ligados aos que
experimentam ou experimentaram.
A criação é o procedimento que possibilita então, a corporificação dos componentes virtuais,
de modo que eles ganhem vida como trabalhos em arte. Dessa maneira, o devir estaria instaurado
nessa passagem como processo do desejo de uma ideia, um esboço, um croqui se fazer obra de arte.
No processo operacionalizado por velocidade e lentidões, movimentos e repousos.
E, nesse sentido, retomando a questão da desaceleração, mencionada acima, a desaceleração
seria a velocidade que possibilitaria o devir acontecer, pois, de acordo com Deleuze e Guattari:
“Desacelerar é colocar um limite no caos, sob o qual todas as velocidades passam, de modo que
formam uma variável determinada como abcissa, ao mesmo tempo que o limite forma uma
constante universal que não se pode ultrapassar [...].” (1992, p. 154).
Passagem da zona de indiscernibilidade, da ideia para o trabalho em arte. A criação acontece
no devir, trânsito cujo fluxo é movimento contínuo, ora aceleração, ora lentidão; processo de
corporificação do acontecimento virtual para uma materialidade que é singular ao campo das artes e
é dada sobretudo pelo campo expressivo com que cada objeto de arte operacionaliza.
Referências:
DELEUZE, Gilles. O ato de criação. Tradução: José Marcos Macedo. In. Folha de São Paulo,
27/06/1999. Transcrição de conferência realizada em 1987.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
______. Mil platôs 4. Tradução Suely Rolnik. Rio de Janeiro; Ed. 34, 1997.
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